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INTRODUÇÃO

Por uma genealogia do poder


Roberto Machado

A questão do poder não é o mais velho desafio formulado pelas


análises de Foucault. Surgiu em determinado momento de suas pes-
quisas, assinalando uma reformulação de objetivos teóricos e políti-
cos que, se não estavam ausentes dos primeiros livros, ao menos não
eram explicitamente colocados, complementando o exercício de uma
arqueologia do saber pelo projeto de uma genealogia do p_Q.Q_er .
. Qual a gi:.an.cizinovação metodológica assinalada, em--c{96JJ, pela
li istôria da Loucura?, A resolução de estudar - em diferentes épocas e
sem se limitar a nenhuma disciplina - os saberes sobre a loucura para
estahelecer o momento exato e as condições de possibilidade do nas-
cimento da psiquiatria. Projeto este que deixou de considerar a histó-
ria de uma ciência como o desenvolvimento linear e contínuo a partir
de origens que se perdem no tempo e são alimentadas pela interminá-
vel husca de precursores. Mas que também se realizava sem privile-
giar a distinção epistemológica entre ciência e pré-ciência, tendo no
saher o campo próprio de investigação. O objetivo da análise é esta-
belecer relações entre os saberes - cada -um considerado éomo pos-
\ suindo positividade específica, a positividade do que foiefêtivainente
dito e deve ser aceito como tal e não julgado a partir de um saber
posterior e superior - para que destas relações surjam, em uma mes-
1ua i:poca ou em época5diferentes, compatibilidades e incompatibili-
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dades que não sancionam ou invalidam, mas estabelecem regularida- Mas o livro não se limita a uma interrelação conceituai de sabe-
des, permitem individualizar formações di~cursivas. A partir de en- res que demonstra como o conhecimento da doença considerada
tão, a história da loucura deixava de ser a historia da psiquiatria .. como essência abstrata cede o lugar a um sabc:r moderno do indiví-
Esta era, ao mesmo tempo, um momento determinado de uma traje- duo como corpo doente. Guiado pelo problema dos tipos de inter-
tória mais ampla - cujas rupturas ao nível do saber permitem isolar venção das várias formas de medicina, Foucault articula os saberes
diferentes períodos ou épocas - e o resultado deste mesmo processo. com o extra-discursivo, seja instituições como o hospital, a família e
Portanto, não se limitando às fronteiras espaciais e temporais da dis- a escola, seja, em um nível mais global, as transformações politico-
ciplina psiquiátrica, a análise percorre o campo do saber - psiquiátri- sociais, sobretudo na épcca da Revolução Francesa. :f: verdade que a
co ou não - sobre a loucura, procurando estabelecer suas diversas questão institucional e política aparece com muito maior destaque na
configurações arqueológicas. História da Loucura do que em O Nascimento da Clínica. A razão é
Mas isso não é tudo. Outra novidade metodológica foi não se li-. · que, quando sê tratou de analisar historicamente as condições de
mitar ao nível do discurso para dar conta da questão da formação possibilidade da psiquiatria, o próprio desenvolvimento da pesquisa
histórica da psiquiatria. Neste sentido, a análise procurou centrar-se apontou o saber sobre o louco - diretamente articulado com as práti-
nos espaços institucionais de controle do louco, descobrindo, desde a cas institucionais do internamento - como mais relevante do que o
Época Clássica, uma heterogeneidade entre os discursos teóricos - saber teórico sobre a loucura, enquanto que o objetivo fundamental
sobretudo médicos - sobre a loucura e as relações que se estabelecem de ..QN.ascimento da Clínica - explicitar os princípios constitutivos da
com o louco nesses lugares de reclusão. Articulando o saber médico medicina moderna definindo o tipo específico da ruptura que ela es-
com as práticas de internamento e estas com instâncias sociais como tabelece - implicava o privU~io_ do discurso teórico.
a política, a família, a Igreja, a justiça, generalizando a análise até as As Palavras e as C oisa.s, de l 966~ radicaliza este projeto. Seu ob-
causas econômicas e sociais das modificações institucionais, foi jetivo é aprofundar e generalizar interrelações conceituais capazes de
possível mostrar como a psiquiatria, em vez de ser quem descobriu a situar os saberes constitutivos das ciências humanas, sem pretender
essência da loucura e a libertou, é a radicalização de um processo de articular as formações discursivas com as práticas sociais. Tese cen-
dominação do louco que começou muito antes dela e tem condições tral do livro: só pode haver ciência humana - psicologia, socíologia,
. de possibilidade tanto teóricas quanto práticas. anTt6pologia - a partir do momento em que o aparecimento, no sé-
O Nascimento da Clínica, de 1963; retoma e aprofunda uma culo XIX, de ciências empíricas - biologia, economia, filologia - e
questão presente, mas pouco tematizada, no livro anterior: a diferen- das filosofias modernas, que têm como marco inicial o pensamento
ça entre a medicina moderna e a medicina clássica. O estabelecimen- de Kant, tematizaram o hmnem como objeto e como sujeito de co-
.to e a caracterização desta ruptura são os principais objetivos desta nhecimento, abrindo a possibilidade de um estudo do }Jc,m~m como
nova investigação. E a mutação não se explica por um refinamento representação. Isso pode parecer enigmático, mas o que interessa
de noções, que puderam ser mais rigorosamente definidas, nem pela aqui é assinalar que o propósito da análise arqueológica, tal como foi
utilização de instrumentos mais poderosos, que tornaram possível realizada neste livro, consistia em descrever a constituição das ciên-
conhecer algo até então desconhecido. Não se deve opor a medicina cias humanas a partir de uma interrelação de saberes, do estabeleci-
moderna a seu passado como se opõe ciência a pré-ciência, racionali- mento de uma rede conceituai que lhes criai o espaço de existência,
dade a irracionalidade, verdade a erro. Existe ruptura, mas ela é mui- deixando propositalmente de lado as relações entre os saberes e ases-
to mais radical. O que mudou foi a própria positividade do saber truturas econômicas e políticas.
com seus objetos, conceitos e métodos diferentes. A análise arqueo- A consideração desses três livros revela claramente a homoge-
lógica procurou, justamente, explicitar os princípios de organização neidade dos instrumentos metodológicos utilizados até então, como
da medicina em épocas diferentes, evidenciando que, se a medicina o conceito de saber, o estabelecimento das descontinuidades, os crité-
moderna se opõe à medicina clássica, a razão é que esta se funda na rios para datação de períodos e suas regras de transformação, o pro-
história natural enquanto aquela - mais explicitamente, a anátomo- jeto de interrelações conceituais, a articulação dos saberes com a es-
clínica - encontra seus princípios na biologia. trutura social, a crítica da idéia de progresso em história das ciências,
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lllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllillllll!llllllllll:11111111111111111111111 llll'llll;lilllillll li !
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etc. Além disso(À A rqueo/ogia do Saber, de 1969,/que reflete sobre as
precedentes análises históricas com_ o objetivo não_só de expli~it~r _ou dade de se procurar reduzir a multiplicidade e a disp~rsão das. práti-
sistematizar mas sobretudo de clanficar ou aperfeiçoar os prmc1p1os cas de poder através de uma teo~ia gl~bal que s~bo:dm~ a vaqedade
formulados a partir das próprias exigências das pesquisas, está aí e a descontinuidade a um conceito universal. N_ao e !ss1~, en~retan-
para prová-lo. to, que Foucault tematiza o poder, co~o ta~be~ nao foi ~ss1i:n 9ue
temaüzou nenhum de seus objetos de mves~1g~çao. A razao e sim-
Ora, quando consideramos a produção teórica materializada ples, embora apresente uma grande descon~mu1dade com o que ge-
nesses livros e, minimizando as pequenas ou grandes diferenças que ralmente se entende e se pratica como teona. Ê que, para ele, toda
podem existir entre eles, os comparamos em bloco ao que será reali- teoria é provisória, acidental, depend~nt_e de um _estado de desenvol-
zado a partir de então, percebemos claramente se abrir um novo ca- vimento da pesquisa que aceita seus hm1t~s: seu inacabado, sua pa~-
minho para as análises históricas sobre as ciências. Se Foucault não cialidade, formulando conceitos que clanf1cam os dados -. org~m-
invalida o passado, ele agora parte de outra questão. Digamos que a zando-os, explicitando suas interrelações, desenvolvendo 1~pl_1ca-
arqueologia, procurando estabelecer a constituição dos saberes privi- . ções _ mas que, em seguida, são revistos, refor~ulados, subst1tu1dos
legiando as interrelações discursivas e sua articulação com as institui- a partir de novo material trabal~ad?. Nesse s~nt_1do, nem a arque?}º-
ções, respondia a como os saberes apareciam e se transformavam. .. nem ' sobretudo ' a genealogia tem. por obJet1vo fundar uma c1en-
Podemos então dizer que a análise que em seguida é proposta tem gia, . .
eia, construir uma teoria ou se constituir como s1ste'!1~; o programa
como ponto de partida a questão do porquê. Seu objetivo não é prin- que elas formulam é o de realizar análises fragmentanas e transfo.r-
cipalmente descrever as compatibilidades e incompatibilidades entre
saberes a partir da configuração de suas positividades; o que preten- máveis. l' · d d
Uma coisa não se pode negar às análises genea og1ca_s ? ~? e::
de é, em última análise, explicar o aparecimento de saberes a partir elas produziram um importante deslocamento com rela~ao a ~1enc!a
de condições de possibilidade externas aos próprios saberes, ou me- política, que limita ao Estado o f~nda_m~n~al de sua _mvest1gaça~
lhor, que imanentes a eles - pois não se trata de considerá-los como .sobre O poder. Estudando a for111;açao h1~ton~a das sociedades_ capi-
efeito ou resultante - os situam como elementos de um dispositivo de talistas através de pesquisas precisas e minuciosas so~~e o nasc1me~-
.natureza essencialmente estratégica. E essa análise do porquê dos sa- to da i~stituição carcerária e a constituição do dispos1t1vo de s~xuah-
beres, que pretende explicar sua existência e suas transformações si- dade, Foucault, a partir de uma evidência fornecida ~elo pró~n? ma-
tuando-o como peça de relações de poder ou incluindo-o em um dis- terial de pesquisa, \l~__ sl_~inear-se claramente uma nao, s~no~1m1a en-
positivo político, que em uma terminologia nietzscheana Foucault tre Estado e poder. Descoberta que de modo alg_um e mte~ramente
chamará genealogia~ Parece-me, em suma, que a mutação assinalada nova ou inusitada. Quando revemos suas pesquisas antenor~s sob
por livros com<Y Vigiar e Punir, de 1975,:i;Â-Vontade de Saher, de. esta perspectiva, não será in~i~cutível ~u_e aquilo que poder~amos
1976, primeiro volume da História da Sexualidade, foi a introdução chamar de condições de possib1hdade poht1cas de saberes espe~1ficos,
nas análises históricas da questão do poder como um instrumento de· como a medicina ou a psiquiatria, podem ser encontradas, nao por
análise capaz de explicar a produção dos saberes. uma relação direta com o Estado, considerad_o co~o um aparelho
Mas é preciso não se equivocar e se arriscar a nada compreender central e exclusivo de poder, mas por uma art1cul?çao com roderes
das investigações mais recentes desta genealogia: não existe em Fou- locais, específicos, circu]lscritos a ~ma_ p~q~ena ar~a de açao, que
. cault uma teoria geral do poder. O que significa dizer que suas análi- Foucault analisava em termos de mst1tu1çao? Mai_s recentemente,
• ses não-consideram o poder como uma realidade que possua uma na- esse fenômeno não só tem sido explicitado com maior clareza, mas
' tureza, uma essência que ele procuraria definir por suas característi- analisado de modo mais minucioso e intencional. Q__ g!,le_llpªrece
cas universais. Não existe algo unitário e global chamado poder.mas como evidente é a existência de formas de exercíci_o do poder d1[er~n-
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unicamente formas díspares, heterogêneas, em constante transforma~ tes do Estado, a ele articuladas de maneiras var~adas e que sao m-
ção. O poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática so- .dispensáveis inclusive a sua: sustenta~ão e atu,açao eficaz.
1 ciál-e, como tal, constituída historicamente. Esta razão, no entanto, Entretanto essa valorização de um tipo especifico de p_oder fo~mu-
/ não é suficiente, pois, na realidade, deixa sempre aberta a possibili- lou-se atra~és de uma distinção, de uma dicotomia entre uma s1tua-
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ção central ou periférica e um nível macro ou micro que talvez não psiquiatria ou ao sistema penal. Mas nunca fez dessas análises con-
seja muito apropriada por utilizar uma terminologia metafórica e es- cretas uma regra de método. A razão é que/ó aparelho de Estado é
pacial que não parece dar conta da novidade que a análise contém. O um instrumento específico de um sistema de poderes que não se en-
que ela visa é a distinguir as grandes transformações do sistema esta- contra unicamente nele localizado, mas o ultrapassa e complementa.
tal. as mudanças de regime político ao nível dos mecanismos gerais e O que me parece, inclusive, apontar para uma conseqüência política
dos efeitos de conjunto e a mecânica de poder que se expande por contida em suas análises, que, evidentemente, não têm apenas como
toda a sociedade, assumindo as formas mais regionais e concretas, objetivo dissecar, esquadrinhar teoricamente as relações de poder,
investindo em instituições, tomando corpo em técnicas de domina- mas servir como um instrumento de luta, articulado com outros ins-
ção. Poder este que intervém materialmente, atingindo a realidade trumentos, contra essas mesmas relações de poder. E que nem o con-
mais concreta dos indivíduos - o seu corpo - e que se situa ao nível trole, nem a destruição do aparelho de Estado, como -muitas vezes se<
do próprio corpo social, e não acima dele, penetrando na vida coti- pensa - embora, talvez cada vez menos - é suficiente para fazer desa-
diana e por isso podendo ser caracterizado como micro-poder ou parecer ou para transformar, em suas características fundamentais, a
sub-poder. rede de poderes que impera em uma sociedade. ·
. O que Foucault chamou de microfísica do poder significa tanto Do ponto de vista metodológico, uma das principais precauções
;Um deslocamento do espaço da análise quanto do nível em que esta de Foucault foi justamente procurar dar conta deste nível molecular '(1
/ se efetua. Dois aspectos intimamente ligados, na medida em que· a de exercício do poder sem partir do centro para a periferia, do macro
consideração do poder em suas extremidades, a atenção a suas for- para o micro. Tipo de análise que ele próprio chamou de descenden-
mas locais, a seus últimos lineamentos tem como correlato a investi- te, no sentido em que deduziria o poder partindo do Estado e procu-
gação dos ·procedimentos técnicos de poder que realizam um contro- rando ver até onde ele se prolonga nos escalões mais baixos da socie-
le detalhado, minucioso do corpo - gestos, atitudes, comportamen- dade, penetra e se reproduz em seus elementos mais atomizados. É
tos, hábitos, discursos. verdade que livros como Vigiar e Punir e A Vontade de Saber, como
Realidades distintas, mecanismos heterogêneos, esses dois tipos também entrevistas, artigos ou cursos deste período, não refletiram
específicos de poder se articulam e obedecem a um sistema de subor- explicitamente sobre o Estado e seus aparelhos, como fizeram com
dinação que não pode ser traçado sem que se leve em consideração a relação à questão dos poderes mais diretamente ligados aos objetos
situação concreta e o tipo singular de intervenção, O importante é de suas pesquisas. Não se tratava, porém, de minimizar o papel do
(que as análises indicaram claramente que os poderes periféricos e Estado nas relaçõe; de poder existentes em determinada sociedade. O
' moleculares não foram confiscados e absorvidos pelo aparelho de que se· pretendia era se insurgir contra a idéia de que o Estado seriá"o
Estado. Não são necessariamente criados pelo Estado, nem, se nasce- órgão central e único de poder, ou de que a inegável rede de poderes
ram fora dele, foram inevitavelmente reduzidos a uma forma ou ma- das sociedades modernas seria uma extensão dos efeitos do Estado,
nifestação do aparelho central. Os poderes se exercem em níveis va- um simples prolongamento ou uma simples difusão de seu modo de
riados e em pontos diferentes dá rede social e neste complexo os mi- ação, o que seria destruir a especificidade dos poderes que a análise
cro-poderes existem integrados ou não ao Estado, distinção que não pretendia focalizar /Daí a necessidade de utilizar uma démarche in-
parece, até então, ter sido muito relevante ou decisiva para suas aná- versa: partir da especificidade da questão colocada, que para a ge-
lises. nealogia que ele tem realizado é a dos n:)ecanismos e técnicas infinite-
O importante é que essa relativa independência ou autonomia simais de poder que estão intimamente relacionados com a produção
da periferia com relação ao centro significa que as transformações ao de determinados saberes - sobre o criminoso, a sexualidade, a doen-
nível capilar, minúsculo, do poder não estão necessariamente ligadas ça, a loucura, etc. - e analisar como esses micro-poderes, que pos-
às mudanças ocorridas no âmbito do Estado. Isso pode acontecer ou suem tecnologia e história específicas, se relacionam com o nível
não, e não pode ser postulado aprioristicamente. Sem dúvida, Fou- mais geral do poder constituído pelo aparelho de Estado. A análise /;
cault salientou a importância da Revolução Francesa na criação ou ascendente que Foucault não só propõe, mas realiza, estuda o poder
transformação de saberes e poderes que dizem respeito à medicina, à não como uma dominação global e centralizada que se plura1i1a se
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difunde e repercute nos outros setores da vida social de modo ho- mico, que __Q__f_CJB_sicleni_ çg_111_0 umª ITl'!~fª_QQܪlE se um modelo pode
mogêne~, mas wmo tendo uma existência própria e formas específi- ser eTucid-ativo de sua realidade é na guerra que ele pode ser encon-
cas~º. n1vel mais elementar._QJ~stadonão é o ponto de partida ne- trado. Ele é luta, afrontamento, relação de força, situação estratégi-
ces~ano, o foco absoluto que est,;l_ria na origem ·de todo tipo de poder ca. Não é urn lugar, que se ocupa, nem um objeto, que se possuLEle
social e do qual também se deveria partir para explicar a constituição se éxérce, se disputa. E não é uma relação unívoca, uniletaral; nessa
dos saberes nas sociedades capitalistas. Foi muitas vezes fora dele disputa ou se ganhá ou se perde.
que se. instituírnm as relações de poder, essenciais para situar a ge- Isso com relação à questão da situação do poder na sociedade.
~ealogia dos saberes rnodernos, que, com tecnologias próprias e rela- Mas essa análise se completa pela tematização do problema de seu
t_,vamente autônomas, foram investidas, anexadas, utilizadas, trans- modo de ação, o que levou a genealogia a desenvolver uma concep-
formadas por formas mais gerais de dominação concentradas no ção não-jurídica do poder. Com isso se quer dizer que é impossível
aparelho de Estado. dar conta do poder se ele é caracterizado como um fenômeno que diz
fundamentalmente respeito à lei ou à repressão. e<J,rum lado, as teo-
Podemos dizer que quando em seus estudos Foucault foi levado rias que têm origem nos filósofos do século XVIII que definem o po-
a distinguir no poder uma situação central e periférica e um nível ma- der como direito origfüátió que se cede, se aliena para constituir aso-
cro ~ ?1icro de exercício, o que pretendia era detectar a existência e 1 berania e que tem como instrumento privilegiado o contrato; teorias
explicitar as características de relações de poder que se diferenciam que, em nome do sistema jurídico, criticarão o arbítrio real, os exces-
do Estado e_seus aparelhos. Mas isso não significava, em contraparti- sos, os abusos de poder. Portanto, exigência que o poder se exerça
da, querer situar o poder em outro lugar que não o Estado como su- como direito, na forma da legalidade. Por outro lado, as teorias que,
'gere a pal~vra P:riferia._ O interessante da análise éjustame'nte que os I radicalizando a crítica ao abuso do poder, caracterizam o poder não
poderes _nao esta~ localizados em nenhum ponto específico da estru-: somente por transgredir o direito, mas o próprio direito por ser um
tura social. Funcionam como uma rede de dispositivos ou mecanis- ' modo de legalizar o exercício da violência e o Estado o órgão cujo
mos ~ que nada ou ~inguém escapa, a que não existe exterior possí- . papel é realizar a repressão. Aí também é na ótica do direito que se
--~\ vel, hm1!es ?u fronteiras. P~í a importante e polêmica idéia de que~// elaborá a teoria, na medida em que o poder é concebido como vio-
, poder nao e algo q_ue se detém como uma coisa, como uma proprie- lência legalizada.
dade, que st: possui ou não. Não existe de um lado os que têm o po- .-/ , .A idéia básica de Foucault é de mostrar que as relações de poder
der e de outro aqueles que se encontram dele alijados. Rigorosamen- 'não se passam fundamentalmente nem ao nível do direito, nem da
-----r,_te falando, º. po_der nã_o existe; existem sim práticas ou relã-ções de po~ violência: nem são basicamente contratuais nem unicamente repres-
·... , f d~r. O qu:e s1gmfica dizer que o poder é algo que se exerce, que se efe- sivas.. Ninguém desconhece, por exemplo, que a difícil questão da re-
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. tu~, q~e func_iona. E que fu~ci_ona como uma maquinaria, como uma pressão está sempre polemicamente presente em livros como Vigiar e
ma'!uma social '!ue n~o esta situada em um lugar privilegiado ou ex- Punir e A Vontade de Saber, onde ele está constantemente querendo
clusivo, ma_s se d1ssemma por toda a estrutura social. Não é um obje- demonstrar que é falso definir o poder como algo que diz não, que
to, u_ma cmsa, m~s ~ma relação. E esse caráter relacional do poder impõe limites, que castigaJ'Á uma concepção negativa, que identifica
implica que as propnas lutas contra seu exercício não possam ser fei- o poder com o Estado e o considera essencialmente como aparelho
tas ge fora, de outro lugar, do exterior, pois nada está isento de po- repressivo, no sentido em que seu modo básico de intervenção sobre
der /Q~alquer luta é sempre resistência dentro da própria rede do PÓ"\ os cidadãos se daria em forma de violência, coerção, opressão, ele
der, teia que ~e alastra por toda a sociedade e a que ninguém pode es-( opõe, ou acrescenta, uma concepção positiva que pretende dissociar
capar/ e!e esta sempre presente e se e~erce co~o u1!1~ m~ltiplicid~de ( os termos dominação e repressão/O que suas análises querem mos-
de rel~çoes de forças. E como onde ha poder ha res1stenc1a, nao existe · trar é que a dominação capitalista não conseguiria se manter se fos-
propnamente o lugar de resistência, mas pontos móveis e transitórios \ se exclusivamente baseada na repressão. Sabemos que não existe em
que também se distribuem por toda a estrutura social. Foucault rejei- ! Foucault uma pesquisa específica sobre a ação do Estado nas socie-
ta, portanto, uma concepção do poder inspirada pelo niodélo eéonô- i dades modernas. Mas o que a consideração dos micro-poderes mos-
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tra, em todo caso, é que o aspecto negativo do poder - sua força des- dade. Colocou-se então o problema de uma relação específica de po-
trutiva - não é tudo e talvez não seja o mais fundamental, ou que, ao dersobre os indivíduos enclausurados que incidia sobre seus corpos e
menos, é preciso refletir sobre seu lado positivo, isto é, produtivo, utilizava uma tecnologia própria de controle. E essa tecnologia não ·
)ransformador: "Ê preciso parar de sempre descrever _os efeitos do era exclusiva da prisão, encontrando-se também em outras institui-
poder em termos negativos: ele 'exclui', ele 'reprime', ele 'recalca', ele ções como o hospital, o exército, a escola, a fábrica, como inclusive
'censura', ele 'abstrai', ele 'mascara', ele 'esconde'._ De fato, o poder indicava o texto mais expressivo sobre o assunto, o Panop_ticon, de
produz; ele produz real; produz domínios de objetos e rituais de ver- Jeremy_ Benth~m./ . -- - - - . .
dade" _1.__Q_P-Qd~rposslli uma eficácia produtiva, uma rique?:a _estra~ Foi esse tipo especifico de poder que Foucault chamou de d1sc1-
_t~--1!ma positividade. E_ é justamente esse aspecto que expltca 0 plina ou poder disciplinar. E é importante notar que ela nem é um
fato de que tem como alvo o corpo humano, não para supliciá-lo, aparelho, nem uma instituição, na medida em que funciona com? !
mutilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestrá-lo ..
/ uma rede que as atravessa sem se limitar a suas fronteiras. Mas adi-
Não se explica inteiramente o poder guarido se procura caracte- ferença não é apenas de extensão, mas de natureza. Ela é uma técni-
rizá-lo por sua função repressiva. O que lhe interessa basicamente ca, um dispositivo, um mecanismo, um instrumento de poder, são
não é expulsar os homens da vida social, impedir o exercício de suas "métodos que permitem o controle minucioso das operações do cor-
atividades, e sim gerir a vida dos homens, controlá-los em suas ações po, que asseguram a sujeição constante de suas forças e lhes impõem
para que seja possível e viável utilizá-los ao máximo, aproveitando uma relação de docilidade-utilidade ... " '. Ê o diagrama de um poder
suas potencialidades e utilizando um sistema de aperfeiçoamento que não atua do exterior, mas trabalha o corpo dos homens, manipu-
gradual e contínuo de suas capacidades. Q_hj_c:_tivQ ao mesmo tempo la seus elementos, produz seu comportamento, enfim, fabrica o tipo
econômico e político: aumento do efeito de seu trabalho isto é tor- de homem necessário ao funcionamento e manutenção da sociedade
nar os homens· força de trabalho dando-lhes uma utilidade econ'ômi- industrial, capitalista. Ligada à explosão demográfica do século
ca máxima; diminuição de sua capacidade de revolta, de resistência, XVIII e ao crescimento do aparelho de produção, a dominação polí-
de luta, de insurreição contra as ordens do poder, neutralização dos , tica do corpo que ela realiza responde à necessidade de sua utilização
efeitos de contra-poder, isto é, tornar os homens dóceis politicamen- racional, intensa, máxima, em termos econômicos. Mas, por outro
te. Portanto, aumentar a utilidade econômica e diminuir os inconve- ; lado - e isso é um aspecto bastante importante da análise ~ o corpo_
nientes, os perigos políticos; aumentar a força econômica e diminuir só se torna força de trabalho quando trabalhado pelo sistemapõHfi: ..
a força política.
co-de d-omínação característico do poder disciplinar. -
Mas é preciso ser menos geral e englobante. Porque a análise de ·. Situemos, então, suas característifª~ básicas. Em primeiro luga_G_
Foucault sobre a questão do poder é o resultado de investigações de- a disciplina é um tipo de o-rganíiação do espaço. E uma técnica de
limitadas, circunscritas, com objetos bem demarcados. Por isso, embo- distribuição dos indivíduos através da inserção dos corpos em um es-
ra às vezes suas afirmações tenham uma ambição englobante, inclusi- paço individualizad9, classificatório, combinatório. Isola em um es-
ve pelo tom muitas vezes provocativo e polêmico que as caracteriza paço fechado, esquadrinhado, hierarquizado, capaz de desempen_har
é importante não perder de vista que se trata de- análises particulari~ funções diferentes segundo o objetivo específico que dele se exige.
zadas, que não podem e não devem ser aplicadas indistintamente Mas, como as relações de poder discipl~nar ~ão necessitam nec,es~a-
sobre novos objetos, fazendo-lhes assim assumir uma postura meto- riamente de espaço fechado para se realizar, e essa sua caractenst1ca
dológica que lhes daria universalidade. Em_~__uma, quando Foucault menos importante. Em segundo lugar, e mais fundamentalme~~e,_ a
começou a formular explicitamente a questão--ao poder foi para dar disciplina é um controle do tempo. Isto é, ela estabel~c~ uma suJet~ao
prosseguimento à pesquisa que realizava sobre a história da penali- do corpo ao tempo, com o objetivo de p,odu71r o max1mo de rapidez

1 Surl'eiller et Punir, Paris. Gallimard, 1975, p. 196.


Survetller et Punir, p. 139.
XVI XVII

t
e o máximo de eficácia. Neste sentido, não é basicamente o resultado
de uma_ açã? que lhe interessa, mas seu desenvolvimento. E esse con- dispositivos de sexualidade, essas técnicas não podem, rigorosamente
trole ~inuc10so das operações do corpo ela o Fealiza através da ela- falando, ser eh.amadas de repressivas, sem se confundir os meios es-
boraçao temporal do ato, da correlação de um gesto específico com o pecíficos de ação dos poderes nas sociedades capitalistas.
corpo qu~ o produz e, _finalme~~. atrav~s da articulação do corpo A grande importância estratégica que as relações de poder disci-
com o obJ_eto_ a ~e~ mampulado:.<~!11_ terceiro lugar a vigilância é um plinares desempenham nas sociedades modernas depois do século
/ d~ set1s p~inc1pa1s instrumentos de-controle. Nãou~a-vigilância que XIX vem justamente do fato de elas não serem negativas, mas positi-
reco~hec1dam~nte se e~erce de modo fragmentar e descontínuo; mas vas, quando tiramos desses termos qualquer juízo de valor moral ou
que e ou p_rec1sa ser ~1sta pelos indivíduos que a ela estão expostos político e pensamos unicamente na tecnologia empregada. E então
como continua, pe~petu~, p~rmanente; que não tenha limites, pene- que surge uma das teses fundamentais da genealogia: o poder é pro-
tre nos lugares mais reconditos, esteja presente em toda a extensão . dutor de individualidade. O indivíduo é uma produção do poder e
do espaço. "Indiscreção" com respeito a quem ela se exerce que tem do saber.
como correla~o ~ ,maior "discreção" possível da parte de quem a Que significa essa tese, à primeira vista absurda, que o indivíduo é
ex_erce. Olhar inv1s1vel - como o do Panopticon de Bentham, que per- um eTeifo do poder? Compreendê-la é penetrar no âmago da questão da
mite v~r ~u_do permanentemente sem ser visto - que deve impregnar disc:iptinà. É que as análises genealógicas não discerniram o indivíduo
quem e vigiado ?e tal modo que este adquira de si mesmo a visão de com"tYuli1 elemento existindo em continuidade nos vários períodos histó-
quem o olha. Finalmente, a disciplina implica um registro contínuo ricos. Ele não pode ser considerado uma espécie de matéria inerte ante-
', de conhecimento. Ao mesmo tempo que exerce um poder, produz rior e exterior às relações de poder que seria por elas atingido, submetido
: um_ saber. O olhar que obs_erva para controlar não é o mesmo que ex- e finalmente destruído. Tornou-se um hábito explicar o poder capitalista
trn1, ano_ta e transfere ·as informações para os pontos mais altos da com0 algo que descaracteriza, massifica; o que implica a existência ante-
h1erarqu1a de poder? .
rior de algo como uma individualidade com características, desejos, com-
. É i~portante a~sinalar que estas características são aspectos in- portamentos, hábitos, necessidades, que seria investida pelo poder e súfo-
terrelac10nados. Assim, por exemplo, quando à medkina-cóm O nas- cada, dominada. impedida de se expressar.
c1_mento da ~s1quia_tri~.. in_icia um controle do louco, ela ~ria O hospí-
c10., ou hospital_ ps~qu1atn_co, _co~o um espaço próprio para dar con- · De fato, não foi isso que aconteceu. Atuando sobre uma massa
ta de sua espec1fic1dade; institui a utilização ordenada e controlada confusa, desordenada e desordeira, o esquadrinhamento disciplinar
do tempo, que deve ser empregado sobretudo no trabalho desde 0 faz na.scer uma multiplicidade ordenada no seio da qual o indivíduo
século XIX considerado o meio terapêutico fundamental· ~onta um emerge como alvo de poder. O nascimento da prisão, por exemplo, ,
esque~a de vigilância total que, se não está inscrito na ~rganização em fins do século XVIII, não representou uma massificação com re-
espacial'. se baseia na "pirâ~ide de olhares" formada por médicos, lação ao modo como anteriormente se era encarcerado. O isolamen-
enfermeiros,_ serventes; extrai da própria prática os ensinamentos ca- to celular - total ou parcial - é que foi, ao contrário, a grande inova-
pazes de apnmorar seu exercício terapêutico. Mas, além de serem in- ção dos projetos e das realizações de sistemas penitenciários. O nasci-
t~rre!ac1onadas, umas, servind~ de ponto de apoio às outras, essas mento do hospício também não destruiu a especificidade da·-1oucura.
ti:_cmcas se adaptam as necessidades específicas de diversas institui- Antes de Pinel e Esquirol é que o louco era um subconjunto de uma
çoes que, ca~a uma à sua maneira, realizam um objetivo similar população mais vasta, uma região de um fenômeno não só mais am-
quando consideradas do ponto de vista político. ' plo e englobante, mas que lhe determina a configuração como desra-
.. _Já _vimos seus objetivos tanto do ponto de vista econômico· zào. É o hospício que produz o louco como doente mental, persona-
qu~~to polf~íco: tornar o homem "útil e dócil". E pelo que mostrou a gem Índividualizado a partir da instauração de relações disciplinares
analise ~as instituições_ disciplinares, realizada em Vigiar e Punir, ou de poder. E antes mesmo da constituição das ciências humanas, no
de ~elaçoes de p_oder ainda mais sutis, móveis e dispersas no campo século XIX, a organização das paróquias, a institucionalização do
social, como esta mostrando a longa e heterogênea pesquisa sobre os · exame de consciência e da direção espiritual e a reorganização do sa-
XVIII cramento da confissão, desde o século XVI, aparecem como impor-
XI X
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t~tes dis~?si~ivo_s ?e individualização. fü!!_!ll!!}ª, 9 poder disçipHnar tos, dos objetos teóricos e dos métodos, o que pode explicar, não só
º!1ªº destro1 o ind1v1duo; ao contrário, ele o fabrica: bTndivíduo não como, que era o procurado no primeiro caminho, mas fundamental-
eooutr() d_o poder, realida_de exterior, que é por ele.anulado; é um de mente porque as ciências humanas apareceram.
seus mais importantes efeitos. Uma grande novidade que essa pesquisa atual tem apresentado
Essa análise, porém, é histórica e específica. Não é 1 certamente é de não procurar as condições de possibilidade históricas das ciên-
e!?.~-~ p()der _que !ndividualiza, mas um tipo específico q ue, seguind~ cias humanas nas relações de produção, na infra-estrutura material,
\.
. uma_âep_ominaçao_9ue aparece freqüentemente em médicos, psiquia- situando-as como uma resultante super-estrutural, um epifenômeno,
\
,t~as'. m1hta_res, pohttcos, etc., d? século XIX, Foucault intitulou dis- um efeito ideológico. A questão não é a de relacionar o saber - consi-
_c1ghna._b.Je_':1 disso, este poder e característico de uma época, de uma derado como idéia, pensamento, fenômeno de consciência - direta-
<Jo.rma es~ec1fica de dominação. A existência de um tipo de poder que mente com a economia, situando a consciência dos homens como re-
pret~nde instaurar uma dissimetria entre os termos de sua relação no flexo e expressão das condições econômicas. O que faz a genealogia é
se_nt1d_o e?1. que se exerce o mais possível anonimamente e deve ser' so- considerar o saber - compreendido como materialidade, como práti-
fnd_o ind1v1dualmen~e é uma das grandes diferenças entre O tipo de ca, como aconte~imento - como peça de um dispositivo político que,
sociedade em que ~1vemos e as sociedades que a precederam. En- enquanto dispositivo, se articula com a estrutura econômica. Ou,
qu_a~to em uma sociedade como a medieval" ... a individualização é mais especifié.amente,. íl questão tem sido a de corno se formaram
max1ma do lado em qu~ se ex_er~e ~ soberania e nas regiões superiores domínios de saber - que-fõr:ün chamadós de ciências humanas - a
do ~oder .. :· em um regime d1sc1phnar a individualização, em contra- partir de práticas políticas disciplinares.
partida, e 'descendente': à medida que o poder se torna mais anô- -0.•,Hrajmportante novidade dessas investigações é não conside-
nimo e funcional, aqueles sobre qiiem ele se exerce tendem a ser mais rar pertinente para as análises a distinção entre ciência e ideologia.
fortemente individualizados; e isso por vigilâncias mais do que por Foi justamente a opção de não estabelecer ou procurar critérios de
~arrati~as comemo~ati~as, p~r medidas comparativas, que têm a demarcação entre uma e outra q.ue fez Foucault, desde suas primei-
norma . como referencia, e nao por genealogias que apresentam os ras investigações, situar a arqueologia como uma história ·do saber.
ancestr~~s como pontos de referência; por 'separações' mais do que por O objetivo é neutralizar a idéia que faz da ciência um conhecimento
proezas '. em que o sujeito vence as limitações de suas condições particulares de
~~~ç~9-~,c>bre o corpo, o adestramento lio gesto, a regulação do existência instalando-se na neutrali.dade objetiva do universal e da
_comportamento, a normalização do;J)fazer, 'a interpretação do dis- ideologia um conhecimento em que o sujeito tem sua relação corn a
ctirso'. com o o~jetivo de separár, compárar, distribuir, avaliar, hie-. verdade perturbada, obscurecida, velada pelas condições de existên-
r~rqu1zar, tudo isso faz com que apareça pela primeira vez na histó- cia. Todo conhecimento, seja ele científico ou ideológico, só pode
ria esta figura singular, individualizada - o homem - como produção existir ã partir de condições políticas que são as condições para que
do po_der_. J\1a~ t~m?ém, e ao mesmo tempo, como objeto de saber. se formem tanto o sujeito quanto os domínios de saber. A investiga-
Das tec~1cas d1sc1plinares, que são técnicas de individualização, nas- -ção. c:Jo saber não deve remeter a um sujeito de conhecimento que se-
__ce um tipo específico de saber: as ciências humanas. ria sua origem, mas a relações de poder que lhe constituem. Não há
A con~tituiç~o histórica das ciências humanas é uma questão saber neutro. Todo saber é.político. E isso não porque cai nas malhas
. cent_ral ~as invest1gaç?es _de F<;>ucault. Vimos como ela aparece e é te- do Estado, é apropriado por ele, quê dele se serve como instrumento
~at1zada, em seus pnme1_ros livros, na perspectiva de uma arqueolo- dedominação, descaracterizando seu núcleo essencial. Mas porque -./
gia d_o~ saberes. Mas ela e retomada e transformada pelo projeto ge- tóâo saber tem sua gênese em relações de poder.
nealog1co. Agora, o objetivo é explicitar, aquém do nível dos concci- c.O..fundamental da.ª11_áJise é que saber e poder se implicam mu-
tuamente: não há relação de poder sem constituição de um campo de
-sa~e_r, como também, reciprocamente, todo saber constitui novas re-
J Surveil/er et Punir, p. 194-5.
faç§~s de p9.der. Todo ponto de exercício do poder é, ao mesmo tem-
po, um lugar de formação de saber. E assim·que o hospital não é ape-
XX
XXI
nas local de cura, "máquina de curar", mas também instrumento de tivas de segurança" estão na orig~m de ciências sociais como a es-
produção, acúmulo e transmissão do saber. Do mesmo modo que a tatística, a demografia, a economia, a geografia, _etc.
escola está na origem da pedagogia, a prÍsão-·âa ·crüriínologia, o Finalmente, é importante assinalar que, a partlf d_esse momento,
hospício da psiquiatria. E, em contrapartida, todo saber assegura o a questão do Estado, até então não temat_izada especificamente; ad-
exercício de um poder!- Cada yezmais se impõe a necessidade do po- quire grande importância para a genealogia. _O que se, ~eu atraves do
_<:ler se tornar competente. Vivemos cada vez mais sob o domínio do projeto de explicar a gênese do Estado a partir das pr_atica~. de gov~r-
perito. Mais especificamente, a partir do século XIX, todo agente do no, da gestão governamental, ou da "_governamentah?a?e , que tem
poder vai ser um agente de constituição de saber, devendo enviar aos na população seu objeto, na economia se_u saber ,~ais importante _e
que lhe delegaram um poder, um determinado saber correlativo do nos dispositivos de segurança seus mecamsmos bas1~os. ~est_e senti-
poder que exerce. É assim que se forma um saber experimental ou do, 0 último texto dessa coletânea, seguind_o uma dtreçao diferente
observacional. Mas a relação ainda é mais intrínseca: é o saber en- dos anteriores, faz visl urnbrar os novos honzontes da genealogia do
quanto tal que se encontra dotado estatutariamente, institucional- poder.
mente, de determinado poder. O saber funciona ria sociedade dotac:lo
de: poder. É enquanto é saber que Tem poder.
Estes são, grosso modo, alguns resultados provisórios da genea-
Jogiâ dos poderes que Michel Foucault tem realizado nestes dez últi-
mos anos. Penso ter bastante insistido no caráter hipotético, específi-
co e transformável da análise, para que não se tome essas investiga-
çõt:s como palavra final, um caminho definitivo, um método univer-
sal.
De fato, a análise genealógica já encontra novos rumos. Mudan-
ça ou complementação que tiveram início com a própria história da
sexualidade e que foram tematizadas no último capítulo de A Vonta-
de de Saher. É que os dispositivos de sexualidade não são apenas de
tipo disciplinar, isto é, não atuam unicamente para formar e trans-
formar o indivíduo, pelo controle do tempo, do espaço, da atividade
e pela utilização de instrumentos como a vigilância e o exame. Eles
também se realizam pela regulação das populações, por um bio-
poder que age sobre a espécie humana, que considera o conjunto,
com o objetivo de assegurar sua existência. Questões como as do nas-
cimento e da mortalidade, do nível de vida;"éia duração de vida estão
Tfgadas não apt:nas a um poder disciplinar, mas a um tipo de pode.r
dt:tt:ii1íinado que se exerce ao nível da espécie, da população com o
· ohjt:tivo de gerir a vida do corpo social. O que não significa que ases-
. tratégias t: táticas de poder substituam o indivíduo pela população.
Mais ou menos na mesma época, cada um foi alvo de mecanismos
heterogêneos, mas complementares, que os instituíram como objeto
de saber e de poder. Neste sentido, se as ciências humanas têm como
condição de possibilidade política· a disciplina, o momento atual da
análise parece sugerir que o "bio-poder", a "regulação", os "disposi- XXIII
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