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A concepção de politecnia em Moçambique:

contradições de um discurso socialista (1983-1992)*

António Cipriano Parafino Gonçalves


Universidade Federal de Minas Gerais

Resumo

O trabalho analisa a fundamentação do conceito de politecnia na


educação moçambicana, de acordo com o projeto político pro-
posto pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), que
preconizava a instauração de uma sociedade socialista nesse país.
Definida nos documentos oficiais como tradução do princípio
pedagógico de ligação entre a teoria e a prática, entre a escola e
o trabalho, a politecnia deveria permear todo o processo de for-
mação escolar e visava propiciar aos alunos bases para compre-
ender a realidade, assimilar o conhecimento científico e transfor-
mar a natureza e a sociedade. Metodologicamente, foi realizada
uma pesquisa teórica, revisando a bibliografia sobre o surgimento
do conceito de politecnia, o entendimento deste em Marx, Lênin
e no movimento operário russo. Também foram consultados do-
cumentos oficiais, artigos, livros e resultados de pesquisas sobre
a educação socialista moçambicana que focassem o propósito da
pesquisa. Empiricamente, realizaram-se entrevistas com intelectu-
ais que estiveram envolvidos com a educação moçambicana no
período recortado (1983-1992), na cidade de Maputo, entre ja-
neiro e março de 2005. Da análise de dados e do conteúdo das
entrevistas, conclui-se, primeiro, que existe uma diferença na
fundamentação da concepção de educação politécnica na pro-
posta pedagógica de Moçambique em relação às propostas sejam
de Marx e Lênin. Segundo, que o entendimento do conceito de
politecnia em Moçambique foi limitado e que o discurso socialista
Correspondência:
António Cipriano P. Gonçalves
que acompanhou a educação moçambicana foi contraditório.
Al. das Latânias, 1000, ap 301
31270-800 - Belo Horizonte, MG Palavras-chave
e-mail: ciprix@yahoo.com
Moçambique – Frelimo – Estado-nação moderno – Sistema Nacional
de Educação – Concepção de educação politécnica.
*
Elaborado com base na dissertação de
mestrado sob a orientação da Profa. Dra.
Maria de Lourdes Rocha de Lima e co-
orientação da Profa. Dra. Rosemary
Dore Soares, a quem agradeço pelas
valiosas contribuições na elaboração da
dissertação e também à CAPES pela
concessão da bolsa de estudos de
mestrado no âmbito do Programa de
Estudante de Convénio (PEC-PG).

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.3, p. 601-619, set./dez. 2007 601
The idea of polytechnicalism in Mozambique:
contradictions of a socialist discourse (1983-1992)*

António Cipriano Parafino Gonçalves


Universidade Federal de Minas Gerais

Abstract

The work analyzes the grounding of the concept of polytechnicalism


in Mozambican education, according to the political project
proposed by the Mozambican Liberation Front (FRELIMO), which
defended the establishment of a socialist nation in that country.
Defined in the official documents as a translation of the pedagogical
principle of the connection between theory and practice, between
school and work, polytechnicalism should permeate the whole
process of schooling, and aimed at giving students the basis to
understand reality, assimilating scientific knowledge, and
transforming nature and society. In terms of methodology, the work
comprised a theoretical survey of the literature on the emergence of
the concept of polytechnicalism, and the understanding of this
concept in Marx and Lenin, as well as in the Russian workers
movement. Official documents, articles, books, and the results of
related research on the Mozambican “socialist” education were also
investigated. In its empirical part, the study included interviews with
intellectuals that were involved with Mozambican education during
the period in question (1983-1992) in the city of Maputo; these
interviews were conducted between January and March 2005. From
the analysis of the data collected and interviews carried out, the
study allowed the conclusion that, firstly, there is a difference
between the grounding of the conception of polytechnic education
as it appears in the Mozambican pedagogical proposal, and those of
Contact: Marx or Lenin. Secondly, that the understanding of the concept of
António Cipriano P. Gonçalves
Al. das Latânias, 1000, ap 301 polytechnicalism in Mozambique was limited, and that the socialist
31270-800 - Belo Horizonte, MG discourse that attended Mozambican education was contradictory.
e-mail: ciprix@yahoo.com

Keywords

*
Mozambique – Frelimo – Modern nation-state – National Education
This article is based on the Master
Dissertation prepared under the
System – Concept of Polytechnic education.
supervision of Professor Maria de
Lourdes Rocha de Lima and co-
supervision of Professor Rosemary
Dore Soares, to which the author wishes
the express his gratitude. The Master
studies were sponsored by CAPES
through a scholarship offered within the
Exchange Student Program (PEC-PG).

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O trabalho, síntese da dissertação de Quando da independência do país, téc-
mestrado defendida em novembro de 2005, ana- nicos estrangeiros oriundos dos ex-países soci-
lisa a fundamentação do conceito de politecnia alistas chegaram a Moçambique em apoio à
presente no projeto socialista para a educação revolução, no âmbito do internacionalismo pro-
moçambicana, apresentado pela Frente de Liber- letário. Os técnicos em referência, segundo Brito
tação de Moçambique (Frelimo)1, entre 1983 e (1995), ocuparam funções de “especialistas ou de
1992, em vista a edificar o socialismo após a in- conselheiros nos gabinetes de estudos, nos depar-
dependência do país, ocorrida em 1975. Defini- tamentos de planificação dos ministérios” (p. 11),
do, naquele projeto educacional, como “tradução e alguns se envolveram com o processo da orga-
do princípio pedagógico de ligação entre a teo- nização da educação escolar moçambicana2. Pos-
ria e a prática, entre a escola e o trabalho produ- sivelmente, teria sido a partir desse envolvimento
tivo no processo educativo” (Moçambique, 1985, que esses técnicos influenciaram a adoção da
p. 112), o conceito de politecnia deveria permear perspectiva educacional que vigorava em seus
todo o processo de formação escolar e visava pro- respectivos países.
piciar aos alunos “bases para compreender a rea- Entretanto, a explicação oficial relativa à
lidade, assimilar o conhecimento científico e trans- adoção da politecnia em Moçambique encon-
formar a natureza e a sociedade” (Moçambique, tra-se nos documentos do ex-Ministério da
1985, p. 21). Educação e Cultura do país (MEC)3. Ali é afir-
Em torno do conceito de politecnia, en- mado que “foi do combate pela libertação da
tretanto, há uma grande polêmica e existem di- terra e dos homens”, nas Zonas Libertadas, que
ferentes interpretações sobre ele. Somente para foram forjados “os princípios que orientam a
exemplificar, no socialismo real, o conceito se nossa sociedade e educação” (MEC, 1980, p. 2)4.
consolidou como expressão da síntese do pen- Naquelas zonas, refere o documento oficial, o
samento marxista sobre a educação escolar. No trabalho manual e a produção já “faziam parte
entanto, em Marx, a politecnia ou educação da educação, garantindo a unidade entre estu-
tecnológica constitui uma das três dimensões do e o trabalho produtivo, entre o trabalho
da sua concepção educacional, que abrange intelectual e o manual” (MEC, 1980, II, p. 1).
também a educação intelectual (da mente) e a Essa explicação oficial sugere não ter ha-
ginástica (Marx; Engels, 2004). vido influências externas na proposição e ado-
Durante a Revolução Soviética, o conceito ção do conceito na educação escolar moçam-
foi adotado por Lênin e Krupskaia, sem despre- bicana. Contudo, o que os organizadores da
zar a dimensão da educação geral, isto é, o educação moçambicana entendiam por princí-
conceito de politecnia “não sintetizava todas as pio pedagógico de ligação entre a teoria e a
possibilidades de ligação entre o trabalho e o prática, entre a escola e o trabalho, como ex-
estudo” (Dore Soares, 2000, p. 345-346). Após
a ascensão de Stalin, o conceito de politecnia foi 1. A Frelimo, de acordo com os documentos oficiais, nasceu da unificação
se afirmando “para designar a educação relaci- de três movimentos nacionalistas moçambicanos em junho de 1962, na
capital da Tanzânia – Dar-Es-Salam. São eles, a União Nacional Africana de
onada ao trabalho industrial, desvinculada da Moçambique (MANU) do norte do país; a União Nacional Democrática de
formação geral” (p. 350). Moçambique (UDENAMO), centro; e a União Nacional Africana de Moçambique
Independente (UNAMI), fundada na Província de Tete (centro do país).
Não obstante esses exemplos em torno da 2. Na Educação, houve uma presença significativa dos técnicos provin-
complexidade do conceito, foi o termo politecnia dos da antiga República Democrática Alemã. Informação dada por Luís
que acabou ficando conhecido no socialismo real Filipe em 15 de janeiro de 2005 em Maputo.
3. O documento em referência, depositado na Biblioteca do Centro de Estudos
como sinônimo de uma concepção socialista de Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, pasta 67.9 6/KL, é
vinculação entre trabalho e ensino. a versão não divulgada das Linhas Gerais do Sistema Nacional de Educação.
4. As Zonas Libertadas, situadas no interior das províncias de Niassa e
De que modo o conceito de politecnia Cabo Delgado, no norte de Moçambique, são as áreas que passaram para
chegou a Moçambique? o controle da Frelimo no decurso da luta armada.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.3, p. 601-619, set./dez. 2007 603
pressão da politecnia? A que resultados chegou (1983), de objetivos independentistas e naciona-
a educação moçambicana orientada pelo con- listas, a luta armada, dirigida pela Frelimo, passou
ceito de politecnia? a ter um caráter revolucionário. A Frente preten-
Essas foram as principais questões das dia operar uma radical transformação das rela-
quais partiu o estudo. Da análise sobre a fun- ções sociais em Moçambique para construir uma
damentação do conceito de politecnia, é sus- nova sociedade, livre de exploração do homem
tentada a tese de que o entendimento desse pelo homem, em que “as condições materiais de
conceito em Moçambique foi limitado. Além da vida do povo melhorem continuamente e [...]
limitação quanto ao entendimento do concei- suas necessidades sociais sejam satisfeitas”
to, ainda em nível educacional, o discurso que (Frelimo, 1983a, p. 31).
acompanhou a fundamentação da politecnia foi Após a independência, a Frelimo buscou
contraditório com relação aos propósitos soci- efetivar o projeto de Estado e de sociedade
alistas dos dirigentes moçambicanos. nascido durante a luta de libertação, estenden-
Para se chegar a essa conclusão, foi re- do a todo o país o processo de destruição da
alizada uma pesquisa teórica, revisando a bibli- velha sociedade.
ografia geral sobre o conceito de politecnia. Foi nesse contexto que o MEC, seguindo as
Também foram consultados documentos oficiais, orientações do III Congresso da Frelimo, elaborou
artigos, livros e resultados de pesquisa sobre a uma proposta educacional para dar início à reor-
educação socialista moçambicana que focassem ganização da educação escolar moçambicana.
o propósito de pesquisa5. Empiricamente, reali- Chamada de Linhas Gerais do Sistema Nacional de
zaram-se entrevistas com alguns intelectuais6 Educação, a proposta foi apresentada pelo MEC à
que estiveram envolvidos com a educação ex-Assembléia Popular7 em 1981, tendo sido apro-
moçambicana no período recortado (1983- vada sob forma de lei com denominação de Siste-
1992), na cidade de Maputo-Moçambique, en- ma Nacional de Educação (SNE) – (Lei 4/83, de 23
tre janeiro e março de 2005. de Março de 1983)8.
São expostos, a seguir, os resultados de O objetivo central atribuído ao SNE era
investigação, apresentando, primeiro, a emergên- o de formar o Homem Novo Revolucionário:
cia da politecnia na educação moçambicana, si- “um homem livre do obscurantismo, da supers-
tuando o contexto histórico em que surge essa tição e da mentalidade burguesa e colonial, um
proposta. Depois é discutida a emergência da homem que assume os valores da sociedade
politecnia na história da Educação, a compreen- socialista” (Moçambique, 1985, p. 113). Eram
são que Marx e Lênin tiveram desta e o rumo que os fundamentos da nova educação, além da
ela seguiu no movimento operário russo. Por fim, experiência educacional havida nas Zonas Li-
é analisada a fundamentação do conceito de bertadas, a Constituição da República (1975 e
politecnia na educação moçambicana, à luz do 1978), o Programa do Partido Frelimo “e os
discurso socialista dos dirigentes moçambicanos. princípios universais do marxismo-leninismo,
particularmente os que se referem à pedagogia
A emergência do conceito de socialista” (Moçambique, 1985, p. 17).
politecnia na educação
moçambicana
5. Fazem parte dos documentos oficiais os relatórios técnicos, os discur-
sos dos dirigentes moçambicanos, a legislação educacional e toda a docu-
Segundo se referiu, o conceito de politec- mentação produzida no Ministério de Educação e Cultura de Moçambique.
6. No sentido gramsciano do termo (Gramsci, 2004).
nia, na educação escolar moçambicana, surgiu da 7. No âmbito da mudança, de orientação política e da reforma do Estado
experiência educacional havida nas Zonas Liberta- moçambicano, a Assembléia Popular passou ser designada de Assem-
bléia da República.
das, no decurso da Luta de Libertação de Moçam- 8. A lei de nacionalização dos serviços de Saúde, Educação e Habitação
bique do domínio português. Conforme Munslow foi promulgada em 24 de Julho de 1975.

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Ainda no contexto da reorganização edu- contra a destituição da iniciativa intelectual e a
cacional, o Estado decretou a nacionalização da paralisia social, a educação revolucionária deveria
educação escolar, justificando que pretendia
democratizar o acesso a ela, “sem discriminação [...] eliminar a superstição, criar uma nova so-
de origem econômica e racial” (Moçambique, ciedade, forte, sã, próspera, livre da explora-
1985, p. 11), em função de a educação coloni- ção, e ensinar às crianças a pensarem cienti-
al ter imposto “a existência de dois sistemas de ficamente. (CEA, s/d, p. 3-4)
ensino perfeitamente distintos e discriminados”
(Moçambique, 1985, p. 11) 9. Assim, além de O ensino colonial, para os intelectuais e
garantir a igualdade socioeducacional, a nacio- dirigentes moçambicanos, era elitista e por isso
nalização da educação também era fundamen- “desprezou o trabalho manual e separou a teo-
tal para a formação do Homem Novo Revoluci- ria da prática” (Moçambique, 1985, p. 12). Para
onário, ele que era a garantia da irreversibilidade superar esse elitismo, era necessário que a nova
do processo revolucionário em Moçambique educação se orientasse pelo princípio pedagógi-
(Machel, 1978a). co de ligação entre a teoria e a prática, entre a
Segundo referiu Samora Machel (1978a), escola e o trabalho produtivo, adquirindo, des-
é na educação escolar “onde se forma o ho- se modo, um caráter politécnico. Esse método
mem10. O segredo está aí [...] um homem novo? educativo, segundo os documentos oficiais,
Uma sociedade nova? Não, é na escola, na edu- começou nas Zonas Libertadas.
cação, onde está o germe, o segredo” (p. 35). Entretanto, em relação à experiência edu-
Samora Machel enfatizou que formar o Homem cacional dessas zonas, o discurso oficial limita-se
Novo era formar uma nova mentalidade porque, a fazer alusão a estas como referência para a nova
para ele, não era somente ensinando “a falar e educação, sem nunca apresentar dados qualitati-
escrever bem que conseguiríamos formar um vos ou quantitativos a respeito do número de
outro homem” (p. 35). Com uma nova menta- escolas ali existentes. Os documentos pesquisados
lidade, defendeu Machel, vão germinar novas apenas argumentam que foi naquelas Zonas onde
idéias, que lutam “permanentemente contra as começou o combate pela formação de nova men-
ideias velhas, contra os hábitos velhos [...] sur- talidade, livre do obscurantismo, da superstição
ge o combate para dinamizar e revigorar o e do dogmatismo transmitidos pela educação tra-
novo. Novo com conteúdo revolucionário (p.2). dicional; o combate à mentalidade colonial e
No entanto, para os dirigentes e intelectu- burguesa transmitida pela educação colonial
ais moçambicanos, a formação do Homem Novo (CEA, s/d; Frelimo, 1977d).
era um problema cultural. No entendimento de Em relação ao princípio de politecnia ali
Sérgio Vieira11 (1977), a difusão, a propagação, a nascido, uma única referência encontrada é o
promoção e o desenvolvimento de nova cultura relato do professor Roque Vicente, diretor da
são as mais importantes dimensões na criação do Escola Piloto de Tete12, fundada em 1970. Se-
Homem Novo. Por isso que Machel (1979b) defen- gundo o professor, o dia começava com o tra-
deu a centralidade da cultura para a revolução. balho manual (não explicitado). Pela tarde,
A crítica dos dirigentes e intelectuais após o almoço, o trabalho manual era efetua-
moçambicanos, entretanto, era direcionada
contra a educação tradicional e a colonial. Eles 9. Samora Machel foi o segundo presidente da Frelimo, após a morte de
sustentavam que, nesse tipo de educação, a Eduardo Mondlane (1969). Após a independência, tornou-se no primeiro
presidente de Moçambique. Morreu em acidente de aviação em 19 de
superstição tomou conta da ciência, integrado outubro de 1986.
“a juventude nas velhas ideias das gerações 10. Sérgio Vieira foi membro do Bureau Político da Frelimo e Ministro da
Segurança até a morte de Samora Machel.
passadas”, e levou à “destituição da iniciativa 11. Província do centro de Moçambique.
intelectual e à paralisia da sociedade”. Então, 12. O trabalho, nesse trecho, é usado no sentido de profissão ou ofício.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.3, p. 601-619, set./dez. 2007 605
do na terra ou “na manutenção dos territórios curso socialista dos dirigentes de Moçambique.
e instalações” (CEA, s/d, p. 7). Entretanto, a que resultados chegou a educação
Para se garantir o princípio de ligação moçambicana orientada pela noção da politecnia,
entre a teoria e a prática, com base no trabalho, conforme o propósito transformador e igualitário
prossegue o professor Roque Vicente, “os alunos defendido pelos dirigentes? Quais foram as con-
faziam a patrulha, participavam da agricultura, tribuições da educação moçambicana, norteada
cada um tomando parte no cultivo dos campos pelo conceito de politecnia, para uma concepção
da escola”. Os estudantes também se dispunham socialista de educação?
para auxiliarem aos aldeãos “em várias tarefas, tais Para se compreenderem os resultados al-
como a agricultura, a construção de casas e a lim- cançados pela educação moçambicana orientada
peza”. A população, por sua vez, agradecia aos pelo conceito de politecnia, conforme a propos-
alunos “ajudando a escola na alimentação, em- ta transformadora e igualitária dos dirigentes e as
prestando machados, enxadas e outros utensílios”. contribuições dessa educação para uma concep-
Além disso, os aldeãos ensinavam aos estudantes ção socialista de educação, primeiro é focalizado
“coisas como fazer esteiras e outras manufaturas”. o aparecimento do conceito de politecnia na his-
Os estudantes, por sua vez, “ensinavam aos alde- tória da Educação, as interpretações havidas so-
ãos a ler e a escrever” (CEA, s/d, p. 9-10). Desse bre este em Marx e Lênin, e os rumos que a
modo, estava garantido o ensino politécnico, li- politecnia tomou no socialismo real.
gando a teoria e a prática, a escola e a comuni-
dade, a escola e o trabalho produtivo. A emergência da politecnia na
Essa experiência educacional das Zonas Li- história da Educação
bertadas tinha mostrado para a Frelimo a exigência
de formar o Homem Novo, libertando a sua “inici- O conceito de politecnia, na história da
ativa criadora, unindo cada vez mais a teoria e a Educação, surgiu das mudanças científicas ocorri-
prática, formando também uma mentalidade cien- das nos meados do século XIX, em função dos
tífica, materialista e dialéctica” (MEC, 1980, p. 3). impactos que essas mudanças provocaram no pro-
Por isso, quando da organização do SNE, cesso de produção, marcando a passagem do ar-
foi definido como objetivo da área politécnica, tesanato à grande indústria. A transformação do
“a transmissão das bases científico-técnicas da processo produtivo, que decorreu das mudanças
produção, o desenvolvimento de capacidade de científicas havidas e o aparecimento da maquina-
trabalho produtivo e a ligação constante dos ria, levou a que a realização do trabalho não mais
conhecimentos adquiridos à prática da vida dependesse do conhecimento específico que o
social e à produção” (Moçambique, 1985, p. 20). trabalhador possuía sobre esse conhecimento. A
O ensino das bases científico-técnicas é justi- automação do processo de produção, por meio da
ficado com base no argumento de que “a ciên- incorporação das funções manuais à máquina, sim-
cia e a técnica devem ser apropriadas pelas plificou o trabalho humano. Este passou a ser or-
massas populares” (MEC, 1980, p. 2), garantin- ganizado de acordo com os “princípios científicos,
do a “igualdade de oportunidades que tem simples e gerais” (Saviani, 2000, p. 163). Confor-
qualquer cidadão de acesso a todos os níveis me Dore Soares (2000), o trabalho perdeu o seu
de ensino e educação” (MEC, 1980, p. 2). caráter de especialização, tornou-se acessível a
Seria, portanto, por meio da politecnia, se- qualquer pessoa e, para a sua realização, era exi-
gundo a experiência educacional havida nas Zonas gido ao trabalhador “a aquisição de habilidades
Libertadas, que se poderia formar o Homem Novo e conhecimentos gerais e técnicos” (p. 337)13.
Revolucionário, “que transforma a natureza e a
sociedade” (Moçambique, 1985, p. 21), numa 13. Marx inspirou-se no método educativo desenvolvido por Robert Owen
escola única, igual e para todos, conforme o dis- (Dore Soares, 2003).

606 António C. P. GONÇALVES. A concepção de politecnica em Moçambique:...


De modo a inserir-se adequadamente no cio, iniciava os trabalhadores no manejo de vári-
novo contexto técnico, científico e econômico, o os instrumentos de produção.
trabalhador deveria dominar os novos códigos É nesse contexto que emergiu o concei-
científicos, o que implicou “a disseminação dos to de politecnia na educação escolar, guardan-
códigos formais da escrita” (Saviani, 2000, p. 156). do, primeiramente, o significado de aprendiza-
Assim, era necessário que o trabalhador tivesse gem de várias técnicas: a polivalência.
outra qualificação profissional diferente da que ele Marx, inicialmente, criticou o método de
até então possuía, que apenas respondia ao modo ensino baseado na politecnia, afirmando que
de produção artesanal. Essa nova qualificação ele constituía um empreendimento burguês que
somente poderia ser oferecida na escola e não na apenas visava adestrar os “trabalhadores no
fábrica, como até então acontecia. maior número possíveis de ramos da atividade
A escola popular da época, entretanto, industrial” (Dore Soares, 1996, p. 148).
que se restringia ao ensino de leitura, escrita e Com efeito, quando da simplificação do
princípios de religião, não estava preparada processo do trabalho e a conseqüente forma-
para treinar profissionalmente os trabalhadores ção desespecializada, Marx (Marx; Engels,
para a grande indústria. Assim, foi da busca de 2004) afirmou que o verdadeiro significado
soluções educacionais para o problema decor- dessa formação
rente de mudanças tecnológicas e os impactos
que elas provocaram sobre a modalidade de […] para os economistas e filantropos, é a
aprendizagem artesanal que emergiu um novo formação de cada operário [...] de tal modo
método de educativo, a partir da experiência que, se despedido de um trabalho pelo em-
dos filantropos ingleses, entre os quais Robert prego de uma máquina nova, ou por uma
Owen (Dore Soares; 1996; 2000; 2003). mudança na divisão do trabalho, possa en-
O novo método era baseado no ensino contrar uma colocação o mais facilmente
teórico – “os princípios gerais e científicos de possível. (p. 91)
todo o processo de produção” (Marx; Engels,
2004, p. 68) – unido ao prático – iniciar as cri- Em que pese essa crítica, Marx, entretan-
anças e os adolescentes no manejo de ferra- to, tinha uma análise dialética da realidade e
mentas elementares dos diversos ramos indus- percebeu que, se aquele método educativo ti-
triais (Marx; Engels, 2004). nha aspectos negativos, também “oferecia im-
A novidade apresentada pelo novo méto- portantes elementos para a formação dos tra-
do em relação ao ensino artesanal foi a inclusão balhadores” (Dore Soares, 2000, p. 341). Marx
do trabalho na educação escolar, como princípio sustentou que era necessário reconhecer a
educativo, constituindo-se num avanço para a importância da variação dos trabalhos decor-
formação dos trabalhadores em face do tipo de rente da desarticulação dos ofícios, no âmbito
preparação até então existente. Com esse novo das transformações ocorridas na base científi-
método de ensino, os ofícios deixaram de ser um ca da produção, por se tratar, segundo ele, de
mistério acessível apenas ao mestre (Dore Soares, uma “questão de vida ou de morte” para os
1996). Eles foram universalizados por meio da trabalhadores (Marx; Engels, 2004, p. 77).
qualificação profissional desespecializada, possi- Para Marx (Marx; Engels, 2004), a forma-
bilitando que o trabalhador se adaptasse à diver- ção politécnica, no sentido que ele a definiu, junto
sidade dos trabalhos. A universalização dos ofícios, com a educação intelectual e física, poderia
com a emergência da polivalência, criou a possi-
bilidade de os trabalhadores mudarem de profis- […] substituir a monstruosidade de uma
são com maior agilidade, graças ao método de população operária miserável, disponível,
ensino que, em lugar de ensinar apenas um ofí- mantida em reserva para as necessidades

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flutuantes da exploração capitalista, pela priedade de alguns, destinando às maiorias as
disponibilidade absoluta para a variedade escolas técnicas estritamente profissionalizantes
de trabalhos. (p. 77-78) para atender às demandas do setor produtivo.
Por isso, refere Marx (Marx; Engels, 2004),
Essa concepção educacional que também quando for conquistado
inclui a formação politécnica, além de substituir,
segundo Marx (Marx; Engels, 2004), “o indiví- [...] o poder político pela classe trabalhadora,
duo parcial, mero fragmento humano que repete terá a adopção do ensino tecnológico, teórico
sempre uma operação parcial, pelo indivíduo e prático nas escolas dos trabalhadores. (p. 78)
integralmente desenvolvido para as qual as di-
ferentes funções sociais não passariam de formas Os trabalhadores, entretanto, conquista-
diferentes e sucessivas de suas atividades” (p. ram o poder político, por meio da Revolução,
78), também preservaria as crianças e os adoles- num país, à época, o mais pobre da Europa e
centes da “ignorância, brutalização e degrada- com características feudais: a Rússia. Os dirigen-
ção física e espiritual” (Marx; Engels, 2004, p. tes russos começaram a afrontar o problema de
75) de que eram vítimas na fábrica. consolidar a tomada do poder e desenvolver o
Por isso, a formação politécnica, fundada país mediante a industrialização, num contexto de
no princípio do trabalho, sem desprezar a for- grandes adversidades, entre as quais a I Guerra
mação intelectual de carácter geral, e a educa- Mundial (1914-1918) e a demora da Revolução
ção física, no entendimento de Marx (Marx; proletária em outros países da Europa, como
Engels, 2004), tendo rompido com a unilate- esperava o movimento operário (Dore Soares,
ralidade da escola artesanal, da popular e tra- 2000; Losurdo, 2005).
dicional (a humanista), continha em germe a No entanto, antes mesmo da Revolução
educação para o futuro. russa, Lênin, o dirigente dessa Revolução, junta-
Com essa análise dialéctica, Marx (Marx; mente com Krupskaia, havia retomado as reflexões
Engels, 2004) aponta para a necessidade do fim de Marx sobre a educação. Lênin buscava conce-
da divisão técnica do trabalho, das desigualda- ber uma escola que preparasse os trabalhadores
des sociais e das desigualdades educacionais. para os desafios da conquista do poder político
Com efeito, para Marx, a divisão técnica do tra- e construir o socialismo. Para isso, propuseram
balho mutila as capacidades humanas e distin-
gue os indivíduos em função dos tipos de ati- [...] a instrução politécnica juntamente com a
vidades por eles realizados. A divisão técnica do formação geral de base humanista, em subs-
trabalho faz com que aos indivíduos distintos tituição da ideia de ensino geral e profissio-
caiba-lhes, respectivamente, “a actividade inte- nal. (Dore Soares, 2000, p. 345)
lectual e a material; o gozo e o trabalho; o
consumo e a produção” (p. 24). O fim da divi- A educação politécnica se inseria, por-
são técnica do trabalho, para Marx, também tanto, num contexto de ruptura com as remi-
“significará a “emancipação de todos os senti- niscências de uma educação de tipo artesanal,
dos e qualidades humanas (p. 42). A educação baseada nas particularidades da profissão. A
escolar, por sua vez, não pode ser a promoto- grande indústria trazia a universalização dos
ra das desigualdades socioeducacionais e da ofícios e é para esse aspecto que Krupskaia
divisão técnica do trabalho. chama a atenção quando defende que a edu-
A educação escolar, portanto, na socie- cação politécnica, promovendo uma formação
dade socialista, não deve ser organizada em técnica com características universais, visava
função da divisão técnica do trabalho, em que proporcionar aos trabalhadores uma qualifica-
a ciência e os instrumentos do pensar são pro- ção profissional segundo as exigências técnicas

608 António C. P. GONÇALVES. A concepção de politecnica em Moçambique:...


e científicas da produção. A esse respeito, profissionalização se faz sobre a base da união
Krupskaia ( apud Dore Soares, 2000) observou entre a teoria e a prática, entre o trabalho ma-
que a instrução politécnica contribuía para a nual e intelectual.
formação de jovens A despeito dos impasses que a propos-
ta educativa de Lênin e Krupskaia teve dentro
[...] bons trabalhadores para a diversidade do movimento operário russo, nela está laten-
de trabalhos, conscientes da conexão lógi- te o que há de fundamental do princípio de
ca desse trabalho, ligando-o de modo bas- politecnia: a necessidade de formação de ho-
tante estreito à aquisição de conceitos e de mens e mulheres conscientes do trabalho que
competência. (p. 367) desenvolvem no processo de transformação
social, sintetizando o que eles compreenderam
Na proposição de Krupskaia, contudo, a como unidade entre teoria e prática.
instrução politécnica não estava destituída da As reflexões de Marx em torno do con-
formação geral. Essa última, de base humanista, ceito de trabalho como atividade do homem de
visava formar jovens com competência política transformação da natureza e de si mesmo são
para serem dirigentes da sociedade. Assim, por elucidativas para fundamentar a afirmação se-
meio da formação politécnica, complementada gundo a qual o processo educativo fundado na
com a geral, seria possível consolidar a revolu- união entre a teoria e a prática, sob a base do
ção socialista e industrializar o país. trabalho, tem um alcance político, cultural e
A proposta educacional de Lênin e social e não apenas profissionalizante.
Krupskaia, no entanto, atravessou muitos percal- Com efeito, quando os trabalhadores
ços no seio do movimento operário. Conforme enfrentavam os desafios concretos da Revolu-
Jonhston (1989), Shulgin, por exemplo, admitiu ção Industrial – miséria generalizada, condições
que seria necessário preparar os trabalhadores degradantes da fábrica, o ambíguo sistema de
para o mundo produtivo e que a melhor estraté- contratação de menores –, Marx defendeu o
gia para isso seria a educação realizada na pró- sentido profissionalizante da incorporação do
pria fábrica. Essa proposição resultou na defesa, trabalho na escola. Para este, tratava-se de
por parte de Shulgin “da extinção da escola” preservar as crianças das condições fabris em
(Jonhston, 1989, p. 155). Para Blonsky (apud Dore que trabalhavam, “sem aprender qualquer tra-
Soares, 2000), na fábrica, “os trabalhadores esta- balho que os torne úteis mais tarde” (Marx;
riam livres da intromissão da cultura burguesa, mi- Engels, 2004, p. 74), porque quando estas
nistrada através do ensino geral-humanista, e ga- fossem consideradas velhas para o trabalho que
nhariam a cultura proletária” (p. 355). Com Stalin, exerciam, afirma Marx, “seriam despedidas da
que assumiu a direção do movimento operário tipografia, indo aumentar as fileiras do crime”
russo após a morte de Lênin, predominou a ten- (Marx; Engels, 2004, p. 75).
dência profissionalizante na educação escolar rus- No entanto, ao afirmar que o novo mé-
sa, em função das exigências desenvolvimentistas todo educativo de união entre o trabalho e o
(Dore Soares, 2000; Jonhston, 1989). ensino, proposto pelas escolas politécnicas e
Desse modo, no seio do movimento ope- agronômicas14, contribuía para elevar a produ-
rário russo, a instrução politécnica foi reduzida ção, Marx (1988), conforme escreve no Capital,
à simples preparação para o trabalho, segundo via no conceito de produção uma dimensão
a exigência da industrialização do país. Ademais,
14. Por razões que ultrapassam este trabalho, não se vai proceder à
o próprio conceito de politecnia perdeu o seu discussão sobre o conceito de marxismo-leninismo, bem como as posi-
significado originário, isto é, a desespecialização ções de várias correntes marxistas que vigoraram a partir do que os cien-
tistas políticos denominam de segunda Internacional. Existe uma imensa
ou polivalência, passando a ser entendido bibliografia a respeito e o leitor poderá encontrar análises profundas na
como profissionalização, justificando que essa colectânea organizada por Hobsbawm (1982).

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.3, p. 601-619, set./dez. 2007 609
política: era a produção da própria realidade A teoria, para aqueles dirigentes e educado-
social, por meio do trabalho humano, no sen- res, era a linha política do partido, qual seja, o
tido de atividade vital e transformadora. marxismo-leninismo. Além da linha política do
É pelo trabalho, no sentido de atividade, partido, a teoria que os dirigentes moçambicanos
que o homem transforma-se a si mesmo e a defendiam na educação escolar também foi toma-
natureza. Assim, o trabalho é a práxis humana da no sentido positivista: o conhecimento cientí-
(Petrovic, 2002), constitui a mediação e a sín- fico com o qual deveria ser combatida a supersti-
tese da relação entre a teoria e a prática. Se for ção e o obscurantismo da educação tradicional,
pela atividade humana que o homem transfor- que tomou conta da ciência (CEA, s/d, p. 3).
ma a si mesmo e a natureza na produção da No entanto, de que marxismo-leninismo a
realidade, seja social, política e econômica, para Frelimo falava, haja vista: primeiro, a complexi-
isso, é necessário que ele compreenda o proces- dade da definição do marxismo-leninismo em
so que desenvolve e que seja consciente deste. função do campo socialista terem emergido
Em que pesem essas indicações do alcan- várias tendências ideológicas, tais como “a orto-
ce político, social e cultural do princípio de liga- doxa, a revisionista e a sindicalista revolucioná-
ção entre a teoria e a prática, à sua época, Marx ria” (Waldenberg, 1982, p. 224)? Cada uma
não considerou a escola como importante frente de delas interpretou diversamente os princípios do
luta para a transformação social. Mesmo assim, ao marxismo, principalmente em relação às táticas
refletir sobre o trabalho como atividade vital e e estratégias para tomar o poder e consolidá-lo.
transformadora e sobre o princípio de união entre Segundo, o termo marxismo-leninismo é vago,
a teoria e a prática no processo educativo, deixou pois ele não pode ser tomado como expressão
importantes indicações para o movimento socialis- da homogeneidade entre o pensamento de Marx
ta na luta pela igualdade socioeducacional e pela e o de Lênin (Gruppi, 1996)?15
transformação social, em que a escola constitui Em relação ao marxismo-leninismo mo-
numa das principais frentes culturais dessa luta. çambicano, cabe referir que os dirigentes da
Posto isso, quando os dirigentes moçam- Frente afirmaram que ele proveio da própria ex-
bicanos afirmaram a originalidade do princípio de periência de luta, e definiram-no como “síntese
ligação entre a teoria e a prática, entre a escola teórica das ricas experiências das classes e po-
e o trabalho, num processo educativo que visa- vos oprimidos de todo o mundo, na sua luta
va à formação do Homem Novo revolucionário, secular contra os exploradores, pela instauração
eles teriam se demarcado do entendimento do de um novo poder” (Frelimo, 1977a, p. 92).
vínculo entre o ensino e o trabalho havido no Então, a Frelimo, transformada em partido po-
socialismo real e, assim, se aproximado da filosofia lítico de vanguarda, deveria guiar-se “pela sín-
de Marx? Responder a essa pergunta implica a tese da experiência da luta revolucionária do
análise do entendimento dos conceitos teoria, povo moçambicano” (Frelimo, 1983a, p. 6). En-
prática e trabalho na educação moçambicana. tretanto, a síntese da experiência, por sua vez,
era a própria Frelimo, uma vez que esta definiu
A fundamentação do conceito a si mesma e a luta por ela dirigida como
de politecnia em Moçambique
[...] culminar de um processo de resistências
Para expressar a vinculação entre a teo- seculares do povo moçambicano, conduzidas
ria e a prática, entre a escola e o trabalho no isolada e localmente contra o colonialismo
processo educativo, os dirigentes e intelectuais de quinhentos anos. (Mazula, 1995, p. 103)
moçambicanos, no âmbito da edificação de
uma sociedade socialista, interpretaram o con-
ceito de politecnia em várias acepções. 15. Relatório do Comitê Central ao III Congresso (Frelimo, 1977a).

610 António C. P. GONÇALVES. A concepção de politecnica em Moçambique:...


Além dessa explicitação, a Frente também cooperação internacional entre Moçambique e os
definiu o marxismo-leninismo como “ideologia países do eixo socialista, mas também dos jovens
científica da classe trabalhadora” (Frelimo, estudantes da ex-Universidade de Lourenço Mar-
1977a, p. 47), de cujas aspirações ela era por- ques, filhos da burguesia colonial que simpatiza-
tadora (Frelimo, 1983b). vam com o discurso marxista da Frente19. Segun-
A adoção do marxismo-leninismo e a do Brito (1995), eram jovens que detinham as
representação das aspirações da classe trabalha- competências técnicas, fundamentais ao funcio-
dora são apresentadas pela Frente como resul- namento das instituições estatais nas mãos da
tado de um processo natural . Documentos da Frelimo, e também eram eles “que manejavam
Frelimo destacam que os seus membros, reuni- com mais facilidade o discurso marxista” (p. 9).
dos na V sessão do seu Comitê Central (1972), Entretanto, é na aceitação de várias ten-
perceberam que havia uma similaridade entre dências teóricas, mas sem tomar uma posição em
os princípios que a Frente defendia e os do relação a nenhuma dessas tendências, que con-
marxismo-leninismo (Frelimo, 1977a)16. siste, de acordo com Brito (1995), a indefinição
Nessa reunião, em face da “necessidade e ambigüidade da Frelimo em relação ao marxis-
de aprofundar o conteúdo de classe e ideológi- mo. No entanto, os dirigentes moçambicanos
co da luta”, os intelectuais da Frente identifica- admitiam a coexistência de diversas tendências
ram a Frelimo “com os interesses das classes tra- marxistas, porque aqueles dirigentes estavam in-
balhadoras, e a linha política da Frelimo com a teressados na
ideologia científica dos trabalhadores” (Frelimo,
1977a, p. 46-47). Por isso, a Frelimo deveria […] dimensão modernizadora, comum às dife-
guiar-se “pela síntese das experiências da luta rentes correntes do marxismo que se confron-
revolucionária do povo moçambicano” (Frelimo, tavam de forma mais ou menos latente na
1983a, p. 6) e pela ideologia científica das clas- cena política moçambicana. Sendo prioridade
ses trabalhadoras: o marxismo-leninismo. a criação da nação, não havia desse ponto de
Em que pese essa tentativa dos dirigentes vista nenhuma razão para se fazer uma opção
da Frente explicarem a originalidade do seu mar- em favor de um único modelo. (p. 14)
xismo-leninismo, alguns analistas políticos de
Moçambique referem que a Frelimo era “indefini- Foi a partir de uma visão modernizadora
da e ambígua em relação ao marxismo” (Brito, eclética e ajudados pelos cooperantes do Leste-
1995, p. 10), e que ela fora influenciada pelas Europeu que os dirigentes moçambicanos elabo-
tendências marxistas maoísta e a stalinista soviética raram o Plano Prospectivo Indicativo (PPI), o qual
que preponderava no Leste-Europeu (Brito, 1995; preconizava a eliminação do subdesenvolvimen-
Nunes, 2000), além do marxismo iconoclasta do to do país em 10 anos (1980-1990)20.
canadense John Saul (Fauvet; Mosse, 2003)17. Desse modo, a teoria defendida pelos
A influência maoísta sobre as idéias de dirigentes moçambicanos na educação escolar
alguns dirigentes, como Samora Machel, segun-
16. John Saul foi professor de marxismo-leninismo na Universidade
do Martins (2001), decorreu da convivência de Eduardo Mondlane em Maputo.
Machel com os instrutores chineses que, duran- 17. Médico moçambicano, de ascendência portuguesa, foi o ministro da
te a luta de libertação, “estiveram na base de saúde na pós-independência. Participou, segundo a sua autobiografia, da
Luta Armada de Libertação. Nachingweia foi a base militar da Frente situ-
guerra da Frelimo em Nachingweia” (p. 313)18. ada na República da Tanzânia.
Seguindo sugestão daqueles instrutores, Machel 18. Atual Universidade Eduardo Mondlane em Maputo.
19. O PPI, segundo Mazula (1995), nunca foi executado.
“leu a quase totalidade das obras completas de 20. O discurso proferido em 1º de Maio de 1976, durante o qual Samora
Mao Tsé-Tung” (p. 313). Machel procedeu à mudança de nome da única instituição de Ensino Supe-
rior que havia em Moçambique. De Universidade de Lourenço Marques, a
A versão stalinista do marxismo da Frelimo, instituição passou a chamar-se Universidade Eduardo Mondlande em ho-
conforme Brito (1995), proveio não apenas da menagem ao primeiro presidente da Frelimo.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.3, p. 601-619, set./dez. 2007 611
era constituída por dois elementos: a linha po- cujo estudo e solução nos permitirão resol-
lítica do partido e o conhecimento científico. Ela ver situações idênticas que se verificarão
precisava, para formar o Homem Novo, da prá- inevitavelmente à escala nacional [...]. Fa-
tica, que era o trabalho no sentido de produção zendo-o, elevamos, pois as lições da prática
(Mazula, 1995). Nesse sentido, Machel (1976) à categoria de teoria, enriquecemos a nos-
chegou a afirmar que os trabalhadores dos pa- sa teoria revolucionária, instrumento indis-
íses socialistas “edificam, com o seu trabalho e pensável da revolução. (p. 1-2)
com sua consciência, a riqueza que permite ele-
var continuamente as condições de vida” (p. 3)21. Dirigindo-se aos professores, estudantes e
Com aqueles trabalhadores “desenvolvendo a funcionários da Universidade Eduardo Mondlane,
produção poderemos criar infra-estruturas que Machel (1976) lembrou-lhes que todo conheci-
permitam o arranque da nossa economia”, uma mento teórico, por mais que esteja na Universida-
vez que é o “trabalho que gera a riqueza” de, também resultou da prática.
(Machel, 1976, p. 4). Com esses exemplos, pretende-se elucidar
Assim, na educação escolar, seria por o uso variado dos conceitos teoria, prática e tra-
meio do trabalho – no sentido de produção, balho na educação moçambicana, os quais tam-
isto é, trabalho na horta da escola – que o bém receberam uma forte influência do maoís-
aluno estabeleceria o vínculo entre teoria e mo. Com efeito, é de Mao Tsé-Tung (1985) a
prática, segundo o objetivo das disciplinas de afirmação segundo a qual “o conhecimento
atividades manuais e laborais22. Essa vinculação começa pela prática, atinge o conhecimento
entre a teoria e a prática, iniciada nas Zonas teórico e volta à prática” (p. 88).
Libertadas, porém também estava fundamenta- Assim, os problemas da relação entre te-
da no positivismo: “a prática era o campo de oria e prática no ideário socialista de Moçam-
verificação das teorias e fonte de todo o verda- bique, dado o peso das diversas correntes te-
deiro conhecimento” (Johnston, 1989, p. 155). óricas que influenciaram a opção socialista ali
É nesse sentido, referindo-se à experiência edu- tomada, tornam frágil a afirmação dos dirigen-
cacional das Zonas Libertadas, que Machel afir- tes moçambicanos sobre a originalidade do seu
mou que, naquelas zonas, marxismo-leninismo e também dos princípios
pedagógicos que norteavam a educação mo-
[…] o estudo engloba as tarefas de produ- çambicana na perspectiva da politecnia. Ade-
ção, a teoria forja-se na prática e regressa mais, Luis Felipe assegurou que
na prática para se enriquecer com as expe-
riências da sua aplicação concreta. Nestes […] esse tema da educação politécnica, no
centros, os estudantes demonstraram que a sentido como os países socialistas a tinham
ciência nasce do trabalho e nele se desen- nunca foi profundamente aprovado aqui, [...]
volve e só tem sentido quando a aplicamos é verdade que o aluno para aprender tinha
no trabalho. (Frelimo, 1977d, p. 16) que aliar a teoria e a prática. Para nós, não
era pela razão da politecnia, que a gente
Anos antes da independência do país, nem sabia bem o que era, quer dizer, nunca
em face aos problemas que se verificaram no abordamos com propriedade o conceito da
seio da Frente 23, Machel (1974) lembrou aos
militantes e militares da importância da prática 21. Vide Manual de Atividades laborais (INDE, 1985).
22. Samora Machel aponta entre os problemas, o espírito de deixa andar,
como fonte do conhecimento: de vitória fácil, ou seja, havia, no seu entender, certo relaxamento no seio
dos militantes e militares da Frente.
23. Luis Felipe, ex-chefe do Gabinete do Sistema de Educação no ex-
[...] isto é mais importante quando o fenô- Ministério de Educação e Cultura de Moçambique. Entrevista concedida ao
meno em análise é uma experiência rica, autor da pesquisa, em Maputo, em 15 de Janeiro de 2005.

612 António C. P. GONÇALVES. A concepção de politecnica em Moçambique:...


politecnia, nós do Ministério da Educação Os dirigentes e intelectuais moçambicanos,
nunca abordamos esse tema [...]. 24 provavelmente, não teriam discutido com afinco
o conceito de politecnia porque lhes interessava
Se uma parte dos técnicos moçambicanos a rápida industrialização do país, segundo o PPI.
não tinha clareza do significado de educação Assim, deram grande importância ao ensino téc-
politécnica, prossegue Luiz Felipe, o mesmo se nico-profissional, tendo sido criada uma secretaria
verificou em relação à pedagogia socialista: de estado específica para esse nível ensino (Diplo-
ma ministerial 56/86).
[...] é verdade, mas o problema que se fala A educação politécnica, de acordo com
é o seguinte: nós nunca acreditamos que a Lei 4/83 de 23 de março de 1983, deveria ser
houvesse uma pedagogia socialista, primei- oferecida no ensino geral. Todavia, o princípio
ra coisa: [...] esse conceito são alguns pro- pedagógico de ligação entre a teoria e a prá-
fessores dos países socialistas que traziam, tica, entre a escola e o trabalho, também deve-
diziam da pedagogia socialista [...]. ria ser a base de formação no ensino técnico
profissional. Por quê?
Sendo assim, a que pedagogia socialista se A necessária ligação entre a teoria e a
referiam os organizadores do SNE? Por que a prática, entre a escola e o trabalho, no processo
pedagogia socialista, referida nos princípios uni- educativo moçambicano, tinha um alcance polí-
versais do marxismo-leninismo, é afirmada, nas tico-partidário. Essa ligação foi uma fórmula po-
Linhas Gerais do Sistema Nacional de Educação e lítica adotada pelos dirigentes moçambicanos para
na Lei 4/83 de 23 de Março, como um dos fun- fazerem com que as maiorias sociais “aderissem,
damentos desse Sistema Educacional? Teria sido inquestionavelmente, às orientações da Frente, ao
uma expressão imposta pelos técnicos do Leste- sistema político e à classe no poder” (Lopes,
Europeu, em função da condicionalidade da co- 1995, p. 163).
operação (Plank, 1993), sem que os intelectuais Entendendo a teoria como linha política
moçambicanos soubessem do que se tratava? do partido, ninguém deveria questioná-la.
São interrogações que ficaram sem resposta. Quem o fizesse, defende Machel, “deve-se com-
bater energicamente” (Frelimo, 1974, p. 11).
Limites da educação socialista Assim, os alunos deveriam mostrar na prática
moçambicana (realidade empírica) e na práxis (ação) que
estão de acordo com linha política e as orien-
Contrariamente ao entendimento marxiano tações da Frente, porque “o ídolo na escola é
e leniniano do conceito de politecnia no sentido a nossa linha política […], o forte é a nossa ori-
de desespecialização, os dirigentes e educadores entação que o Ministério da Educação dá. O
moçambicanos defenderam que a politecnia era a resto é trapos” (Machel, 1978, VI). Então, ques-
base da formação do Homem Novo, mas numa tionar as orientações da Frelimo era o sinôni-
perspectiva de especialização. Na concepção dos mo de ser “reaccionário, o inimigo do Povo”
dirigentes de Moçambique, o ensino colonial foi (Colaço, 2001, p. 97), propenso a ser enviado
deficiente em relação ao aluno porque “não o para os campos de reeducação onde, por meio
preparava para desenvolver uma atividade especi- do trabalho, deveria adquirir novas idéias para
alizada num setor de trabalho, mas para fazê-lo se integrar à nova sociedade (Ncomo, 2005).
brilhar nos salões luxuosos da burguesia, exibindo Assim, mediante a educação política, os alunos
aquilo a que pomposamente se chamava sólida deveriam ter o amor pela Frelimo e pelos seus
cultura” (Frelimo, 1977d, p. 7). Por isso, a Frente
defendeu a especialização como norte da nova 24. Não foi possível auferir, no Ministério dos Negócios Estrangeiros e da
educação orientada pelo conceito de politecnia. Educação, dados quantitativos dos moçambicanos que foram para esses países.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.3, p. 601-619, set./dez. 2007 613
dirigentes (MEC, 1979). educacional em relação ao período colonial. So-
Dado que a Frelimo afirmou que era repre- mente para exemplificar, deixou de haver dois sis-
sentante da classe trabalhadora, a ligação entre o temas educacionais em Moçambique e um maior
estudo e o trabalho no processo educativo tam- número de moçambicanos teve acesso à educação
bém visava formar nos alunos a mentalidade de escolar comparativamente ao período colonial
trabalhadores. Assim, por meio da prática, que (PNUD, 2000).
compreendia o trabalho no sentido de produzir Os dirigentes de Moçambique também as-
no campo da escola, pretendia-se levar o “estu- sinaram acordos de cooperação com países do
dante a desenvolver o gosto e o amor pelo tra- bloco socialista, com destaque para Cuba e a ex-
balho e os trabalhadores” (Mined, 1988/9, p. 57). União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS),
A ligação da escola com o trabalho pro- para onde foram enviados muitos moçambicanos25.
dutivo também deveria ser efetivada, levando o Naqueles países, estes deram continuidade aos seus
aluno a uma unidade de produção (fábrica), estudos secundários, técnico-profissionais e mes-
quer durante o período letivo, quer durante as mo superiores.
férias. Com isso, completava-se a educação para Em que pesem essas realizações, o princí-
o amor ao trabalho e ao trabalhador, pois alguns pio de ligação entre a teoria e a prática serviu de
alunos, sendo individualistas e elitistas, despre- critério para a seleção educacional. Com efeito, os
zavam as massas trabalhadoras (Machel, 1977). dirigentes defendiam “a igualdade de oportunida-
Com isso, a educação socialista moçam- des que tem qualquer cidadão de acesso a todos
bicana, orientada pelo conceito de politecnia, os níveis de educação, com base na introdução da
mostrou-se limitada quanto ao propósito trans- escolaridade obrigatória, gratuita, universal e laica”
formador defendido pelos dirigentes em função (MEC, 1980, p. 2). No entanto, em face da reivin-
do limitado entendimento e aplicação desse dicação popular pela educação, os dirigentes, sob
conceito na educação; da simples repetição do justificativa de conter e controlar a explosão esco-
discurso maoísta e stalinista, sem de fato de- lar, regulamentavam a limitação de acesso:
marcarem o âmbito dessas tendências marxis-
tas. O princípio de ligação entre a teoria e a O ministério da Educação, no quadro de uma
prática e entre a escola e o trabalho serviu para planificação central, definirá o número de
afirmar a ditadura do partido. alunos que poderão anualmente ingressar nas
escolas primárias, secundárias e superiores,
Contradições do discurso bem como o número, localização e tipos de
socialista escolas que deverão ser abertas em cada ano.
(Resolução 8/79 de 3 de julho de 1979, n. 2)
Além de a educação moçambicana ter se O dispositivo legal ainda refere que no âm-
mostrado limitada em relação ao propósito trans- bito das tarefas revolucionárias, os grupos
formador, o discurso socialista que acompanhou de vigilância deveriam zelar para que os
essa educação foi contraditório. Os dirigentes alunos que terminassem a quarta série, mas
moçambicanos defendiam, entre vários ideais so- sem poderem continuar com os estudos,
cialistas, a igualdade socioeducacional, razão ‘não afluíssem aos centros urbanos’. (Reso-
por que criticaram o elitismo do sistema de en- lução 8/79 de 3 de julho, n. 3)
sino colonial e propuseram o princípio de liga-
ção entre a teoria e a prática no processo Desse modo, os dirigentes do partido e
educativo, cuja tradução estaria no caráter do Estado, ao mesmo tempo em que defendi-
politécnico da educação. am a massificação da educação, impediam, nos
Não se pode afirmar que não houve reali-
zações significativas em Moçambique no âmbito 25. No Brasil, seriam as secretarias municipais de educação.

614 António C. P. GONÇALVES. A concepção de politecnica em Moçambique:...


moldes do colonizador, que as maiorias sociais pedagógico de ligação entre a teoria e a prá-
afluíssem aos centros urbanos onde se localiza- tica, segundo entendido pelos dirigentes:
vam as escolas com níveis de ensino além do
primário. De modo a melhor controlarem o [...] comportamento sócio-político demons-
afluxo das maiorias do campo para a cidade, trado; anos de interrupção de estudos por
sub a justificativa da guerra civil (período de motivos de dedicação à causa da Recons-
1977 a 1992) e vigilância sobre os inimigos da trução Nacional. (Diploma Ministerial 14/81,
revolução, foi instituída a guia de marcha: Capítulo II, artigo 6, alíneas a e f)
documento emitido pelos grupos dinamizadores
da residência permanente do viajante, era con- Em relação ao nível superior, além da
dição para o deslocamento quer do campo para seleção feita pelas direções distritais de educa-
a cidade como no sentido inverso. Nela cons- ção26, também deveria observar-se o critério de
tavam os dados completos, os motivos da via- militância, ou seja, “a atitude permanente do
gem, o prazo de estadia e a data de retorno. militante em relação às massas” (Buendia Gómez,
Ainda em nível educacional, enquanto 1999, p. 250). Machel (apud Buendia Gómez,
para as maiorias sociais era regulamentado o 1999) justificou o critério com base no princí-
limite de acesso à educação em condições de pio pedagógico de ligação entre a teoria e a
igualdade, além das escolas do partido destina- prática. Para o dirigente moçambicano, era “justo
das às elites dirigentes, o Ministério da Educa- que quem avançasse para níveis mais altos de
ção e Cultura defendeu, como critério para in- formação tivesse dado provas que manteria a sua
gresso e continuação dos estudos em níveis capacidade científica e cultural ao serviço dos
mais elevados, segundo o princípio pedagógico trabalhadores” (p. 250). Assim, o acesso aos
de ligação entre a teoria e a prática, o grau de níveis mais elevados de escolarização constituía
militância e engajamento na revolução (Diploma um prêmio pela militância política, seja mediante
ministerial nº 14/81 de 18 de fevereiro de 1981). o cumprimento das normas do Partido, seja pela
O dispositivo legal regulamentava o curso denúncia contra os inimigos do povo, e de acor-
noturno que, em princípio, face ao grau de anal- do com o critério de classe (Mazula, 1995).
fabetismo das maiorias sociais, deveria estar a Com isso, ficam evidentes as contradi-
serviço dessas maiorias, pois as médias de idade ções de um discurso socialista que defendeu a
eram incompatíveis com as médias estabelecidas politecnia, como base para a constituição de
para o ingresso no curso diurno de ensino. uma escola única que rompesse com o dualismo
Assim, conforme aquele dispositivo legal, da escola colonial. Um discurso socialista que
tinham prioridades de ingresso no curso notur- afirmava a igualdade socioeducacional e o di-
no, segundo a ordem decrescente: reito de os trabalhadores ascenderem aos mais
altos níveis de escolarização. No entanto, o
1. Membros de estruturas de direção do par- mesmo discurso, apoiado num entendimento
tido nos diversos escalões; sui generis do princípio de ligação entre teoria
2. Forças de defesas e de segurança; e prática, escola e trabalho, procedeu à seleção
3. Sectores prioritários da economia nacional, socioeducacional.
especialmente as empresas sob controle do É no âmbito dessa seleção, justificada em
Conselho de ministros; função da necessidade da formação de força de
4. Outras empresas;
5. População em geral. 26. O acesso ao nível elementar era feito após a conclusão das cinco
primeiras séries de escolarização; ao nível básico, após a conclusão do
ciclo preparatório (sete anos); e ao nível médio, em caso do desejo de
O Ministério da Educação justificou essa interrupção do primeiro ciclo do ensino secundário geral (10 anos de es-
seleção socioeducacional apoiado no princípio colaridade) ou quando indicado pela direção da escola.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.3, p. 601-619, set./dez. 2007 615
trabalho qualificada para a efetivação do PPI que introduzir a prática de pagar menos”
(Mazula, 1995) e do professorado para as tarefas (Frelimo, 1983b, p. 67). Com essa práxis, argu-
educacionais, que a escola socialista moçambicana mentaram os dirigentes moçambicanos,
foi (e ainda continua) dualista: de um lado, o
ensino geral e, de outro, o técnico-profissional, [...] caminharemos seguramente para a
desde o nível elementar até o médio. materialização do princípio socialista de
Com esse dualismo, a educação socialista cada um segundo as suas capacidades e a
moçambicana promoveu a divisão técnica do tra- cada um segundo o seu trabalho. (Frelimo,
balho, pois não ofereceu a todos os moçam- 1983b, p. 67)
bicanos as mesmas oportunidades de adquirirem,
na mesma escola, as bases técnico-científicas Se cada um teve acesso à escola dife-
para transformarem a natureza e a sociedade, rente, como exigir a mesma capacidade e qua-
segundo defenderam os dirigentes e intelectu- lidade de produção? Eis a contradição de um
ais moçambicanos quando propuseram a poli- discurso socialista.
tecnia como base do processo de formação do
Homem Novo. Considerações finais
Numa situação de privilégios, “os filhos
das elites dirigentes e de certas elites bem con- Afirmou-se, na introdução do presente tra-
ceituadas” (Mazula 1995, p. 139), a partir da balho, que se pretendia fazer uma análise da fun-
influência e das intervenções dos pais no parti- damentação do conceito de politecnia presente no
do e no Estado, não eram afetos ao ensino téc- projeto socialista para a educação moçambicana,
nico-profissional. Continuavam os seus estudos apresentado pela Frelimo, no âmbito da edificação
no ensino secundário geral que dava o acesso à do socialismo em Moçambique.
universidade, “principalmente nos cursos de Da análise da fundamentação do conceito,
medicina, engenharia e direito” (Mazula, 1995, inferiu-se que o entendimento deste foi limitado e
p. 139). Eram os filhos dos camponeses e dos que o discurso socialista que acompanhou essa
operários que, em nome do cumprimento das educação foi contraditório. Não existe uma ordem
tarefas revolucionárias e segundo o princípio de de fatores que, por si só, pode explicar os limites
ligação entre a teoria e a prática, deveriam dos objetivos emancipatórios e transformadores da
aceitar freqüentar o ensino técnico-profissional educação moçambicana e da contradição do dis-
e os cursos de magistério. curso socialista que acompanhou essa educação.
Em nível de discurso socialista, os diri- A coexistência de diversas tendências marxistas e
gentes ainda defendiam, como um dos princí- a não-compreensão do próprio marxismo, por uma
pios universais do marxismo-leninismo, que a boa parte da elite dirigente moçambicana, talvez
“cada um segundo as suas capacidades, e cada ofereça uma chave compreensiva do processo po-
um recebia segundo o seu trabalho” (Frelimo, lítico e socioeducacional moçambicano. Por mais
1977a, p. 74). que esses dirigentes buscassem afirmar a origina-
O trabalho de cada um, feito segundo as lidade do seu marxismo e também dos princípios
suas capacidades, era remunerado por meio de pedagógicos que orientavam a educação escolar
salário. Na definição dos salários, os dirigentes moçambicana, essa originalidade não existiu.
argumentaram que se “deve aplicar o princípio Assim, a fundamentação do conceito de
de pagar mais a quem trabalha mais, a quem politecnia teria resultado da influência do mar-
realiza melhor trabalho e a quem atinge maio- xismo positivista de Mao Tsé-Tung, presente em
res índices de eficiência e de produtividade” muitos discursos de Samora Machel. Ademais, a
(Frelimo, 1983b, p. 66). Assim, para quem pro- falta de profissionais da Educação altamente
duzir menos ou com fraca qualidade, “temos qualificados, logo após a independência, talvez

616 António C. P. GONÇALVES. A concepção de politecnica em Moçambique:...


esteja na origem da ausência de estudos sobre alista que acompanhou essa educação, espera-
os fundamentos pedagógicos e filosóficos da se, entretanto, que a atual retomada do concei-
educação moçambicana, tendo resultado na to de politecnia, como filosofia educacional
adopção de métodos e filosofias educacionais dos Institutos Superiores Politécnicos recente-
propostas pelos parceiros de cooperação, nesse mente criados (2004), no âmbito da expansão
caso, os especialistas do Leste-Europeu. do Ensino Superior público, seja acompanhada
Em que pesem os limites da educação de estudos sobre o mesmo conceito e a sua
moçambicana orientada pelo princípio de pertinência na educação moçambicana, que
politecnia e as contradições do discurso soci- ainda está em busca dos respectivos rumos.

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Recebido em 01.06.06
Aprovado em 04.09.06

António Cipriano Parafino Gonçalves, doutorando em Educação na UFMG, professor de Filosofia da Linguagem e Filosofia
da Educação na Universidade São Tomás de Moçambique (Maputo) e de Filosofia e Metodologia de Trabalho Científico na
Universidade Técnica de Moçambique, pesquisa na área de Políticas Públicas e Educação, com interesses nas relações entre
trabalho e educação, filosofia e educação e políticas de Ensino Superior.

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