You are on page 1of 113

PREFÁCIO.......................................................................................................................

1.CONSUMIDORES (CONSUMIDOS)..............................................................................................13

2.ECONOMIA POLÍTICA DA PULSÃO............................................................................................20

2.1A CANALHICE: PATOLOGIA CÍNICA DA ÉTICA............................................................................26

3.CULPA E RESPONSABILIDADE..................................................................................................37

3.1A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA....................................................................................................37

3.2OS INJUSTIFICÁVEIS.............................................................................................................46

3.2.1“Desculpe qualquer coisa”........................................................................................50

4.DO CÃO AOS CÍNICOS...........................................................................................................55

4.1O CINISMO COMO RETÓRICA: UMA RETÓRICA CÍNICA?...............................................................55

4.2A RAZÃO CÍNICA.................................................................................................................64

4.3LOCUPLETEMO-NOS TODOS...................................................................................................76

4.4ESCÂNDALOS.....................................................................................................................97

DORMIR NO PONTO.................................................................................................103

BIBLIOGRAFIA..........................................................................................................112
5

PREFÁCIO

O mal-estar na civilização se apresenta hoje em dia como um


cinismo universal e difuso.
Peter Sloterdijk, Kritik der zynischen Vernunft (1983)

O
depositário que tiver a chance de ficar impunemente

com o dinheiro recebido em custódia e não o fizer por

princípio —há três séculos exemplo e paradigma de

retidão na conduta— está obsoleto. O homem moral de Kant é um

otário. Não que as estacas fincadas para alicerce da ética moderna

por sua lógica de ferro pietista tenham ruído. Não, apenas diminuiu a

procura por moradia no edifício construído em cima.

A palavra de ordem vigente é “levar vantagem em tudo, certo?”

Ética do malandro afinada com a corrupção crônica que infesta todos

os estamentos da vida civil. Lado obscuro da fé cega de que sempre

há de haver um jeito (para driblar as regras em benefício próprio). À

lei universal internalizada do sujeito ético se substitui a paixão do

esperto em ser a exceção que confirma a regra (dos outros).

O problema é que esta exceção tornou-se regra —a da

malandragem—, e resulta difícil imaginar o que será feito dos tolos o

dia em que se realize a sonhada nação da esperteza. Vertigem desta

curiosa “dialética do malandro e do otário” —versão bufa do legado

hegeliano, mas não por isso merecedora de menor atenção— que me


6

disponho a examinar aqui. Menos para somar à legião dos

descontentes (ou seja, daqueles que chegaram tarde ao reparto do

bolo), que para demonstrá-la efeito de um discurso vigente na Kultur

(isto é, na civilização, segundo a tradução recebida) que, como

qualquer outro, determina a organização mesma dos vínculos em que

se realiza e exercita nossa subjetividade. Atendendo à forma

específica da organização que este induz proponho denominá-lo

discurso do cínico.

*
Deixo para outro lugar uma discussão pormenorizada do

conceito de discurso, aqui hão de bastar algumas considerações que

esclareçam o uso que faço dele. Esclarecimentos como subsídio ao

seguinte pressuposto: não há relação social que não esteja

determinada por um discurso.

Em As palavras e as coisas Foucault considera discurso o que

se diz. Mas o que se diz não se restringe aos atos de fala, ainda que

sempre esteja associado à linguagem. Trata-se da ordem que

organiza e circunscreve o campo da experiência e do conhecimento

possíveis. Define o modo de ser dos objetos que aparecem em tal

campo. É sempre correlativo de uma episteme que funciona como o

paradigma a partir do qual se organiza o mundo. Um discurso é um

conjunto de procedimentos de delimitação e controle, embora

também se possa falar de controle do discurso, exercido desde


7

dentro ou fora dele. A série de procedimentos mediante os quais se

traçam os limites entre o admissível e o inadmissível para

determinada cultura em tal momento histórico, constitui seu “discurso

admitido”, nome foucaultiano da ideologia.

Para o psicanalista o discurso é menos um veículo de

significados que um apelo a responder desde uma determinada

posição. Laurence Bataille o ilustra de um modo bonito. Quem


1

passeando pela margem do rio ouvir um grito de socorro estará

comprometido pelo simples fato de tê-lo ouvido, seja qual for a sua

reação ou mesmo fingindo nada ter escutado. Ainda que não haja

vivalma nas redondezas, mesmo assim, o sujeito estará implicado

perante o que Lacan denomina o Outro da linguagem. Este é o

alcance do my word is my bond de Austin.

Quanto à psicanálise, ela é um procedimento discursivo entre

outros, com a particularidade de servir para apreender como o

discurso nos determina. Tomemos por exemplo um conceito maior da

teoria, o “supereu”. Seria insensato acreditar na sua existência fora

da experiência psicanalítica, que é uma experiência de discurso. Mas

dentro dela, o que é o “supereu” senão o modelo de como o discurso

em si determina a subjetividade?

Mediante o instrumento da linguagem instaura-se um certo número de


relações [relations] estáveis, no interior das quais pode inscrever-se,
claro, algo mais abrangente, que vai mais longe que as enunciações
efetivas. Nenhuma necessidade destas últimas para que nossa conduta,

1 Bataille L., 1984


8

nossos atos, eventualmente, se inscrevam no quadro de certos


enunciados primordiais.2

Assim se exprimia Lacan em 1955. Em 1969, o quadro destes

enunciados primordiais será descrito como uma “estrutura que

ultrapassa de longe a fala [parole], sempre mais ou menos ocasional”.

É o discurso, definido como um sistema de relações estáveis entre

significantes, que dependem da linguagem e determinam o sujeito

independentemente de fazer ou não sentido.

Na mesma época propõe distinguir quatro “discursos radicais”

do mestre, da histérica, do psicanalista e do universitário—,

verdadeiras matrizes das relações humanas como as conhecemos (e

as vivemos) em ocidente. Quem quiser aprofundar nesta teoria, lerá

com proveito O avesso da psicanálise (Lacan, 1994). Seu

conhecimento, porém, não é imprescindível para acompanhar o

argumento mediante o qual proponho acrescentar o do cínico à lista

dos discursos radicais.

*
Quanto ao cinismo (até melhor definição, confio o termo à sua

acepção corrente), para poder pensá-lo como discurso, devemos

deixar de concebê-lo como uma postura entre outras de um indivíduo

—passível de ser confrontada com princípios éticos universais—, e

passar a tratá-lo como um dos modos de estar (ser?) na civilização

que nos toca viver. Possibilidade que reflete menos uma mudança na

2 Lacan, 1978.
9

superestrutura da sociedade que uma mutação do discurso

dominante responsável pela sua infra-estrutura. Transformação

decorrente do desenvolvimento do capitalismo na alta modernidade.

A certeza de que tudo há de acabar em pizza isto é, na

confraternização dos espertos com exclusão dos lesos, por

exemplo, provaria menos o relaxamento dos costumes que a

existência de uma discursividade que ordena nossas relações mútuas

num verdadeiro círculo cínico. Este círculo é, em primeiro lugar, uma

armadilha lógica de cuja forma, descrita com fineza pelo cinema e a

literatura , tive uma ilustração impagável no trabalhador impedido de


3

trabalhar pela nova Lei de Previdência, segundo a qual já devia estar

aposentado, que tampouco podia requerer a aposentadoria, porque

apenas a quem trabalha é concedido tal direito.

É, também, uma modalidade de vínculo social caracterizado

pela manipulação, sendo que, embora se acredite livre, o

manipulador não está menos preso que o manipulado na trama

instrumental. É, finalmente, (isto se deduz do anterior) uma relação

com o inconsciente tal que ele só existe para os outros, o que faz

com que o interessado se imagine autônomo, livre de qualquer outra

determinação que não a sua boa ou má vontade.

3 Cf. Catch 22 (Ardil 22) Jospeh Heller, para o livro; Mike Nichols, para o filme.
10

Nunca o programa kantiano de uma moral de princípios esteve

tão longe do espírito de uma época. Nunca, não obstante, a ética foi

tão citada. O que não deixa de ser coerente, porque o cinismo é a

caricatura da moral iluminista, e a prova talvez de sua impossível

efetivação. Podemos reconhecê-lo pela sua marca registrada, que

consiste em invocar normas universais enquanto se promove sua

transgressão particular. Como discurso, o cinismo consiste no

conjunto de operações que preservam oculto o hiato entre os

princípios e a prática que os contradiz.

Há de se convir que uma tirada como a de Brecht na Ópera

dos três vinténs, “O que é assaltar um banco comparado a fundar

um?”, não soa igual em lábios de um banqueiro, de um bancário ou

de um cliente. Os candidatos mais prováveis a soltar uma frase

dessas hoje em dia seriam os primeiros, sem que isso lhes impeça

em absoluto de seguir gerindo seus negócios milionários às custas

dos outros dois. Tudo se passa como se nenhum dos três fosse

capaz de renunciar à crença de que a sociedade toda é beneficiária

dos bancos, mesmo sabendo que foram criados para benefício

exclusivo dos seus proprietários. Conquanto reconheçam o interesse

particular que desmente o proclamado desinteresse universal,

continuam agindo como se não soubessem. 4

4 Zizek, 1990.
11

Devemos a primeira crítica sólida deste discurso —coextensivo

do mercado globalizado, do human engeneering e da correção

política— a um filósofo dinamarquês chamado Peter Sloterdijk . Ele


5

vê o cinismo como o traço distintivo da civilização ocidental; como o

modo principal de organizar as relações humanas, tanto no plano

pessoal como no institucional. Resultado, segundo diz, do fracasso

das promessas libertárias da crítica da ideologia de cunho marxista, e

da concomitante desilusão política e desencanto a respeito das suas

alternativas sociais.

Com efeito, se a ideologia é a falsa consciência (Marx) dos

indivíduos de uma determinada classe sobre as razões que os

movem, o cinismo é a falsa consciência ilustrada (Sloterdijk), que já

não será afetada por nenhuma crítica ideológica. Pois enquanto esta

oferece uma reflexão sobre as condições efetivas da realidade social

determinante da ação das pessoas, prometendo a subseqüente

tomada de consciência que permitiria sair da ilusão, o cinismo se

apresenta como uma ilusão que incorporou sua própria crítica

mantendo-se incólume.

*
O que a kulturcritik não leva em consideração, mas à

psicanálise é dado observar, é o tanto que as subjetividades são

afetadas por esta mutação discursiva, fisgadas pela satisfação

5 Sloterdijk, 1993
12

libidinal ali promovida. Fruição relativa à mencionada manipulação do

semelhante, que caracteriza um verdadeiro deleite do canalha.

Em outro lugar , refleti sobre a mudança de status da noção de


6

responsabilidade decorrente da invenção da psicanálise. Como

responsabilizar-se, era a questão, por atos cujas determinações são

desconhecidas para quem os realiza? Respondia então que, longe de

servir como pretexto para sua isenção moral, o sintoma sofrido

indicava o lugar mesmo onde o paciente devia reconhecer-se, para

todos os efeitos, como agente. Era natural concluir que a ética da

psicanálise entranhava a passagem do sintoma do sujeito para o

sujeito do sintoma, mas isso deixava em aberto a pergunta pelas

conseqüências sobre as concepções canônicas da moral, que

sempre foram subsidiárias de uma psicologia da consciência. Até que

ponto, em outras palavras, a reflexão filosófica sobre a ética devia (ou

podia) contar com o inconsciente freudiano.

Que fim levou esta responsabilidade pelo próprio desejo numa

época que já incorporou (senão pasteurizou) a psicanálise, e na qual

o inconsciente é tratado como pouco menos que uma curiosidade

histórica? É com esta pergunta que me dirijo aos modernos cínicos.

6 Goldenberg, 1993
13

1. consumidores (consumidos)

ão há sinal mais seguro da presença de uma civilização que o lixo. A

garrafa vazia de Coca-Cola caída do avião sobre a cabeça do

aborígine (primeira cena do filme Os deuses devem estar loucos). O

que a ecologia ciência e ideologia dos efeitos deletérios do

progresso desconhece, além do fato de a natureza ser um mito

(como o Éden), é que denominamos cultura ao resultado de uma

digestão.

Freud nos familiarizou com a idéia de que as mais elevadas

produções da humanidade derivam do refugo e que o empenho do


7

homo faber se alimenta dos apetites pulsionais não aplacados . A8

transcendência do espírito não implica, contudo, que a civilização

tenha deixado para trás o esgoto do qual surgiu. Da sublimação não

resulta uma cultura sublime.

A Kultur, com efeito, não está constituída com o trigo das

ciências e das artes mas com o joio. A vulgarização de uma teoria,

por exemplo, só acontece depois de ela ter se tornado inócua para o

7 Desde os Três Ensaios..., em 1905, ou talvez antes.


8 Infra p. 34 e ss.
14

progresso da disciplina. É como rebotalho do campo científico que se

incorpora à cultura, quando deixa de siderar como descoberta e cai

na vala comum do conhecimento universal. A universidade, aliás, é a

instituição encarregada de administrar esta acumulação.

Não é quando Van Gogh subvertia os cânones com telas

inadmissíveis que se verifica a equivalência entre a obra e o dejeto . 9

(Talvez para o artista, mas isso lhe interessaria e a mais ninguém.) É

depois do consenso, quando a Sothesby avalia em centenas de

milhões de dólares os mesmos quadros que em vida do pintor não

valiam o preço da tela em que estavam pintados. Freud não estava

desvalorizando as obras ao mostrar sob as Belas Artes o objeto

pulsional, mas reconhecendo o valor das sobras para o desejo. Não é

este o lugar para refletir sobre o status mercantilista da arte moderna,

mas não deixa de ser um interessante problema o fato de o valor de

troca crescer em proporção inversa à potência subversiva da obra.

Qual é o valor de uso dos óleos do holandês? Por enquanto queria

apenas fazer observar que os Van Goghs são considerados “únicos”

no momento em que foram deglutidos e digeridos pela baleia de

nosso corpo (social).

Esse outro efeito da popularidade, além da rápida conversão

das obras em dinheiro, que é o esquecimento, o esgotamento da sua

capacidade subversiva, é bastante visível no mundo das letras. Os

puristas torcem o nariz para os livros populares menos pela qualidade


9 Freud, 1970. O.C., vol. 3, “Nuevas Lecciones Introductorias al Psicoanálisis” (1932), lección 32.
15

da escrita que pela facilidade com que se consomem e evacuam (o

que constitui a sua popularidade). Consideram “literatura” apenas a

escritura que resiste o leitor instigando seu desejo de dificuldade. Mas

desejo tal é coisa rara, e não acontece sem indução, já que se move

na contramão dos lugares comuns em que o ego se aboleta. O livro

que nos faz trabalhar não está ainda ou não por completo na cultura.

Joyce esperava resistir-lhe por dois ou três séculos. “Poublier mês


10

Écrits”, pondera Lacan. E discorre sobre o preço de condescender à

poubellication. Não que anunciar a lixeira como sina de seu livro o


11

tenha inibido na hora de recolher os direitos autorais. E, mais,

anunciá-lo desta sorte não foi óbice à provocação do desejo de

comprá-lo, antes pelo contrário. Enfim, tinha aprendido a lição

freudiana. E a questão não era (como não é) renunciar ao provento

mas preservar a resistência à cultura que os escritos pudessem ter.

Da sublimação, então, não resulta uma cultura sublime. E a

escatologia é a disciplina que se ocupa, na divisão enraizada em

ocidente entre corpo e alma, do bom modo de manter a psique livre

do seu soma. Basta uma greve de lixeiros, entretanto, para que se

saiba com quantas toneladas de lixo se faz o Volksgeist!

Passemos ao luxo.

10 De publier, publicar, mais oublier, esquecer.


11 De poubelle, lixo, mais publication.
16

Um velho amigo, depois de anos de labuta consegue adquirir

os bens com que sempre sonhara. Os mesmos que tantas vezes

despertaram sua inveja na casa de outros. Ford, Sony, IBM, Hitachi,

Taurus 38, Chivas Regal... Para seu espanto e consternação,

descobre porém que não consegue desfrutar de nada do que tanto

desejara e com tanto esforço obtivera. Este rei Midas da periferia me

confidencia seu desespero, comparável, diz, a ter a mulher sonhada

nos braços sem conseguir penetrá-la.

Que uma mulher possa produzir tal e tamanho descalabro é

compreensível. Já algumas bugigangas inibindo seu usuário era para

mim uma novidade. Os yuppies da década de oitenta tinham me

acostumado com o investimento exclusivo na acumulação monetária,

que não se refletia necessariamente numa melhora da qualidade de

vida. O workhoolism exprimia uma forma de satisfazer-se no trabalho

enquanto reflexo de eficácia e de excelência: a conta bancária

crescendo era o efeito colateral, o signo do sucesso e o lugar de

acumulação do resto daquele gozo. Gastar o dinheiro não era porém

um problema; simplesmente não tinham tempo para isso. Meu amigo

não era contudo um workhoolic; para ele a exploração de suas forças

era um meio para subir na vida. Por que, então, não conseguia comer

os frutos? Conhecendo o pouco chegado que é a intimidades, fiquei

comovido pela sua confiança em mim e intuí quanto lhe custava dizer

tais coisas a alguém com quem não tivera uma verdadeira conversa
17

nos últimos quinze anos. Não me recordo mais o que lhe respondi

nem se tive sucesso em fazê-lo sentir-se melhor, como queria; mas

lembrei dele agora que devo escrever sobre a equação que, dizem,

representa o espírito neoliberal: tem valor porque se vende.

Meu amigo não é o cínico que, segundo Oscar Wilde, conhece

o preço de tudo e o valor de nada, mas sua inibição confirma pela

negativa a fineza da ironia do escritor. O cinismo moderno casado

com o neoliberalismo produz novas versões da fábula da raposa e

das uvas verdes porque inalcançáveis. Depois de uma diatribe

dirigida contra “a ostentação obscena das elites brasileiras” ouvi do

crítico a seguinte autocrítica: “não sei ao certo se sou um verdadeiro

socialista ou um invejoso de merda”.

Para ilustrar o divórcio entre os valores libidinais e os valores

do Eu, Freud conta a fábula do casal paupérrimo, com apenas um


12

prato de sopa rala como toda refeição, a quem aparece a fada de

plantão com sua oferta de satisfação de três desejos quaisquer.

Estava a esposa com tal e tamanha fome, que não pôde evitar-se o

desejo de um par de suculentas salsichas ao sentir o cheiro das que

o vizinho fritava, as quais no ato apareceram sobre seu prato vazio. O

marido furioso com semelhante desperdiço, teve vontade de ver as

tais salsichas penduradas no nariz dessa tola. O que lhe foi


12 Freud, 1970. Op. cit. “Lecciones introductorias al Psicoanálisis” (1916), lección 14.
18

imediatamente concedido. Enternecido, não obstante, com a imagem

de sua patroa “ensalsichada”, pediu para elas voltarem ao prato. O

que nos leva de volta ao casal unido, enfim, em torno ao desejo

realizado de... salsichas (e a uma ilustração de que o desejo é

inconsciente e faz fracassar o cálculo de custo-benefício).

Tenho certeza que se oferecessem a esta mesma senhora,

numa gincana dominical televisada, tudo que pudesse carregar no

carrinho durante quinze minutos no supermercado, provavelmente o

desespero em saber o que deveria querer fosse tamanho que

terminasse levando pouco mais que uma cesta básica, para se livrar

do peso da injunção. A oferta da fada Mercado, longe de ser o “abre-

te Sésamo!” da caverna dos quarenta ladrões, entregue à luxúria de

um Ali Babá, é ouvida como uma ordem incoercível; um dever de

consumir que torna as mercadorias expostas nas prateleiras objetos

ligeiramente persecutórios. A neurose obsessiva toma cada vez com

maior freqüência o caminho da paranóia.

Em todo caso, a impossibilidade de usufruir de um bem de que

se dispõe indica antes seu alto valor libidinal que o contrário; o

compromisso narcisista com ele que impede seu consumo, na

medida exata em que nos realiza como falo. Imagino que meu amigo

não podia acreditar que ele, fadado à eterna privação (“pão de pobre

cai com a margarina para baixo”), tinha sido capaz de comprar todas

aquelas coisas. Como, então, sem antes desvalorizá-lo um pouco,


19

poder desfrutar do passeio nesse carro que não-é-possível-que-eu-

possua? Mas essa é precisamente a questão: ele é que me possui.


20

2. economia política da pulsão

Nada na vida é tão caro quanto a doença e a estupidez.


Freud

A
sociedade edificada sobre a renúncia ao prazer é uma

tese política, embora Freud não a pensasse como tal. Se,

como afirma a metapsicologia, o espírito não aspira à

realidade mas a satisfazer-se, o acesso à realidade se confunde com

o gerenciamento das pulsões, e isso é uma tese política. O Eu e o

Isso se refere à civilização como aterro do mar libidinal. Vale

observar, entretanto, que o princípio-de-realidade não visa à

abstinência mas à verdadeira satisfação —que o sujeito não se

entregue a um engodo, que não abrace a miragem ou beije a

alucinação. Seu objetivo não é a renúncia mas a perseguição dos fins

do princípio do prazer por outros meios —chorar para mamar, em vez

de contentar-se com chupar o dedo, imaginando o peito. Fantasia e

realidade não estão em lados opostos, como se costuma dizer.

“Na noite seguinte àquele dia de fome ouviu-se [minha filha

caçula] proferir excitada, durante o sono, Anna F.eud, Er(d)beer,

Hochbeer, Eier(s)peis, Papp.” O inventário recitado pela adormecida


13

13 (AE, 4, p. 149.) “Ana F.oid, mo(r)ango, amola, ovo, papar ”


21

não faz a triagem dos objetos da necessidade mas das iguarias

proibidas pela “polícia sanitária da família”, como se exprime Freud.

Encenação onírica dos alimentos tornados inacessíveis por obra do

discurso familiar, organizador do vínculo social da menina. As coisas

não são nomeadas ali por mero recenseamento porém indicadas

enquanto subtraídas à satisfação. E a satisfação —menos da fome

que da demanda— passa pelo Alter. (Por isso, observa Ana Costa , 14

quando contraria o ideal, gozar pode não ser demasiado prazeroso.)

Entre a realidade bruta das coisas e o universo de prazer, o Lust-Ich,

está a linguagem. J’ouis-sens, brinca o francês, ao modo de nossos

concretistas . 15

E o sonho da pequena Anna Freud se transforma em

paradigma de uma leitura possível da civilização. Há objetos tornados

inacessíveis pelo discurso, subtraídos à satisfação e por isso mesmo

preciosos. O diamante, por exemplo, o melhor amigo da moça —

segundo Marylin Monroe, no impagável Os homens preferem as

loiras :
16

A kiss of the hand


May be quite continental,
But diamonds are a girl's best friend.

14 Medeiros da Costa, 1998.


15 “Car ces chaînes ne sont pas de sens mais de jouis-sens, à écrire comme vous voulez
conformément à l’équivoque qui fait la loi du signifiant” (Lacan, 1975, p.22). Literalmente: ”ouço
sentido” ou “gozo sentido”. Mot-valise feito de j’ouis (ouço), de Jouissance (gozo) e de sens
(sentido). Grosso modo: a significação substitui o gozo do corpo (o corpo goza), que depois a
parasita —satisfazer-se nada tem a ver com os significantes, mas a satisfação passa pelo sentido
ainda que o exceda.
16 Howard Hawks. Gentlemen prefer blondes, 1953. Marylin é Lorelei Lee.
22

A pulsão —“conceito básico convencional [...], por ora bastante

obscuro, porém do qual em psicologia não podemos prescindir” — é 17

descrita como a labuta que o corpo causa ao aparelho psíquico. A

energia consumida durante o labor, a libido, envolve grandezas de

natureza desconhecida e ainda incomensuráveis (Freud escreve

estas coisas pensando na mecânica dos fluídos) cuja existência ele

infere da vivência da satisfação que se trata de explicar.

Que uma “força de vida” possa constituir aquilo que aí é


consumido, eis uma metáfora grosseira. Pois a energia não é uma
substância que, por exemplo, bonifica ou se torna azeda ao
envelhecer —, é uma constante numérica que o físico precisa
encontrar em seus cálculos para poder trabalhar. […] Isso não é
de minha lavra. Qualquer físico sabe […] que a energia nada mais
é do que a cifra de uma constância. Ora, o que Freud articula
como processo primário no inconsciente —isso vem de mim, mas
podem ir lá e verão— não é algo que se cifra mas que se decifra.
Digo: o próprio gozo. Nesse caso ele não constitui energia e não
poderia se inscrever como tal.18

Esta opinião de Lacan sobre a energética freudiana preside sua

proposta de trocar o modelo hidráulico pelo econômico (o dos

economistas), que também segue Freud, embora isso seja menos

evidente. O “bônus de prazer” obtido mediante atividades que estão

fora de todo propósito útil, como por exemplo sonhar, fantasiar ou

brincar, é uma referência econômica e freudiana. 19


A idéia de

17 Freud, AE, “Pulsiones y destinos de pulsión”. p. 113.


18 Lacan, 1975, p. 34 e 1980 , p. 38.
b
19 Freud (1925) “Algunas notas adicionales a la interpretación de los sueños en su conjunto”, in
O.C., vol. XIX, A.E., p.129
23

“usufrutuário” do humor é outra , assim como falar da renúncia ao


20

pulsional qualificando-a de “operação valiosa”.

Enquanto a renúncia pulsional por causas exteriores é apenas


desprazerosa, a renúncia por causas interiores, por obediência ao
supereu, tem um novo efeito econômico. Além da inevitável
conseqüência de desprazer, proporciona ao eu um ganho de
prazer, uma satisfação substitutiva, por dizer assim. O eu sente-
se enaltecido, a renúncia pulsional o deixa orgulhoso como uma
operação valiosa.21

Ou, ainda, notar a política dirigida para o “lucro de prazer”

imperante no isso, em oposição ao eu submetido ao princípio-de-

realidade ("Assim como o isso se dedica com exclusividade ao

ganância de prazer, o eu está governado pelo cuidado da

segurança" ). O mecanismo de formação do sonho é descrito como


22

uma associação comercial, na qual um sócio capitalista (o desejo

inconsciente) investe seu capital de libido no empreendimento de um

sócio executivo (o resíduo diurno), com a finalidade de fabricar

sonhos. Finalmente, um chiste é feito com representações

censuradas. O artesão aproveita para compô-las a libido que se

destinava a mantê-las recalcadas. Para o destinatário, o mesmo

montante libidinal estará liberado e há de se descarregar na

gargalhada: puro deleite. Em suma, rir de uma piada é ter ganho uma

bonificação de prazer arrancada à censura.

20 Freud (1926-27) “El humor” in AE, vol. XXI. , p. 157.


21 Moisés y la religión monoteista (1938) in O.C, Vol XXIII. AE., p. 113.
22 Esquema del psicoanálisis in O.C., vol. XXIII, AE, p. 201
24

Dos economistas possíveis, talvez pelos ares culturais de finais

da década de 60, Marx foi o escolhido, mas cumpre dizer que não se

tentou costurá-lo com Freud, contrariando usos acadêmicos em

voga . Foi desapropriado para tentar esclarecer alguns problemas do


23

freudismo, especialmente a pulsão teorizada como trabalho.

O capital é “o conjunto de meios de satisfação resultantes de

um trabalho anterior; [...] o fruto de um trabalho.” Entre tais frutos,


24

como se sabe, encontra-se a mais-valia, visível —visível só depois

que Marx chamou a atenção para a assimilação fraudulenta dos

valores de troca e de uso das mercadorias— na diferença entre o que

custa um operário e o que se lucra com sua produção. Como se

exprime Quinet , o time is money capitalista dissimula um time que


25

não entra no livro-caixa como money, a mais-valia.

Concebido como campo econômico, no libidinal também está

em jogo uma falsa identidade de valores, inscrita como falo. Há, com

efeito, um “valor de troca” que dá a “medida” do brilho de um objeto

para o desejo. Marylin o conhecia bem (embora sabê-lo de pouco lhe

valeu), e seu elogio do diamante nos encanta pela ironia de mostrar

que a pedra está para a moça, como ela para o milionário.

The french are glad to die for love


They delight in fighting duels

23 Os interessados lerão com proveito os artigos de Askofaré e de Naveau inclusos no volume


Goza! (Goldenberg, 1997b) e “O segredo da forma-mercadoria: por que Marx inventou o sintoma?”
in Zizek. 1991.
24 Marx, 1985.
25 Quinet Antônio, 1996
25

But I prefer a Man who lives


And gives
Expensive jewels

O que não está dito, embora esteja insinuado, é o valor de uso

—de moça e jóia (esta libera o gozo daquela, digamos). O dote na

atualidade caiu em desuso e as mulheres recusam via de regra o

status que o discurso lhes atribuía antigamente, de representantes do

falo. Até o século dezenove, não obstante, as mulheres eram aptas

para circular, associando linhagens através do matrimônio, apenas

enquanto mantivessem seu valor fálico de troca, isto é, enquanto não

estivessem usadas (a noção de filha estragada, porquanto não mais

virgem, está menos erradicada do pensamento comum do que os

swinging sixties levariam a acreditar).

Em bom freudismo, o que faz do falo um falo é a castração,

caracterizada como interdição do objeto e conseqüente desgozar

(manque-à-jouir). A rigor, a proibição recai sobre o gozo. Como

demonstra aquela estória do judeu que vai consultar seu rabino de

urgência, porque a mulher de seus sonhos (que, incidentalmente,

deve ser gói) decidiu dar para ele logo no shabat. E o sábio, depois

de consultar a Torá: “trepar, pode; gozar, não”. Em todo caso, depois

de certificar-se de que não seja confundido com o órgão do orgulho

masculino que o representa, Freud fez do falo uma sorte de padrão

de medida virtual para os objetos da pulsão.

Já Lacan se apropria da operação crítica que permitiu a Marx

identificar a mais-valia no interior de um sistema de produção de


26

valores pecuniários para chamar a atenção para a diferença entre

valor fálico de troca e valor de uso (gozo) do objeto erótico. E se

permite a extravagância de anunciar que a Meherwert é um

Meherlust! (a mais-valia é um mais-gozar) Sem entrar no mérito do


26

alcance desta expropriação psicanalítica da lógica marxista, o que se

pretende afirmar é que assim como o modo de produção capitalista

gira em torno de um valor excedente, que não entra na contabilidade,

o aparelho psíquico se vê às voltas com um gozo excessivo,

traumático porquanto irrepresentável. Lacan dirá que se trata de

“fazer passar o gozo ao inconsciente, isto é, à contabilidade.” 27

2.1 A CANALHICE: PATOLOGIA CÍNICA DA ÉTICA

[A mais-valia,] causa do desejo da qual uma economia faz o seu


princípio: a produção extensiva, portanto insaciável, de desgozar
[manque-à-jouir]. Acumula-se, por um lado, para acrescer os
meios desta produção a título de capital. Amplia o consumo, por
outro lado, sem o que esta produção seria vã, justamente pela
sua inépcia em procurar um gozo no qual pudesse desacelerar.28

Ainda que o lema mais representativo da economia capitalista

seja “satisfação garantida ou seu dinheiro de volta”, ela depende, na

verdade, de que a insatisfação cresça de modo exponencial e atice o

consumo indefinidamente. Por isso Lacan dirá neste parágrafo, para

o qual o adjetivo retorcido não parece fora de propósito, que o

capitalismo produz desgozar, por só poder oferecer mais consumo

26 Lacan, 1972.
27 ibid.
28 “Radiophonie” in Scilicet 2/3 Paris: Seuil, 1973.
27

ainda, em vez de um contentamento que lhe permitisse deter o

círculo infernal.

Contudo, como me fazia observar Michel Sauval, o limite do

luxo está menos no lixo, resto do consumo, que na saturação. O

impossível de consumir. A missão do marketing é fabricar carência

que não acaba mais, para gerar vontade e incentivar as vendas. Mas,

como toda a produção no pode ser absorvida pelo mercado, o

desgozar encontra seu limite nas mercadorias que permanecem

encalhadas, que não se vendem. Cada uma delas corresponde a

ofertas fracassadas na sua missão de criar demanda. Assim como os

brinquedos no quarto lotado de uma criança são outras tantas

demandas fracassadas na sua missão de causar o desejo dos pais.

Freud inventou a psicanálise quando este circuito estava nos

seus primórdios, quando a moral vitoriana, rigorista, da abstinência,

da frugalidade e do trabalho se firmava concomitantemente à

revolução industrial. Ao discutir os impasses da realização da libido,

responsáveis pelo advento das neuroses, fala do veto da realidade

externa sobre esta satisfação. Ele se refere à frustrante moral

puritana e ao mal-estar decorrente de sua disciplina, mas há uma

versão interna deste veto responsável pela versagung. O supereu

que, embora se trate de uma instância do aparelho psíquico, é

transindividual porquanto constituído menos pelas intervenções


28

educativas que pelos ideais que elas veiculam, muitas vezes

inconscientes para os próprios educadores.

Lacan, em todo caso, observa que a perplexidade de Freud

frente ao paradoxo da consciência de culpabilidade tanto mais

culpado quanto mais virtuosa a conduta seria menor se

reconhecesse o supereu como um dos avatares da pulsão. Seu

travestimento metonímico disfarçado de antipulsão, que nos leva da

renúncia ao gozo ao gozo da renúncia . A culpa insensata é a


29

vivência subjetiva deste paradoxo.

Quanto à frustração fundamental, ela não é responsabilidade

da educação, nem do supereu, mas da linguagem mesma, aquém de

qualquer discurso. Este da uma forma determinada cultural e

historicamente e uma figura a uma interdição inerente ao fato de

sermos falantes. O gozo, em todo caso, concerne à coletividade, não

apenas ao indivíduo.

Norberto Ferreyra pergunta (retenhamos sua pergunta) se o

analista é um gadget para seu analisando. Estará ele em série com

os eletrodomésticos? É decerto mais instigante interrogar o status do

psicanalista por este viés que considerá-lo um prestador de serviços.

29 Isso me levou em outro lugar (Goldenberg, 1991) a afirmar que uma psicanálise devia promover
a interrupção deste gozo do sacrifício (do gozo).
29

Se a psicanálise fosse uma ciência, se pudesse sê-lo, então, o


produto, aquilo que surgiria de uma análise, isto é, um analista
[...], este produto, seria uma lathouse, ou não? Funcionaria como
uma lathouse, na prática social da psicanálise, ou funcionaria de
outro modo? [...] Quando falamos de sua prática, falamos de si é
possível a fabricação de uma lathouse em psicanálise. Há
fábricas de casos. Há fábricas de analistas? É possível uma
fábrica de analistas?30

Deixemos a lathouse neologismo lacaniano sobre o qual não

vale a pena deter-se, e que se refere aos produtos da tecnologia

destinados a funcionar como se fossem objetos pulsionais artificiais: a

chupeta, enfim mas retenhamos a idéia do psicanalista como

produto artificial consumível pelo cliente. Perguntar pelo consumo não

da psicanálise mas do psicanalista, além de renovar a velha questão

de sua função como parceiro libidinal do paciente, supõe já ter uma

resposta ou, ao menos, ter feito a pergunta de como a experiência

analítica nos afeta enquanto consumidores.

Consegue, no plano da coletividade, algo além de revelar a

inércia pulsional afetando as relações sociais? A inutilidade das

campanhas contrárias ao fumo, por exemplo, são suficiente evidência

da impotência da vontade frente à chamada do oral. E não será

apelar para ela com argumentos psicanalíticos o que a tornará mais

potente.

Por outro lado, é inegável que a influência do discurso da

psicanálise sobre a cultura ajudou a minar o valor do ideais que

sustentavam as morais religiosas ou laicas que pregavam a

austeridade, a abnegação e o sacrifício. Especialmente o ideal


30 Ferreyra Norberto, 1993. P. 56.
30

religioso, desmascarado como uma ilusão ao revelar-se por trás dele

a presença da libido. Obra iluminista, a desidealização, da que podia

esperar-se uma melhor apreensão da futilidade dos sacrifícios.

Não é bem o que tem acontecido já que, por um lado, vemos

as pulsões desembestadas soltas as rédeas do ideal inoperante,

atrás dos produtos que o mercado oferece em série e que fazem do

sujeito antes que consumidor, adicto. Por outro, a crescente

martirização que dos Kamikaze à Intifada ilustra a ação nefasta de

ideais absolutos. Não apenas não refreiam o sacrifício como fazem

dos corpos invólucros descartáveis de almas militarizadas, cujo

destino se completa na sua realização instrumental como arma. E

isso, nos dois sentidos, porque o uso sistemático do estupro como

política de guerra, iniciado na contenda balcânica pelos sérvios, visa

também o corpo das muçulmanas como meio para atingir suas almas:

os seus maridos e pais estão obrigados a repudiá-las em obediência

à lei islâmica.

***

A pulsão sexual põe à disposição do trabalho cultural quantidades


de força extraordinariamente grandes, e isto graças à
particularidade, especialmente acentuada nela, de poder deslocar
a sua meta sem perder, quanto ao essencial, a sua intensidade.
Denominamos esta capacidade de trocar a meta sexual originária
por outra meta, que já não é sexual mas que psiquicamente se
aparenta com ela, capacidade de sublimação.31

31 AE, 9, p.159
31

Este é um dos poucos parágrafos em que Freud consegue

escapar das metáforas fluídas ao tratar do gozo. Mas a própria

escolha da noção de sublimação para nomear este processo parece

uma operação retórica destinada a fazer desaparecer as secreções

que lhe parasitam a prosa . Separar-se dos humores, como passo


32

prévio à acessão, digamos, a posições mais elevadas. Em todo caso,

da sublimação me interessa o que a faz fracassar.

Quem melhor ilustrou o processo dentro do espírito freudiano

foi Picasso, ao revelar-se o alquimista quintessencial: qualquer merda

(sic) que fizesse voltava-lhe transmudada em ouro . Parece oportuno 33

não esquecer (ele não esquecia) que naquela época Pablo já era

Picasso. Por isso não se importou quando uma turista recolheu um

desenho que fizera num guardanapo de papel, enquanto bebericava

um aperitivo em Cap D’Antibes. Mas cuidou muito bem de não

assiná-lo: a garatuja não valia nada, mas o garrancho, sim. Outro

comprovado coprófilo, que tampouco era qualquer um, Dalí, levou

aquela constatação alquímica até a excelência de vender folhas

brancas de papel com sua rubrica. O mercado não demorou a ver-se

invadido por milhares de falsos autênticos, cujo efeito a longo prazo

foi a desvalorização das gravuras dalinianas em geral. Note-se que

enquanto um retém o nome, que sabe suporte do valor de troca de

32 Em química a sublimação é a passagem do estado sólido ao gasoso sem passar pelo líquido.
33 Daix Pierre, Picasso criador, Porto Alegre: L&PM, 1989
32

sua arte; o outro gasta o valor de troca do nome, deixando decair as

obras.

Diremos que o artista consegue que lhe financiem o gozo? Ele

se satisfaz e o espectador paga a conta: o pintor como anti-prostituta.

"A gente sabe que está na hora de se aposentar", dizia-me uma,

"quando começa a gozar com os clientes". Dalí, em todo caso, prova

que o ouro não deixa o gozo fora do jogo, como pretende uma certa

definição de profissionalismo. Ou, talvez, simplesmente prove que

Breton tinha razão quando o apelidou de Ávida Dollars.

Não é indiferente que Freud considerasse que para se poder

falar de sublimação era insuficiente transformar o modo de satisfazer

a pulsão, ainda precisava fazer desta transformação um fato social: a

pulsão transmutada devia estar, de alguma maneira, em relação com

a comunidade. Os restos do gozo do artista, suas obras, devem ainda

passar por um certo consenso social para serem consideradas "arte",

e adquirirem valor no mercado.

*
Uma vez ouvi alguém dizer numa conferência (acho que foi

Paul Lemoine) que a concepção de Freud sobre a sublimação

revelava seu cinismo. Faz sentido, porque quando se sabe (mas não

é indiferente se se diz ou não) já temos aberta a via do cínico. E

Freud conhecia o mecanismo, tanto que nô-lo revelou. O que sabe o

cínico? Que estamos separados do gozo pela linguagem. Seria uma


33

deliciosa ironia se o conceito de sublimação fosse cínico, porque o

cinismo é o oposto da sublimação. Com efeito, sublimar é fazer

passar o próprio gozo pelo crivo do “Outro” e dos ideais que este

veicula (a obra de arte como fato social), passagem que é muito

precisamente o que o cínico dispensa. Em todo caso, talvez Freud

fosse cínico, mas não era canalha.

*
Ao mesmo tempo que recomendava negá-la aos canalhas , 34

Lacan fala do “saldo cínico” de uma psicanálise . Existe uma relação 35

entre aquela recusa e a constatação do ganho em cinismo da

experiência analítica. Porque o cinismo a que se refere é uma

espécie de licença para desfrutar da fantasia. Suponho que era em

Diógenes que pensava ao falar desta sorte, não nos seus

contemporâneos; no gesto distintivo daqueles desclassificados

gregos de dar uma banana para as coerções sociais; na sua fama de

prescindir do Outro para se satisfazerem (em todo caso, é o que reza

a lenda —mais adiante veremos que talvez não seja bem o caso).

Aceitemos a mencionada fama enquanto discutimos as razões

sugeridas para se deixar de receber um canalha na análise.

A propósito, resulta difícil imaginar como se poderia

diagnosticar um canalha nas entrevistas iniciais, a não ser apelando à


34 Jacques Lacan, Télevision e Le savoir du psychanalyste, aula de 1/06/72.
35 “Compte rendu du seminaire sur l’acte” in Petits écrits et conferences (sem dados editoriais).
34

mais grosseira intuição, ou manifestando uma profissão de fé realista

dificilmente defensável, relativa ao que o entrevistado nos conta que

fez . Lacan pensa, em todo caso, que viram burros (eis o motivo
36 37

aduzido para negar-se a psicanalisá-los). O adjetivo presta-se a

equívoco ao introduzir um duvidoso ar inofensivo, porque a

obtusidade em que se está pensando não é a de um príncipe León

Nikolaievich, mas a de um Adolf Eichmann.

Um contemporâneo bem menos eminente que Dostoievski nos

ajudará a continuar. O italiano Collodi, moralista e educador. Refiro-

me, claro está, a Pinocchio . Precisamente ao que acontece com o


38

boneco animado quando, por fim, consegue livrar-se da música vã de

sua má consciência, e acaba na Ilha dos Prazeres, devidamente

convertido em burro, e tendo perdido junto com a forma humana à

que tanto aspirava, a palavra. Não sei quantos se recordam desta

desventura do filho artificial de mestre Gepetto, mas a moral da

história não deixa lugar a dúvidas: o preço a pagar por virar as costas

ao logos em benefício do gozo corporal é a submissão definitiva ao

padrone, que soube abster-se para poder arrancar mais-valia (e mais-

gozar) aos hedonistas inconseqüentes . Não digo que Collodi esteja


39

36 Seminário IV As relações de objeto e as estruturas freudianas. Ou, com melhor humor,


Neutralidade suspeita de Gattégno, São Paulo: Companhia das letras, 1997.
37 Jacques Lacan, Le savoir du psychanalyste, op. cit., p.113.
38 Collodi Carlo(1826-1890. Pseudônimo de Carlo Lorenzini). Le avventure de Pinocchio,storia di
un burattino(1883).
39 O mordomo do romance de Kazuo Ishiguro, the remains of the day, com sua irremediável
submissão às regras do seu Senhor, parece-me outro exemplo literário, comovente, do tênue véu
que separa a obtusidade do fascismo.
35

certo, apenas que soube ilustrar a relação entre a parvoíce e o gozo

de si.

O problema está em que ao revelar o segredo: tem-se tanto

pai-patrão quanto se deseja, uma psicanálise pode inspirar alguém a

se propor a representar para os desavisados o papel de mestre dos

burros. Nada impede, segundo Pommier , a quem terminou sua 40

análise, identificar-se não com o desejo que o intima, com sua causa,

mas com o Outro que fornecia a esse desejo a figura de uma

determinação. Encerrar o tratamento nesta posição implicará em

continuar atuando a fantasia de sempre, só que agora com

conhecimento de causa. Nosso homem terá adquirido mediante sua

análise um saber que lhe serve de instrumento de poder a serviço de

um Eu finalmente soberano. Saber a origem do desejo, oculta ao

neurótico, seduz o zarolho com a promessa de reinado sobre os

cegos.

Um passo apenas separa a masturbação pública dos cínicos

helenos, como ato político, da política interesseira do canalha, seu

oposto. E nada garante que não será dado. Não é necessário estar

frente a um psicanalisado para presenciar tal desfecho. Dar corpo ao

Outro é a derradeira tentativa de fazer existir a mãe sonhada (sinal


41

de que se crê nela apesar de tudo, apesar do que se imagina saber:

outra vez a questão dos burros). Canalhice e cinismo são duas


40 Gerard Pommier, 1996.
41 Este Outro maiusculizado e já várias vezes mencionado, é uma ficção teórica lacaniana. Não é
uma entidade real, mas isso não o impede de atuar com total eficácia. Seu segredo, em todo caso,
é que não passa do corpus encarnado dos símbolos.
36

saídas possíveis em frente da evidência de que o Outro do saber não

é de nada. Não há o que esperar de seu lado.


37

3. culpa e responsabilidade
O desejo, isso a que se chama desejo, basta para
fazer com que a vida não tenha sentido quando se
produz um covarde.
Lacan, 1960

3.1 A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA

[...] que monstro de vício é esse, que ainda não


merece o título de covardia, que não encontra um
nome feio o bastante, que a natureza nega ter feito, e
a língua se recusa a nomear?
La Boétie, 1552 (?)

Como alguém há de querer submeter-se sem ser forçado a

isso? O espetáculo de tantos abdicando de sua independência, por

livre e espontânea vontade, como se diz, contesta per se a crença na

liberdade como condição natural do homem. Etienne de La Boétie

levanta esta lebre nos tempos da Renascença. Comemoramos o

cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de

1948, mas o enigma continua tão fresco quanto há quatro séculos.

O simples fato de que tais direitos devam se impor à força

bastaria para lançar uma dúvida séria sobre sua reputada inerência (é

assim que começa a Declaração, conclamando a reconhecer a

“dignidade inerente de todos os membros da humana família”). A

Declaração é antes uma invenção do homem da moralidade.


38

No século dezessete, Locke formula a noção de direitos

humanos de modo filosoficamente consistente. E no dezoito, encontra

com a Declaração de Independência dos Estados Unidos de América

sua primeira aplicação política. Este último caso demonstra que,

inerentes ou não, estes direitos valem para o Homem porque uma

comunidade reunida assim o decidiu. Sua força emana da própria

declaração. E, não menos importante, porque se propõe a garantir a

sua vigência mediante a força.

Hegel criticou vigorosamente a abstração em que se funda a

filosofia dos direitos do homem, ignorante e sobranceira com respeito

ao agir concreto das pessoas. Nietzsche soube ver na lei

incondicionada a crueldade que a anima e, mais perto de nós, Lacan

propôs ler Kant com Sade, para demonstrar como um imperativo de

gozo pode reclamar, ao mesmo título que o imperativo moral, a

universalidade requerida pela idéia jurídico-política do humano.42

Vale lembrar que foi em nome dos direitos do homem que a

ONU interveio em tal nação africana com o intuito de proibir a prática

milenar de infibulação, pela qual os sacerdotes extirpavam o clitóris e

os lábios vaginais de suas púberes. Como era consensual que se

tratava de uma barbárie, ninguém —certamente, não os capacetes

azuis— antecipou que as próprias mulheres liberadas iriam se

revoltar contra seus libertadores; algumas chegando até o suicídio

para reivindicar o direito a que? à mutilação! Sem ela, com efeito,


42 Monique David-Menard, 1998
39

estas mulheres eram pouco mais do que párias na sociedade na qual

tinham crescido e pretendiam viver, porque a cirurgia em questão

valia como ritual de passagem à comunidade, e os direitos humanos

tornavam impossível este acesso.

Como foi o caso para a ONU, a intuição nos induz a pensar que

a imposição (enforcement) da Declaração deve visar os que se

arrogam o direito de oprimir os outros; em outras palavras, os

senhores. Entretanto, o ensaio curioso de La Boétie a que me referia

acima nos permite conjecturar, contra o senso comum, que talvez o

verdadeiro obstáculo para a atualização da liberdade como direito

universal esteja antes no desejo de servir que no absolutismo

excepcional dos tiranos e tiranetes.

*
Montaigne tinha a intenção de publicar o Discurso da servidão

voluntária nos seus Essais. No entanto, os huguenotes se

anteciparam e, em 1574, inseriram o texto num panfleto tiranicida. 43

Montaigne vira malogrado seu projeto e decidira afastá-lo tanto

quanto possível da noite de São Bartolomeu, declarando que fora

escrito em 1544, quando La Boétie, ainda estudante de direito,

contava dezoito anos. Rara precocidade.

O manuscrito confiado por La Boétie a seu amigo parece

irremediavelmente perdido. Marilena Chauí nos dá a seguinte

43 “Amizade, recusa do servir” in Discurso da Servidão Voluntária, Marilena Chauí (org.), S.Paulo:
Brasiliense, 1982.
40

cronologia: em 1546 “já não há rei de homens fracos, mas senhor de

servos que lhe dão tudo quanto pede, como num movimento

voluntário.” Em 1548, os camponeses se revoltam contra um novo

imposto, na região de Guyenne —trata-se da denominada

“gabelle“—, e, “mesmo que não o saibam, reagem contra um dos

sinais da implantação do Estado novo, pois lutam contra o fisco

moderno. O massacre dos revoltosos será sem precedentes, como

sem precedentes é o poder que enfrentam.” Em 1552 ou 53 La


44

Boétie escreve seu Discurso. Montaigne voltou a recuar a data de

composição do texto, colocando-a em 1542, para evitar que o nome

de seu amigo fosse associado ao episódio da “gabelle”.

O escrito retorna à cena política durante a Revolução Francesa

e no século XIX, retraduzido por La Mennais, no curso das lutas

proletárias. Com Marat, a obra se converte em panfleto pedagógico

para ensinar o povo a lutar contra os tiranos quer ele queira, quer

não. “A Revolução Francesa, sempre pronta a construir os ‘amigos’ e

os ‘inimigos’ do povo para lhe roubar o direito de definir os primeiros e

combater os segundos, deu a La Boétie o lugar que este se recusara

a ocupar: o de demagogo.” 45

Com La Mennais, o Discurso é integrado ao panteão da

literatura democrática, servindo a uma concepção instrumental do

poder que será bom ou mau dependendo de quem o possui,

44 idem.
45 ibid.
41

anulando a interrogação de La Boétie sobre a origem do próprio

poder. “O que surpreende nas ininterruptas e diversificadas

interpretações do Discurso não é tanto o modo como a obra é

interpretada e apropriada pelos leitores, mas o fato das leituras serem

possíveis apenas sob a condição expressa de não enfrentarem o

enigma proposto por La Boétie.” 46


Isto é, a gênese da servidão

voluntária.

Por hora gostaria apenas de entender como pode ser que


tantos homens, tantos burgos, tantas cidades, tantas
nações suportam às vezes um tirano só, que tem apenas o
poderio que eles lhe dão, que não tem o poder de
prejudicá-los senão enquanto tem vontade de suportá-lo,
que não poderia fazer-lhes mal algum senão quando
preferem tolerá-lo a contradizê-lo. Coisa extraordinária, por
certo; e porém tão comum que é mais digno de lástima que
de espanto ver um milhão de homens servir
miseravelmente, com o pescoço sob o jugo, não obrigados
por uma força maior, mas de algum modo (ao que parece)
encantados e enfeitiçados apenas pelo nome de um, de
quem não devem temer o poderio pois ele é só, nem amar
as qualidades pois é desumano e feroz para com eles.47

La Boétie também pensava tratar-se de uma desnaturação do

homem, nascido para viver francamente. Sua questão,

aparentemente, é por que lhe aconteceu de renunciar à liberdade.

Contra a intuição de que só existe servidão pela submissão à vontade

de um mais forte, La Boétie propõe um senhor que procede do

escravo. A obediência deste não se origina na covardia, nem a

liberdade nasce da coragem. Antes de serem dois termos separados,

esta relação senhor-escravo é “interna ao mesmo sujeito —mas

46 ibid.
47 Etienne De La Boétie, 1982, p. 12
42

pode-se dizer sujeito? —, ao mesmo agente —mas pode-se dizer

agente?” . 48

Comentando este texto, Claude Lefort faz uma interessante

distinção entre o discurso político e o discurso sobre o político, a

propósito do feitiço de um nome como fonte do monstruoso poderio

do tirano. E aqui se trataria de captar a relação visível entre o senhor

e seu servo mediante uma relação invisível que se ata com a língua.

Ser livre consistirá em se desejar a liberdade, nem mais, nem menos.

“Apostrofando o povo, a ponto de pretender ensinar-lhe o que deve

fazer (‘Decidi não mais servir e sereis livres...’), La Boétie vem

inicialmente ocupar o lugar do senhor, esse lugar que denuncia como

efeito do desejo de servidão.” 49

Trata-se pois do discurso do senhor que, ensina La Boétie,

consiste na ficção mesma da qual surge o tirano. Esta ficção é a

crença na unidade do povo. O desejo de servidão é idêntico à fábula

do povo concebido como uno. A liberdade, em compensação, diria

respeito ao retorno da pluralidade dispersa. A ilusão do povo uno

coincide, seguimos Lefort, com a separação do poder do povo,

porque esta ilusão está sustentada no que La Boétie denomina o

nome de Um, isto é, o amo. Esta seria pois a próton pseudos dos

governantes, a sociedade una. E a liberdade, “a recusa de ceder ao

atrativo da forma, do semelhante, do um [...] E como pensar que o

48 Claude Lefort, “O nome de Um” in Discurso... op. cit.


49 Ibid. p. 139
43

desejo de servidão não proceda dele, capturado pelo feitiço do nome

de um.” 50

Vivemos numa sociedade em que a escravidão não é


reconhecida. É claro —qualquer sociólogo ou filósofo sabe disso
—, que ela nem por isso está abolida. Isso é mesmo objeto de
reivindicações bastante notórias. É claro também que, se a
servidão não está abolida, ela aí está, se podemos dizer,
generalizada. Os vínculos daqueles que a gente chama de
exploradores não deixam de ser vínculos de servidores em
relação ao conjunto da economia, tanto quanto o são os do
homem comum. Assim, a duplicidade senhor-escravo está
generalizada no interior de cada participante de nossa
sociedade.51

O par senhor-escravo no interior de cada um será referido mais

tarde ao inconsciente freudiano (“o trabalhador ideal do capitalismo”),

e sua estrutura escrita como discurso do mestre. A relação invisível

que se ata com a língua manifesta a separação de um significante-

mestre com respeito ao corpus da língua, suportado pelo escravo —

mudo, porque assim que tomar a palavra (e vice-versa) estará

separado de seu gozo pela linguagem.

Vale lembrar que o significante-mestre emitido em direção ao

corpo (do) escravo tem a finalidade de fazê-lo andar. O mesmo dá

mestre de si mesmo ou dos outros (sou mestre de mim mesmo

enquanto outro). Graham Bell teve de ouvir, de um gentleman da

Nova Inglaterra, a quem pretendia impressionar com sua mais nova

50 ibid. p. 145
51 Lacan , 1983, p. 154. Minha ênfase.
44

invenção, que o telefone lhe parecia um aparelho desprezível: “o

senhor atende à campainha como um serviçal!”

Nos antípodas desta servidão que não sabe de si, no “discurso

patente da liberdade” , Lacan fustiga as pretensões do ego que,


52

desconhecendo com afinco suas determinações, reivindica o direito

do indivíduo à autonomia. “Um certo campo parece indispensável à

respiração mental do homem moderno, aquele em que se afirma sua

independência em relação, não só a todo senhor, mas também a todo

deus, aquele de sua autonomia irredutível como indivíduo, como

existência individual. Há justamente aí alguma coisa que merece em

todos os pontos ser comparada a um discurso delirante.” Este último


53

não possibilita a menor ação social, ou mesmo qualquer movimento

comunitário concreto de emancipação, ou ainda de reforma ou

mudança. Mesmo evocando a seu respeito os direitos do homem e

do cidadão ou o direito à felicidade, trata-se de um discurso “íntimo e

pessoal” que “está bem longe de encontrar em algum ponto que seja

o discurso do vizinho.” No foro íntimo mantemos a convicção na


54

liberdade de cada um, ainda que do ponto de vista dos fatos o que se

comprova é uma submissão resignada à realidade, que via de regra

contradiz a miragem libertária.

52 Seminário 3, op. cit.


53 Ibid.
54 Idem p. 155
45

Seguramente temos, nós, muito menos confiança no discurso da


liberdade, mas logo que se trata de agir, e em particular em nome
da liberdade, nossa atitude em face do que é preciso suportar da
realidade, ou da impossibilidade de agir em comum no sentido
dessa liberdade, tem inteiramente o caráter de um abandono
resignado, de uma renúncia ao que é no entanto uma parte
essencial de nosso discurso interior, a saber: que temos não só
certos direitos imprescritíveis, mas também que esses direitos
estão fundados em certas liberdades primeiras, exigíveis em
nossa cultura para qualquer ser humano.55

Este “duplo discursivo do sujeito, tão discordante e derrisório

[...] é o seu eu. O eu de todo homem moderno.” 56

*
Há um vínculo inegável entre a servidão voluntária, que deixara

La Boétie perplexo no século XVI , e a relação de cada um com a

língua que fala, qualificada por Barthes, com extrema pertinência, de

fascista. 57
O simples fato de entender o que se diz já é uma

submissão. Uma vez vinda do interlocutor nos interpelar, não

podemos evitar dar à sua palavra um sentido.

Este imperativo pode vir dos líderes da comunidade, mas

também dos enunciados que presidem nosso nascimento, e nos

quais temos aprendido a reconhecer o supereu. Penso nas três

fadinhas dizendo seus votos sobre o berço da princesa, e na quarta,

a que roga a praga (talvez a mais importante: sem ela, não haveria

estória para contar); ou numa cena do filme de Lang, O testamento

do Dr. Mabuse: ao se mexer na maçaneta da porta do chefe, ouvia-se

55 ibid.
56 idem
57 “Mas a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista;
ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer.” Roland
Barthes, Aula, São Paulo: Cultrix, p. 14. Trad. Leyla Perrone-Moisés.
46

sua voz proibindo o ingresso. Quem fizesse ouvidos moucos e

continuasse o gesto, porém, entraria sem ser barrado, já que o quarto

estava vazio e his master’s voice era desencadeada por um

mecanismo de gravação acoplado à maçaneta. Nada impedia a

passagem, só a obediência devida à palavra do Outro; o desejo, de

se acreditar no mestre.

3.2 OS INJUSTIFICÁVEIS

De nossa posição de sujeito, somos sempre responsáveis.58


Lacan, 1965

Não podemos imaginar a pulsão sem atribuir-lhe ipso facto um

objeto. Esquecemos que este fora interposto, jogado como pasto,

para domesticá-la. É a educação. Aquém do objeto, que reputamos

natural por puro preconceito, a pulsão é uma konstante kraft que

exige “uma alteração do corpo sentida como satisfação.” Eis a meta 59

interna de toda e qualquer pulsão, reduzir o estímulo na fonte, na

zona erógena.

Uma vez tomada nas redes das normas, entramos nos

paradoxos do supereu, que engorda com a satisfação pulsional

renunciada (triebversicht). Satisfazer-se da abstinência. Evocaremos

a auto-flagelação dos penitentes? O resultado é uma culpa que

aumenta com a virtude, até tornar o virtuoso imperdoável. A fruição

58 Lacan, 1966, p. 858


59 Sigmund Freud, Nuevas conferencias de introducción: “Conferência 32” in O.C.
47

pulsional deslocada suporta a consciência moral. As exigências desta

mal disfarçam a cruel morbidez em que se motivam.

Podemos caracterizar o perverso como alguém tomado de um

modo absoluto pelo seu objeto. E se o neurótico se encarniça com ele

é menos pelos motivos altruístas que costuma invocar que pela sua

necessidade de neutralizar o insuportável gozo do semelhante. Se

alegar o sofrimento que sente por não conseguir se conter, quando se

lhe apresenta o objeto de seus apetites, não é um argumento

convincente para isentar o perverso de culpa. Tampouco se vê como

qualificar moralmente os diferentes objetos nos quais sua pulsão se

satisfaz, a não ser pelas conseqüências sobre terceiros, cujos direitos

devem ser protegidos. Em Seven (filme de cujo diretor esqueci), um

assassino serial se empenhava, com ânimo purificador, numa

cruzada contra aqueles que se entregavam de modo ostensivo a uma

das sete formas de satisfação, não por acaso denominadas pecados

capitais. Ele, que se considerava um puro, descobre que merece

morrer por ter incorrido no pecado da soberba.

Resulta, portanto, curioso constatar a animosidade dos

psicanalistas contra aqueles que podem reputar de perversos, e seu

consenso quanto à sua inanalisabilidade. Dizem que não chegam à

consulta, e quando o fazem é para fins insofismáveis, em nada

relacionados à renúncia a seus vícios. Dizem também que se


48

interessam pelo terapeuta só para desafiá-lo e sentar sobre ele.

Chamar um colega de perverso é a pior injúria que um psicanalista

pode conceber; a única que sabe afetará o outro, como a um italiano

ser xingado de cornudo. A perversão se apresenta como um limite,

senão para a psicanálise para o psicanalista (o outro seria a psicose).

Tenho comigo que este anátema sobre os perversos é fruto das

mesmas dificuldades neuróticas com o gozo que os pacientes de que

tratam.

Eu diria que estes sujeitos regidos pela pulsão podem procurar

um analista, sim, e não apenas por exibicionismo, ou para fazê-lo de

bobo. Podem dirigir-se a um consultório quando precisam

testemunhar do que não conseguem evitar fazer; quando deixam de

precisar uma justificação e querem responder por isso. Decerto, não

são poucas as dificuldades clínicas envolvidas em casos desta

índole, e merecem ser abordadas com cuidado, mas alguém que se

dirige a nós sem esperar absolvição ou redenção, em posição de

imperdoável, revela uma coragem ética perante a qual resulta difícil

invocar qualquer critério a priori para virar-lhe as costas.

Acredito que ao referir-se à perversão como o negativo da

neurose, Freud estava pensando no comportamento do perverso

como figura da própria pulsão, cuja característica é, de um lado, um

“não poder abster-se”; e, do outro, um “não poder responder por

isso”. Falamos de pulsão, com efeito, quando o sujeito do direito está


49

eclipsado, não digo abolido, porque a exigência de Freud é que ele

advenha precisamente ali . 60

É claro que tocamos num assunto espinhoso, porque tratamos

de condutas que rompem com o decoro e os bons costumes —sem

mencionar os crimes. Está em jogo a ordem pública, e o risco

iminente de uma devassa sobre o sigilo profissional. Porque ao tratar-

se do mau comportamento, o campo de ação dos psiquiatras se

encavala com o da polícia e o dos juízes. A noção chave neste ponto

é a imputabilidade; a decisão sobre a responsabilidade do indivíduo.

O perpetrador da falta deve ou não responder pelo que fez? Justifica-

se o castigo? Para o laudo psiquiátrico, sadio significa passível de

punição.

Com freqüência, esta confusão entre doença e

irresponsabilidade, resulta numa catástrofe subjetiva para o

criminoso, que perde, junto com o castigo, a significação de seu ato. 61

Entendo por irresponsabilidade, que os outros decidam em meu

lugar; deixar de ser um sujeito do direito. Miller observa ali a própria


62

definição do totalitarismo —que outro escolha por mim.

Responsabilidade será, pois, a capacidade de responder.

60 Wo es war, soll ich werden


61 Leia-se o depoimento de Louis Althusser, declarado inimputável pelo assassinato de sua mulher
Hélène. Althusser, 1994.Também o ensaio de Freud, Varios tipos de caracter descubiertos por la
labor analítica, de 1916, especialmente “Los que fracasan al triunfar” e “El criminal por sentimiento
de culpabilidad” in AE
62 Miller J.-A., 1998
50

Quanto ao canalha, que pode ou não ser um perverso, sempre

tem uma desculpa à mão pelo que fez ou deixou de fazer. Em

polêmico artigo sobre a perversão, Durval Checchinato vale-se da


63

autoridade de Safouan para fundamentar sua recomendação de

recusar nossos serviços profissionais aos perversos. Acredito que ele

se refira aos canalhas, porém, tomar por canalhas todos os perversos

me parece excessivo.

Seja como for, o psicanalista só pode dirigir-se ao sujeito como

imputável. É a condição da nossa experiência, que o outro possa

responder pelo que diz e faz. O Neurótico está governado pelo

sentimento de culpabilidade, mas também de irresponsabilidade.

Digamos que um depende da outra. Por não saber como e sobre o

quê responsabilizar-se se encontra sempre sob o jugo da culpa. Da

sua dívida impagável deriva a sempiterna necessidade de justificar-se

e de convocar-nos como cúmplices ou juízes (dependendo da

estrutura). Dirige-se a nós para que justifiquemos sua conduta, para

que a “freudexpliquemos”. O canalha permanecerá neste ponto. O

neurótico (mas também o psicótico ou o perverso), não; não

necessariamente.

3.2.1 “Desculpe qualquer coisa”

Never complain, never explain.


Disraeli

63 Checchinato, 1997.
51

Os animais não se preocupam com o sentido da vida, apenas

vivem. Em todo caso, é o que acreditamos. São difíceis de interrogar.

O problema ético não nos concerne por estarmos vivos, mas por

poder pensá-lo. François Jacob , Ilya Prigoyine e Jacques Monod


64 65 66

demonstraram que estamos por um triz e que não há progresso. Tudo

que aconteceu, inclusive nós mesmos, foi por acaso.

Thornton Wilder 67
narra a história do “Irmão Juniper”,

testemunha da queda de uma ponte pênsil cheia de passantes no

Perú. Dedica a vida a tentar captar nas biografias dos mortos o

desígnio divino que os perdera, enquanto ele, pecador, que optara

por atravessar o rio pela beirada, fora poupado. Perguntar pela graça

já é uma resposta, porque significa que há uma razão. Pitágoras

inventou a filosofia para conhecê-la. Tinha vontade de compreender e

explicar tudo. Da nossa parte, vivemos, ao menos desde Leibniz,

governados pelo princípio de razão suficiente, que diz nada ser por

acaso e tudo dever-se a uma causa.

Menos o sujeito, que é contingente (uma vez que ele está lá,

podemos rastrear sua origem, mas nada o predestinava a lá estar), e

por isso se espanta. Acaba neurótico pela teimosia em acreditar que

há razão para tudo, menos para ele. A propósito, o inconsciente

64 François Jacob, 1983


65 Ilya Prigoyine, 1997
66 Jacques Monod, 1971
67 Thornton Wilder, The bridge of San Luis rey, London: Penguin, 1987
52

prometido pelo analista ao analisando (“fale sem pensar, tudo terá um

sentido...”) é o retorno da sua insensatez ao princípio de razão

suficiente. Um bom motivo para amá-lo (e para permanecer em

análise sine die). A invenção da neurose é a mais popular das

versões modernas da procura pela justificação da existência.

Embora solidária do discurso médico, a neurose é uma paixão,

no sentido cristão do termo. Um apelo justificador endereçado ao

Outro —invocado mediante todas as figuras do perdão. Desde um

banal “estou atrasado”, até um refinado “perdoa-me por me traíres”,

passando pelo impagável, e muito brasileiro, “desculpa qualquer

coisa”. Aliás, não conheço fórmula mais bela da posição neurótica

que esta expressão que, a guisa de despedida, declara a assunção

antecipada de culpa por... qualquer coisa!

O sofrimento pede uma testemunha. Fazer-se ouvir —pelo pai,

no caso do Crucificado: “Senhor, Senhor, por que me abandonaste?”.

E por falar em pai, ao Libertador, General Don José de San Martín,

atribui-se uma máxima pedagógica que reza: “serás o que devas ser,

ou então não serás nada”. Só um militar e um herói poderia doar à

História injunção tão sinistra. O neurótico, especialmente o obsessivo,

mas não apenas ele, está convicto de não ser nada por nunca ter

conseguido ser o que devia. Se enxugarmos as lamúrias de todos os

consultórios ao seu comum denominador diremos que o neurótico


53

sofre porque ainda não é; porque sempre não é, ou não é

suficientemente; porque já era; porque foi e quer ser novamente;

enfim, porque o ser lhe falta.

O obsessivo cuida de manter-se culpado, em falta. Ou então,

quem manca é o Outro, e se trata de histeria. Duas estratégias para

encontrar uma razão da falha inexplicável na ordem das coisas, que

somos, e que nos revela sem propósito. A sem-razão está na entrada

de qualquer consulta ao analista: deixei minha família por aquela

ordinária; sacrifiquei minha poupança em vão; padeço por nada. Se

tudo correr bem, descobrirá que sua vida é um acidente (mesmo e

sobretudo tendo sido uma criança bem planejada pelos pais). Estar

aqui porque sim, por nada em especial, é nisso que consiste a falha

no ser do sujeito, ela própria injustificável. A única e inalienável

particularidade que possui é sua pena. Mais nada. Sua esquisitice é

sua diferença específica e seu único patrimônio. O modo como falha

em “ser” é tudo que tem para justificar uma existência, de qualquer

ponto de vista, insensata. Quem sabe a melhor definição para a

famigerada assunção da castração seja esta: abrir mão do defeito

como brasão, suportar-se injustificável.


54

Acaso quando falamos de cura por acréscimo estamos


desprezando o sofrimento humano? [...] Já temos ao alcance da
mão o que é preciso tomar para dormir. Quem sabe dentro em
breve saberemos agir diretamente sobre os centros bioquímicos
da dor. E talvez se encontre a molécula da esquizofrenia. O
nirvana se aproxima a grandes passadas. Supor que isso tudo
será possível a curto prazo me parece muito mais interessante
que dizer: não, jamais! Entretanto, uma vez que se encontrem os
centros da dor e se saiba operar diretamente sobre eles, a
vontade de justificação não desaparecerá. Antes pelo contrário,
para o neurótico justificar-se por não sofrer é ainda mais difícil. Ao
invés do que se supõe, nada disso anuncia o desaparecimento da
psicanálise, dado que a verdadeira questão é se se pode curar ou
não a justificação.68

“Curar a justificação”, uma bom comentário da injunção que

Lacan não se importaria de ver qualificada como terrorista, e que

colocamos em exergo: “De nossa posição de sujeito, somos sempre

responsáveis”. Refugiar-se no determinismo inconsciente pode ser o

último álibi para não ter que responder pela esquisitice e encontrar

uma razão de ser. Nenhum determinismo fará dele um inocente,

porém. Eis o terrorismo psicanalítico: engajar o sujeito no seu

determinismo inconsciente. A neurose é uma escolha ética. Um

paciente deve abandonar seu analista convicto disto.

68 Jacques-Alain Miller, 1998, p. 89


55

4. do Cão aos cínicos

Cada século, e o nosso sobretudo, precisaria de um Diógenes; mas a


dificuldade é encontrar homens com a coragem suficiente para sê-lo, e
homens com a coragem de agüentá-lo.
D’Alembert, Essai sur la sociéte dês gens de lettres (1759)

Cinismo é a arte de ver as coisas como são em vez de como deveriam ser.
Oscar Wilde, Sebastian Melmoth (1904)

4.1 O CINISMO COMO RETÓRICA: UMA RETÓRICA CÍNICA?

É
certo que a figura de Diógenes com seu báculo, trouxa e túnica

puída pode parecer remota para nós.

Não obstante o movimento Cínico não apenas durou quase um


milênio na antigüidade, como também gerou um notável leque de
formas literárias que sobreviveriam a cultura clássica [...] A
natureza do ‘movimento’ assim como sua longevidade pedem
uma explicação. Cinismo não foi uma ‘escola’: os filósofos cínicos
não davam aula num local específico, nem encontramos entre
eles qualquer acadêmico sucedendo outro como cabeça de uma
instituição [...] O que temos aqui podemos entendê-lo melhor não
como escola, mas como um movimento filosófico e até cultural
que, embora fosse bem diversificado, permaneceu fiel ao exemplo
de Diógenes —a seu modo de vida e princípios filosóficos do
modo como foram interpretados ao longo dos séculos. É portanto
fácil entender que há diferenças significativas entre Diógenes
mesmo, cujo alvo e audiência era a mui culta sociedade do
classicismo grego tardio (no século quarto a.c.) e aqueles bandos
de Cínicos que vagavam pelas ruas de Alexandria ou
Constantinopla nos tempos do império Romano reclamando-se
dele como mestre e modelo.69

69 R. Bracht Branham, 1996, p.2


56

Sócrates afirmava ser melhor sofrer um mal que fazê-lo e

Hannah Arendt faz observar que embora ele nunca o tenha

demonstrado de modo convincente, o impacto deste aforismo sobre

as condutas como preceito moral é incontestável; “esta sentença se

tornou o início do pensamento ético ocidental.” Os diálogos

platônicos, continua, nos mostram uma e outra vez quão paradoxal

era esta oração e quão fácil era refutá-la, e as vezes que de fato fora

refutada na ágora. Sempre que tentara prová-la, tanto amigos quanto

adversários saíam céticos quanto à justeza da demonstração. Como

veio a adquirir o grau de validade que tem em nosso pensamento

hoje? “Obviamente, isto aconteceu em virtude de uma forma digamos

inusual de persuasão; Sócrates decidiu apostar sua vida nesta

verdade —para dar o exemplo, não quando apareceu perante o

tribunal ateniense mas quando se recusou a fugir da sentença de

morte.” Em suma, esta proposição se torna verdadeira e passa a ter


70

o peso que conhecemos só depois que as testemunhas do seu ato

voltaram sideradas para casa e contaram a performance ética

exemplar do filósofo.

Este estilo ético-retórico performativo passou de Sócrates a seu

contemporâneo Diógenes, e permaneceu no cerne do movimento

Cínico até os romanos. Segundo Barry Allen podemos considerar

esta demonstração socrática da proposição: “é melhor sofrer o mal do

que fazê-lo” como uma das primeiras contribuições a um gênero que


70 Hannah Arendt, 1993, p. 247
57

Diógenes nomearia formalmente e incorporaria ao ensino Cínico: a

chreia. 71
Eram tiradas curtas, afiadas, inteligentes, com valor de

aforismos e com freqüência acompanhadas de uma performance em

ato. Como a entrada de Diógenes no contrafluxo, enquanto o público

estava deixando o anfiteatro depois da peça, com o intuito de poder

responder à inevitável pergunta sobre o que estava fazendo com:

“Isto é o que tenho feito a minha vida toda.” 72

Platão, o aristocrático metafísico, era a antítese de um Cínico.

Seu paradigma era a filosofia como theoria e o filósofo como

espectador da eternidade; Diógenes era um desclassificado que

propunha a filosofia como improviso frente à contingência, a

adaptação ao que desse e viesse e o filósofo como um bobo da corte.

Diógenes teria concordado com William James em que “A verdade é

o que é bom de se acreditar” —entendendo-se como verdadeiro, o

que funciona.

Quando seu exílio o trouxe a Atenas, Diógenes tentou arranjar

alojamento como qualquer um teria feito. Foi só depois de não ter

conseguido nada que improvisou a idéia de viver dentro de um tonel

de vinho, como um cachorro (D.L. 6:23). Primeiro ele devia tornar-se

a personagem da qual Alexandre “O Magno” diria que se já não fosse

Alexandre “O Magno”, adoraria ser um Diógenes, para que aquela

solução prática da falta de moradia adquirisse a significação de um

71 Barry Allen, 1995, p.50


72 Diogenes Laertius, Lives and opinions of famous philosophers, 6:64
58

desafio à cultura convencional (nomos) e fosse lembrada como um

dos atos fundadores do Cinismo.

*
Kunikos quer dizer “como um cão” (em inglês se diria: doglike).

Parece que ser chamado de cachorro (kuón) não tinha, na

antigüidade clássica, a conotação que tem hoje. Talvez adquiriu ali,

na Grécia e em Roma, sua posterior significação de desprezível. Não

sei; o caso é que naquela época não estava de modo algum

associado à subserviência abjeta da denominada “fidelidade canina”.

Kunikos se referia aos seguidores de Antístenes, Diógenes e sua

turma. E nenhum deles se caracterizava pela submissão, muito pelo

contrário. Cínico era sinônimo de insolência e deboche de tudo o

estabelecido pela cultura em matéria de conduta, aparência,

linguagem e princípios.

Praticar o Cinismo —ser um cachorro—, passou a significar

viver de acordo com as circunstâncias que nos tocam viver. No caso

de Diógenes, no exílio, tanto literal quanto metaforicamente. Quando

um imprudente o reprovara por se ter feito expulsar de Sínope ele

gritou enfurecido: “Foi assim que me converti num filósofo, seu

imbecil miserável!” (D.L. 6:49). Com esta resposta ele transforma num

ato de desafio voluntário a exclusão involuntária que sofrera quando

foi forçado a expatriar-se. Assumir o acaso como sua sina lhe permite

dizer que da filosofia tinha aprendido a “estar preparado para


59

qualquer tipo de sorte” (D.L. 6:63). Sorte, tuké, a mãe da invenção

Cínica.

Muitos achavam o Cínico um exibicionista, puído e arrogante,

cujo único motivo era chamar a atenção para sua pessoa e esmolar

com maior eficácia. O lema de “viver conforme a natureza”, para


73

quem está no meio da cidade, significa dormir ao relento e esmolar

para comer. Rejeitar o trabalho, contudo, era também dizer “não” ao

tipo de vida considerado produtivo pela sociedade. Recusar a

sujeição às regras sociais e à autoridade constituída. Em todo caso, o

valor central do Cínico não podia ser a autosuficiência (autarkeia) de

que era acusado —ninguém é mais dependente dos outros que um

mendigo—; tampouco a “natureza”, se esta for tomada como um

princípio racional, equivalente ao logos, como era para os Estóicos,

mas a liberdade e sobretudo a liberdade de palavra (parrésia). A

autarkeia era 74
uma fantasia dos cidadãos, presos às leis que

constrangem seus movimentos e apetites e acendem seus sonhos de

liberdade.

Quase tudo que temos sobre Diógenes nos vem de fontes

indiretas. Os diálogos de Platão e as anedotas relatadas por

Diógenes Laércio no século três de nossa era, setecentos anos

depois dos fatos. Uma coisa chama poderosamente a atenção nestes

73 Sayre, citando D.L. 6:64 “Estes atos podem ter sido o exibicionismo de um egotista ou as
tentativas de chamar a atenção e lhe dar uma oportunidade de pedir contribuições”.
74 E é: o filme Easy Rider de Dennis Hopper, atesta sobre este sonho, caro à contra-cultura. Ser
livre, como um mendigo, das correntes da sociedade. Na primeira cena, depois de vender droga
para poder viajar, e antes de por o pé na estrada, os amigos jogam seus relógios fora.
60

relatos: trata-se de uma retórica, e de uma retórica performativa. F.

Sayre, que não gostava nem um pouco do Cão, escreve: “Isto parece

confirmar que a pretensão Cínica de serem sábios não estava

baseada no aprendizado. Os Cínicos estabeleciam sua sabedoria

superior criticando e denunciando outras pessoas.” O que Sayre não


75

percebe é que semelhante estilo não se deve à preguiça ou à má fé,

mas à estrutura mesma do discurso de Diógenes , que intervém 76

sobre o discurso dominante da Polis grega —sustentado pelos outros

—, com o intuito de virá-lo pelo avesso. Talvez a única resposta à

pergunta insistente sobre por que fazia o que fazia, fosse “porque

sim”. Cabe conjecturar se os motivos filosóficos invocados pelos

historiadores não são outras tantas tentativas de justificar,

mascarando-o —bem à moda da racionalização obsessiva—, o gozo

lúdico que parecia comandar os atos do Cão.

A falta de vergonha característica dos Cínicos (anaideia) pode

também ser pensada como uma categoria retórica: mostrar o corpo

ingovernável, estragando a vã pretensão de domínio da educação

civilizada . Comer, escarrar, defecar e urinar em praça pública; assim


77

como masturbar-se à plena luz do dia, seriam modos de lembrar que

os apetites são naturais e não há, em princípio, melhores que outros.

É a cultura que inventa hierarquias entre diferentes desejos e

75 The Greek Cynics, Baltimore (1948)


76 Não vou chamá-lo “discurso do cínico” porque reservo esta denominação para o cinismo
moderno, como veremos mais adiante. Se fossemos tomar a licença de pensar o discurso de
Diógenes com nossas próprias categorias, eu o denominaria discurso do histérico.
77 Esta parece uma crítica a Aristóteles avant la lettre.
61

considera apropriado ou não satisfazê-los. Diógenes parece se

propor a uma sorte de deseducação de esfíncteres: a rebelião do

infans que interpela seus educadores. Era um exibicionista, sem

dúvida. Mas era apenas isso? Diógenes parece ter conseguido fazer

de sua pulsão escópica uma arma, um instrumento ético de

comentário sobre a natureza humana e suas limitações.

A popularidade que chegou a ter este movimento, que se

encheu de imitadores do estilo do mestre, permite conjecturar que, se

fez escola, não foi pelas suas idéias mas pelo afinco com que violava

as regras tanto tácitas quanto explícitas que governam nosso

comportamento.

Começando pelo uso da linguagem.

A parrésia, a língua solta, a liberdade de opinião, era um direito

dos cidadãos livres num estado democrático e um dos privilégios do

aristocrata. Diógenes se reclamava dela do ponto de vista de um

indigente, de um não cidadão. Esta licença da língua, quando

aplicada sobre os poderosos podia custar ao linguarudo um severo

castigo e até mesmo sua vida. O confronto de Diógenes com

Alexandre e outros poderosos deve ser visto deste ponto de vista.

Parece que o Cão fazia questão de ser (e era) irritante, mas

todos lhe concedem um senso de humor ímpar. A pantomima, a

sátira, o chiste, o deboche, a blasfêmia, enfim, a dessacralização dos

ritos numa sociedade como a grega, organizada pelo mito e pelo rito,
62

representava uma verdadeira subversão dos valores morais que

sustentavam o laço social e um desafio à autoridade que dificilmente

podia ficar impune.

Desde o início: seu exílio de Sínope por desfigurar a moeda

corrente da cidade (parakaratein to nomisma). A tradição antiga

sustenta que Diógenes foi forçado a exilar-se porque seu pai, Hiceias,

“era o custódio do dinheiro do estado e desfigurou as moedas” (D.L.

6:20). Sempre se pensou que se tratava de um mito, até que recentes

descobertas arqueológicas revelaram a existência de moedas com a

efígie desfigurada, datando do ano de 350 a 340 a.c. Não está claro 78

se foi ele ou seu pai e para que eles teriam feito isso. Uma versão

sustenta que Diógenes tentava salvar o crédito de Sínope tirando de

circulação moeda falsa. Seja como for, este incidente severamente

punido proveu os Cínicos com sua mais poderosa metáfora.

Desfigurar a moeda corrente passou a significar a tentativa Cínica de

pôr fora de uso os falsos valores do pensamento convencional e do

comportamento reputado como civilizado.

Este dizer “não” à Polis está presente na identificação que

Diógenes fazia de si mesmo como kosmopolités, cidadão do cosmos.

Aristipo, segundo Xenofonte, mantinha sua liberdade não se

trancando numa politeia, porque todo governo exercido desde fora lhe

parecia ser “contra natura”. Trata-se antes de “liberdade de” que de

78 R. Bracht Branham, “Defacing the Currency: Diogenes’ Rhetoric and the invention of Cynicism”
in The Cynics, op. cit. p. 90 n.30.
63

“liberdade para”. A alternativa era permanecer xenos, estrangeiro. A

pátria do Cínico é uma pátria “moral”, aquela que funda com seus

atos, porque se alguém pode viver como Cínico, a Terra inteira é seu

lar.

Em todo caso, a retórica Cínica —cujas figuras principais são o

exemplo e o entimema— inclui uma dimensão performativa e deve

responder aos seguintes critérios: pragmatismo, improviso e humor.

Paradoxo, surpresa, humor negro ou escatológico não deixavam de

ter um fundo de seriedade ética incontestável. Por exemplo tomar os

termos convencionais da língua e demonstrar que estão sendo mal

aplicados ou que seu verdadeiro sentido está sendo esmagado pela

hipocrisia. Desfigurar a moeda também se refere ao valor

convencional das palavras e das expressões de uso corrente. Seja

como for, parece que Diógenes não atacava os princípios da

moralidade popular mas as convenções, no que elas tinham de

hipócrita e de inconsistente. Ele não suportava ver as mesmas regras

sendo invocadas ao mesmo tempo para proscrever e prescrever a

conduta imoral; e a prática sancionando o que o preceito proibia.

Curiosamente, estas atitudes dúbias e fingidas, alvo dos Cínicos da

antigüidade, são precisamente as que definem o cínico no sentido

moderno.
64

4.2 A RAZÃO CÍNICA

Mundus vult decipi, decipiatur ergo.

Desde o século dezoito a crítica literária ou de costumes,

primeiro, e o vulgo, depois, lançam mão da figura e dos motivos

Cínicos, assim como de sua retórica, para debochar dos novos

valores que o Iluminismo introduzira na cultura. O descaro em falar

sobre coisas relativas ao sexo; a conduta desavergonhada; o

tratamento satírico de assuntos sérios ou um insultuoso sarcasmo ou,

ainda, uma gélida indiferença aos valores universais, eram tidos

como decididamente Cínicos. Sobretudo quando se tratava de

criticar a cultura e elogiar o retorno à natureza e o afastamento da

civilização. Sempre que se invocasse o Cinismo, durante o Século

das Luzes, ele era confrontado com a razão, valor supremo do

Iluminismo. O Cinismo era mostrado como o lado obscuro da Razão;

o fracasso do Iluminismo.

*
Até o século dezenove o alemão deixa cair em desuso a

palavra Cynismus e a substitui pela distinção entre Kynismus —que

designa exclusivamente a filosofia de Antístenes e Diógenes e seus

sucessores clássicos— e Zynismus como o nome de uma atitude que

não reconhece nada como sagrado e que insulta os valores,

sentimentos e o decoro provocativamente, com mordente sarcasmo.


65

“Cínico”, com maiúscula, denota o movimento iniciado na Grécia

antiga, e “cínico”, com minúscula, se refere a esta última acepção,

moderna.

Com Nietzsche, que não conhecia a diferença entre os termos,

se inicia a passagem do Cinismo (Kynismus) para o cinismo

(Zynismus). E se inicia a partir do momento em que ousa contestar a

verdade como um valor em si a verdade tida pelos filósofos como

um bem supremo em toda evidência. Para ele, desejar a verdade

precisava de justificação, não era uma tendência natural do espírito

que procura a luz. E sua conclusão de que a vontade de verdade é

antes de mais nada vontade de potência foi um verdadeiro escândalo.

Ele aprendeu com Schopenhauer o quanto o sarcasmo e a

sorna podem ser prazerosos; descobriu o Cinismo como uma postura

além do bem e o mal, como um jogo do espírito livre. O Cínico expõe

a natureza do homem, coberta pelo moralismo e a vergonha; por isso

é mais honesto que o homem moral . “Cinismo é a única forma na


79

qual o homem comum chega perto da honestidade.” 80

O neo-cinismo nietzschiano é o principal modelo da atualização

literária e da espetacular recepção do Cinismo antigo em tempos

recentes . A Crítica da Razão Cínica de Peter Sloterdijk (1983), por


81

exemplo, foi o maior best-seller de um livro filosófico na Alemanha


79 Não disse “o moralista”, porque este é um hipócrita (hipocrisia, do grego hypokrisis,
desempenhar um papel teatral).
80 Além do Bem e o Mal.
81 Creio que este boom editorial deve ser posto em correlação com outro, ainda mais recente; o
dos livros esotéricos de Paulo Coelho e Cia. e os manuais de auto-ajuda; verdadeiros contra-
pontos do Cinismo antigo.
66

desde 1945. Também aqui podemos ver a diferença entre Cinismo e


82

cinismo, usada como crítica do Iluminismo e da razão.

O moderno cinismo é a falsa consciência ilustrada. É a


consciência infeliz modernizada sobre a qual o Iluminismo
trabalhou tão em vão quanto eficazmente. Esta consciência
aprendeu a lição do Iluminismo sem realizá-la, sem poder realizá-
la. Em circunstâncias ao mesmo tempo confortáveis e miseráveis,
esta consciência já não é afetada por qualquer crítica da
ideologia; sua falsidade está reflexivamente resguardada.83

Entre a mentira —vontade perversa de ludibriar o outro— e o

erro —a equivocação mecânica que não compromete a boa fé do

sujeito—, a ideologia aparece como um erro obstinado, um desejo de

enganar-se, um sonho consentido. Encontramos no capítulo 23 de O

Capital a fundação dos alicerces teóricos para uma crítica da

ideologia. Esta consiste em revelar a ilusão por trás daquilo que

parece a realidade objetiva; mostrar que nada tem de objetivo e que é

a interpretação singular de uma classe ou de uma pessoa que passa

como verdade universal. Por isso Marx podia dizer, com Cristo, “não

sabem o que fazem” . No caso de Cristo, se trata dos pecadores para


84

os quais solicita divino perdão. No de Marx, dos proletários, que

devem ser ilustrados acerca das determinações reais e os

verdadeiros pressupostos da ideologia burguesa que sustentam como

própria, assim como do seu real status social, com o intuito de

deixarem de estar sujeitos a esta ideologia.

82 Cf. Bracht-Branham R., “The modern reception of Cynicism” in The Cynics, op. cit. p. 363.
83 Sloterdijk. 1989.
84 Em O Capital: Sie wissen das nicht, aber sie tun es, “não sabem, mas estão a fazer”.
67

O próprio conceito de ideologia comporta uma sorte de

ingenuidade constitutiva: o desconhecimento dos pressupostos que

orientam nossas convicções; a divergência entre a realidade social e

nossa representação dela; em termos de Marx, nossa falsa

consciência dela. O trabalhador pode acreditar na ficção do livre

mercado de trabalho que faz parte do mito das liberdades

democráticas. Uma crítica do mito deverá demonstrar que a crença

na livre escolha oculta que o operário não pode deixar de optar sem

morrer de fome; a sua é uma escolha forçada. A finalidade da crítica

ideológica é pois dissolver a ideologia criticada; ela se pretende

performativa, não apenas informativa ou constatativa de um estado

de coisas; se trata menos de saber que de fazer.

Ora, a razão cínica apertaria em mais uma volta o parafuso da

concepção marxista de ideologia. O cínico conhece muito bem a

diferença entre a representação ideológica da realidade social e esta

última. Por isso mesmo, porque disso se beneficia, insiste em manter

a mistificação. “Sabem perfeitamente o que fazem, mas ainda assim

continuam a fazer”. A razão cínica deixou de ser naïve, estamos

cientes do interesse particular por trás da universalidade ideológica,

mas achamos boas razões para continuar mantendo esta última. Não

é o proletário, mas o próprio capitalista que aprendeu a lição de Marx.

A leitura sintomal do texto ideológico, confrontando-o com seus

pontos cegos, que ele deve recalcar para organizar-se e preservar


68

sua consistência, será ineficaz porque a razão cínica inclui esta

leitura por antecipação . Ainda no assunto liberdade do trabalho, é


85

óbvio que teria sido inútil fazer a crítica ideológica do lema escrito às

portas de Auschwitz: Arbeit Macht Frei. Será que alguém deixava de

saber que esse alto princípio, “o trabalho libera”, não se aplicava aos

prisioneiros do campo de concentração? Cínico é pois um discurso

que usa a verdade (o lema é verdadeiro) como uma cortina de

fumaça, para melhor ocultar o sentido contrário dos atos do agente

desse discurso (no caso, a finalidade do campo de extermínio). O

cinismo é a antítese de seu próprio idealismo: ao mesmo tempo

ideologia e máscara com que esta se disfarça. Menos

dramaticamente, denominamos cínico àquele sujeito que se

reconhece capitalista no bolso e socialista no coração. Nietzsche, que

se inspirara nos antigos Cínicos, inventou um modo novo de dizer a

verdade que, contra ele, deu origem ao tratamento funcional da

verdade, próprio dos cínicos modernos: servir-se dela para mentir

melhor.

Misto de altivez e baixeza, de bom senso e desatino.


Diderot, Le Neveu de Rameau

Para Diderot, o Cinismo de Diógenes não apenas representava

um ideal moral e filosófico, como também uma possibilidade satírica e

bem humorada. Possibilidade desenvolvida como nunca alhures em

85 Zizek Slavoj, 1995.


69

“O sobrinho de Rameau” —denominada “Sátira Segunda” porque

segue à “Sátira Primeira”, opúsculo escrito em 1775— onde ele

coloca o problema do desdém e da vileza. Só por isso “O sobrinho de

Rameau” é o livro fundamental do cinismo moderno.

O Cínico da antigüidade era o protótipo do desprezo nos dois

sentidos do termo, ativo e passivo. Era um gênio em exprimir

desdém,e, ao mesmo tempo, o paragão de tudo que fosse

desprezível. “Ele era especialmente forte quando se tratava de

exprimir seu desprezo por outros”, lemos sobre Diógenes (D.L. 6:24).

O sobrinho mostra um ethos do desprezível, se podemos dizer assim.

Vive sua existência vil consciente, aberta e ativamente. Eclipsado

pelo seu tio, um famoso músico francês da época, não aceita não ser

ele também um gênio. Ele é um não-gênio das artes, das letras e da

moral; nem mesmo no crime ele é genial. Entretanto, de certo modo,

ele pode aspirar a ser a paródia do gênio e até um gênio da paródia

—da pantomima. Ele se gaba de ser engenhoso pelo menos nesta

área: um desprezível genial.

O cinismo do sobrinho constitui a antítese do moralismo

unilateral do bom moço. Cinismo era o necessário antídoto para isso,

tanto quanto para as tendências sentimentalonas e lamurientas.

Através dele o Iluminismo percebe o pesadelo que mina seu otimismo

moral. Este pesadelo consiste na revelação de que a pessoa

totalmente esclarecida pela razão, liberada de todo preconceito, não


70

é a encarnação do mais puro ideal de humanidade, mas um

desiludido, insensível e desprezível cínico a la Rameau. 86

Louva-se a virtude, mas dela se foge [...] A virtude faz-se


respeitar, e o respeito é incômodo. A virtude faz-se admirar, e a
admiração não é divertida [...] Felizmente não careço ser
hipócrita; já há tantos, de tantos matizes, sem contar aqueles que
o são consigo mesmos [...] E o amigo Rameau, se um dia se
metesse a desprezar a fortuna, as mulheres, a boa mesa, o lazer,
e se pusesse a catonizar, que seria? Um hipócrita. É preciso que
Rameau seja o que é: um patife feliz no meio de patifes
opulentos, e não um fanfarrão de virtudes ou mesmo um homem
virtuoso, roendo sua côdea de pão, solitário ou na companhia de
mendigos.87

*
Marcus Teixeira cita uma notícia sobre uma escola de classe
88

média/alta de Brasília que perante a óbvia caducidade pragmática do

ditado segundo o qual o crime não compensa, decidiu convocar uma

reunião de pais para discutir a conveniência ou não de educar as

crianças para o sucesso...

Pouco importa se os diretores da escola se dispunham realmente


a seguir tal opção: a simples colocação do dilema “educar para
honesto e fracassado ou corrupto e bem-sucedido” seria
simplesmente impensável há uma geração. Que mudanças —
culturais, políticas, subjetivas...— ocorreram nesse intervalo para
que aceitemos hoje em dia com naturalidade esse tipo de
discussão? Às mudanças nos laços correspondem mudanças
subjetivas?

Por que seria inaceitável esta discussão? Uma escola

brasiliense contemporânea há de funcionar segundo a lei de Gérson,

como o resto das instituições, começando com a família-tipo. Só os

86 Heinrich Niehues-Pröbsting, “The modern reception of Cynicism: Diogenes in the Enlightenment”


in The Cynics, op. cit. p.353.
87 Diderot, “O sobrinho de Rameau” in Os Pensadores, S.Paulo: Abril, 1987, p. 57
88 “O espectador inocente” in Goldenberg, 1997
71

brasileiros temos o privilégio de ter este princípio enunciado (por um

jogador de futebol durante um comercial da TV; anunciação que teria

sido do agrado de um Artaud) muito embora ele possa ser passado

salva veritate para qualquer sociedade tocada pelo espírito neo-

liberal. O enunciado: levar-se-á vantagem em tudo.

Como toda lei que se preze, a de Gérson é universal (esta se

baseia numa divisão da sociedade em duas classes, uma das quais

deve ser vazia: os homens de sucesso e os outros), o que nos leva a

pensar que, por lógica, o malandro de hoje será o cretino de amanhã

e vice-versa. Porque não existe esperto sem um tolo em virtude de

quem o primeiro pode realizar-se como tal. 89


Se todos fossem

malandros, como manda a lei de “levar vantagem em tudo”, quem

sobraria para o papel de otário? Alguém precisa bancar o trouxa para

a lei poder ser cumprida —já que a esperteza não é um predicado

que concerne ao ser, mas é relativa aos atos de um sujeito... de levar

vantagem sobre outro. O que nos leva a concluir que quem acredita

estar levando vantagem em tudo, não se dá conta de que talvez

nesse momento esteja sendo passado para trás sem o saber. Sem

poder saber: a crença na sua malandragem faz dele o melhor otário.

Stanislaw Ponte Preta, com fina ironia, notou o paradoxo

inerente à corrupção generalizada e lançou uma máxima:

"restabeleça-se a moralidade ou então locupletemos-nos todos". Vale

89 Como tampouco há corrupto sem corruptor, fato que passa sob silêncio em todas as denúncias
por corrupção a que nos temos (mal) acostumado ultimamente.
72

a pena observar que enquanto o “levar vantagem em tudo”, de

Gérson, é cínico, o "locupletemos-nos todos", de Ponte Preta, é

irônico. Retenhamos esta diferença.

O que poderíamos dizer sobre a segunda questão que Teixeira

levanta, sobre as mudanças subjetivas correlativas à organização das

relações sociais pelo discurso do cínico? Em primeiro lugar, no que

tange à verdade, o cínico não se engana quanto a Papai Noel; nada

espera dele, nada há de sacrificar-lhe e não precisa ser um menino

bem comportado o ano inteiro. O lema de Lord Beaconsfield lhe vem

a calhar: “Nunca reclamar, nunca explicar”. Vindo do campeão do

imperialismo britânico do século XIX, não se pode dizer que se trate

de um conselho ineficaz. Disraeli sabe que a verdade não tem fiador

fora da palavra de quem a enuncia, e em virtude disso pode permitir-

se agir sem prestar contas a ninguém. Sabe, também, que a fonte de

sua autoridade e a garantia de seu poder radicam na crença dos

outros em tal poder. 90

Em segundo lugar, precisamente por estar advertido sobre a

natureza ficcional do Outro, o sujeito não precisa crer em outra

realidade que não a de sua própria satisfação. “Sou minha pulsão”,

diria o cínico se pudesse (se tal identificação não fosse inconsciente).

No que se revela distinto do perverso, que bota sua pulsão a serviço

do Outro. Tampouco está interessado em teorizar o gozo, como o

90 Como vimos (supra, 3.1), sem falar em Maquiavel, também Etienne La Boetie sabia isso, e
desde o século dezesseis.
73

histérico. De quem o cínico se aproxima é do canalha, que também

está ciente de que o Outro não existe, a não ser como miragem do

neurótico.

A distância cética que o cínico mantém em relação à ordem

simbólica, embora lhe permita servir-se dela como meio de

manipulação dos outros, não o protege do retorno de sua própria

crença inconsciente, por pouco que uma coincidência da ficção com a

realidade faça dele o bobo enganado na casca do ovo. Octave

Mannoni, num texto já canônico , cita das Memórias de Casanova (o


91

que nos leva de volta ao século das Luzes) o episódio magnífico em

que durante a mistificação de três crédulos —na qual Casanova se

fingia de feiticeiro para tirar um sarro da superstição alheia—, uma

tempestade que estourou bem na hora dos falsos rituais o deixou

paralisado de pavor. O terror não se devia à tempestade em si —ele

não era disso—, mas ao retorno de sua própria credulidade

(recalcada) na magia, que considerava crendice dos outros.

Hanna Arendt (1993) reconta a anedota medieval sobre o

sentinela que deu um falso alarme para rir do susto dos camponeses,

e que foi o último a correr para dentro dos muros da cidade, como

ilustração da sua tese de que não há engano (deception) sem auto-

engano (self-deception). Derrida, de quem se pode dizer muita coisa

menos que não manja de teoria psicanalítica, frisou durante uma

91 Octave Mannoni, 1968, “Je sais bien, mais quand même”.


74

conferência em São Paulo que mentir a si-mesmo não passa de uma


92

quimera. Não se mente senão ao outro, ou a si próprio enquanto

outro. O mentiroso não pode deixar de saber que mente, certo, mas

não necessariamente sabe tudo sobre aquilo que crê, como

acabamos de demonstrar.

Incidentalmente, este descrédito da verdade permite refletir

sobre a espera da opinião pública de que tudo, como sempre, termine

em pizza. A chave está no “como sempre”, que afirma menos a falta

de fé nas instituições que a esperança de que tudo termine em pizza

mesmo; para poder-se continuar a fruir, por procuração, da

transgressão dos envolvidos. As mui criticadas e não menos

invejadas “elites” designam, na boca do povo, os chosen few que

podem estar à margem da lei impunemente. Em suma, o eleitor

deseja antes de mais nada poder continuar acreditando no sucesso

(pessoal) de seus representantes; que nunca o representam tão bem

como quando roubam para si próprios em nome do bem comum. Por

isso é uma cega estratégia denunciá-los para evitar sua reeleição;

porque, para começar, é precisamente por terem demonstrado que é

possível livrar-se do peso da lei paterna impunemente, sem culpa,

que são votados.

*
92 Derrida, 1996.
75

Pelo que sabemos dele, é possível conjecturar que o Cão fosse

um histérico avant la lettre, cujo carisma fez escola e, como era de se

esperar, gerou uma legião de imitadores, que durou mais de mil anos

—o que não está nada mal, se comparado com a vida média de

nossas estrelas atuais. Podemos chamar “cãonismo” o movimento

criado pelo seu estilo de interpelação do Amo da cidade.

Não há nada em comum entre o discurso de Diógenes, que

depende do discurso dominante para existir como tal, e o moderno

discurso do cínico, fechado em si próprio, que não responde a

nenhum outro e não depende do desejo de ninguém. Enquanto o

primeiro floresce numa sociedade aristocrática escravagista, o último

é relativo às relações capitalistas de produção e ao Estado

democrático. Se o primeiro revela a incidência do desejo de um só

sobre os significantes-mestre (nomos) de todos, o segundo se

caracteriza precisamente por neutralizar a incidência do desejo dos

que entram em seu aparato. Nem por serem agentes deste discurso,

nossos inspirados malandros regidos pela lei de Gérson, são mais

livres que suas vítimas, os otários (cujo lugar, como vimos, estão

sempre aptos a ocupar).


76

4.3 LOCUPLETEMO-NOS TODOS

O brasil, numa velha crônica de Fernando Sabino, é o país onde


há leis que pegam e leis que não pegam. Atualmente, a nação
ampliou essa capacidade: há escândalos que pegam e outros que
não pegam. O próprio Collorgate foi um escândalo que caiu sob
medida para a classe política e o empresariado que estavam
descontentes com o presidente que eles haviam colocado no
poder.

Assim escreve Carlos Heitor Cony . E Luís Nassif :


93 94

Na relação dos vícios públicos, não há nenhuma diferença


substantiva entre todos eles (os denunciadores vociferantes em
nome da ética na política) e Collor. A escala era maior porque
Collor tinha a Presidência da República. E a ação menos discreta,
porque o presidente deixou-se cercar por um bando de amadores
deslumbrados. Por isso, a cada dia que passa, mais acredito em
dois fatos. Primeiro: em relação à exploração dos favores do
Estado, são todos farinha do mesmo saco. Segundo: o que
derrubou Collor foram suas qualidades. Os vícios foram apenas o
álibi para impedir mudanças, não para implantar a virtude pública.

Um ex-funcionário de um dos últimos governos militares me

relatava a empáfia com que sua filha o chamou de fracassado por ter

sido o único dentre seus colegas em não sair do poder de mãos

cheias. Ele não encontrou palavras para responder. Ainda as procura.

A revolta da filha pela escolha do pai, de não aproveitar a

função pública para seus interesses privados, mostra que ela entende

esta opção como inibição. Uma fraqueza moral. Em suma, uma

covardia. Um abismo se abre na ética sob nossos pés, cuja vertigem

não deveria obscurecer-nos a crueza da revelação: entre pai e filha

93 Folha de São Paulo, 21/12/94


94 Folha de São Paulo, 19/12/94
77

não há um mal-entendido apenas, há duas realidades diferentes; a da

filha está organizada pelo discurso que denomino “do cínico”. Resta

saber se se justifica, e até que ponto, elevar o status do cinismo

contemporâneo a uma discursividade.

*
A data de inflexão do cinismo moderno seria 1914, efeito da

desagregação da civilização burguesa ocasionada pela grande

guerra. Ao menos, é a conjectura de Sloterdijk, que não vejo por que

não aceitar sem mais. À sua caracterização —um idealismo que

passa como antítese de si próprio (uma ideologia disfarçada de anti-

ideologia)— temos acrescentado duas notas, que parece oportuno

discutir agora em conjunto. A destituição do ideal, e a dominância do

objeto. Já nos referimos à primeira ao discutir a falsa consciência

“esclarecida”. Discutimos a segunda quando argumentamos sobre o

consumismo que consome o consumidor.

Leôncio Martins Rodrigues escreve o seguinte sobre "nossas

elites":

Supõem-se que sejam principalmente os empresários e os ricos,


talvez os militares. Obviamente, das "nossas elites" estão
excluídos os membros de alguma elite que denunciam as outras
elites e que, pela mágica da retórica, ficam livres de culpa e
responsabilidade.95

95 Folha de São Paulo, 20/12/94


78

A questão da denúncia da corrupção alheia será retomada

depois, agora desejo me deter em "nossas elites". Um dos

ensinamentos que podemos tirar da pandemia de crises ocasionada

pela migração dos treze trilhões de dólares-andorinha é que o lucro

não se origina mais só na esfera da circulação de mercadorias. O

capital financeiro está relacionado de modo indireto com as fontes de

trabalho e suas vicissitudes. Os debates originados no Brasil durante

a CPI que sepultou o governo Collor mostrou às claras a origem do

lucro que interessa: o desvio dos fundos existentes por mãos hábeis.

Não é mera casuística, estes eventos acontecem no quadro de uma

discursividade não mais fundada no recalque do significante de um

gozo impossível, mas que o postula como possível... para alguns. A

Mãe sonhada deixou de estar interditada, apenas virou um bem de

troca. E a realização do incesto é apenas uma questão de poder

financiá-lo.

“Ele quer o telefone dela. Ela só quer o dinheiro dele”, lia-se no

espaço dos classificados do jornal; no mesmo tom realista dos

cavalheiros que preferem as louras, que preferem seus diamantes

(sempre Marylin). Nada está interditado quando tudo se intercambia.

Ora, a categoria determinante de uma subjetividade organizada

nestas coordenadas já não seria o desejo, mas a inveja (o que talvez


79

devesse levar-nos a reler algumas teses de Melanie Klein com outros

olhos).

O discurso do cínico agencia relações entre privadores e

privados; os que têm os meios de satisfazer-se e os que não. E de

novo somos levados em direção a "nossas elites". Os que nos privam

do quinhão de gozo a que teríamos direito, não fosse pela sua

predação. As tais elites não têm nome, podem ser todos e ninguém.

E suspeito que a irmandade dos despossuídos em sua miséria é lábil

e passageira, porque a inveja costuma ser desmentida (nenhum ideal

se alimenta com ela). Não espanta portanto a proliferação de

relações paranóicas entre colegas e vizinhos. Roubar é apenas

reaver o que meu irmão tirou de mim, e cuja posse direito nenhum me

reconheceria (a lei também existe para a conveniência de "nossas

elites"). No fundo, falamos de um universo onde cada um está por si

e Deus... Ora, qual é o lugar de Deus, nesta estrutura em que não

mais se interpela o mestre, como na histeria, negocia-se com ele uma

percentagem do que deve retornar-lhe na próxima volta do mercado?

Jurandir Freire Costa fez, num artigo jornalístico, um apelo

ético à política, no ponto em que ela é cínica por sua relação à

economia de mercado.
80

Nas democracias parlamentares ocidentais, a economia devorou


a vida social e dá o golpe de misericórdia na vida política [...] A
atividade econômica não se auto-regula eticamente; tem de ser
regulada pela ética política. Se subordinamos os valores aos
interesses, temos como conseqüência o cinismo, a violência, o
vandalismo e a destruição de qualquer ordem social
democrática.96

Concordo. Apenas não acredito, como Freire Costa, que a

subordinação do desejo à demanda —dos valores aos interesses—

seja o erro de uma falsa consciência, que uma crítica esclarecedora

pudesse corrigir. Não se trata do cristal ideológico deformando a

realidade, mas de uma nova realidade sustentada pelo discurso do

cínico.

Por tratar-se da manifestação desta estrutura de enunciação

veiculada pela mídia, não me parece interessante censurar o

"gersonismo" em nome de uma moral qualquer, racional ou não. O

problema da lei de Gérson é condenar-nos a ficar reduzidos a nossos

respectivos egos, sem qualquer outra determinação. Eu, e eu apenas,

posso levar vantagem em tudo. Entende-se: às custas de algum outro

eu. Só nos resta, como preconizava aquela escola brasiliense citada

por Teixeira , reconhecer nossa condição de mercadoria a aprender a


97

negociar e mesmo a vender caro o Eu.

*
De que lado estão nossas lealdades? Somos agentes do
estado e das instituições? Agentes da ilustração? Ou, quem
sabe, do capital monopolista? Ou agentes do próprio interesse
vital que, secretamente, cooperamos com o estado, as
96 Folha de São Paulo, 15/10/94
97 Supra p. 75
81

instituições, a ilustração, a antiilustração, o capital monopolista,


o socialismo, etc., em amarrações duplas que mudam
continuamente, e que depois disso tudo esquecemos o que
"nós mesmos" tínhamos que procurar naquela empreitada?
Sloterdijk ,1983.

O preso número 40087-083 da penitenciária de Allenwood,

Pensilvânia, está ali por ter vendido à KGB tudo o que sabia enquanto

funcionário do primeiro escalão da CIA. Até o nome das fontes

americanas infiltradas nos serviços soviéticos. Em conseqüência, dez

delas foram executadas. Não pretendo ocupar-me aqui com a

personagem ou com os crimes que se lhe imputam, mas com o teor

da entrevista que deu à revista Time. 98

Procurando o lado “humano” da reportagem, já que sabe

estarem-lhe vedados outros caminhos, o jornalista inquere pelos

sentimentos do condenado em relação à sua pena (cadeia perpétua).

Obtém a resposta que merece: “O sr. sabe, as sentenças são

políticas nesses casos. Veja o caso dos Rosenberg. A meu ver eram

culpados. Mas será que mereciam ser executados por isso?

Provavelmente não.”

Nada obtendo do lado do castigo, o repórter se volta para o

lado do crime. Motivos. Seus esforços são recompensados pela

entrega de um dos sete pecados capitais, a cobiça. Não sem um

saboroso adendo. “O senhor não cogitou outras soluções para

resolver seus problemas financeiros?” Resposta: “Sim, roubar um

98 Reportagem de Aldrich Ames para Time, nov. 10, 1995. E reportagem p/ Vincent Jauvet do Le
Nouvel Observateur, reproduzida em 27/03/95 na Folha de São Paulo.
82

banco, por exemplo. Eu tinha muitas idéias muito confusas, escolhi

aquela que me pareceu mais fácil.”

Apenas uma resposta parece tocar uma nota discordante nesta

reportagem marcada pela previsibilidade do monstro que conta todos

os detalhes sórdidos à opinião pública: “Por que eu me atirei no

abismo? Nove anos depois, ainda não sei exatamente por quê.”

Não é de hoje que existem traidores, mas a traição concebida

como um ofício sim é recente. A espionagem se liberta

definitivamente da servidão a uma "causa nobre", para passar a ser

uma instituição "objetiva" do poder —como a polícia ou o exército—,

seja qual for a ideologia que sustenta o regime de plantão, depois do

tratado de Yalta.

Na crônica definitiva da Guerra Fria não faltará, seguramente, o

nome de Ian Fleming. O gênero do qual ele é um dos fundadores está

esgotado, por falta de inimigo. Gorbatchev é responsável, de certo

modo, pela aposentadoria de James Bond. Nunca refletimos o

suficiente sobre a instituição das agências de espionagem. Elas

empregam ou criam traidores (ou patriotas, o que no fundo dá no

mesmo, porque se trata de indivíduos cujas ações encontram-se

justificadas a priori, pela submissão a um traço ideal que os isenta de

qualquer responsabilidade desejante), assim como outras gerenciam

modelos ou arrumadeiras. São instituições do Estado e enquanto tais


83

só existem por obra de um discurso. Trair deixou de ser uma decisão

contingente e conjuntural, para se tornar uma necessidade imposta

pelo discurso que faz dela ofício.

Em 96, entrei por acaso numa palestra em andamento sobre

ética e política, ministrada por um filósofo de Quebec cujo nome não

guardei. Com certa inspiração maquiavelista ele dizia o contrário do

que pensa Freire Costa, que a ética nada tem a ver com a política. A

mentira, por exemplo, seria uma das ferramentas do político, e

espera-se dele que saiba usá-la direito, isto é, que minta bem.

Embora, a princípio, a figura do homem da CIA pareça saída de

um romance de Graham Greene, na truculência de sua atitude não

existe rasto do inegável humanismo dos traidores de Greene ou de

André Malraux. Em romances como O Fator Humano ou A condição

humana, o gesto traidor vem sempre acompanhado de um dilema e

de uma angústia que não disfarça o sofrimento de quem trai (seu

casamento, sua pátria, sua fé religiosa, a amizade, a família...).

Imoral, fascinante e, sobretudo, impune, o Ripley de Patrícia

Highsmith está mais perto de alguém como Ames que de

Raskolnikoff. Entretanto, se os leitores ficam divididos entre a

repugnância e o fascínio diante dos crimes de Ripley, o sentimento

reservado ao agente duplo é do mais vivo repúdio. Por que?


84

A desarmonia mesma orquestrada por esta reportagem já é um

começo de resposta. Maniqueísta, a opinião pública abre com a voz

do repórter cantando o tema do confronto entre o Bem e o Mal. O

depositário infiel de valores inegociáveis, entretanto, não deixa ouvir o

lamento do traidor arrependido mas a récita pragmática do detentor

de uma mercadoria perecível, a informação privilegiada, que precisa

ser desencalhada antes de se tornar inútil. O repórter pede conflitos

morais; o entrevistado entrega problemas domésticos (precisava

pagar a pensão da ex-mulher). A coda: a ironia reveladora do cinismo

da reportagem: “[Sempre farei a mim mesmo essa] pergunta

teológica: por que vendi minha alma ao diabo?”

O agente joga o jogo do jornalista, como antes jogara o dos

espiões. Não fala de seu ato em nenhum momento, a não ser talvez

quando confessa não ter a menor idéia do motivo pelo qual fez o que

fez —ele chama isso “pular no abismo”, mostrando o eclipse do Eu

que acompanha todo ato digno desse nome: o agente só vem a saber

o que fez depois de tê-lo feito. Este especialmente consiste em

subverter a determinação recebida do discurso dominante como

funcionário da CIA.

Com efeito, ele teria podido resguardar sua consciência moral

da mentira e do engano intencionais, alegando servir uma causa

superior à que amarrava sua fé jurada. Causa que subordina todas as

outras (o amor, a amizade) como valores em si. Abandonar este


85

guarda-chuva moral sem abrigar-se sob outro ideal alternativo é o ato

pelo qual é condenado. Quando resolve trair os traidores, Ames

desmonta a ficção que legitima as ações da CIA, e não permite a

mais ninguém continuar acreditando nos interesses americanos como

valores em si. Ames —e é nisso que me interessa— conjuga o verbo

"trair" de modo intransitivo. Sem que ele o tenha premeditado,

todavia, seu ato revela a verdade do discurso a que servia até então:

a mentira. A verdade é a mentira.

*
O mentiroso chama o mentiroso de mentiroso
Sloterdijk (1983)

Que a realidade seja um dos gêneros da ficção é a verdade

recalcada em qualquer discurso. Ou melhor, não há como saber que

realidade e fantasia são indiscerníveis para cada um de nós. Entendo

que esta exclusão é a condição de estrutura para se poder acreditar

nos valores, como quer Freire Costa.

Já esta discursividade teratológica que denomino cínica não

barra nada. Libera os portões e torna supérflua a crença, mostrando

que nossos vínculos mais prezados são pura enganação. Não este

ou aquele vínculo, mas todo e qualquer relacionamento é uma farsa

consentida. O professor finge que ensina; o aluno, que aprende; o


86

pai, que manda; o filho, que obedece. Nada temos a esperar do lado

do mestre, e parece melhor calcular o jogo no plano do colega.

Saber que todo discurso não passa de convenção, entretanto,

não faz do cínico um canalha. A fraude começa quando passa a tirar

proveito da credulidade neurótica; quando cede à tentação de

manipular o outro. A canalhice é uma patologia do ato. Relativa ao

discurso do cínico, sim, mas não se confunde necessariamente com o

cinismo em si.

Assim como na saída dos túneis do Rio existem placas

lembrando os motoristas de desligar as luzes que acenderam

enquanto atravessavam o morro (“Luzes, esqueceu?”), pelas

estradas brasileiras prolifera uma placa com uma curiosa exortação:

“Acredite na sinalização”. Por um lado é uma modulação paternal da

retórica do senhor que, em vez de ordenar pura e simplesmente,

explica que suas diretrizes são para nosso bem. Mas também se trata

do reconhecimento oficial, quase uma confissão, do que todo mundo

pensa sobre seus governantes e seus políticos.

A empáfia irremediável de alguns homens públicos se

manifesta na freqüência com que optam pelo estratagema de

confessar a verdade para melhor ocultá-la. Uma recente (1998)

campanha para governador apostou em usar a (má) fama do

candidato —“rouba, mas faz”— como lema para sua candidatura.


87

Não se tratava, decerto, de uma confissão pública ou de um ato de

contrição cristão, mas dos marqueteiros reconhecendo a circulação a

boca pequena de um traço pelo qual o político enquanto execrado em

público é admirado em secreto. O cálculo em jogo é mais ou menos o

seguinte: todos roubam, este pelo menos deixará feitas algumas

estradas, pontes e túneis (ou, então, toda palavra oficial é mentirosa,

nós pelo menos temos a honestidade de dizê-lo na cara, etc.).

Constatar isso no universo do político, foi-me dito, é covardia.

O que acontece se nos voltarmos, por exemplo, ao universo das

belas artes? Numa galeria de São Paulo, depois do vernissage de

uma exposição de provocativo título, alguém escrevera no caderno

para comentários: “Você é a maior cara-de-pau. Te adoro.” Um

incidente relacionado com esta mostra, denominada O corpo do

delito, dá mais uma volta de parafuso naquela resenha crítica. Os

detalhes me escapam, dá-se, porém, que o radialista e deputado

Afanásio Jazadji —oportuno guardião da moral, dos bons costumes e

da pena de morte— propôs uma ação contra a artista por roubo,

falsidade ideológica, incitação ao crime ou qualquer coisa do estilo.

As peças expostas ali eram talheres, guardanapos,

travesseiros, bandejas, e outros objetos retirados dos aviões de

passageiros, montados em diferentes arranjos. Havia, por exemplo,

uma dúzia de saquinhos para vômito (sem usar, infelizmente)

pendurados através de um fio, como bandeirinhas de festa junina.


88

Cada coisa tinha seu preço; muitas delas ostentavam a tarja de

“vendida”.

A artista se defendeu da invectiva alegando que as aeromoças

deram-lhe aquelas coisas todas (ao que o censor retorquiu que as

funcionarias não podiam dar o que não lhes pertencia, pois era

propriedade da empresa aérea). Mais tarde, porém, a defesa lançou

mão de argumentos mais elaborados, como a liberdade de criação e

os ready-mades. O zelo comovente do representante do povo pelo

patrimônio das companhias aéreas foi recompensado com alguma

publicidade para seu nome e o rápido arquivamento de um processo

com o qual ninguém estava seriamente interessado. Em todo caso,

mesmo após o fracasso da cruzada moralizadora poderia o tribuno ter

dito, como outro censor, este, romano, a propósito de um mal poeta

acusado de traição: “é inocente? então matem-no pelos versos que

escreve!”

Como nada disso foi proferido, nunca saberemos o que se

poderia opor a estas obras a título de argumento estético. Sobra

apenas a frágil comparação com o gesto de Duchamp, como se não

houvesse entre ambos sessenta anos passados e um abismo

cultural. Em todo caso, não sendo de estética que aqui se trata, o que

a artista deixou de dizer pode ser de tanto interesse quanto o omitido

pelo seu censor, a saber, que o fato de terem sido adquiridos pelos
89

compradores bastava para elevar os utensílios furtados à categoria

de arte.

Cumpre observar que tanto o comentário no caderno de

presença quanto o incidente com o paladino da verdade fazem parte

da obra mesma. Não lhe são exteriores, como o escândalo em

relação a Oscar Wilde, Céline ou Flaubert. Resta perguntar se as

obras são maiores ou menores que seus efeitos colaterais (no caso

do cinismo, limitam-se a estes efeitos). Perduram depois do

escândalo ou se esfumam com ele?

A literatura não está menos exposta a cair em tentação que as

artes plásticas. Vejamos, senão, um romance que nos é proposto,

sem qualquer escândalo, e com plena aceitação do público. Romance

cujo título não é menos instigante que o da exposição que acabamos

de comentar, e como o dela não deixa de denunciar o discurso a que

pertence. Elogio da mentira se chama, e sua forma é certeira não


99

apenas em elogiar a mendacidade, mas em mentir. Falo, com efeito,

de um livro que mente.

Transvestido de paródia de thriller —a trama é uma mistura

escrachada de Doublé Indemnity, de James Cain, com A Grande

Arte, de Rubem Fonseca—, aproveita para satirizar a literatura

menor: as novelas de banca de jornal, os livros de auto-ajuda e de

esoterismo: filões editoriais mais ou menos impudentes, como se

escarnecer dos outros bastasse para ficar livre de suspeita sobre a


99 Elogio da mentira, Patrícia Melo, São Paulo: Companhia das letras, 1998.
90

própria bastardia. Assim, no subplot, um editor recebe de um escritor

as sinopses para os best-sellers sob encomenda que publica. Aprova

algumas, recusa outras, mas não reconhece nenhuma delas pelo que

são: resumos de obras de Põe, Chesterton, Camus, Dostoievski,

Highsmith, Agatha Christie, Zola, Shakespeare, entre outros.

O alvo da ironia não é o leitor, contudo. Mesmo se não matar

as charadas ocultas nas sinopses, por nunca ter lido Crime e Castigo

ou O Estrangeiro, ainda assim, poderá rir do tolo do editor, que fatura

com livros mas pouco se importa com a literatura. Mais adiante

receberá dicas neste sentido. Porque não se supõe que ele seja

como o editor fictício, mas como a própria autora: intelectual,

moderno, informado e de interesses suficientemente amplos para

apreciar os clássicos sem torcer o nariz para um bom policial. Há

epígrafes eruditas no começo dos capítulos indicando nesta direção;

balizas sobre a maneira como a autora espera ser vista. Tal qual o

título, oficiam de metalinguagem para não confundir os diferentes

níveis de leitura e determinar o alcance da sátira.

Todavia, será que o livro que lemos —seja na forma ou no

conteúdo— se interessa pela literatura? Este ponto é problemático

porquanto convida ao truísmo da ausência de escritura sobre gostos.

Com prudência, digamos que estamos perante um fake que se finge

de fake, para fazer-nos acreditar que temos um original entre mãos.


91

Mente falando a pura verdade. Trata-se, portanto, de um livro

perfeitamente engajado no espírito dos tempos. 100

Um artigo de Renato Janine Ribeiro , comentando um 101

escândalo palaciano no primeiro escalão do governo, resulta muito

esclarecedor. Ele compara um tema caro ao presidente da república,

Fernando Henrique Cardoso, a ética da responsabilidade, a uma

moral abstrata baseada em princípios.

O presidente costuma recorrer a Max Weber para dizer que a


ética do político não pode ser a mesma do cientista. Este último
pode adotar uma “ética de princípios”, medindo seus atos por
valores quase puros (como o compromisso com a ciência), a
salvo de toda negociação que pareça sórdida. [...] O político será
julgado por seus resultados, não por seus princípios. Assim
ninguém terá pena dele se fracassar [...] Se adoto a ética dos
princípios, a derrota não importa muito. Até fortalece a alma,
assegura minha dignidade pessoal. Mas, quando sigo uma ética
“de resultados”, tenho de vencer; perdendo, não posso pedir
compreensão.

Adotar uma ética pragmática não me parece cínico. Cínico é

invocar, como foi feito no caso discutido, a ética de princípios como

argumento exculpatório quando a outra, de responsabilidade, dá em

fracasso. No quadro da luta política, a oposição ao governo se

concentrou na ética dos princípios (para lançar suspeitas sobre o

“caráter” do funcionário),

100 Não há de ser desmerecedor para Patrícia Melo ou Jac Leirner afirmar que estes trabalhos que
colocaram no mercado são produtos do discurso do cínico. Trata-se apenas de reconhecer sua
adequação a um gênero originado por uma estrutura. Sou alheio a outras obras destas artistas, e
nada me leva a supor que a pendente cínica seja para elas forçada, irreversível ou a única
possível.
101 Folha de São Paulo, caderno “Mais!”, 13/12/98
92

a qual, se é inegavelmente digna no plano pessoal, pode ser


desastrosa na gestão da coisa pública. Por isso, nem a oposição,
uma vez no poder, poderia segui-la integralmente. Aos olhos de
muitos, a ética da responsabilidade aparece como uma
indecência, o que ela não é, e não como o que é: uma ética
menos ciosa dos princípios, mas nem por isso leve de portar,
porque é implacável com quem não consegue gerar os efeitos
prometidos.

Quem opta por atropelar os princípios éticos visando a

determinado fim, não pode, depois que quebra a cara, refugiar-se na

honestidade privada. Sem entrar no mérito da discussão sobre os

meios e os fins, o insucesso permite qualificar o político de gestor

ineficiente, não necessariamente de desonesto. Sua decência

privada, porém, não faz dele um gestor eficiente da coisa pública,

nem serve como justificativa pelo seu fracasso.

Outro funcionário, de outro governo, é alvo do interesse da

mídia escrita . Seus afazeres como torturador a serviço do Estado

terrorista, decorrente do AI-5, são matéria jornalística. Trinta anos

depois e anistia mediante, o corajoso jornalismo investigativo da

revista Veja 102


é posto a serviço do exibicionismo de um obscuro

militar, “agente da repressão” durante os Anos de Chumbo. Também

aqui meu comentário está centrado na entrevista em si, não nos fatos

nela expostos.

Pergunta — Vi nos processos na justiça militar. E,


pela quantidade de presos que o citaram, o senhor é o
agente da repressão que mais praticou torturas. É
verdade?

102 Entrevista do tenente (1968/71) Marcelo Paixão de Araújo para Veja. Ano 31, no49, 9 de
dezembro de 1998.
93

Resposta — Sim. Todos os depoimentos de


presos que me acusam de tortura são verdadeiros.

Pergunta —O senhor fez isso cumprindo ordens,


ou achava que deveria fazê-lo?

Resposta — Eu poderia alegar questões de


consciência e não participar. Fiz porque achava que era
necessário. É evidente que eu cumpria ordens. Mas aceitei
as ordens [...]

Depois, passa a explicar os diversos métodos. Entre eles, o

afogamento.

[...] É como um caldo, como se faz na piscina. Era


eficiente. Mas eu não gostava. Achava que o risco era
muito alto. Afogamento não era a minha praia (risos). A
geladeira, uma câmara fria em que se coloca o preso, não
funcionava em Belo Horizonte. Era muito caro. O que tinha
era o trivial caseiro. O menu mineiro.

O que tinha no menu mineiro? Pau-de-arara; a lata (o torturado

de pé numa lata); a palmatória; o telefone (corrente de baixa

amperagem e alta voltagem)... “Eu gostava muito de ligar nas duas

pontas dos dedos [...] O sujeito fica arrasado.”

Pergunta — O senhor já reencontrou alguma


pessoa que torturou?

Resposta — Sim. Eventualmente eu encontro ex-


presos meus, inclusive os que apanharam. E o
relacionamento não é muito ruim, não. Não é aquele
negócio de dar beijinhos e abraços. Mas é um
relacionamento de respeito. Há pouco tempo, aqui em Belo
Horizonte, encontrei o Lamartine Sacramento Filho, que é
professor em uma faculdade local. Segurei ele no ombro e
disse: ‘Você não me conhece, não?’ Ele levou um susto. Aí
eu disse: ‘Você está bom?’ Ele disse que sim e não quis
mais conversa. Mas também não passa batido, não (risos).
Não deixo passar batido (sério).

[...] Vou lá, coloco a mão no ombro e digo: Não me


esqueci de você, não. Você lembra de mim? Estamos aí. A
vida continua.

[...] Uma das minhas meninas estuda direito na


PUC. Há um ano, um débil mental falou para toda a sala
94

que o pai dela tinha sido do Dói-Codi, que torturava gente,


esse tipo de coisa.

[...] Eu nunca escondi as coisas. Nunca disse a elas


que fui um santinho. [...] Elas ficaram um pouco chocadas
e disseram: ‘Pai, já sabemos, mas agora pára’. Não
queriam mais detalhes.

Pergunta — O senhor sofreu algum tipo de crise


de consciência em função da tortura?

Resposta — Isso sempre deixa dramas na gente.


É uma coisa pesada. Não é bom tratar um semelhante
dessa forma. Você não quer aproveitar e comer um
biscoitinho? [...] Mas não me arrependo de nada do que fiz.

Pergunta — O senhor faria tudo outra vez?

Resposta — Se achasse que não havia outro


caminho para livrar o país do comunismo, sim. Mas, em
princípio, não. Porque a tortura, ou, eufemisticamente, o
interrogatório por meios violentos, que não precisa
necessariamente ser a porrada, causa um desgaste muito
grande. Nunca me neguei a torturar alguém, porém só
fazia quando havia necessidade. Mas a brincadeirinha não
tem a menor graça, viu (risos)

Disse que me interessava a entrevista em si. O fato social do

“órgão” que se finge de isento e dá lugar ao deboche do carrasco

seguro de sua impunidade. Seria um erro fascinar-se pela hipocrisia

do testemunho ou pela sordidez das cenas descritas. O discurso do

cínico é a entrevista mesma, não a desfaçatez do entrevistado (que,

na minha opinião, mereceria antes o esquecimento, já que não a

punição, que a notoriedade da manchete).

Pergunta — Por que o senhor só resolveu dar


esse depoimento agora?

Resposta — Porque ninguém me havia


perguntado sobre isso antes.
95

O cinismo consiste na própria operação jornalística que se

torna instrumento da zombaria das vítimas políticas agora e sempre

em posição de gaiatos: mudas quando suas vozes incomodavam o

regime da ditadura; mudas, ainda, quando suas vozes não

interessam o mercado editorial. A discursividade cínica não é a fala

de um ou de outro, mas o conluio entre a dita opinião pública e o

órgão que a representa, supostamente. Este é o serviço que a revista

presta à sociedade civil: lembrá-la de sua impotência. Antes e agora.

Vale a pena, contudo, ocupar-se da leveza com que o

perpetrador se permite contar os fatos mais sórdidos. Leveza que não

seria possível se a narração acontecesse em outro regime discursivo.

Esta posição narrativa, que poderíamos denominar “celestial”, porque

se fala de cima, do ponto de vista dos anjos, permite descrever os

procedimentos dos tormentos infligidos em civis com objetividade

técnica. A crônica dos bombardeios, denominados “cirúrgicos”,

durante a Guerra do Golfo adotou, talvez por força do discurso, este

estilo narrativo. Faz parte deste último oferecer um biscoitinho a seu

interlocutor durante a exposição; ou avizinhar-se a “seus presos” (sic)

nas ruas de Belo Horizonte para lembrá-los de que ele (ainda e

sempre) está aí... Na opinião de alguns, para continuar mortificando

suas antigas vítimas, a título pessoal, em tempos democráticos:

lembrando-as de quem tinha (e tem) a força; na de outros, porque se


96

trata da manifestação do espírito carnavalesco do homem brasileiro.

Tudo seqüestro, flagelo, estupro da mulher, roubo sem mágoas.

“Nada pessoal.”

O traço cínico de estilo está precisamente em falar como se se

estivesse enunciando desde um lugar neutro, anônimo, sem qualquer

implicação pessoal. A função de atormentar às pessoas seria uma

ocupação como tantas outras; mais aborrecida, talvez, porém sem

involucrar o funcionário em seu desejo. Por isso, o gracejo “afogar

pessoas não é a minha praia” não é irônico, mas cínico (a ironia

supõe uma identificação possível entre os interlocutores de que o

cinismo prescinde). Os coqueiros, as areias brancas e as águas

rumorejantes, evocatórios de um sítio bom para estar —embora o uso

habitual, negativo, da expressão não oculte um certo racismo cordial

(vgr. os “baianos” de quem queremos distância), desprovidos de

seu valor metafórico mediante sua literalização, evocativa do risco de

alguém se afogar numa praia, tem a função de fazer-nos esquecer

que os porões da ditadura não eram precisamente um mar de rosas

(para dizê-lo com o clichê que merece). Por isso, também, o colega

da filha que anunciara em público a ocupação pregressa do pai

merece o qualificativo de “débil mental”, porque no seu discurso a

verdade sobre a tortura, digamos, não morre na praia.

Quanto ao remorso, sempre evocado pelos princípios de uma

moral judeo-cristã, ele está fora do jogo. Por que se arrependeria, se


97

o que está em pauta não é seu ato, mas o resultado de não sei quais

condições sócio-politicas na década de sessenta, ou, então, a

educação na família-tipo, ou o dever de um oficial do exército? Zizek,

falando dos skin-heads, o diz com elegância : (um argumento como


103

o de Araújo) “é uma mentira ainda que —ou antes, precisamente

enquanto— factualmente verdadeiro: suas asserções são

desmentidas pela sua própria posição de enunciação, pela postura

neutra, desengajada em que a vítima consegue dizer a verdade

objetiva sobre si mesma.” O que está em jogo no discurso do cínico

é a revelação pura e simples de um mecanismo de manipulação.

Revelação que em outras circunstâncias históricas produziria um

escândalo senão uma subversão e que hoje permite-se mostrar as

molas de seu funcionamento, sem afetar em nada sua eficácia.

4.4 ESCÂNDALOS

De fato, por que há tão poucos escândalos na era do cinismo?

Ou melhor —já que a mídia mal consegue dar vazão à quantidade de

denúncias relativas a desmandos de toda índole—, por que nossos

escândalos são tão pouco escandalosos? Ou ainda (e pela última

vez), por que tudo (quase) sempre termina em pizza?

Alain Didier-Weill faz umas observações instigantes acerca do

assunto durante uma conferência de florido título: “Ele sabe que (eu

103 Slavoj Zizek, 1996, p. 199


98

sei que (ele sabe que (eu sei)))”. 104


Para que se constitua um

escândalo, como no caso de uma tempestade, devem somar-se

vários fatores concorrentes. Mais precisamente, dois eventos são

necessários. No primeiro, acontece um vazamento —para a

imprensa, ponhamos— deitando a público a mentira de um alto

funcionário do Estado. Podemos encolerizar-nos, espantar-nos ou

permanecer afetadamente impávidos, mas, seja qual for nossa

resposta à notícia, ainda não se trata de um escândalo. Para tanto faz

falta um segundo acontecimento que deve somar-se ao primeiro;

este, sim, resulta suficiente para desencadear a tempestade com

todas as conseqüências. Falo da confissão.

Com sagacidade, o conferencista nos remete à declaração de

amor e... ao Manual dos Inquisidores. Conforme explica o reverendo

Eymerich (1376), o desassossego do inquisidor não está motivado

pela culpa do acusado, que ele conhece de antemão, mas pela sua

aquiescência. A missão do inquisidor é “forçar o herege a revelar os

erros, convertendo-os em verdade, para que o inquisidor possa dizer

como o Apóstolo: ‘Homem astuto que sou, conquistei-vos pela

fraude’.” Antes de proceder à tortura, e lembrando que ninguém está


105

isento dela (omnes torqueri possunt), o religioso acha bom lembrar

que “sua finalidade é menos provar um fato do que obrigar o suspeito

104 Didier-Weill, 1988, p. 164.


105 Eymerich, 1993, p. 123
99

a confessar a culpa que cala.” E deve proceder-se de tal forma que o

acusado “saia saudável, para ser liberado ou para ser executado.”


106

Quanto à declaração amorosa, Didier-Weill se arma com uma

peça de Marivaux, para mostrar como, mesmo sabendo por terceiros

que tem um pretendente apaixonado, que está a par, por sua vez,

(graças aos mesmos terceiros, ou a outros) do fato de a amada

conhecer seus desvelos amorosos, ainda assim, nada acontecerá

enquanto o galã permanecer em silêncio. Se não tomar fôlego e

confessar de viva voz ou de próprio punho o que todo mundo sabe

nada será consumado. Enfim, como escreve o jesuíta Francisco de la

Peña, num adendo ao manual de Eymerich: “louvo o hábito de

torturar os acusados, principalmente nos dias atuais (1578), em que

os infiéis se mostram mais cínicos que nunca.”


107

Não é necessário que se trate de um crime, como demonstra

quem declara seu amor. Confessar a verdade será sempre confessar

uma mentira, no mínimo porque a demora em declarar-se escondia o

fato de haver uma confissão a fazer! Em todo caso, para que algo
108

aconteça, isto é, para que haja um escândalo (ou um romance), não

se trata de confirmar uma informação mas de reconhecer-se

devassado pelo saber do outro, nesse momento vivido como

absoluto.

106 Ibid, p. 211.


107 ibidem.
108 Didier-Weil, op. cit.
100

Duas amigas se despedem. Uma delas tem a intenção de

reiterar à que fica a recomendação que lhe fizera, de pregar na porta,

antes de sair, um bilhete destinado ao namorado desta, de quem é

colega. Entretanto, em vez de dizer “não esquece de deixar o

recado”, diz: “não esquece de deixar o Ricardo”. Poderia ter sido um

gracejo —não era nenhum segredo a sua admiração pelo namorado

da outra (isso já se viu antes)— por que, então, ela enrubesceu no

instante do lapso? Se fosse chiste poderia ainda fingir algum controle

de suas (piores) intenções, manter a pos(s)e do Eu. Do modo como

aconteceu, só lhe resta perguntar: “quem disse isso?” A formação do

inconsciente irrompe à sua revelia para mostrá-la, durante um átimo,

nua perante a amiga, devassada, sem poder-lhe ocultar mais nada. É

sua vergonha, a mesma que nos faz relutar na hora de reconhecer

que quem nos telefona nos surpreendeu dormindo, isto é, indefesos,

expostos, com a dentadura postiça no copo sobre o criado mudo,

digamos.

O filho de um casal divorciado pediu ao pai, que raramente o

visitava e cujo telefone desconhecia, que lhe permitisse inserir o

número na área secreta da agenda eletrônica da mãe, cuja senha de

acesso só ele, o filho, conheceria. Era um voto de confiança que este

homem, enquanto pai, não podia recusar (mas recusou).

Enfim, o que há de escandaloso na assunção do mentiroso —

não da mentira, mas do fato de ter mentido—, é que ao ser


101

despojado de seu segredo ele se torna transparente sob o olhar do

Outro (o panopticon imaginado por Bentham e que me fixa desde

todas as partes, como Deus). Isso era o que este menino oferecia,

mais do que pedia, ao pai —além da presença de seu nome na mãe

—: um pouco de privacidade. Um lugar lá fora resguardado de suas

vistas, opaco, onde poder esconder-se. Não é pois suficiente afirmar

que o Senhor tudo sabe e tudo vê, ainda é preciso que o pecador se

disponha a abrir, como se diz, as janelas da alma, confessando-se

perante seu representante fora do Éden.

O cinismo, por sua vez, abomina o escândalo. O cínico dará

tudo menos sua confissão. E a impunidade será a regra apenas

enquanto o imputado não se veja levado a reconhecer perante a

opinião pública o fato de ter algo a esconder. O que fez do “caso

Lewinski” um escândalo não foram os bilhetes galantes, o vestido

inseminado ou o charuto (decerto, cubano e ilegal; quesito não

esclarecido pelos íntegros senadores), impudico brinquedo nas

pudicícias da estagiária na Casa Branca. Tampouco foi o presidente

dos Estados Unidos ter traído os votos dos eleitores e os outros.

Escandaloso foi ele ter vindo a público para reconhecer que mentira.

Porque, conforme a lei do discurso do cínico, o réu confesso há de

ser execrado, como o estrangeiro que passou a ser, para coesão da

comunidade agora unida contra ele. E se for crucificado o será não


109

109 Cf. Goldenberg, 1998.


102

por ter faltado com o princípio, digamos, de veracidade, mas por ser

incapaz de continuar mentindo em seu nome.


103

dormir no ponto

“É dando que se recebe”


São Francisco de Assis
(1182-1226)

“É dando que se recebe”


Roberto Cardoso Alves, deputado, PMDB-SP.
(1927-1996)

“Não costumo quebrar a cabeça com a questão do bem e do

mal”, confessa Freud ao pastor Pfister,

porém tenho achado pouco “bem” nos seres humanos em geral.


De acordo com minha experiência, a maioria deles não vale nada,
pouco importando se adotam publicamente esta ou aquela
doutrina ética, ou absolutamente nenhuma. O senhor não pode
dizer isso em voz alta, talvez nem sequer pensá-lo, ainda que sua
experiência de vida não possa ser muito diferente da minha.110

A despreocupação de Freud decorre da incapacidade do

método para indicar onde está o bem, não é sinal de sua indiferença.

É a psicanálise que não se pronuncia, não o psicanalista que se crê

no limbo dos justos.

E se não há discurso do psicanalista no totalitarismo, é menos

por ideologia que pelas condições de possibilidade da psicanálise que

pede um Estado de direito. Um Estado onde a servidão voluntária

110 Freud-Pfister. Correspondencia 1909-1939.


104

seja obra do conflito pulsional com as defesas, não resultado do

despotismo de um tirano. Quanto ao psicanalista, ele deve aderir à

ética comum dos cidadãos, e em nenhuma circunstância conhecer o

inconsciente pode tornar-se o fundamento para uma isenção moral.

Foi apresentado, perante um grupo de analistas vienenses, um


caso de abuso por parte de um analista; depois de muitos debates
em torno das origens psicológicas da falta ética desse colega,
Freud encerrou o assunto em pauta declarando: “Tudo isso pode
muito bem ser, mas uma falta de ética não se torna moralmente
nada melhor por ter fundamentos psicológicos”.111

Freud gostava de citar o escritor F.T. Vischer, segundo o qual a

moral é evidente por si mesma. “A indignidade dos seres humanos,

inclusive dos analistas, sempre me impressionou profundamente,

mas por que motivo as pessoas analisadas seriam de um modo geral

melhores que as outras?” 112

Excelente motivo para negar a psicanálise aos velhacos.

Recomendação que não há de ser tomada, em nenhum caso, como

uma pauta técnica, visto que a velhacaria não é uma estrutura clínica.

Cada analista decidirá, segundo seu critério, se irá equipar alguém

que “não vale nada” com um instrumento poderoso de manipulação.

Tal critério não consta de nenhum manual, e não será aprendido

durante a análise, mas na vida. “Existem tanto pessoas saudáveis,

como pessoas não saudáveis, que não valem nada na vida. Os que

não valem nada não são indicados para a análise, nem este método é

111 Entrevista de Helene Deutsch a Paul Roazen in Roazen ,1978, p. 139.


112 Jones apud Roazen p. 177.
105

aplicável às pessoas que não vão em busca de tratamento

compelidas por seus próprios sofrimentos […]” 113

*
Deixando os que não valem nada entregues à sua sorte (Freud

recomendava embarcá-los para “algum pais latino-americano”! ), 114

vamos à máxima que aparece como epígrafe deste último capítulo.

Então, será que sua excelência o deputado diz a mesma coisa que o

santo quando o cita (se não me engano, durante a negociação para

conceder ao presidente Sarney cinco anos no poder, em vez de

quatro)? Claro que não, mas a manha de sua intervenção consiste

em que este detalhe não possa ser levantado. O político cobre com o

manto da generosidade franciscana o “toma lá, dá cá” de sua gestão

interesseira, de modo a que o prestígio da máxima como verdade

universal, abstrata, e independente das condições de sua

enunciação, sirva como garantia de sua retidão. O cinismo não é

propriamente imoral, mas colocar a moralidade mesma a serviço da

imoralidade. Sua astúcia consiste em fazer a probidade servir a

desonestidade; a moral ser o álibi da locupleção e a verdade, a

melhor maneira de mentir . Nada melhor para isso do que fazer


115

esquecer que a posição de quem enuncia desmente seu enunciado.

113 Freud, apud Roazen, p. 161.


114 Correspondência Freud/Weiss
115 Cf. Zizek. Op. cit. p. 74
106

Talvez a resposta mais interessante —contemporânea do

desfecho da negociação, que, como se recordará, foi favorável ao

governo (do que se deduz, conforme a lógica do deputado, que o

presidente deve ter dado, já que recebeu), veio de um grafite nos

muros do Rio glosando este modo de fazer política. “É dando que se

dá”, dizia. Feliz ironia da obscenidade dos zeladores da res publica,

vistos como prostitutas, e dos cidadãos, essas eternas crianças

abusadas pelos seus responsáveis.

É pouco? É pouco, é quase nada. E mais, corre o risco de não

passar de um desabafo, talvez mais espirituoso, mas não menos

inconseqüente, e com isso participar do conformismo triste do resto

dos logrados. Este disparate tem, não obstante, a virtude de entregar

o jogo do cínico, mostrando a enunciação non sancta que o orador se

empenha em ocultar por trás do santo enunciado. O grafite mostra

um que não condescende à farsa; que recusa o papel de otário sem

por isso cair no cinismo. Um que sai, de certo modo, do círculo cínico.

A propósito, a palavra “círculo” pode levar a pensar que

estamos no dilema do ovo e da galinha. Não estamos, o tolo vem

antes. O círculo se corta (quando se corta) do seu lado. Sair da

tontice ou, como se diz, não “dormir no ponto”, não implica contudo

virar logrador, a não ser, claro, no discurso do cínico. O “ponto” em

que se adormece, aliás, é o colo protetor do pai providente. O


107

salvador da pátria que imporá, finalmente, a ordem e o progresso que

nosso brasão promete em vão ("Existe um povo que a bandeira

empresta / Pra cobrir tanta infâmia e covardia!..." ). A boutade de


116

nossa democracia não ser parlamentarista mas paternalista vai nesse

sentido e é condizente com o esquecimento, devido talvez a anos de

ditadura, de que os eleitos para gerenciar a coisa pública são os

depositários de um poder que não lhes pertence e pelo qual devem

prestar contas a quem de direito. Haja visto nossa falta de espanto,

as omissões dos prepostos revelam antes nossa delegação do poder

que sua prepotência. Delegação que, é bom notar, não os torna

menos representativos, porque representam perfeitamente a crença

numa providência que não se abala pelo fato de ser financiada pelos

contribuintes.

Em vez de vigiar aqueles que designamos para administrar as

riquezas da comunidade, dormimos como crianças em noite de Natal.

E como crianças fingimos acreditar que são Papai Noel, esquecendo

que nós os vestimos com roupa vermelha e barbas de algodão. Nada

têm pois de surpreendente tantos olhos fechados frente às

malversações obradas por funcionários escolhidos para velar

enquanto cochilamos.

116 Castro Alves, Poesias Escolhidas, p. 335


108

Parafraseando Breton (le dur désir de durer), Lacan dizia que o

desígnio da psicanálise era inspirar o duro desejo de despertar . 117

Declaração forte e que visa o ponto em que a realidade se confunde

com a fantasia, velando o real. O despertar que o psicanalista almeja

resulta da rasgadura do véu da Phantasien, suporte do desejo do

sujeito. Ou, de modo mais pedestre, de aperceber-se que um ditado

como “ver para crer” parece incontestável na medida exata do

desconhecimento do “crer” que suporta desde sempre nosso “ver”.

Que a psicanálise esteja sendo bem sucedida em seu propósito

no plano individual está sujeito a discussão, mas nem o mais

delirante dos utopistas se atreveria a estender este propósito ao

plano comunitário. Não há despertar coletivo. Sobretudo porque o

tecido da fantasia que precisa ser rasgado é o forro do eu de cada

um, e a angustia de descobrir que “quem sabe de mim, não sou eu”

provoca uma imediata corrida ao pai (qualquer pai) para garantir a

própria filiação, isto é, um lugar no mundo. O “ponto” a que me referia

acima.

Em que pese o cuidado de não exportar conceitos para fora do

campo em que foram criados e se mostram eficazes (quase sempre

uma desgraça), é difícil esquecer o que a psicanálise ensina defronte

a certos avatares da vida republicana. Tomemos a descoberta de que

a demanda de justiça pode ser reconduzida a sentimentos primários

de inveja, eles próprios originados na insatisfação inerente à nossa


117 Resposta a uma pergunta de Marcel Ritter in Petits écrits et conferences (sem dados editoriais)
109

condição de falantes (supra p. 29). Segundo este ponto de vista, a

sociedade fraterna é uma comunidade de privados, unidos pelo pacto

implícito de ninguém ter direito a regalias. Ninguém, a não ser o rei,

claro, ou quem fizer as vezes de exceção que confirma a regra. O

intolerável do gozo do próximo está na evidência de ele não se abster

do mesmo que eu (assim se define, aliás, um estrangeiro: não se

privar do mesmo que o resto). A sua infâmia consiste em me lembrar

a carência.

Quem vê isso tudo confirmado cotidianamente em sua clínica,

dizia, não pode deixar de espantar-se (para ficar em nossa história

recente) com a escolha de um slogan como “um brasileiro igual a

você”, numa campanha empenhada em eleger um ex-operário como

presidente da república. O cálculo político é sempre incerto, mas que

efeito pode esperar-se de uma consigna que se choca do modo mais

evidente contra a espera popular por um messias? Um partido que

aspira a fazer acordar o eleitorado do sonho contumaz que o faz votar

contra seus próprios interesses, simplesmente fecha os olhos para a

mensagem que parece brilhar no verso de sua palavra de ordem:

“quem quer ser governado por um coitado feito eu?”

Já os interessados em lucrar com o sono popular, digamos, vão

direto ao outro lado da moeda e usam a corrupção mesma como

propaganda. Eles sabem que o apelo eleitoral de um “rouba, mas

faz”, por exemplo, está antes do lado do “rouba” que do “faz”. Apelo
110

ironizado por Ponte Preta, quando deplora o fracasso da regra moral

conclamando à corrupção generalizada “restabeleça-se a

moralidade ou então locupletemo-nos todos”. Mas a sua ironia faz

mais do que prantear a indecência, interpreta (no sentido psicanalítico

do termo) o sonho de um Robin Hood que restabeleça a justiça, não

tanto dando-me o que me falta como tirando do vizinho o que lhe

sobra. Tomar o “locupletemo-nos todos” neste sentido seria benéfico

para a causa do “restabeleça-se a moralidade”, porque implica

reconhecer que a inveja me concerne. E talvez tal reconhecimento

ajude a tornar desnecessário votar num candidato proposto ao lugar

da exceção, um candidato a roubar impunemente, não para mim, mas

em meu lugar, e ao qual servirei de idiota útil.

Resta a pergunta de se fazer política para uma comunidade

atravessada pela inveja e não para um povo de santos obriga a

escolher a via do cínico.

A razão cínica não cria nem a invocação ao pai além da lei,

nem o torpor que lhe é consubstancial, mas se nutre deles.

Permanecer indiferentes à impunidade ou considerar o cinismo parte

do folclore equivale a servir-lhe voluntariamente de suporte. Oferecer-

se como instrumento do gozo imaginário dos corruptos. Rendição que

demonstra menos a empáfia deles que a debilidade ética de quem

consente. Decerto, há razões históricas para esta tendência à

servidão voluntária, que pode ser rastreada até a colônia e nada deve
111

ao discurso do cínico, que lhe é posterior. Este último, não obstante,

finca suas raízes onde quer que tais condições estejam dadas.

Cresce e floresce no meio desta nostalgia do pai, que já nos

empurrou para braços militares e nos de todo tipo de aventureiro que

sustente uma retórica messiânico-autoritária. Como no conto de

Borges, alguém nos está sonhando e a irresponsabilidade de não

fazer nada nos tranqüiliza e nos adormece . 118

118 Tomás Eloy Martínez, El sueño argentino. BsAs: Planeta, 1999. P. 127.
112

Bibliografia
ALLEN Barry. 1996. Truth in philosophy, Mass.: Harvard University Press.

ALTHUSSER Louis. 1993. “Trois notes sur la theorie des discours” in Écrits sur la
Psychanalyse, Stock / Imec, Paris.

ANDRÉ Serge. A impostura perversa. Trad. V. Ribeiro. Rio: Zahar.

ARENDT Hanna. 1983. Eichmann in Jerusalem, London: Penguin.


—. 1993. “Truth and politics” in Between Past and Future. USA: Penguin.

ASKOFARE Sidi. 1997. “O Sintoma Social”. Trad. T. Queiroz. in Goza!, capitalismo,


globalização e psicanálise R. Goldenberg (org.). Salvador: Ágalma.

ASSOUN Paul-Laurent .1983. Introdução à epistemologia freudiana. Trad. H. Japiassu.


Rio: Imago.
—.1994. Introducción a la metapsicología freudiana. trad. I. Agoff. Bs.As: Paidos.

BARTHES Roland. 1983. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix.

BATAILLE Georges.1972. El verdadero Barba-Azul (La tragedia de Gilles de Rais).


Trad. C. Manzano. Madrid: Tusquets.

BATAILLE Laurence. 1984. O umbigo do sonho. Rio: Zahar.

BAUMAN Zygmunt. 1995. Life in fragments, essays in postmodern morality.


Cambridge: Blackwell.

BELHER Ernest. 1996. Ironie et modernité. Paris: PUF.

BEWES Timothy. 1997. Cynicism and postmodernity. London: Verso.

BLACKBURN Robin. 1991. Depois da queda. São Paulo: Paz e Terra.

BLOOM Harold. 1997. A angústia da influência. Trad. A. Nestrovski. Rio: Imago.

BORGES Jorge Luis. 1982. “Kafka y sus precursores” in Obras Completas. BsAs:
Emecé.
—. “Tres versiones de Judas”. Idem.

BOUVERESSE Jacques. 1984. Rationalité et cynisme. Paris: Minuit.

BRACHT BRANHAM R. & GOULET-CAZÉ Marie-Odile (ed.). 1996. The Cynics, the
Cynic movement in antiquity and its legacy. Los Angeles: University of California Press.

CHAUÍ Marilena. 1982. “A amizade, recusa do servir” in Discurso da servidão


voluntária, M. Chauí (org.). Op. Cit.

CHECCHINATO Durval. 1997. “Perversão” in Boletim de Novidades, #93. São Paulo:


Livraria Pulsional.

CYTRYNOWICZ Roney. 1990. Memória da barbárie. São Paulo: Edusp.

CZERMAK Marcel. 1985. “Alienação e ato analítico” in Che Vuoi #3. Trad. E. Souza.
São Paulo.
113

DA COSTA Rogério (org.). 1993. Limiares do contemporâneo, entrevistas. São Paulo:


Escuta.

DAIX Pierre. 1989. Picasso criador. Trad. Porto Alegre: L&PM.

DAVID-MENARD Monique. 1998. As construções do universal. Trad. C. Pereira de


Almeida. Rio: Companhia de Freud, 1998.

DELEUZE Gilles. 1973. Presentación de Sacher-Masoch. Trad. A.M. García Martínez.


Madrid: Taurus.

DERRIDA Jacques. 1967. “Cogito et histoire de la folie” in L'Écriture et la difference,


Paris: Seuil.
—. 1996. “História da mentira: prolegômenos”. Trad. J. Briant. In Estudos Avançados #
27. São paulo: USP.

DE LA BOÉTIE Etienne. 1982. Discurso da servidão voluntária. Marilena Chauí (trad. e


org.). São Paulo: Brasiliense.

DIDIER-WEILL Alain. 1988. Inconsciente Freudiano e transmissão da psicanálise. D.


Estrada (trad.). Rio: Zahar.

DIDEROT. 1979. “O sobrinho de Rameau” in Os Pensadores, S.Paulo: Abril.

DIOGENES LAERTIUS. 1950. Lives and opinions of famous philosophers, vol. vi; R.D.
Hicks (ed.), London.

DOWNING F. Gerald. 1992. Cynics and Christian origins. Edinburgh: T&T Clark..

DUDLEY Donald B. 1967. A history of cynicism. Reinheim: Georg Olms Hildesheim.

EAGLETON Terry. 1997. Ideologia. Trad. L.C. Borges. São Paulo: Unesp.

EYMERICH Nicolau. (1376) 1993. Manual dos inquisidores. M.J. da Silva (trad.).
Brasília: Rosa dos Tempos.

FERREYRA Norberto. 1993. El otro insomnio, deuda y antecedencia en psicoanálisis.


Buenos Aires: Kliné.

FREUD Sigmund. 1976. Obras Completas. Trad. José Etcheverry. Bs.As. Amorrortu
Editores. (AE) / 1970. Obras Completas. Trad. López Ballesteros. Madrid: Biblioteca
Nueva. (BN) /1970b. Standard Edition. Trad. James Strachey. London: Hogarth-Press.
(SE) / 1975. Gesammelte Werke. Frankfort del meno: S. Fischer Verlag. (GW)

GOLDENBERG Ricardo. 1994. Ensaio sobre a moral de Freud. Salvador: Ágalma.


—.1994b. “O mal-estar no português ou Olha quem está falando!”, in Boletim de
novidades, Pulsional, centro de psicanálise, #57.
—. 1994c “Pós-moderno & psicanálise” in Pos-moderno &. Rio: Imago.
—. 1997. “A psicanálise por demais aplicada” in Revista da APPOA, 5. Porto Alegre.
—. 1997b. (Org.) Goza! Capitalismo, globalização e psicanálise. Salvador: Ágalma.
—. 1998. “Estrangeirice: modo de usar” in O estrangeiro. C. Koltai (org.). São Paulo:
Escuta.

GOLDFARB Jeffrey C.1991.The cynical society, the culture of politics and the politics
of culture in american life, Chicago: University of Chicago Press.

GLUCKSMAN André. 1981. Cynisme et passion. Paris: Grasset.

GUYOMARD Patrick. 1992. La jouissance du tragique. Paris: Aubier.


114

1999. El deseo de ética. Trad. J. Piatigorski. Bs As: Paidos.

HEINE Heinrich. 1991. Contribuição à história da religião e filosofia na Alemanha. São


Paulo: Iluminuras.

HELSINGER Luiz Alberto. 1997. O tempo do gozo e a gozação, a temporalidade na


perversão, Rio de Janeiro: Revan.

HOBSBAWM Eric. 1996. A era dos extremos, o breve século XX. São Paulo:
Companhia das letras.

HORKHEIMER, ADORNO. 1983. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural.

INDART Juan Carlos.1990. Problemas del amor y del deseo del analista. Buenos
Aires: Manatial.

JARRY Alfred. 1989. Ubu Rei, S. Paulo: Brasiliense.

JACOB François. 1983. A lógica da vida. Trad. A. Loreuro de Souza. Rio: Graal.

JURANVILLE Alain. 1995. Lacan e a filosofia. Rio: Zahar.

KANT Emmanuel. 1977. Critica de la Razón Práctica. México: Ed. Porrua.

KAUFFMANN Pierre. 1997. Dicionário enciclopédico de Psicanálise. Trad. V. Ribeiro.


Rio: Zahar.

KIERKEGAARD Soren. 1976. La repetición. In vino veritas. Trad. D. Gutierrez. Madrid:


Guadarrama.
—. 1991. O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates. Trad. A.L.
Montenegro. Petrópolis: Vozes.

KISSINGER Henry. 1994. Diplomacy. New York: Simon & Schuster.

KLOSSOWSKI Pierre. 1985. Sade, meu próximo. Trad. A. Ribeiro. São Paulo:
Brasiliense.

KOLTAI Caterina (org.). 1998. O estrangeiro. São Paulo: Escuta

KOYRÉ Alexandre. 1993. “La fonction politique du mensonge moderne” in Rue


Descartes 8/9. Paris: Albin Michel.

LACAN Jacques.1966. Écrits. Paris: Seuil.


—.1956. A relação de objeto e as estruturas freudianas. Trad. Associação psicanalítica
de Porto Alegre.
—.1963. L’angoisse (Association Freudienne)
—.1967. La logique du phantasme (Association Freudienne)
—. 1968. D’un Autre a l’autre (Association Freudienne)
—. 1971. Le savoir du psychanalyste (Association Freudienne)
—. 1972. “Radiophonie” in Scilicet #2-3. Paris: Seuil.
—.1973. Le séminaire, livre xx. Encore, Paris: Seuil. / 1981. Aún. Trad. D. Rabinovivh.
Bs.As.: Paidos. / 1980. Mais, ainda. Trad. M.D.Magno. Rio: Zahar.
—.1973b. Le séminaire, livre xi. Les quatre concepts fondamentaux de la
psychanalyse. Paris: Seuil. (Points) / 1983. Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise. Trad. M.D.Magno. Rio: Zahar. / 1977. Los cuatro conceptos
fundamentales del psicoanálisis. Trad. F. Monge. Barcelona: Barral.
—. 1974 “La troisième” in Petits Écrits et Conferénces (sem referências) / 1980. “La
tercera” in Actas de la Escuela Freudiana de Paris. Trad. (s/d) Barcelona: Petrel.
—. 1975. Television, Paris: Seuil. / Radiofonía y televisión. Trad. O. Massota. Madrid:
Anagrama, 1980. / Televisão. Trad. E. Quinet. Rio: Zahar, 1980b.
115

—.1975b R.S.I. (Association Fruedienne)


—.1976. “Conferences et entretiens dans des universités Nord-americaines” in Scilicet
# 6-7. Paris: Seuil.
—.1977b. “L'Etourdit” in Scilicet # 4, Paris: Seuil.
—.1978. Le séminaire, livre ii. Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de
la psychanalyse. Paris: Seuil.
—.1978b. “Du discours psychanalytique”, Milano, 12 maggio 1972 in Lacan in Italia,
Milano: La Salamandra.
—. 1983. O seminário, livro 3, As Psicoses. Trad. A Menezes. Rio: Zahar.
—. 1984. El Seminario, Libro I. Los escritos técnicos de Freud. Trad. R. Cevasco.
BsAs.: Paidos.
. 1986. Le Seminaire, livre VII, L’Éthique de la psychanalyse, Paris: Seuil.
—. 1988. "El número trece o la forma lógica de la sospecha" in Intervenciones y textos.
Trad. J. Sucre. Bs.As.: Manantial.
—. 1994 Le séminaire, livre xvii. L’envers de la psychanalyse, Paris: Seuil.

LACHAUD Denise. 1998. La jouissance du pouvoir, de la mégalomanie. Paris:


Hachette.

LEFORT Claude. 1986. “La terreur révolutionaire” in Essays sur le politique. Paris:
Seuil.
—. 1982. “O nome de Um” in Discurso da Servidão Voluntária. M. Chauí (org.). Op. Cit.

LYOTARD Jean-François.1990. Economía libidinal. Trad. T. Mercado. México: Fondo


de cultura económica..
—. 1993. Lições sobre a analítica do sublime. Trad. C.M. César. Campinas: Papirus.

MARX Karl. 1985. O capital. São Paulo: Ática.


—. 1979. La ideología alemana. México: Porrua.

MEDEIROS DA COSTA Ana Maria .1998. "Da interpretação ao ato" in Revista da


Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), Ato e interpretação. Porto Alegre:
Artes e Ofícios.

MILLER Jacques-Alain. 1998. Los signos del goce. Trad. G. Brodski. BsAs: Paidós.

MILNER Jean-Claude. 1983. Les noms indistincts. Seuil


—. 1989. RSI. Paris: Seuil.

MONOD Jacques. 1971. El azar y la necesidad. Trad. F. Lerín. Barcelona: Monte Ávila
editores.

NAVEAU Pierre. 1983. “Marx et le symptome” in Perspectives psychanalitiques sur la


politique, Paris: Navarin.
—.1983b “Discours de la science et discours de l’hysterique” ibid.
—. 1997. “Marx e o retorno da verdade no saber”. Trad. T. Queiroz. in Goza! R.
Goldenberg (org.). op. cit.

NAVIA Luis E. 1995. The philosophy of cynicism, na annotated bibliography. Westport:


Greenwood Press.
—. 1996. Classical cynicism, a critical study. Westport: Greenwood Press.

NIETZSCHE Friederich. 1981. La voluntad de poderío. Trad. A. Froufe. Madrid: Edaf.


—. 1998. Genealogia da moral, uma polêmica. Trad. P. C. Souza. São Paulo:
Companhia das letras.

PLATÓN. 1979. Diálogos. México: Porrua.

POMMIER Gerard. 1996. O desenlace de uma análise. Rio: Zahar.


116

PRIGOYINE Ilya. 1997. La fin des certitudes. Paris: Gallimard.

QUINET Antônio. 1996. As 4+1 condições da análise, Rio: Zahar.

RAMALHO MARQUES FILHO A. (et alii). 1996. Direito e neoliberalismo, Paraná:


Edibej,

ROAZEN Paul. 1978. Freud e seus discípulos. São Paulo: Cultrix.

ROUDINESCO Élisabeth. 1993. Jacques Lacan, esquisse d’une vie, histoire d’un
système de pensée. Paris: Fayard.

ROUGEMONT Denis. 1972. L’amour et l’occident, Paris: Plon.

SADER Emir (org.). 1995. O mundo depois da queda. São Paulo: Paz e Terra.

SAURET Marie-Jean. 1996. “Logique de l’ironie”.

SLOTERDIJK Peter.1993. Critique of cynical reason, Minneapolis: University of


Minnesota Press.

SOBREVILLA David.1996. El derecho, la política, la ética, México: Siglo XXI.

SOLER Colette. 1984. "La ética del psicoanálisis" in Clínica bajo transferencia. Bs. As:
Ed. Hacia el tercer encuentro del campo freudiano.

STIVERS Richard. 1994.The culture of cynicism, american morality in decline,


Cambridge: Blackwell.

VÁRIOS AUTORES. 1997. Lacan com los filósofos. Trad. E. Cazenave-Tapie. BsAs:
Siglo XXI.

WILDE Oscar, 1992. A decadência da mentira e outros ensaios. Trad. J. do Rio. Rio:
Imago.

WILDER Thornton. 1987. The bridge of San Luis rey. London: Penguin.

ZIZEK Slavoj. 1989. The sublime object of ideology. London: Verso.


—. 1990. Ils ne savent pas ce qu’ils font. Paris: Point-hors-ligne.
—. 1991. O mais Sublime dos Histéricos, Hegel com Lacan. Trad. V. Ribeiro. Rio:
Zahar.
—. 1994. For they know not what they do,enjoyment as a political factor. London:
Verso.
—. 1996.The indivisible remainder, an essay on Schelling and related matters. London:
Verso.

You might also like