You are on page 1of 36
boletim informative SERIE Il @ Nv 25 © 1972 © CENTENARIO DE om os A LVSIADAS n de Luis de Ca- N moés, OUD) el aker Wiel} USER er CoS eee men Tre ee ee tc Te ccc mead a Oe eer ee Ema Sec oe Le eco} ee een ey eR Rene Ci) Te eee aC Ce eS CATE ec eer eNO goed ET ree ice eee Te ast eee Pe Cae} ona aera} TE CORTE Araneae De Seema me me Uts Em Coimbra, nao Ree Ca Eee Cn a Mette CSU oT oa MtaT CoT Crea me ee tC me RR Rm a mag Cena MCMC La ce Om OCT Ce CC SMR Maem ee Cem Om Cr Ce moe a Cc eee ON eer ed ee Tr SONU ae CR ee Mg Oe CR em ecm as curidades da vida do grande poeta, que viria ee ee Cee ee Chee aCe nese Ra eee a ae gurada, cuja responsabilidade ele atribui, nestes See ane ae) ae ee ee ee Em Marrocos, foi soldado’ durante dois anos. Pore meee meee Rte! Cet a CS aoe ee ae cee a Cee eC aes Pe eee Ce eee) eee LCM eat re L Ia) ee Mn ee ee eC e RU Neat Otic) cee ee ae eee ae DRM eae Me) redondithas em louvor de certos olhos vordes gene ee eo eee Cou Co ees CRMC neem tte Cera de 1542, abala de Goimbra o vai a Lisboa CO mee ee ee ce ey COO SR coo C a MC eect Pee Pree Ce em Ree a mC eC Ea ren oa et Sane eRe gD ee aCe) sevens Anis Cea oe ee) eee Eee een cy) Tee ae eC ery Cem Se Pee eae Eee ee mec Peer aa CU eet ne eer MU Om en ec een) prisdo do Tronco da Cidade. Perdoado, impé ee ete eee aT) Een nr MEE eCe Care ee CR Ec Ome Ms mer Oumar er COR Ene me en ae eT oe) Niue act oat ea ROMER cect MeL ir vegaeao que fol 0 Descobrimento do Caminho Pa a cee eC Le Ee ee ce ee Oem nari ae em coe eo Pee men ae UEC One meet) Ce he ere te me! mais belos poemas de amor que andam ere irs literaturas do Mundo, e redigido parte consi- derével de +Os Lusisdas»—a unica grande epopela da Renascenca. Trés meses andados sobre a chegada a Gos, Camées parte como soldado numa expedigao organizada contra 0 rei de Chembe. Mais tarde vai na armada que fez o cruzeiro de Meca. Durante 2 expedigao, enviada a guerrear os 4rabes que desciam 20 Mar da India, escreve a bela cangdo: «Junto de um seco, duro, estéril monte» De Goa, Camées passa as Moluces, as famosas , ihas da especiaria. Ai se apaixona por uma jovem, que alguns identificam com a Dinamene, dos sonetos © que o teria acompanhado a China e depois @ Goa, onde Camées é con- duzido sob priso por razSes que nunca foram esclarecidas. Cerca de 1560, em Goa, dedica uma oitava 80 vice-rei, na qual se lastima da de Virgilio — iguale «Os Lusiadas» no significado patriético da sua inspiragao. A'fé medieval sucede a ciéncia renascentista © mundo adquire 0 tamenho das navegagdes & descobrimentos de portugueses e espanhdis, @ sio as vias que os primeiros acharam—os mares nunca dantes navegados» — que Ca- mes canta, intercalando esta «expansdo renas- centista» na hist6ria de Portugal que a antecede e na que se Ihe val suceder, habilmente ante- cipada nas profecies que a Ninfa da Ilha dos Amores faz a0 Gama. «Os Lusiadas» exprimem, como nenhuma outra criac¢do o que mais fecun- damente caracteriza a Renascenca: a universa- lidade da Cultura. 17 ollogu cofo pumeipe lev vom manuel nofle fae: fol ac, byone, 1 excellemtes, feitos Dos Reie De pornigall fous amecceffozce, bezoenanos + efeptoe pe forty) i manroado per Ouayte galuam fivallguo oe fon, 4 af do feu coffelbo noquall falla vo geamac lou jor on preferce matcyia que he oprop0 1 Bonner sao lotitio: posmgall :- AS epopeias antigas, e até nas renas- —histérica_comprovada, mas nem Aquiles nem centistas de Tasso, Ariosto e Bolardo, Heitor tém importdncia na histéria como o © que sobretudo conta 6 0 felto mitico Infante D. Henrique ou Vasco da Gama). praticado por heréis mais ou menos fabulosos. N'sOs Lusiadas» sdmente importa e exclusi- (Os protagonistas da «lliada» tem existéncia vamente significa o feito real cometido pelos 178 portugueses. Desde o 1 Canto, 0 leitor firma-se nesta ideia: antes de Camées, as facanhas exaltadas ‘pelos épicos, so «fantdsticas, fingl- das, mentirosas»; «Os Lusiadas» assentam em proezas verda- deiras, que situam @ epopeia nao no dominio maravilhoso do mito, mas no Ambito | histérico- -heréico do mundo —um mundo que, desde a fundaggo do Reino, os herdis lusitanos insensi- velmente preparavam @ que a partir do século XV os nave- gadores portugueses concreta mente descobriram. A estancia XI do 1 Canto 6, neste aspecto, peradigmética Ouvk: que néo vereis com vas tacenhas, Fantésticas, fingidas, mentirosas, Louvar os vossos, como nas estranhas Musas, de engrandecer-se desejosas: As verdadeiras vossas so tamanhas Que excedem as sonhadas, fabulosas, Que excedem Rodamonte e 0 vo Rugeiro, E Orlando, inda que fora verdadeiro. Para Camées, as verdedeiras faganhas dos lusi- tanos sao tamanhes que esfumam no secundé- rio ou no inverosimil todos os heréis que outros Spicos cantaram, nao por ele, Camdes, Ihes ser superior, mas por gregos, romanos, fran- ceses e italianos néo se compararem a por- tugueses. «Os Lusiadas» celebram homens cuja gléria a histéria comprovou: e 6 por serem verdade que Camées lhes sublima as Proezas, porque nada mais v4o e no fundo mais falso que louvar Orlando, Rodamonte ou Rogeiro. 0 Ulises de «Odisseias 6, entre os herdls da epopeia, 2 que mais profundamente encarna 9 mito. Bravo, astuto, carregado de humanas fraquezas e dotedo de engenho quase divino, também simboliza a dualidade dgua-terra, patria -viagem, estabilidade - errdncia. CamBes vai triunfar das «figuras mentirosas», do proprio @ arquetipal Ulisses (afirmao cleramente enérgicamente no imperativo Ouvi da estancia transcrita), opondo-thes outras figuras cuja forca esté na sua existéncia simultaneamente prodigiosa e singela (estdncia seguinte): Por estes vos darel um Nuno fero Que fez ao Rei e eo Reino tel servico. Um Egas e um Dom Fuas, que de Homero A citara para eles” s6 cobico. © herdi real triunfa p do heréi mitico. Que Nun’Alvares, 0 Condes- tavel que’ salvou_ Por- tugal, valha um Orlan- do @ mesmo um Ulis- ses, entende-se. Mas Egas Moniz e D. Fuas Roupinho nao pos- suem a mesma grandeza. A histéria das nagées esta chela de sinais de lealdade & palavra em- penhada (caso do pri meiro) e de vitories navais que néo foram determinantes (caso do segundo). Mas, repare-se — para os cantar, Luis de Camoos cobiga nada mais nada menos do que a citara de Homero. Por serem verdade, por significarem 0 feito real que destréi 0 feito mitico, Camées sente por eles tamanho orgulho de portugués que amplia as figures secundarias, exagerando-lhe as proezas. Cale-se de Alexandre e de Trajano A fama das vitérias que tiveram. E por serem fabula as navegagées de Ulisses {que deram ao mundo alguns mitos) e por serem facto as navegacdes dos portugueses (que deram ao mundo as mals vastas porcdes do mundo) tudo que dos antigos périplos maritimos se glorifica, deve agora jé ndo calar, mas simplesmente — cesar. Cessem do sébio grego @ do trolano As navegag5es grandes que fizeram. Evocando constantemente os antigos — histo- ricos ou mitificados—Cambes avantaja-Ihes sempre os portugueses. E fé-lo, pode dizer-se, dialécticamente. H4 ainda que considerar o seguinte: ajudados embora por Vénus (sua Intercessora junto de Jupiter, ‘sujeito por sua vez a poder mais alto) 08 lusitanos séo-no ainda mais pela pre- disposigéo para o feito. De «preco grande @ raro» apenas se submetem & Providéncia, que o elegeu entre todos os povos para cometer esse feito incomparavel —descobrir 0 mundo. O sentido providencial é claro n'«Os Lusiadas». O mito interessa Camdes como elemento de valorizagao do poema, adornando-o daquela decoracéo que a moda renascentista exigia. Inventou figuras lendérias como o Adamastor; encenou um conflito dos deuses do Olimpo. a propésito do herd! Vasco da Gama; criou uma ilha fantéstica, a Ilha dos Amores. E evidente: o relato puro e simples das face nhas portuguesas serla mais prosa do que poesia. $6 um «clima» mitolégico, podia impor a grandeza da epopeia. 179 0 SENTMIMENTO POETICO Abrimos «Os Lusiadas» e, ao fim de poucas estancias, logo se nos depara uma situacao con- creta: o poeta esta lendo o seu poema a um rei e a ele se dirige: «Vés, 6 bem nascida seguran- ga...», «Vés, poderoso rei...» Este rei 6 D. Sebastido e a cena decorre nas vésperas da partida para Alcdcer Quibir. Tudo isto é concreto e real: o rei, que imagi- namos sentado num cadeirao, o poeta, que vemos em pé, 0 poema escrito em folhas largas e soltas. Camées escreveu os versos des- tinados aquele momento, lugar e personagem e fez deles a aber- tura do poema, quase a justifica- cao de o ter escrito. E utiliza este verismo para o alargar a tudo de que constard a acgaéo do poema. DA GCRANDEZA REAL Logo aqui se desenha um pro- cesso de sublimagao que se de- senvolvera ao longo dos 10 can- tos. Trata-se de uma espécie de jogo entre o real e a verdade. Ha, decerto, este rei, D. Sebastido e este poeta que se lhe dirige. Mas este rei—visto & luz de olhos bem reais como so, por exemplo, os dos historiadores — é um jo- vem imberbe, obsecado, que se vai lancar numa aventura impru- dente. Camées, no entanto, da-o por «segurancga de liberdade», «esperanca dos cristaos» e, por fim, «maravilha fatal da nossa idade». Sao atributos de muito peso para aquele jovem rei. Apde- -lhos, todavia, 0 poeta, vate ou vaticinador que 6; e os historiado- res tém de reconhecer que tais atributos acabaram por sair cer- tos: maravilha foi, efectivamente, a existéncia de D. Sebastiao e fa- tal foi a sua aventura de Africa. No mundo da poesia em que vive, Camées sabe que nao ha distin- cao entre aquilo a que os homens 0 feito reel destr6! 0 feito mitico 181 3) ve yy Ct Vasco da Game em Calecute chamam real e irreal. Num como noutro pode igualmente conter-se ou representar-se a verdade. Ha, pois, uma verdade que tem dois espelhos: num reflecte-se a ima- gem que os homens dizem real e € nesse que aparecem as figuras dos navegadores, dos reis, das terras e dos mares que efecti- vamente existem. No outro, a mesma verdade reflecte-se com a imagem dos deuses do Olimpo, das musas e tagides, das ninfas e adamastores. Mais decisivo ainda: uma imagem nao. existe sem a outra, e a verdade surge da combinagéo de ambas. Quem a n&o puder ou souber ver nos deuses, nao saberé também vé-la nos homens, ou a vera de um modo (e com um sentido) incom- pleto. 182 A grandeza real pode ser narrada pelo historiador, e até com o re- forgo dos tracos pitorescos e das cores vistosas como faz Fernao Lopes em suas cronicas. O senti- mento poético dessa grandeza, superando a transcrigdo amplian- te, vai redundar em sublimagado de factos e de feitos. Uma das estrofes mais sublimantes de «Os Lusiadas» 6 aquela em que Ca- modes langa num grande rasgo épico: Nem deixaréo meus versos esquecidos Aqueles que nos Reinos Ié da Aurore, Se fizeram por armas téo subidos, Vossa bandeira sempre vencedora: Um Pacheco fortissimo, @ os temidos Almeidas, por quem sempre o Tejo chora, Albuquerque terribi!, Castro forte, E outros em quem poder no teve a morte. Note-se aqui a adjectivagdo, que em prosa seria meramente hi- perbdlica, (soando desagradavel- mente) e em poesia épica alcanga o sublime: Pacheco fortissimo, Almeidas temidos, Albuquerque terribil. A sublimagao dos atribu- tos ou das qualidades (fortissimo, terrfbil, temido) faz do mortal heréi alguém «em quem poder nao tem a morte». Toda a epopeia assenta na livre imaginagao. Esta néo vé em Albu- querque o conquistador da {ndia, que um rei demitiu das suas fun- cdes de vice-rei como, na vida real, se revoga um alto funciona- rio ou um simples amanuense. Mas alguém que, mercé do senti- mento poético que o épico tem da grandeza real, possui direito a «Olimpica morada». S nagdes e povos, n'«Os Lusiadas», aparecem sempre referidos de um modo indefinido: 0 mundo; «Ser do mundo rei», «pelo mundo faga es- panto», «que veja e saiba o mundo...». Dir-se-ia que o que existe real- mente 6 Portugal de um lado; e do outro as gentes que lhe sao adversas ou de algum modo se Ihe opdem (e s6 enquanto 0 sao ou se Ihe opdem). Camées escreve «Os Lusiadas» como se toda a acgao decorresse num palco central, com os protagonistas e os seus contrérios a serem observados e admi- rados por uma imensa assisténcia que, essa, seria 0 «mundo». Do impreciso mundo hé noticia de acgdes e grandezas que poderdo ser apre- ciadas como andlogas das de «Os Lusiadas». Mas tais grandezas s6 valem se um poeta as cantou, isto é, se um poeta testemunhou, através da forma sublimante da poesia—que é o que lhes da verdade. E s6 esse testemunho é tido em conta no poema, seja ele directamente identificado (como nas faganhas de «Roda- monte, e o vao Rogeiro e Orlando» que manifestam a referéncia a Boiardo e Ariosto) seja ele suposto (como nas alusdes a herdis poetizados: «Carlos, Rei de Franca, César...») seja, enfim, implicado na versao jé mitificada (como «a fama das vitérias de Alexandre e de Trajano»), pois o mito € uma poetificagao feita pela historia. Em contraste com esta impreciséo do mundo, o que é patrio e préprio aparece com uma téo rigorosa exactidéo que nfo 6 expresso por qualquer designacéo generalizada, como Lusitania e Portugal, mas por termos como «os portugueses», «os lusitanos» ou «os lusos»: «Os portugueses somos do ocidente...». Também os outros povos nao aparecem com a designagao geral de Inglaterra, Alemanha, Itélia e sdo, antes referidos como os ingleses, os alemées, os itdlicos: «vede os alemaes, soberbo gado», «vede o duro inglés...». A conclusao a tirar desta concretizagdéo dos povos, em contraste com a vaga imprecisao do mundo, comegaria por ser talvez a de que ainda para Camées 0 nacio- nalismo seria uma imagem ou nogao sem 0 significado que hoje Ihe damos. Como se sabe, é a partir da Renascenca que as nacionalidades europeias se estruturam na sua unidade e autonomia até virem a identificar-se com o Estado. No alvor deste movimento. a realidade de um povo residia ainda no conjunto vivente dos seus individuos. Palavras como Franca, Alemanha, Espanha e até Portugal apare- cem para designar regiées geogrdficas (como na descricdo da Europa que abre a narrativa de Vasco da Gama ao rei de Melinde) e nao tém o significado de nacées-estados que hoje thes atribuimos. Aquilo que chamamos o patriotismo de Camées 6, portanto, um populismo — ou seja, 0 sentimento orgulhoso de per- tencer a um povo, 0 povo portugués. Esse sentimento orgulhoso leva-o a tomar, frente aos estrangeiros, uma atitude altiva e intransigente. O lusitano, fadado para mandar, nunca deverd ser pelos outros mandado: Fazel, Senhor, que nunca os admirados Alemées, Galos, Italos e Ingleses, Possam dizer que s&0 para mandados, Mais que para mandar, os Portugueses. E 0 povo eleito: E Julgareis qual & mais excelente Se ser do mundo Rei, se de tal gente. 184 «Os Portugueses somos do Ocidente» luis de Camses Os grandes feitos exigem grendes sacrificios. A epopeia supe, 20 mesmo tempo, os padecimentos terriveis @ as sobre-humanas alegrias. Quer dizer que 0 trégico © o épico se encontram frente a frente. Nao se pode chegar ao outro lado do mundo — como os portugueses chegaram— sem tragédias (como testemunha a «Histéria Trégico-Maeritima») e sem esses rasgos de core- gem que fazem dos mortais Seres «em quem poder nao tem a morte». Estes dois contrarios surgem sempre a par, mas devem ser entendidos como contrérios susceptiveis de concerto ou 186 | harmonia, Isso @ evidente em muitos passos, e em especial no episodio da Batalha de Al- jubarrota, um dos mais vivos e dramaticos de «Os Lusia- das». Camées quer sugerir o estado de alma das mulheres — mies, noivas, esposas — que véem os seus correrem 20 lugar de Aljubarrota onde Os espera o numeroso exército de Castela. Essas mulheres viviam, ansiosamente, um tra- gico momento que a bravura dos seus (e 0 corajoso estol- jsmo delas) vai tornar mo- mento épico. Sentiam medo vendo os seus irem para a batalha; e sentiam por outro lado orgulho vendo-os correr para a batalha. Estavam pois interiormente di- vididas; 0 seu estado de alma era de violento contraste ou antitese. Escreve Camdes: Estavam pelos muros temerosas e de um alegre medo quase frias. A dialéctica do trégico e do épico esta magis- tralmente contida na antitese alegre medo (pois © sentido transcendente do épico nao afecta a realidade persistente do tragico. Noutro passo deste episddio, versos pungentes traduzem a inquietagéo € 0 sofrimento de mies e de es- posas —perene sentimento dos humanos ante a violéncia @ fatalidade da guerra: apenas em estados extremos pode o medo ser alegre). Expectativa de tragédia—ou o medo que os seus morressem ou voltassem feridos, mutilados, estropiados. Virtualidade épica — ou a estranha alegria que as habitava vendo aque- les homens que !hes eram tao queridos corre- rem jubilosamente a peleja a defender terra, familia e lares. Batalha de Aljubarrota Alguns vao maldizendo e blasfemando Do primeiro que guerra fez no mundo Outros a sede dura véo culpando Do peito cobicoso e sitibundo, Que, por tomar o alheio, 0 miserando Povo aventura as penas do Profundo, Deixando tantas mées, tantas esposas, Sem filhos, sem maridos, desditosas. 187 © impulso épico (excepcional no homem) 6, porém, mais forte que o sentimento trégico (vulgar no homem); implica o vencimento deste sentimento trégico por aqueles seres excep- cionais ou éplcos que outro grande poeta, Fernando Pessoa exalta na’ «Mensagem» — que pretendem ser os novos «Lusiadase: Quem quer passar além do Bojador Tem de passar além da Dor Tudo vale @ pena se a elma néo & pequena © Velho do Restelo, cuja inspiracéo se liga estreitamente 20 sentido da estrofe citada na Batalhe de Aljuberrota, irrompendo a seguir aos lamentos das maes e esposas dos navegantes, © glérie de mandar, 6 vé cobica Desta vaidade @ quem chamamos famal Oh! Maldito o primeiro que, no mundo, Nas ondas vela p6s em seco lenho! nfo encerna apenas a voz do povo aténito o temerosos perante a grande faganha maritima. Nele ressoa, mediante expressivas alusées, a interminével tradigéo dos homens experientes e sabios que através das idades se erguem, com apreenséo ¢ angistia, nos momentos em que a humanidade empreende qualquer nova forma de aventura no desconhecido. Com este episédio crucial nos surge algo mais que © protesto dos seres reais ou historica- mente determinados que se opuseram & Viagem do Gama, Com 0 Ademastor, se simbolizam as adversas forgas desconhecidas, ocultas no seio da Natureza ou num misterioso destino. Acolhendo no seu poema um dos chamados Tits, em lute com o Império de Zeus e da Fatalidade, ligando assim «Os” Lusfadas» & mais auténtica tradigéo mitice, a epopela e¢ & tragédia dos gregos, Camdes vai por na boca do gigante a narretiva da humilhagao sofrida outrora e a profecia dos males implacdveis que esperam no futuro os portugueses. Vencido na guerra dos Titas, tendo pretendido em vao © amor de uma ninfa, convertido por impie- doso castigo no Cabo das Tormentas, pela voz profunda do Adamastor 9¢ traduz a fatalidade trdgica que Junge todos os homens, ainda mesmo os que parece excederem a humana condigao. Assim, na primeira parte do poema, até ao canto V, se intensifica o drama no desenvolver da epopeia. Na ultima parte, alcangada a India, todas as dificuldades da viagem se ocultam, todo 0 adverso 6 vencido. O poeta acrescentaré no fim uma dramatica nota de cansaco e humano desengano, mas 0 seu canto de louvor & patria e aos designios da humanidade esté cumprido. 188 0 leitor de «Os Lusiadas» esté sempre presente a relagéo com a antiguidade Com efeito, toda a accdo dos herdis ¢ acompanhada de uma intriga paralela, mais do que um conflito, entre os deuses. Os herdis sdo homens da idade moderna, os deuses pertencem ao Olimpo da idade antiga. E esta relagéo, este paralelismo sempre presente, do moderno @ do antigo, uma des razées que faz dizer que «Os Lusiadas» 6’ uma epopeia renascentista Serd talvez a «epopela renascentista» por exceléncia, pois as outras, desde a «Divina Comédias, de Dante, até a0 «Orlando Furiosos, de Ariosto, estéo muito mais pene- trados de espirito medieval do que de espirito cléssico ou, sequer, classicista, esto muito mais préximas de uma gesta como a «Cangao de Rolando» do que de um poema como a «Od'sselas. Nao s6 na construgao, na estrutura oy na forma como também no que a essas é substencial: as ideias e 0s ideais, os conceitos e a mentalidede, a imagens e os ambientes. A relacao do que n'sOs Lusiadas, é presente com o classicismo da antiguidade apre- senta-se pois de varios modos. O mais patente, ou aquele em que 0s outros se tornam mais manifestados, afigura-se-nos ser o do referido paralelismo entre a realidade que 0s homens s60 e a irrealidade que os antigos deuses representam. Todavia estes deuses que figuram ao longo de todos os cantos do poema acabam por ser nos cantos IX e X, negados. O estudo ou a interpretagao—que estao ainda por fazer —desta negacdo, mostram que ela se processa em trés fases Numa primeira fase. os deuses antigos sao puramente negados como falsos: é assim que, quando Tethys descreve aos navegadores 0 empireo. thes declara: «Aqui, 86 verdadeiros, gloriosos Divos estéo, porque eu, Saturno e Jano, Jépiter, Juno, fomos fabulosos, Fingidos de mortal e cego engano. S6 para fazer versos deleitosos Servimos. (Canto X — 82) Numa segunda tase, a negagdo processa-se transferindo os deuses antigos para as imagens cristas e identificando-os com elas: «...a Santa Providéncio, Que em tupiter aqui se reoresenta...» Que tenham longos tempos o governo Do mar que vé do sol & roxa entrada (Canto X— 83) Porta de Diu e.... os deuses antigos aparecem, numa mais profunda interpretagéo camoniana, como aquilo que, em termos de hoje, diriamos a «sublimacao» do vivido e do vivente, @ que Camées chama honras, preminéncias gloriosas, prémios, que divinizam o humano. © texto mais significativo desta interpretagdo encontra-se nas estancias 88 a 91 do canto IX. Ai nos diz Camées que as ninfas, Tethys, a Ilha Angélica: «, pois «...Jdplter, Mercirlo, Febo @ Marte, Eneias e Quirino e os dois Tebanos Ceres, Palas e Juno com Diana, Todos foram de fraca carne humana». Esta «sublimagio» do humano 6, pois, o exemplo ou modelo que os modernos podem receber da antiguidade. Ela constitui também a principal «linha de forca» ou a orientacdo que preside ® todo o poema e 6 anunciada logo nas primeiras estrofes quando Camdes nos diz que vai cantar crladores da clviliza¢éo ocednica Tal mercé ou viséo 6 primeiro, a do ignoto e incognoscivel Deus: «Mes 0 que é Deus, ninguém o entende, Que a tanto o engenho humano néo se estende» Aqueles, portanto, a que os homens chamam deuses e que, a0 longo de todos os anteriores cantos do poema, assim tinham sido designa- dos, sé0 apenas «fabulosos, fingidos de mortal e cego engano» e sé servem «para fazer versos deleitosos». Envolvido pelo ignoto Deus, est4 o sistema dos mundos, ou «a méquina do mundo. Move-a aquele cfrculo a que Camdes chama «mobile primeirox, @ que 6 0 «motor imével» de Aris- t6teles. Imével porque «...corre to leve e téo ligeiro, Que nao se enxerga». Tendo vivido antes de Copémico e Galileu, Camées nao tinha noticia das suas teorias heliocéntricas, que faziam graviter a terra em redor do sol. No entento, pée a Suprema Sa piéncia a mostrar aos navegadores que «0 Sol, andando etento, O dia ea noite faz, com curso alheio». $6 com esta vieso, que foi precedida de uma historia do futuro e 6 concluida com uma panoramica dos continentes, Terraquis, é que a viagem da descoberta maritima fica comple- tada com a ascenséo ao «céu sereno» ou Iniclagao na sabedoria. £ esta iniciago que dé todo 0 sentido 20 poema. Depois dele, os navegaddres regressam & patria. Mas estra- nhamente, em versos enigméticos, Camdes diz- “nos que trazem consigo as ninfas: «Levam @ companhia desejada Das ninfes, que héo-de ter eternamente Por mais tempo que o Sol 0 mundo Lequentes. Estes dois cantos ultimos do poema sobre a «insula divina»— confusa e desautorizadamente designada, nas ligdes escolares, de «ilha dos amores» ¢ até suprimida em edigSes para es- tudantes —constituem a chave para o enten- dimento e interpretagao d’Os Lusfadas. Alteram eles todos os faceis e superficiais sentidos que se tem procurado atribuir ao poema. E assim que imediatamente eles refutam as sugestées mals disfargadas ou, nos tltimos tempos, mais claras, tendentes a uma desvalorizacao ideol6- gica e bem-pensante de «Os Lusiadas», como repudiam as exaltagdes patrioteiras dos que «metem a pétria» «no gosto da cobica e na rudeza>. DA EPOPEIA UIS_DE CAMOES foi um grande Iirico. Os préprios Lusiadas perderiam muito do seu valor se lhes retirassem estancias que so incontestavelmente mais de nz- tureza lirica que de cardcter épico. Néo falta até quem julgue essas estancias as mais formosas do poema. Muito sumariamente, poesia Ifrica é a que exprime 0 sentimento, a paixéo, o entusiasmo, estando portanto ligada & subjectividade do individuo, & sua prépria e ardente existéncla. Poesia épica, a que narra alguma grande eccao, praticada por herdis ou deuses, frequentemente com a intervencao do maravilhoso, grande accao essa que 0 poeta imagina ou reconstitui, empe- nhando no seu relato o seu génio verbal sem nela comprometer totalmente a sua subjecti- vidade. Fidelino de Figueiredo observa, a propésito, que «0 poeta épico nao 6 o criador da matéria épica»; esta (em seu entender) 6 de «criacdo colectiva e esta cristalizada na mente da socie- dade quando o poeta, com o seu génio de expressio, a chama & perpétua presenca» O «génio de expresséo» de um grande poeta como Luis de Camées ¢onsegue fazer de Gama uma figura exempler, sem Ihe dar a conviccéo de uma figure vive. Vesco da Gama, n'«Os Lu- sfadas», néo emociona o leitor, nao transporta 0 leitor: Porqué? Porque Camdes fala do Gama, © seu herdi, sem a emogdo e o transporte com que fala de Dinamene, a sua amada. E nos sabemos que, grande amoroso, o autor de «Os Lusiadas», 6 um dos maiores poetas do Amor; Para o amor viveu, de amor padecou, e larga- mente cantou 0 amor. Quando aparecem, n'«Os Lusiadas», os trechos liricos, isto é, ligados a sentimentos efectivos ou ‘dependentes de sentimentos afectivos? Nao evidentemente, nas cenas de navegacao, onde descreve faunas, flo- ras, gentes, tempestades, adversidades; nem nos lances ‘guerreiros em que exalta Afonso de Albuquerque ou refere os prodigios do cerco de Diu—mas quando surge a histéria de um grande amor infeliz... 0 grande amor infeliz que foi, tanta vez, o Amor vivido por Camées. Escreve, entdo, alguns dos seus mais formosos versos: 195 Estavas, linda Inés, posta em sossego, De teus anos colhendo o doce truito, Naquele engano da alma, ledo @ cego, Que a fortuna ndo deixa durar muito, Nos saudosos campos do Mondego, De teus formosos olhos nunca enxuito, Aos montes ensinando e as ervinhas O nome que no peito escrito tinhas. Do teu Principe ali te respondiam As lembrangas que na alma jie moravam, Que sempre ante seus olhos te traziam, Quando dos teus formosos se apartavam; De noite, em doces sonhos que mentiam, De dia, em pensamentos que voavar E quanto, entim, cuidava e quanto via Erem tudo meméries de alegria. A Epopeia perde aqui a grandiloquéncia. Toda a palavra é simples, de facil entender, sem que a0 posta seja necessério criar a partir do latim, os termos épicos que faltavam ao portugués, como por exemplo beligero. Ledo, saudosos. formosos, campos, montes, 0 diminuitivo ervi- nhas so palavras liricas do tradicional lirismo portugués. Repare-se ainda nas rimas finas, em i, especialmente na preferéncia de fruito a fruto, como vem em algumas edicbes moder- nas que parecem ignorar as delicadezas do amore a delicadeza com que Luis de Camées falou do Amor. A presenga, a0 mesmo suave e dramética, do lirismo na Epopeia constitui uma das origina- lidades do ~Os Lusiadas», Se a0 tom lirico, Camdes tivesse preferido 0 tom tragico (como faz nas estrofes seguintes, em que Inés é& trespasseda de punhais) «Os Lusiadas= teriam menos variada beleza e a tragédia_menos veeméncia e patético, j4 que é 0 intercalar do mais puro lirismo na mais ferina crueldade que obriga aqui o leitor a sentir, em toda a sua fealdade, a razio de Estado que mandou assas- sinar Inés. No canto IX, puro e contemplativo amor tao bem traduzido nestes versos: Aos montes ensinando ¢ as ervinhas O nome que no peito escrito tinhas desaparece. O lirismo deste canto jé nao per- tence ao dominio do sentimento, mas do Ero- tismo. Até o ar se torna lascivo: No ar lascivo beijos se vio dando J4 se ndo trata de doces sonhos, mas de beijos famintos. Qh que famintos beijos no florestal E que mimoso choroso que soavam. A linda Inés 6 @ mulher idealizada e petrar- quiana, sublime e sublimada, A ninfa da Ilha do Amor é a mulher carnal, a fémea. Por isso Inés 6 uma, ¢ Gnica, e soberana, e a ninfa plu- raliza-se em ninfas (uma para cada marinheiro faminto): Os esperem as Ninfas amorosas, de amor feridas, para Ihe entregarem quanto deles os olhos cobigarem © amor de Inés pode ligar-se ao amor ideal de cavalaria, ¢ ao amor platénico dos sonetos de Petrarca. O do canto IX prende-se ao Amor pagao, onde nao hé pecado. Inés expia 0 seu Amor. As ninfas oferecem naturalmente amor. O primeiro 6 0 Amor-paixdo, tragico, aqui, como no «Romeu e Julietas, de Shakespeare, ou no «Amor de Perdi¢ao, de Camilo. O segundo é 0 Amor-Instinto: O amor pagao Acende-se 0 desejo que se ceva nas alvas carnes subito mostradas. «Os Lusfadass, obraprima da Renascenca, dé -nos os dois aspectos do amor: o puro, plat6. nico, petrarquiano; e o carnal, erético, pagao. © valor de «Os ‘Lusfadas» esté menos nos retratos de herdis, todos eles um pouco hirtos, do que numa visio de vida franca e clara, num amplo @ irresistivel movimento que mistura 0 maravilhoso cristéo e © maravilhoso pagio, 0 amor-pureza e@ 0 amor-instinto, o Lirismo e a Epopeia. Nisto se distingue, fundamentalmente, das epopeias antigas. E as suas paginas mais vives s&o as amorosas: as que docemente si gerem 0 sentimento de In&s saudosa de Pedro, a8 que descrevem com um subtil realismo a entrega das ninfas, No as que exaltam os heréis rigidamente, sumariamente, como nestes versos: Este seré Martinho, que de Marte O nome tem co’as obras derivado. Ha que oonsiderar, n'=Os Lusfadas», a grandeza de epopela, cantada por vezes em versos no- bres mas frios; e a beleza do amor sempre evocada em versos brandos e erdentes: O nome the puseram, que inda dura, dos amores de Inés, que all passarem, véde que fresca fonte rega as flores que légrimas séo @ égua e 0 nome Amores. er eo eet) Camdes foi um grande criador do idioma por- tugués, em geral, e da linguagem literaria, em particular. Enriqueceu ambos @ & segunda trouxe muitas novidades. Esse enriquecimento a essa renovagdo, nao se restringem a «Os Lusfadas». Estéo presentes, igualmente na sua poesia lirica, em especial nos sonetos. Dotado de excepcional capacidade Introspectiva, Games apreende o Amor em toda a sua complexidade @ contradigéo («0 amor 6 um contentamento descontente»). Quando, por exemplo, fala nas brandas Iras do Amor, o leitor sente que ele viveu © exprimiu o sentimento em toda a ri queza do seu contraste ou da sua antitese. A tens&o psicolégica dos sonetos de Camées contraria os que negam ao portugués dotes de psicélogo, por nfo haver em nossa literatura @S LUSABDAS EO IDIOMA PORTUGUES romances psicolégicos. Devido a essa rica ten- so, a linguagem literéria alarga-so visto que para exprimir os subtis movimentos do seu espirito, Luls de Camées precisou de inventar formas de expresséo igualmente muito subtis. € na adjectivagdo que essas novas formas de ex: pressio 380, como é natural, mais sensiveis, pois a Fungo do adjectivo consiste em exprimir qualidades ou estados. E para traduzir 0 senti- mento amoroso, Camées utiliza verbos—os instrumentos préprios da accdo —fortemente contrastados: Espero e temo, quero e aborreco ou Juntamente me alegro e me entristego. 198 «Os Lusiadas» poderdo ser a suma da obra de Luis de Camdes, mas tudo que ele trouxe av idioma portugués néo se confina & epopela, A antitese 6, neste, menos frequente do que nas Ifricas. Aqui ele queria transmitir estados contraditérios de sua intimidade ou subjectivi- dade; ali tinha de descrever, com a possivel objectividede, a histéria de uma navegagéo e a histéria de um povo. Para tal necessitou usar varlae linguagens, sendo um modelo de lingua- gem descritiva a narragao da tempestade no canal de Mocambique. Mas a linguagem que se impée a epopsia, 6 a grandiosa e, com frequéncla, a grandiloquente. Cam6es usa am- bas com felicidade. «Os Lusiadas= trazem 20 idioma uma grande riqueza lexical, ¢ a maioria dos termos que o poeta introduziu, ficaram na lingua. Séo, em geral, os mais simples. Outros, envelheceram, devido a uso imoderado e fre- quentemente despropositado que dele fizeram os Imitadores de Camdes, nenhum dos quais teve génio © a maioria possula até pouco ta- lento. Uma dessas palavras é beligero, termo alatinado, que em linguagem oral se néo diz e em linguagem literéria soa pretenciosamente. «Os Lusfadas» abundam em exemplos seme- Ihantes. Por que empregou Camées estas pala- vras que hoje nos parecem inexpressivas ou artificiais? O Idioma, antes de «Os Lus(adass era o corrente na linguagem falada, linguagem fluente e pito- resca, que bastou a Fernao Lopes para narrar fluente e pitorescamente os motins populares de Lisboa e as batalhas do tempo de D. Jodo | Havia ainda a linguagem da poesia Ifrica—de oe a feigdo cantante. Usaramna os poetas do «Can- cioneiro», Bernardim e 0 préprio Camées das «Liricas», embora, como vimos, lhe tivesse acrescentado subtis combinagées que expri- miam uma interioridade mais profunda que dos restantes poetas. A misica verbal de «Os Lusiadas» nao 6 um simples jogo formal, mas é sabiamente usada Para marcar os estados de espirito ou sucessos histéricos. Usa, por exemplo, a aliteragao (Ver Guia do Leitor) para dar mais forea a0 que ee | Se pretende valorizar, no caso as facanhas por- tuguesas em comparagéo com a dos antigos gregos e romanos: Ouvi que néo vereis com vao faganhas. fantéstica, fingidas, mentirosas. Também usa a t6nica (Ver Guia do Leltor) para fazer sentir a crueldade dos que assassinaram Inés de Castro: Que furor consentiu que @ espada tine [fosse alevantada Contra uma fraca dame delicada. O a aberto, alerta aqui o leltor que a condi¢ao de Inés, fraca ¢ delicada. E 0 @ dtono de dama, sugere que ela néo podia oferecer resisténcla nenhuma como essa vogal quase apagada, quase inexistente. Assim o grande poeta, utilizando a mésica verbal para valorizar significacées, ‘félo com uma beleza que ainda nao foi supe- rada. ‘A. mdsica verbel.....com uma boleza que ainda nfo fol su: perada 199 Se o poeta lirico consegue escrever boa poesia com um pensamento ingénuo, mas sincero, 0 mesmo nao é possivel ao poeta dramético e a0 poeta épico. Num e noutro caso, um mo- mento chega sempre am que, para os com- preender, teremos de interrogar-nos sobre a relacéa do teatro e da epopela com a filo- sofia. Devemos, porém, evitar, neste ponto cepital, um engano muito frequente. Quando talamos do pensamento filos6fico que propicia ou estrutura © grande poems, néo nos referimos a uma contribuigéo das obras filosdficas que 0 poeta Jeu ou estudou, néo nos referimos @ um pen- 86 com 0 pensamento governa a terra, 0 céu @ o mar Irado, pode encontrar-se af motivo para admitir o seu estudo atento de Platao ou Aristoteles. E, no entanto, por tudo quanto variamente na obra de Cambes se advertiu dos seus melhores dons reflexivos e possibilidades de intima meditacao, poderemos admitir como bem seu, bem original, esse momento do poema. O posta era cons- ciente, de modo raro, mesmo entre grandes poetas, da espiritual dignidade do pensamento, para por si proprio alcengar um téo simples @ classico dizer. semento Idgico-sistemético estrito. Referimo- snos, sim, a formas de pensamento onde a intuigéo € a imaginecao, a alegoria, a metétora 2 0 simbolo so, a par das Idelas, essenciais. E certo que num poeta como Camées a cultura conta, nao sendo sempre dado discernir 0 que ele por si pensou @ 0 que dos estudos filosd- ficos Ihe foi dado tornar seu. Assim, quando ao falar do deus supremo da mitologia latina, Games nos diz que Jupiter 200 é A\ FILOSOF Admitido, pois, 0 sew parcial mas sério conhe- cimento da filosotia antiga, @ 0 provével conhe- cimento de alguns aspectos da filosofia poste- rior, torna-se mais urgente e adequado procurar Os nieleos onde se treduz © forma de Imegi- nacéo e 08 modos de pensar @ conceber sem os quais Camdes néo seria o que fol. Paten- telam-se melhor na tltima parte do poeme. Estao ligados, é certo, a uma concepgao clds- sica, Camées, porém, assimilou-a como muitos outros poetas da Natureza, ¢ nele se move com dinemismo @ propdsito de alcance @ fecundi- dade indisputdvels. Quando Baco, no canto VI, val tentar junto dos deuses do mar 0 apoio que dos celestes néo alcencara, depara-se-the uma representacdo simbélica da velha doutrina dos quatro elemen- tos (est. X a XIN). Interrogando-se sobre @ primeira orlgem, tinkam os gregos chegado a pensar que a terra, a 4gue, 0 ar e 0 fogo sao formas para nds sen- siveis dos principios de que tudo procede. 0 irado Baco, adverte-nos Camées, néo se de- tém, olha de 'relance @ maravilha. Nos, porém, atentos, logo notaremos que um tel momento do poema nao pode ser mero edorno. Néo hé, em poema digno do nome, nada que seja mero adorno, nada sem sentido, mesmo 0 que ape- rentemente nega sentido. Camées meditou repetida e gravemente, a velha concepeéo. N30 aceitava, pelo menos com a mitica credibilidede dos primeiros postas filé- sofos de Grécia, que os quatro elementos emergem do Caos primitivo como Gnica e di- versiticada fonte de toda a realidade. Admitla, porém, seguramente, como tantos poetas & pensadores antes e depois dele, que a terre, 2 Agua, o ar_@ 0 fogo séo origens @ estimulos da imaginagao criadora. 0 fogo 6, para o poeta, o elemento suspelto: v6 nele o que destréi © anula. A terra, como seguidamente sugere, e em todo 0 poema exemplificaré, 6 por si s6 meméria do Caos, fonte incessante de lute, guerra ¢ desconcerto. Na ligacéo da terra densa e do «liquido ele- mento», ou fluidificagéo da terra e da accéo humana, pée sua confianga de poeta de Natu- reza, mas de uma Natureze humanizada para novos tempos. . Por sobre o amor das ninfas e dos homens, casamento do mar e da terra, vem o ultimo elemento da harmonia: o ar, o elemento etéreo, Estamos em pleno optimismo paradisiaco, na ilha maravilhosa sem tempo, sem lugar, onde 0 amor cernal se vincula a outro de mais alte e ampla radiacéo. O poema de Camées, profundamente sentido e subtilmente pensado, profetiza assim uma Ultima harmonie. 0 modo como repensou Ima- géticamente a velhe doutrina dos quatro ele- mentos, enquanto fonte da imaginacao simul- téneamente realista @ profétice, torna-so mais surpreendente © significative para nés quando atendemos aos seus equivalentes na poesia ‘moderna.

You might also like