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(Dulce Pandolfi)
Introdução
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Doutora em Linguística/Análise de Discurso pela UNICAMP. Professora do Programa de Pós-Graduação
em Linguística da UNEMAT, vinculada à linha de pesquisa: Estudos de Processos Discursivos. Membro do
grupo de pesquisa Cartografias da Linguagem (UNEMAT) e Mulheres em Discurso (UNICAMP). Email:
silvianunes@unemat.br.
A partir de tais reflexões, formamos em 2013 um grupo de pesquisa com a
participação de alunos do Mestrado em Linguística e da Graduação dos cursos de Letras
e História da UNEMAT, para discutir a problemática da mulher, em seus aspectos gerais,
inicialmente. No grupo, as questões de gênero e o modo como um discurso sobre a mulher
circulava na mídia, dentro das atuais configurações sociais, foram discutidas. Orientamos,
no mesmo ano, uma pesquisa de Iniciação Científica acerca do discurso sobre a mulher
no jornalismo do século XIX, a qual apontou algumas compreensões consistentes sobre
a condição da mulher naquela época, em relação ao modo como o jornal enunciava sobre
o comportamento da mesma, sob a injunção do discurso da família patriarcal,
especificamente em relação ao casamento.
Nosso recorte incide sobre uma repetição que identificamos nos testemunhos de
mulheres que ao serem indagadas se sofreram violência sexual durante as sessões de
tortura respondem que não sabem ou não acreditavam que tal prática fosse uma violência
sexual.2
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Mais adiante descreveremos as condições de produção da tomada dos testemunhos.
Se o “real” pode ser pensado como um “desencontro” (algo que nos
escapa como o sobrevivente o demonstra a partir de sua situação
radical), não deixa de ser verdade que a linguagem e, sobretudo, a
linguagem da poesia e da literatura, busca este encontro impossível.
Vendo o testemunho como o vértice entre a história e a memória, entre
os “fatos” e as narrativas, entre, em suma, o simbólico e o indivíduo,
esta necessidade de um pensamento aberto para a linguagem da poesia
no contexto testemunhal fica mais clara. (SELIGMANN-SILVA,
2010, p. 06)
A estudiosa nos propõe que, na leitura das obras de Freud, Benveniste aponta a
existência de uma relação de motivação e não de causalidade como estruturante da
descoberta psicanalítica e mostra como a estrutura do mito, da poesia e da negação são
analogias importantes para a compreensão do funcionamento da linguagem no modo
como o conflito psíquico pode se materializar. Já Hyppolite põe em causa, conforme a
autora:
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Muitos discursos podem ser compreendidos nos testemunhos disponibilizados na página da CNV, desde
o funcionamento sobre as práticas de guerrilha, a militância de gênero (inclusive sobre a
homossexualidade), os estudos feministas, os estudos teóricos sobre o socialismo-comunismo, etc.
Recortamos a primeira sequência discursiva que se refere ao testemunho de uma
das depoentes, tomado em São Paulo, em 03/05/2013:
A pesquisadora explica:
A gente já está supondo que você sofreu violência sexual ou algum tipo de violência,
nessa sua primeira prisão, nos quinze dias em que você foi torturada.
O que vocês estão falando como violência social4: estupro, esse tipo de coisa?
Fiquei nua no pau de arara, levei choque na vagina. Recebi muita ameaça de que eles
iam me estuprar com arma. Mas não chegaram a cumprir, não. E quando me
penduraram, me ameaçaram também de estupro, mas não chegaram a cumprir, não.
Quando me penduraram, me ameaçaram também de estupramento, mas não se
concretizou. E desnudamento forçado. (...) Eles amordaçavam para você não gritar
quando levava choques. Me bateram no rosto com tapas. Violência física não é uma
violência sexual.
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Compreendemos aqui um deslize, ou na transcrição do testemunho, ou mesmo na fala da depoente,
que aponta para um ato falho, contudo não nos detivemos na análise dele, embora seja nosso desejo
retomá-lo para compreensão.
Tem só uma coisa aqui, desculpa insistir nesse ponto, mas, é que eu preciso especificar
algumas coisas sobre a... (... ) mas é só, bem pontual sobre isso, você disse que na tortura,
na OBAN, você levou choque, você chegou a levar choques nas genitálias?
A mulher responde: Não sei, se eu te falar que sim, que não, não vou estar te
falando a verdade, eu não sei.
A mulher responde:
Era usual, sim, sim, eram, assim... É horrível, fez muito na cadeira do dragão, sei lá,
risco para todos os lados, você vira uma coisa só, é simplesmente isso, então eu não sei
te falar.
Eu não me lembro o que eu respondi, mas primeiramente eu respondi que não. Que eu
fui torturada de várias formas, mas que violência sexual não. Ele me olhou assim. Então
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Órgão histórico de repressão aos movimentos sociais e populares, o DOPS foi também centro de tortura
durante a ditadura do Estado Novo, retomando essa prática no regime militar. Nos dois períodos
ditatoriais, as vítimas preferenciais eram os militantes de partidos de esquerda. Com a centralização da
repressão política pelos DOI-CODIs, a partir de 1969, passou a ter um papel secundário, mas não deixou
de ser um porão da repressão, onde sevicias hediondas eram praticadas. O DOPS ficava na rua João
Negrão,773- Centro. Depois foi transferido para a rua Ermelino de Leão. (Disponível em
http://www.forumverdade.ufpr.br/caminhosdaresistencia/a-repressao/departamento-de-ordem-
politica-e-social-dops/)
pronto, era isso. É por isso que eu não lembro, sei lá... Eu sei lá. Eu acho que eu disse
que não, até porque há poucos anos atrás eu achava que não tinha sofrido. Porque eu
achava que violência sexual era assim estupro direto, violência direta, o cara enfiando o
pênis dentro de você. Se não for isso, então, eu não sofri. Tem tanta gente que sofreu,
né? Tem companheiras que foram tão violentadas. Então, eu não sofri.
SD1: Não sei, se eu te falar que sim, que não, não vou estar te falando a verdade, eu não
sei.
SD2: Eu sei lá. Eu acho que eu disse que não, até porque há poucos anos atrás eu achava
que não tinha sofrido. Porque eu achava que violência sexual era assim estupro direto,
violência direta, o cara enfiando o pênis dentro de você. Se não for isso, então, eu não
sofri.
SD3: (...) mas não se concretizou. Violência física não é uma violência sexual.
Em: “Eu sei lá. Eu acho que eu disse que não, até porque há poucos anos atrás
eu achava que não tinha sofrido.” “Se não for isso, então, eu não sofri.” “Então, eu não
sofri.”), vemos constituída uma posição de sujeito que oscila e nega a violência sexual
sofrida, mostrando o impossível - insuportável de se dizer em relação a prática da
rememoração que é solicitada pela CNV. O pré-construído de “dever relatar” o que a
CNV objetiva apurar como verdade sustenta as condições desse testemunho direcionando
o que deve ser dito, mas apontando para o que não se pode dizer.
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A noção de pré-construído designa o que remete a uma construção anterior, exterior, mas sempre
independente, em oposição ao que é “construído” pelo enunciado. Trata-se, em suma, do efeito
discursivo ligado ao encaixe sintático (PÊCHEUX, 1997, p.99).
Em “(...) mas não se concretizou.” “Violência física não é uma violência
sexual.”, podemos encontrar uma paráfrase possível se propusermos o seguinte
encadeamento sintático: não se concretizou, porque violência física não é violência
sexual. A explicativa produzida por esse procedimento parafrástico aponta para uma
assertiva que se formula silenciando o que tem a ver com a violência sexual: sofri somente
violência física. O impossível e o insuportável de se dizer em relação a um evento
traumático mais uma vez marca a posição sujeito testemunhal.
Contudo, retomando Benveniste que diz que “algo” sempre corresponde àquilo
que se enuncia... “algo e não o nada”, vemos o modo como a língua em sua incompletude
constitutiva mostra a formulação linguística da negação condensada nas oscilações,
oposições, disjunções, o que nos leva a compreender que a posição-sujeito testemunhal
no efeito de retorno (lembrança) ao que está pretensamente esquecido pela sua
insuportabilidade de rememoração, torna visível um efeito de “aversão à identificação”
com tais práticas (conf. Freud), visto que ao tentar falar sobre esse acontecimento, há em
curso um reconhecimento, por um efeito contraditório, daquilo que ficou recalcado, mas
latente, e mesmo que, momentaneamente, nessa posição, haja a suspenção desse
recalcado instituído pela negação, não há um processo de identificação com o que
aconteceu. Por isso a impossibilidade de dizer sobre esse acontecimento como requer a
CNV, ou seja, como verdade. Por isso um modo de dizer que ao negar, instaura um
indizível.
Desse modo, a noção de real do testemunho, conforme nos traz Mariani (2016),
“sinaliza no campo da fala e da linguagem, a impotência das palavras e um indizível na/da
apreensão dos objetos”, pois há, segundo a autora, “(...) um fracasso da linguagem em
falar de um “todo vivido”, uma vez que a linguagem é insuficiente e apenas faz borda na
tentativa de dar conta do real da experiência, ou evento, ou acontecimento que mergulha
com violência o sujeito” (MARIANI, 2016, p. 55).
Referências
FREUD, Sigmund. (1910). Sobre o sentido antitético das palavras primitivas. Obras
completas vol. 9. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2013, p. 302 -
312.
______. (1925) A negação. Obras completas vol. 16. Trad. Paulo César de Souza. São
Paulo: Cia. das Letras, 2011, p. 275 – 282.
Sites consultados:
Comissão Nacional da Verdade: http://www.cnv.gov.br/
Armazém Memória (Brasil Nunca Mais, Memórias Reveladas e Memorial Anistia):
http://armazemmemoria.com.br/
Memórias da Ditadura: http://memoriasdaditadura.org.br/
Documentos Revelados: http://www.documentosrevelados.com.br
Resistir é Preciso: http://resistirepreciso.org.br/