You are on page 1of 21

TRADUÇÃO DO NOVO MUNDO: TEXTO CONFIÁVEL OU PROPAGANDA IDEOLÓGICA?

TRADUÇÃO DO NOVO MUNDO:


TEXTO CONFIÁVEL OU PROPAGANDA
IDEOLÓGICA?

O leitor interessado nas publicações da Sociedade Torre de Vigia (STV, daqui para frente),
com grande probabilidade, se deparou por algumas vezes com a seguinte questão: A
Tradução do Novo Mundo das Escrituras (TNM) é confiável?

Pergunta geralmente respondida com aspereza por apologistas não-simpatizantes ao grupo,


cuja tendência é elencar de imediato uma série de textos que julgam mal-traduzidos na
referida obra. Em lado oposto, publicações repetidas, com reformulações pela STV afiançam
a qualidade da TNM em relação às traduções bíblicas convencionais.

Assim, a dedicação exclusiva à apresentação de textos polêmicos da TNM, para indicar


possíveis textos problemáticos, parece não surtir o efeito desejado, porque esse tipo de
abordagem tende a não surpreender, já que os contrários a ela conhecem muitos de seus textos
controversos e os favoráveis também os conhecem – sendo esses últimos, por intermédio da
literatura jeovista, treinados a lidar com os tais textos problemáticos, a fim de enfraquecer a
contundência do argumento contrário à obra.

Também, a propaganda ideológica jeovista em favor de sua tradução bíblica


reconhecidamente polêmica faz dessa contestada tradução uma reverenciada obra pelas TJs.
Isso exige de todo estudioso buscar por entender as razões de seus adeptos julgarem confiável
uma obra amplamente questionada.

Declarando que há uma acentuada propaganda ideológica jeovista em torno da TNM, o


fazemos entendendo o termo “ideologia” como indicação de processo de ocultamento da
realidade, que no caso, evita ao fiel outra percepção a respeito da obra – procedimento
rotineiro nos grupos manipuladores que têm em comum o uso de mensagens dos mais
variados gêneros, objetivando, conforme Garcia, ao tratar sobre mecanismos de manipulação,
“evitar que os receptores possam perceber a realidade por outro prisma que não aquele que
lhes é proposto” (GARCIA p.53)

Na prática da Organização, a propaganda subsiste no empenho de evitar que leitores da TNM


se deem conta de que as particularidades dessa tradução não advêm de exatidão textual dela,
mas de leituras questionáveis de textos cujo conteúdo em língua original a STV rejeita.
1
Damião Bonfim
TRADUÇÃO DO NOVO MUNDO: TEXTO CONFIÁVEL OU PROPAGANDA IDEOLÓGICA?

Para que melhor compreendamos os efeitos dessa propaganda, é preciso partir do pressuposto
comum às TJs: há qualidades nessa tradução que não devem ser ignoradas. Somemos a
esse pressuposto, porém, ponderações acerca de seus eventuais vícios, para que o leitor não
seja tomado por uma percepção exclusivamente negativa ou favorável da obra, a fim de não
ter comprometida sua análise objetiva a respeito dela.

Das qualidades pontuais da TNM, edição revisada

A linguagem adotada na TNM, edição revisada (2015), se distancia do arcaísmo exacerbado


de outras traduções prestigiadas no mercado nacional, cujos textos costumam apresentar
linguagem estranha ao leitor comum, em favor de suposta elegância e/ ou fidelidade textual
que, por outro lado, além de dificultar a interpretação do texto, dificulta o mais elementar: a
simples compreensão do que se lê. Algo pouco sentido nessa nova versão da TNM.

De fato, uma das qualidades de uma boa tradução, nas lições de Katherine Barnwel, é ser
natural, isto é, “não deve soar “estrangeira”. Nem deve parecer uma tradução, mas a fala
normal, cotidiana de um falante nativo da língua.” (p.27). É como se o tradutor, ao executar
seu ofício, devesse sempre se perguntar: “A linguagem usada na tradução é aquela que os
falantes da língua [para a qual se traduz] usam?” (p.28).

Tomemos como amostra, uma passagem mateana, assim traduzida pela Almeida Corrigida e
Fiel (ACF), de 2007: “E por que reparas tu no argueiro que está no olho do teu irmão, e não
vês a trave que está no teu olho?” (Mt 7,3). O que é “argueiro”? – A TNM (2015), porém,
assim verte o mesmo texto: “Então, por que você olha para o cisco no olho do seu irmão, mas
não percebe que há uma trave no seu próprio olho?”.

A tradução apresentada na TNM, para Mt 7,3, ao contrário da adotada na ACF, evita o uso de
palavras estranhas à comunicação cotidiana e apresenta um texto de fácil compreensão,
porque nesse versículo adota uma tradução de equivalência dinâmica, aquela realizada, nos
dizeres de Wagner, “considerando os destinatários atuais do texto e as particularidades do
seu idioma” (WAGNER, 2001, p. 30),

No geral, porém, a TNM é melhor classificada como paráfrase1 – o que as Tjs negam
categoricamente: “Não se trata de livre paráfrase, em que os tradutores omitem pormenores
que consideram não importantes e acrescentam ideias que creem ser úteis” (RACIOCÍNIOS
À BASE DAS ESCRITURAS, p.395). Defesa discutível, promovida pela STV, mas que em
nada interfere na percepção de que a tradução do versículo supracitado, ainda assim, apresenta
texto mais natural que os de diversas edições de Bíblia bem conceituadas.

Outro ponto positivo da TNM: os indícios de nela procurar-se não desprestigiar de todo as
pesquisas de caráter crítico-textuais. O que favorece a apresentação de um texto bíblico
menos conservador e mais seguro, e que justifica a omissão de algumas passagens
encontráveis em edições conservadoras da Bíblia, a exemplo do famoso “coma joanino”
Refiro-me àquele texto que consta das bíblias traduzidas a partir do chamado Textus

1
Paráfrase é o refraseamento de um texto sem que exprima o seu sentido literal ao ser traduzido. Em alguns
casos, a paráfrase altera o sentido real do que o autor originalmente exprimiu.
2
Damião Bonfim
TRADUÇÃO DO NOVO MUNDO: TEXTO CONFIÁVEL OU PROPAGANDA IDEOLÓGICA?

Receptus2 (sec. XVI), pelo qual foram acrescentadas em 1Jo 5,7 observações de caráter
doutrinário. Mas que, conforme destaca Paroschi, citando Metzger, são oriundas de
comentário tecido à margem de algum manuscrito, por um copista, sendo indevidamente
incorporadas ao texto grego, e que os mais antigos e melhores manuscritos encontrados não
apresentam (PAROSCHI, 1993, p. 100).

Consideremos ainda, a abundância de textos remissivos que ocupam a coluna do meio em


cada página do texto bíblico traduzido, e que ajuda o leitor a encontrar passagens que de
alguma forma se relacionam entre si, ou que são relacionadas pela STV, a fim de melhor
fundamentar sua doutrina a seus fieis, acompanhadas de notas de rodapé que apresentam
outras possibilidades de tradução de um mesmo texto. Outrossim, a indicação de variantes
textuais ou informação da não-ocorrência de algum(ns) versículo(s) encontrado(s) nas versões
conservadoras da Bíblia, omitido(s) nos melhores manuscritos, são recursos de alta relevância
para o estudo comparativo das Escrituras.

A título de exemplo, para ilustrar o empenho por apresentar um texto supostamente de alta
perícia, reproduzimos a p. 1.417, da TNM, ed. revisada de 2015:

Observe o cuidado dos editores da TNM em indicar outras traduções possíveis para um
mesmo vocábulo ou versículo (1ª coluna) ; as notas remissivas (coluna do meio), bem como a
indicação de perícope3 possivelmente oriunda de glosa4 (2ª coluna).

Da propaganda de apelo ideológico, feita em torno da TNM

As características acima pontuadas podem fazer parecer que a TNM é uma edição altamente
confiável e de qualidade, resultado de um trabalho criterioso e imparcial que a coloca nos rol
das melhores traduções de bíblia do mundo. Entretanto, excetuados os círculos jeovistas, que

2
Textus Receptus significa “Texto Recebido”, e se refere a uma série de impressões de manuscritos gregos do
Novo Testamento que foram a base para a tradução de diversas versões da Bíblia, inclusive da tradução feita
por João Ferreira de Almeida, adotada pela Sociedade Bíblica do Brasil.
3
Termo técnico a indicar um trecho de uma passagem com princípio, meio e fim identificáveis.
4
Glosa, na crítica textual, é, entre outras coisas, referência a passagens inseridas a posteriori, sob alguma
influência externa ao texto.
3
Damião Bonfim
TRADUÇÃO DO NOVO MUNDO: TEXTO CONFIÁVEL OU PROPAGANDA IDEOLÓGICA?

tendem a exaltar a discutida obra, estimulados pela propaganda interna corporis5, diversas são
as objeções a ela, que vão desde uma suposta parcialidade na tradução até a impossibilidade
de averiguar o gabarito de seus tradutores.

Assim, aquela tentativa de aproximação ao trabalho da crítica-textual, acompanhada da ideia


discretamente difundida entre as TJs de que somente a TNM é realmente confiável, parecem
motivar a adequação de seu texto ao credo do grupo que a cultiva. Isso a coloca em descrédito
e justifica a tese comum de que “a tradução da Bíblia realizada pelas Testemunhas de Jeová
(A Tradução do Novo Mundo) baseia-se em uma seleção arbitrária de leituras de
manuscritos segundo critérios dogmáticos (o preconceito do anônimo Comitê de tradutores)
e não segundo os critérios científicos da crítica textual...” (ARENS, 2007, p. 148).

Em ato preventivo e reativo, muitas são as publicações jeovistas que propagam a ideia comum
de que a TNM é uma excelente tradução. Ideia satisfatória ao público para a qual é destinada.
Até porque, dificilmente um não-partidário das TJs se interessará por conhecer as razões que
fazem de uma Bíblia que não utiliza, uma obra não recomendável.

De fato, os elogios propalados pela STV à TNM tendem a não atrair leitores de outros
segmentos a terem uma edição dela, nem exercem influência positiva nesses leitores, no
sentido de conhecê-la melhor, nem a tornam referência entre os catedráticos escriturísticos.

Ainda assim, mensagens de apoio à contestada tradução são comuns nas publicações
jeovistas. “Uma tradução da Bíblia que toca o coração” (A Sentinela (Fácil de Ler,
15/12/2015, pp 9-14); “A Tradução do Novo Mundo é apreciada por milhões no mundo”
(A Sentinela, de 15/11/2001, pp 7-9); “Uma tradução notavelmente boa” (A Sentinela,
01/12/2004, p. 30). Apenas alguns exemplos para ilustrar como há intensa propaganda
positiva da TNM nas publicações que circulam entre as TJs.

A literatura citada acima, se pouca atenção recebe do público em geral, é bem prestigiada
pelos membros do grupo, que se habituando a ler coisas do tipo: “uma tradução confiável”,
“emocionante”, “exata” e “elogiada pelos eruditos”, têm despertada a impressão de que
dispõem da melhor tradução de bíblia disponível no mercado. Impressão robustecida pela
notória técnica da repetição6 de que faz uso a STV em suas publicações.

O uso intensivo de publicações que visam ressaltar as qualidades da TNM evidencia o quanto
a comunicação é importante nesse processo cuja finalidade é também evidente: transmitir uma
imagem positiva de uma obra de conteúdo questionável. Um processo de manipulação
ideológica, pelo uso dos meios de comunicação, “exclusivamente para a difusão de ideias
que lhes são favoráveis...” (GARCIA, p. 55)

Por isso, supostos erros de tradução e eventuais correções na TNM são menos sentidas pelo
leitor jeovista, porque esse é preparado ideologicamente para aceitar qualquer tradução que
lhe seja orientado seguir (ainda que não se dê conta). E isso tende a ser pouco compreendido
pelos que reconhecem erros julgados como gritantes na TNM, mas que tomam como ponto de
partida para essa conclusão o pressuposto de que nada justifica essa ou aquela deturpação, em
vez de se ocuparem de refletir e esclarecer por que as TJs aceitam com naturalidade as
reformulações doutrinárias promovidas pelo grupo.

5
De caráter interno.
6
Procedimento de manipulação de massas, que persiste na reiteração de uma mesma ideia, para fins de
assimilação de conteúdo de maneira irrefletida por essas.
4
Damião Bonfim
TRADUÇÃO DO NOVO MUNDO: TEXTO CONFIÁVEL OU PROPAGANDA IDEOLÓGICA?

Nesse contexto de descrédito em que é inserida a TNM, um serviço midiático dedicado a


construir uma imagem favorável àquela tradução torna-se compreensível, já que a propaganda
positiva é um recurso poderoso para mexer com a opinião pública e reduzir os efeitos
negativos de uma imagem desfavorável perante o público. O problema é que a força dessa
propaganda favorável à TNM somente é sentida no círculo que já a defende e sustenta que
nela simplesmente consta o texto fiel ao pensamento e expressão do autor sagrado. E isso,
inegavelmente, torna esse propósito jeovista deficiente e vulnerável.

Da necessidade da STV de divulgar que a TNM é confiável

A pouca receptividade da TNM nos círculos cristãos em geral e a praticamente indiferença


com que é tratada no seio acadêmico são, sem dúvida, as razões fundamentais de as TJs,
independentemente do tempo de fidelidade aos ensinos de sua Organização, se depararem
reiteradamente com publicações que objetivam assegurar que a TNM é confiável.

Como estratégia para impregnar a ideia de que a TNM é uma tradução confiável, a
Organização jeovista repagina publicações periodicamente, para sedimentar um tipo de
consciência sobre assuntos que lhe são caros (quem é Jesus; se a Trindade é bíblica; o nome
de Deus e, é claro, o grau de perícia da TNM), tática de afirmação junto a seus partidários,
para despertar no fiel um sentimento de segurança e certeza de que fez a opção correta ao
ingressar no grupo.

Além desse apelo interno, o objeto dessa discussão tende a ser retomado quando partidários
dessa agremiação religiosa se deparam com situações em que é colocada sob questão a
confiabilidade da tradução bíblica de sua preferência.

Assim, fazer conhecer algumas das razões que supostamente asseguram a confiabilidade da
obra é uma espécie de obrigação que o “Corpo Governante” tem para com seus fieis, no
sentido de oferecer a eles subsídios que os tranquilize e que lhes sirva de fonte de pesquisa
para eventuais refutações aos que porventura contestem algum texto de tradução polêmica
dela constante. Isso parece justificar o zelo pela retomada de assuntos em publicações
periódicas como uma espécie de estratégia ideológica de sedimentação da imagem de alta
confiabilidade dos pontos cruciais de suas doutrinas distintivas, ou de sua edição de Bíblia sui
generis, e que, para eles, expressa a verdade textual por excelência.

O êxito da empreitada acima exige da Organização grande empenho ideológico, não para
persuadir os adeptos do grupo, mas para eliminar qualquer margem de dúvida que lhes possa
emergir pelo acesso a informações que contrariam a convicção que têm da confiabilidade da
tradução de sua Bíblia. O que requer, além do arcabouço ideológico bem sistematizado,
discrição na forma de reforçar a imagem positiva almejada – o que geralmente fazem
revestindo a propaganda prol TNM em “trajes” de informação. Assim, ao receber a mensagem
codificada, o leitor acaba a assimilando como uma informação de caráter imparcial, quando
na verdade, ela é essencialmente parcial e destituída de real interesse informativo. Todavia,
essa “informação” sobre a TNM torna-se subsídio para sua defesa ante eventuais críticas
desfavoráveis a ela.

5
Damião Bonfim
TRADUÇÃO DO NOVO MUNDO: TEXTO CONFIÁVEL OU PROPAGANDA IDEOLÓGICA?

Da figura ideológica do “escravo fiel e discreto” e sua importância para a visão que as
TJs têm da TNM

O cuidado de subsidiar as Tjs naquilo que julgam ser a verdade é de incumbência de um


grupo assim descrito pela Organização: “Jesus disse que teria na terra um “escravo fiel e
discreto” (seus seguidores ungidos considerados como um grupo), por meio do qual proveria
alimento espiritual aos que constituem a família da fé (Mat. 24:45-47). As Testemunhas de
Jeová reconhecem esse arranjo” (RACIOCÍNIOS À BASE DAS ESCRITURAS, p.390).

Uma espécie de porta-voz do Corpo Governante, que faz parte dele mesmo7 e que
desempenha papel fundamental para consolidação, entre as TJs, daquelas doutrinas distintivas
do grupo e que são reiteradas nas publicações produzidas pela STV e seu “escravo fiel e
discreto”, a exemplo da importância de ter uma edição de Bíblia em que possa confiar,
porque, segundo a doutrina jeovista, cabe a esse escravo oferecer o “alimento” de que
precisam as TJs para se manterem firmes nas suas convicções, inclusive naquela de que
possuem um texto bíblico confiável.

Esse grupo “discreto” ou “prudente” (nova designação adota pelo grupo) é responsável por
promover a imagem positiva daquela obra e munir os fieis jeovistas de recursos ideológicos
para defendê-la das eventuais contestações de que seja alvo.

Isso ajuda a entender o sentimento de exclusivismo a justificar a ideia de superioridade que as


TJs têm de si em relação aos demais, fundamentada num suposto conhecimento privilegiado
delas acerca de verdades obscurecidas por pessoas que se identificam com outros segmentos,
e que são tratados pela Organização como partidárias da apostasia – discurso ideológico cujo
propósito é inviabilizar que as TJs pensem sem as amarras do grupo. Pois, convencendo seus
adeptos de que o alimento de que necessitam provem desse escravo discreto (ou prudente), a
mensagem subliminar é: qualquer outro “alimento” que não provenha desse escravo é
não só desnecessário, como maléfico.

Estimula-se uma visão completamente dependente do partidário em relação ao “escravo fiel”.


Inclusive, em “Organizados para Fazer a Vontade de Jeová” (obra não-destinada ao público
em geral)”, diz-se: “Nunca devemos ter um ponto de vista carnal sobre o escravo fiel.
Devemos nos empenhar em permanecer achegados à parte visível da organização de Jeová e
seguir suas orientações...” (p.157).

Na mesma obra, a ideia de que esse grupo discreto foi incumbido diretamente por Cristo para
exercer missão instrutiva intrasferível a outros grupos de pessoas, ou a particulares, reforça o
caráter ideológico de que é revestido esse ente: “Dentro da congregação cristã, reconhecemos
a liderança de Cristo e a autoridade que ele deu ao “escravo fiel e prudente”
(ORGANIZADOS PARA FAZER A VONTADE DE JEOVÁ, p. 148).

Aldo Menezes, na obra POR QUE ABANDONEI AS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ, em


depoimento acerca das dificuldades que teve para se desligar da organização, ilustra bem o
apelo ideológico adotado pelo grupo: “...Quando quis dialogar sobre algumas passagens
bíblicas, recusaram-se... Lembraram-me as palavras de A Sentinela (15/7/1983, p.27), que
7
Mais detalhes, conferir a obra de Aldo Menezes: “Merecem crédito as Testemunhas de Jeová?”. Rio de
Janeiro: Centro de Pesquisas Religiosas, 1995, p. 17.
6
Damião Bonfim
TRADUÇÃO DO NOVO MUNDO: TEXTO CONFIÁVEL OU PROPAGANDA IDEOLÓGICA?

diz: ‘Se chegarmos a pensar que sabemos mais que a organização, devemos perguntar-nos:
‘Onde aprendemos a verdade da Bíblia?... Podemos realmente pensar sem a orientação da
organização de Deus?’ Não, não podemos” (MENEZES, 2001, p. 35-36).

Essa pressão ideológica sobre os fieis e o estímulo à consciência de que é a Organização


jeovista a única detentora da verdade bíblica, e que por isso dessa organização todos
dependem, ajudam a entender por que, apesar de citarem outras edições de Bíblia, as Tjs
somente confiam na tradução bíblica produzida pela Organização de que participam.

Isso, para eles, de fato, é capital. Tanto que assim descrevem, no prefácio da TNM, edição
brasileira de 1986: “Os tradutores desta obra... sentem também a responsabilidade para com
os leitores pesquisadores que dependem duma tradução da Palavra inspirada do Deus
Altíssimo para a sua salvação eterna” (grifo meu).

É entendimento comum entre as Tjs que um conhecimento exato da verdade somente é


possível a partir de um texto bíblico seguro (no caso, o da TNM). Esse pode fazer dos
“sinceros”, mas desconhecedores da verdade, iluminados pelas luzes que irradiam da
Organização dos já convertidos aos em potencial de conversão ao grupo.

Para a Organização, dispor de uma Bíblia diferenciada das demais é imprescindível, pois
defende que a imprecisão das traduções convencionais é fundamental para justificar o que
julga ser a paganização do cristianismo, tratado por essa razão como “cristandade”, e os
textos que, no entendimento das TJs, essa “cristandade” usa para fundamentar doutrinas
rejeitadas pela Organização (caso do discurso teológico que admite a existência de um Deus
que subsiste na unidade de pessoas, não na unicidade – conforme acreditam).

Sobre isso, é valioso recordar as observações de Christianini, relativas à ideia difundida entre
as TJs, acerca das traduções convencionais da Bíblia: “afirmam que as traduções existentes
da Bíblia têm o vício das tradições religiosas que falseiam o pensamento dos escritores
sagradas” (CHRISTIANINI, 1975, p. 26).

É claro que uma afirmação dessa envergadura exige dos responsáveis por essa tradução,
pretensiosamente “revolucionária”, grande conhecimento acerca das demais traduções e,
sobretudo, notável expertise nos textos hebraicos, aramaicos e gregos que compõem a Bíblia.

Entretanto, essa “expertise” não pode ser averiguada, já que a constatação do respaldo
acadêmico de seus supostos tradutores é inviabilizada pelo anonimato do trabalho que a
Organização referenda, e assim justifica: “Quando a Comissão da Tradução do Novo Mundo
da Bíblia doou os direitos autorais da tradução realizada, ela pediu que seus membros
permanecessem no anonimato. A Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados de
Pensilvânia, EUA, tem honrado seu pedido. Os tradutores não buscavam proeminência para
si, mas apenas dar honra ao Autor Divino das Escrituras Sagradas” (RACIOCÍNIOS À
BASE DAS ESCRITURAS, p. 394).

Justificativa emotiva, mas pouco razoável; afinal “dar honra ao Autor Divino das Escrituras
Sagradas” não exime os tradutores de oferecer aos apreciadores de seu trabalho de tradução
(que não foi realizado pelo próprio Deus) subsídios que lhes assegure lidarem com uma
tradução feita por pessoas gabaritadas, ainda mais quando julgam que aquele texto, de alguma
forma, promove a saúde espiritual de seu leitor e a própria salvação, conforme defendem.

7
Damião Bonfim
TRADUÇÃO DO NOVO MUNDO: TEXTO CONFIÁVEL OU PROPAGANDA IDEOLÓGICA?

Além do mais, sustentar que o anonimato do comitê tradutor deve-se ao intuito desse de não
buscar proeminência para si, mas para Deus, coloca sob questão suposta “empáfia” de autores
neotestamentários, a exemplo de Paulo de Tarso, cujos textos foram muito cedo equiparados
às Escrituras Hebraicas no protocristianismo (ver 2Pd 3,15-16), sendo logo após, incorporadas
ao cânon cristão. Pois, o gênero literário por ele adotado – o epistolar –, tinha por
característica estilística, a identificação de seu remente. Mas esse procedimento paulino
descrito, nalguma coisa o evidencia enquanto obscurece a Divindade? – É bem provável que a
resposta mais adequada seja: não!

Por outro lado, é sabido que a identificação do autor da obra assegura a confiabilidade dela,
razão por que, pseudoepígrafos8 tornaram-se comuns na Antiguidade, como uma forma de
preservar textos julgados como de valor. Quando a intenção não era mentir sobre a
procedência da obra, mas preencher uma lacuna: a propriedade de quem a produziu mediante
a autoridade que essa exercia sobre seus leitores, isto é, a autoridade era proporcional à
propriedade de quem supostamente a redigiu.

Contrario sensu, a qualidade da TNM não tem a quem ser reclamada, já que pessoalmente,
nunca houve quem se responsabilizasse pelo seu conteúdo, no mínimo polêmico, porque
apesar de ter qualidades que a distingue das demais traduções, tem erros que a tornam
extravagante.

Verdade é que a Organização reproduz e divulga um texto de suposta alta perícia,


assegurando anonimato a supostos “peritos”, responsáveis por um trabalho que eles mesmos
se negaram a associar seus nomes; alegando que isso não é importante. Em contrapartida, essa
postura viabiliza a suposição de que não era recomendável dar publicidade a quem produziu
uma obra tão particular, pois essa exige implicitamente desses “peritos”, um grau de
conhecimento elevado (que talvez não possa ser comprovado), e que se pudesse, justificaria
as diferenças textuais apresentadas em seu trabalho, quando comparado esse a outros
trabalhos realizados por grupos de tradutores renomados.

ANÁLISES TEXTUAIS

Fora dos círculos jeovistas, o desprestígio da obra é atribuído à sua suposta parcialidade
editorial, especialmente no que diz respeito às chamadas “Escrituras Gregas Cristãs” 9, nela
caracterizada por polêmicas traduções de textos identificados como de “alta cristologia”, isto

8
“Pseudoepígrafos” configuram-se na atribuição de autoria de obra(s) escrita(s) a personagens famosos num
tempo, ou de prestígio num determinado meio; mas que, na verdade, são de autoria de outro(s). Essas
atribuições não necessariamente tornam esses escritos inválidos ou inadequados à leitura. Há, por exemplo,
quem conteste a autoria da Carta aos Hebreus como sendo de Paulo. Ou ainda, a passagem joanina da “mulher
adultera” (Jo 7,53-8,11), que conforme a crítica textual, não é material originalmente joanino, mas talvez
lucano. Ainda assim, considerando igualmente inspirado, tal qualo conteúdo geral do quarto evangelho.
9
Nomenclatura adotada pelas TJs para se referirem ao Novo Testamento. Em tempos mais remotos, a STV não
adotava sequer o termo “Bíblia”, por julgar que esse era profano e de largo uso pela “cristandade”. Assim,
preferia falar de Escrituras Hebraicas (para se referir os livros do Antigo Testamento) e de Escrituras Gregas
(para se referir aos livros que compõem o Novo Testamento). Mas, atualmente essa “inovação” tem sido
abandonada, já se admitindo entre elas o uso da fórmula consagrada “Bíblia”.
8
Damião Bonfim
TRADUÇÃO DO NOVO MUNDO: TEXTO CONFIÁVEL OU PROPAGANDA IDEOLÓGICA?

é, que associam Jesus a Deus, mas que aparecem acentuadamente enfraquecidos na TNM.
Também, aqueles empenhados por despersonalizar o Espírito Santo, além da descrição de
suplicio de Jesus numa estaca de tortura, entre outras particularidades, fazem dessa festejada
tradução entre os jeovistas uma repudiada tradução entre os segmentos cristãos históricos,
pentecostais e católicos, e coloca em descrédito a própria Organização das TJs, por
supostamente ter como propósito evidenciar a doutrina distintiva do grupo.

Pretendendo abdicar do lugar comum (a citação de passagens bíblicas neotestamentárias mais


controversas), optamos por apresentar textos pouco discutidos, mas que pactuam melhor com
o propósito deste trabalho que visa destacar a influência ideológica que preserva a TNM
entre seus leitores como uma tradução confiável, ainda que a quantidade de subsídios que
demonstram o contrário seja relativamente numerosa.

Do uso do texto sagrado para promover a Organização jeovista

Sendo consenso que o mais expressivo problema da TNM se refere ao Novo Testamento
(NT), pois os textos mais contestados daquela tradução se encontram nessa seção da Bíblia
cristã, uma forma de constatar a eventual perícia da TNM não é exatamente discutir a
heterodoxia jeovista em si e seu suposto respaldo escriturítico, mas se o credo jeovista
influencia o texto de sua edição de Bíblia a fim de fundamentar credos sem respaldo bíblico.

Se há entendimento comum de que a TNM adequa seu texto ao credo jeovista, todavia, não é
costume observar que essa postura é parte de uma estratégia ideológica que além de forçar o
texto a dizer o que ele em si não diz, permite ser esse utilizado como recurso de exaltação do
grupo.

Textos de aparente pouca relevância para a fé cristã, na doutrina jeovista, tornam-se


poderosos recursos de convencimento do caráter indispensável da STV para a bem-
aventurança e a salvação do fiel. Citemos como amostra, Jo 17,3, traduzido na edição
brasileira de 1986, da seguinte forma: “Isto significa vida eterna: que absorvam
conhecimento de ti, o único Deus verdadeiro”.

A rápida leitura pode não sugerir muita coisa. Mas uma leitura mais perspicaz ajuda a
perceber que o sentido dessa afirmação em outras edições de Bíblia é diferente. Pois, para os
adeptos da Organização, esse versículo justifica o empenho por conhecer profundamente a
literatura produzida pela STV, já que, segundo a doutrina jeovista, é necessário obter
conhecimento intelectual a respeito de Deus; mas somente a “Organização de Jeová” dispõe
do conhecimento exato, que é alimento necessário à salvação.

Numa obra intitulada The Kingdom Interlinear Translation of the Greek Scriptures (A
Tradução Interlinear do Reino das Escrituras Gregas), conhecida como “KIT”, publicada pela
primeira vez no ano de 1969, é apresentado na coluna da direita o texto grego dos doutores
Westcott e Hort, com uma tradução literal palavra-por-palavra, abaixo de cada termo grego, e
ao lado, a versão da Tradução do Novo Mundo em inglês. Observemos a p. 494, ed., de 1985,
e constatemos algo interessante:

9
Damião Bonfim
TRADUÇÃO DO NOVO MUNDO: TEXTO CONFIÁVEL OU PROPAGANDA IDEOLÓGICA?

A expressão circulada é a grega ginóskosi10 (conheçam), traduzida ao lado como “absorvam


conhecimento”, o que tem uma estreita relação com a ideia difundida entre os jeovistas de
que, ter acesso às publicações da STV é fundamental para a salvação, por uma razão que lhes
parece elementar: é dela que se obtém o alimento necessário, que somente o “escravo fiel e
discreto” pode disponibilizar.

De fato, consta de uma das publicações da STV: “Você absorve conhecimento de Jeová com o
objetivo de conhecê-lo intimamente? Para isso, terá de ‘ansiar’ o alimento espiritual provido
por Deus” (A Sentinela, de 15 de dezembro de 2002, p.9)

Sabemos que esse “alimento espiritual provido por Deus”, na doutrina jeovista, é de
incumbência do “escravo fiel e discreto” 11. De modo que, pelo simples cruzamento de
informações, fica fácil concluir que essa discutível tradução tende a fazer o texto bíblico
respaldar a doutrina jeovista quanto à necessidade de que o fiel se alimente das publicações
que a STV lhe disponibiliza.

O problema é que além dessa tradução ser tendenciosa, reestabelece uma corrente filosófico-
religiosa combatida nas origens cristãs: o gnosticismo cristão. Nesse se difundia a ideia de que
um conhecimento esotérico (próprio de um grupo fechado) acerca da divindade, era o meio
pelo qual se poderia optar a salvação, não por intermédio de Cristo.

Porém, o texto grego de Jo 17,3, não exprime essa ideia, mas a ideia de que a vida eterna está
atrelada a conhecer Deus, isto é, ter intimidade com ele, pois “conhecer”, apesar de o NT ser
escrito originalmente em grego koiné, exprime nesse idioma a mentalidade e cultura
hebraicas, segundo as quais, “conhecer“ é fazer experiência profunda de algo ou alguém. Não
se trata da simples obtenção de informação sobre esse algo ou alguém. Não por acaso,
“conhecer” é uma expressão idiomática entre os judeus para se referir ao ato sexual (que
conota intimidade profunda entre pessoas12).

Além disso, umas das possíveis traduções para o termo grego “gignosko” (conhecer), segundo
verbete constante do Dicionário de Grego-Português, Português-Grego, é: “... ter relações
intimas com” (PEREIRA, 1961, p. 114)

10
A acentuação dos vocábulos gregos neste artigo visa apenas transliterar os termos, sem a adequação às
normas gramaticais próprias da língua portuguesa.
11
Sobre a percepção jeovista acerca desse assunto, cf. Raciocínios à Base das Escrituras, p.390.
12
Veja, por ex., Gn 4,1 e Lc 1,34 (em traduções mais literais), além de Gn 4,17 (texto que gera muita polêmica,
mas que parece usar o termo “conhecer” no mesmo sentido que os anteriormente citados).
10
Damião Bonfim
TRADUÇÃO DO NOVO MUNDO: TEXTO CONFIÁVEL OU PROPAGANDA IDEOLÓGICA?

De certa forma, essa associação do conhecimento à vida eterna (ou salvação), mais aproxima
os jeovistas do gnosticismo que do cristianismo. Pois, conforme destaca Gonzales: “De
acordo com o Gnosticismo, ela (a salvação) consiste na libertação do espírito, o qual está
escravizado por causa de sua união com coisas materiais... Nos seres humanos o corpo e a
“alma animal” pertencem ao mundo material... Então é necessário libertar o espírito desta
prisão; e isto é obtido através do conhecimento ou gnosis – por isso o nome de Gnosticismo.
Este conhecimento não consiste em mera informação, mas é antes uma iluminação mística
como resultado da revelação do eterno. O conhecimento é, então, um entendimento da
situação humana, do que nós fomos outrora, e o que deveríamos nos tornar... Por outro lado,
como estamos escravizados por nossa união com a matéria, de tal modo que somos incapazes
de conhecer a verdade eterna por nossos próprios meios, é necessário que um mensageiro
seja enviado do mundo espiritual transcendente para trazer-nos sua revelação libertadora.
Este mensageiro é característica de todos os sistemas gnósticos, e no Gnosticismo cristão
será Cristo quem realizará esta missão...” (GONZALES, 2004, p. 97)

É forçoso entender que a tradução proposta tradicionalmente pela TNM, para Jo 17,3, é a
apresentação de uma espécie de gnosticismo cristão piorado, porque se para o gnosticismo
cristão, a tendência era entender que esse conhecimento privilegiado e esotérico teve como
fonte o Cristo, para os jeovistas, a absorção desse conhecimento privilegiado exotérico (já que
é divulgado a outros no “serviço de campo”) tem como fonte os ensinos da STV.

Ainda que devamos reconhecer que traduzir também é ato de interpretar, é latente que no caso
citado, pesa muito a doutrina jeovista adequando o texto às suas necessidades, procurando dar
sentido ao verbo “conhecer” que não é o próprio do texto.

Em momento algum Jesus associa a salvação ou o alcance da vida eterna à absorção de


conhecimento, mas sim, condiciona a bem-aventurança à busca da unidade para com Deus e
seu Cristo (Jo 17,21).

“Conhecimento” ali indica o ato de ter experiência profunda de Deus, não a busca de
assegurar a salvação por intermédio da absorção de informações privilegiadas que só uma
organização, supostamente possui e as divulga. O contrário disso apenas evidencia o teor
propagandista daquela Organização, porque nem a literalidade do termo grego, nem a cultura
implícita que esse expressa favorecem a tradução de “ginoskosi” como “absorção de
conhecimento”.

Quiçá por isso, a edição revisada da TNM, de 2015, adere à tradução comum, agora
apresentando como sua opção de tradução para o texto ora discutido: “Isto significa vida
eterna: que conheçam a ti, o único Deus verdadeiro...”; contudo, mantém-se em nota de
rodapé, como possível tradução para aquele versículo: ‘que assimilem conhecimento de ti’”,
talvez como forma de não perder os diversos artigos que produziu defendendo que as
traduções convencionais não exprimiam o melhor sentido do termo (esse mesmo que a partir
da edição revisada em inglês (2013) e publicada no Brasil em 2015, reviu).

Da margem à hipótese de uma VERSÃO Jeovista da Bíblia tratada como TRADUÇÃO


de textos sagrados.

11
Damião Bonfim
TRADUÇÃO DO NOVO MUNDO: TEXTO CONFIÁVEL OU PROPAGANDA IDEOLÓGICA?

Para quem não é adepto das TJs, mas que passa a ler a Bíblia por eles utilizada, se tem acesso
ao texto grego do NT, tem em si despertado o sentimento de dúvida quanto à procedência da
tradução, que apesar de declaradamente ser realizada para o português a partir de um texto em
inglês, sua fonte primária, conforme sustentam as TJs, é texto o grego13.

A dúvida persiste no sentido de que há passagens da TNM em português que mais se


assemelham a uma interpretação melhorada de outras traduções com as quais a STV não
concorda, e que por isso, optou por interpretá-las no próprio texto bíblico, já que essas lhe
soavam estranho, e que, para traduzi-las, não necessariamente consideraram o texto grego
mesmo. Exemplifico por um caso interessante, constante de uma explicação extraída da TNM,
revisada, 2015, p. 1.783:

Trata-se de um trecho do evangelho mateano, que não separa os vocábulos, razão por que,
inicialmente apresento a transcrição uncial (em maiúscula), com letras mais primitivas,
separando, porém, os termos: “ΟΙ ΠΤωΧΟΙ Τω ΠΝΕΥΜΑΤΙ”, que assim devemos
transliterar: “HOI PTOCHOÌ TÔ PNEÚMATI”.

Notamos que a tradução literal proposta negligencia o artigo grego “hoi” (port: “os”), de
modo que nesse caso, a tradução “literal” seria “os pobres de espírito” (embora não seja a
melhor tradução).

A edição jeovista afirma que a tradução idiomática desse texto é: “os que têm consciência de
sua necessidade espiritual”. Já a TNM de 1986, o traduz como “os cônscios de sua
necessidade espiritual” (“tradução correspondente à versão em inglês da TNM, constante da
“KIT” e que pretende traduzir o texto grego (em letras cursivas), conforme a ed., 1985, p.
29”):

13
Refiro-me ao texto grego reconstruído a partir de um trabalho de crítica textual, desenvolvido pelos doutores
Brooke Foss Westcott e Fenton John Anthony Hort, cuja conclusão data do ano de 1881, em obra intitulada The
New Testamento in Original Greek, vulgarmente chamado de o texto de Westcott and Hort, que a STV qualifica
como seu “texto-mestre”.
12
Damião Bonfim
TRADUÇÃO DO NOVO MUNDO: TEXTO CONFIÁVEL OU PROPAGANDA IDEOLÓGICA?

Observe que a expressão grega tô pneúmati é traduzida literalmente por “to the spirit” (para o
espírito), precedido da partícula “as”, transmitindo a ideia de “quanto ao espírito”. Logo, a
tradução literal para o inglês proposta é: “pobres para o espírito”. Mas o texto à esquerda, da
The New World Translation (versão em inglês da TNM) apresenta o texto como “cônscios de
suas necessidades espirituais” – como se estivesse interpretando a expressão obscura e
contestável “pobres de espírito”, não o texto grego mesmo.

Em todo caso, a versão proposta pela TNM é uma tentativa de melhorar uma tradução
convencional imprecisa, já que a tradução “os pobre DE espírito”, contraria o texto grego, não
somente outros idiomas para o qual esse versículo possa ser traduzido “literalmente”.

Na verdade, se a tradução exata fosse essa, no grego deveria consta hoi ptochoì toû
pneumatós (os pobres DE espírito). Já que o caso genitivo “normalmente limita a qualidade
do SUBSTANTIVO sobre seu tipo, classe ou categoria, normalmente denotando possessão,
fonte ou conceitos transmitidos pela preposição [portuguesa] DE...” (DICIONÁRIO
GRAMATICAL DO GREGO DO NOVO TESTAMENTO, p. 84).

Ocorre que, no texto grego consta: hoi ptochoì tô pneúmati (os pobres em/ pelo espírito),
caso dativo “...normalmente usado para OBJETO INDIRETO, designando a pessoa ou coisa
para a qual algo é dado ou para quem algo existe ou é feito...” (DICIONÁRIO
GRAMATICAL DO GREGO DO NOVO TESTAMENTO, p. 57).

Reconheçamos existir no grego bíblico a forma dativa de posse, assim descrita pelo
Dicionário Gramatical do Grego do Novo Testamento: “Um caso... de substantivo que
significa posse; o dativo possui o substantivo com o qual está relacionado” (p.58).

Nesse sentido, a ideia é: são felizes aqueles que espiritualmente se colocam como pobres, não
os que têm pobreza de espirito. Talvez por isso, o termo espírito (pneûma), no grego não
aparece como “pneumatós” que concordaria com o artigo genitivo “toû” (que também não
aparece no grego), mas sim pneúmati (que concorda com o artigo tô, constante do grego).

A base para a tradução de Mt 5,3 na TNM não é exatamente o esmero pelo texto grego, mas
sim uma tentativa de correção de uma tradução já equivocada, que antes as TJs lidavam e
julgavam estranha.

O mesmo texto, na Nova Bíblia de Jerusalém, ed. 2002, é assim traduzido: “os pobres pelo
espírito”, porque o sentido do texto não é o de elevação da pobreza espiritual, como se “ser

13
Damião Bonfim
TRADUÇÃO DO NOVO MUNDO: TEXTO CONFIÁVEL OU PROPAGANDA IDEOLÓGICA?

pobre de espírito” fosse uma virtude. Pelo contrário, NÃO são felizes os pobres de espírito,
mas os que assumem para si um espírito de pobreza, isto é, que não se apegam às riquezas
da terra e, portanto, estão mais aptos a acolher as riquezas espirituais, ou a buscar os “tesouros
dos céus” (Mt 6,20), independentemente de sua condição financeira. Razão por que, essa
bem-aventurança, na narrativa mateana, tem sentido mais amplo que aquele alcançado pelo
texto lucano (ver Lc 6,20).

Assim, a tradução de Mt 5,3 na TNM, parece ser uma simples tentativa de correção de uma
ideia imposta pela tradução imprecisa desse texto em bíblias convencionais, sem a devida
atenção ao que consta do texto grego em The New Testament in Original Greek, obra que os
anônimos tradutores alegam ser o texto-base da versão em inglês constante da TNM.

Do indicio de que a TNM procura adequar o texto bíblico ao credo distintivo jeovista

É sabido que umas das doutrinas distintivas jeovista é a de resgate do Nome Sagrado nas
Escrituras. Pois, como destaca Christianini: “Seus membros... se julgam "enviados divinos"
com a missão de restaurar o nome de Deus, que, segundo entendem, sofreu uma espoliação
nominal praticada pelos "religionistas"...” (CHRISTIANINI, 1975, p.24).

Em “O QUE A BÍBLIA REALMENTE ENSINA” é dito: “os servos de Deus não adoram a
ninguém a não ser a Jeová. Essa adoração o inclui informar às pessoas o nome do Deus
verdadeiro e suas qualidades” (p.148). E mais que isso, diz-se que o próprio Jesus tornou
conhecido o nome de Deus, sugerindo como base para essa ideia o texto constante de Jo 17,6.

Na verdade, aproveitando-se do uso literal da expressão “nome”, os tradutores da TNM


distanciam-se do sentido usual do termo entre os judeus, pelo qual, “dar a conhecer o nome” é
mais um hebraísmo cujo sentido real é: dar a conhecer a pessoa em si, isto é, quem ela é.
Procurando inovar, sugerem que Jesus teve como propósito dar a conhecer um nome que,
embora os judeus já não pronunciassem no seu tempo, superabundava nos textos sagrados de
que dispunham.

Desnecessário destacar que a prática de Jesus, constante dos relatos dos evangelhos, dava
ênfase a Deus como Pai (e assim o fez conhecer). Não que aos judeus fosse estranha essa
identificação; entretanto, não era comum assim tratá-lo. E nisso persiste a “ousadia” de Jesus:
antes de falar de um Deus “Altíssimo”, “Juiz”, “Todo-Poderoso” – não que negasse essas
formas de identificá-lo –, preferia uma que expressasse familiaridade: dar a conhecer que o
Deus distante, que tais expressões podem sugerir, é sobretudo, Pai amoro e próximo (Mt 6,6).

Mas argumentam as TJs: “Os eruditos bíblicos reconhecem que o nome pessoal de Deus
aparece no Velho Testamento, ou Escrituras Hebraicas. No entanto, muitos acham que ele
não aparecia nos manuscritos gregos originais do chamado Novo Testamento. Então, o que
acontece quando um escritor do Novo Testamento cita trechos do Velho Testamento onde o
Tetragrama aparece? Nesses casos, a maioria dos tradutores usa a palavra “Senhor” em vez
de o nome pessoal de Deus. A Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas não adota
essa prática. Ela usa o nome Jeová 237 vezes nas Escrituras Gregas Cristãs, ou Novo
Testamento”. (A Sentinela, de 01 de agosto de 2008, p. 18).

14
Damião Bonfim
TRADUÇÃO DO NOVO MUNDO: TEXTO CONFIÁVEL OU PROPAGANDA IDEOLÓGICA?

Essa lógica adotada pela STV é problemática e melhor seria qualificá-la como hipótese
(carente de razoabilidade). Pois a inserção é feita a partir da suposição de que, quando o NT
cita o AT, nas ocorrências em que há o Tetragrama, no texto do NT, ele deveria aparecer.

A edição revisada da TNM assim retoma o tema: “A Comissão da Tradução do Novo Mundo
da Bíblia concluiu que há provas convincentes de que o Tetragrama ocorria nos manuscritos
gregos originais” (TNM, 2015, p. 1800).

Apesar de algumas edições de bíblia bem conceituadas no âmbito acadêmico, a exemplo da


Bíblia de Jerusalém (BJ), apresentar nos livros do AT a forma “Iahweh”, para todas as
ocorrências do Tetragrama no AT, essa prestigiada tradução não a insere nos textos do NT
em qualquer de seus 27 livros.

Não somente a BJ (que é uma edição de Bíblia destinada aos acadêmicos), mas também,
bíblias populares, como a Edição Pastoral, que para os textos do AT, onde ocorre o
Tetragrama, emprega a forma aportuguesada “Javé”, não o faz, em qualquer dos textos do
NT.

Se como alegam as TJs, o propósito da “cristandade” é levar ao esquecimento o nome divino,


por que numa Bíblia produzida conjuntamente por especialistas de confissão católica e
protestante (caso da BJ) inserem por milhares de vezes em que há ocorrências no texto
hebraico, um nome que desejam omitir? Se não se constrangem de inserir o nome nos textos
traduzidos do hebraico, naturalmente não teriam constrangimento de inseri-lo nos textos do
NT, caso encontrassem respaldo confiável para tal.

Alegam os jeovistas que seguiram os melhores textos para produzir sua obra. Todavia, se
consultarmos o texto-base que dizem ter seguido para a sua tradução do NT, que é o The New
Testament in Original Greek14, dos doutores Westcott e Hort, constataremos que nele não
ocorre o Tetragrama em parte alguma do NT, não apoiando, portanto, sequer uma das 237
inserções jeovistas do Tetragrama no NT.

A título de exemplo, apresento a imagem da página 24, da KIT, edição de 1985, relativa a Mt
3,3, no texto em que o evangelho faz referência a Is 40,3ss :

14
A Sociedade Torre de Vigia (STV) informa que o texto adotado, de Westcoot e Hort, que data de 1881, é o
reeditado em 1948.
15
Damião Bonfim
TRADUÇÃO DO NOVO MUNDO: TEXTO CONFIÁVEL OU PROPAGANDA IDEOLÓGICA?

Observe que a expressão grega την οδον κυριου (tèn hodòn Kyríou. Lit: o caminho do
Senhor) é traduzido para o inglês (na tradução palavra-por-palavra, abaixo do texto grego) por
“the way of Lord”(“o caminho do Senhor”).

O texto em caracteres gregos é o texto dos doutores Westcott e Hort, que as TJs publicaram
na KIT. E como se pode observar, nele não há Tetragrama, mas o nome “Kýrios”, no caso
genitivo (Kyríou, que indica posse, ou procedência: “do Senhor”).

Note que no texto ao lado, a tradução literal “the way of Lord” dá lugar à versão “the way of
Jehovah”. Seguindo a tendência substitutiva, assim procedem em cada ocorrência em que o
nome “Kyrios” e seus diferentes casos (nominativo, genitivo, dativo, acusativo ou vocativo),
quando eventualmente aprecem no texto grego, sempre que entendido pela STV se refere ao
Pai. Isso, para elas, justifica o emprego do termo “Jehovah”, no NT. Mas nem mesmo o texto
grego que alegam seguir faz essa menção, como o exemplo acima evidencia.

Vale destacar que a Nova Bíblia de Jerusalém (NBJ) evidencia em itálico todas as referências
textuais ao AT feitas num texto do NT e indica ao lado o texto veterotestamentário aludido ou
citado no livro do NT. Assim, para Mt 3,3, os editores têm o cuidado de indicar ser esse uma
referência a Is 40,3+ (LXX).

O algarismo romano “LXX” indica que a citação constante de Mt 3,3 ao texto de Isaias é feita
no texto mateano conforme a versão grega do AT. Aliás, em publicação da revista A
Sentinela, de novembro de 2009, em matéria intitulada “Você precisa aprender hebraico e
grego?”, a STV reconhece que a “maior parte das centenas de citações que as Escrituras
Gregas Cristãs fazem das Escrituras Hebraicas baseia-se na Septuaginta” (p.23).

O curioso dessa declaração é que o tetragrama YHWH, na Septuaginta, é substituído por


(Kyrios). E ao sermos informados de que o evangelista faz a citação de Isaías e dos demais
livros conforme a Septuaginta, entende-se melhor por que o texto de Westcott e Hort não
emprega o Tetragrama no seu texto grego definitivo.

Ainda que se suponha, Mateus fora escrito originalmente em hebraico, pese o fato de que o
texto chegado a nós é grego, e que a citações do AT feitas no texto de Mateus não remetem a
um texto hebraico, mas grego dos LXX, onde não aparece o Tetragrama, senão o termo
substitutivo Κυριος (“Kyrios”). Por outro lado, é sabido que a prática judaica, contemporânea
16
Damião Bonfim
TRADUÇÃO DO NOVO MUNDO: TEXTO CONFIÁVEL OU PROPAGANDA IDEOLÓGICA?

à produção da Septuaginta, era substituir o Tetragrama por outras expressões, a fim de evitar a
pronúncia popular do Nome Sagrado.

Achados textuais indicam que além de se substituir o termo YHWH por “Kyrios” (Senhor) ou
“Theós” (Deus), chagava-se a inserir duplamente a letra grega “pi”, intercalada e finalizada
pela letra “iota” (πIπI)15 por cauda da semelhança com o Tetragrama (‫)יהוה‬, o que ainda
assim, inviabilizava a pronúncia do nome, exigindo pronúncia alternativa, a exemplo da
consagrada “Senhor” (Kyrios).

É valioso reproduzir verbete de obra dedicada aos escritos paulinos, no que se refere às razões
de não-uso do nome divino nos textos gregos: “Parece que na ocasião da origem do
cristianismo, judeus religiosos já haviam criado o hábito amplamente observado de evitar
pronunciar o nome hebraico de Deus, Yahweh, e usavam vários substitutos. Na verdade,
indícios de textos judaicos antigos sugerem que substitutos para Yahweh eram usados com
freqüência até em referências escritas a Deus... As ocorrências de Yahweh em caracteres
hebraicos (yhwh) ou da curiosa combinação de caracteres gregos pipi (que parece destinada
a sinalizar e assemelhar-se aos caracteres hebraicos para Yahweh) em determinadas cópias
judaicas primitivas do AT grego não podem ser usadas para contradizer essas observações”
(HAWTORNE; MARTINS; REID, 2008, pp.1448-1449)

Ainda que o uso duplicado da letra grega “pi”, intercalado e finalizado por “iota”, fosse
empregado, tudo não passava de recurso visual, já que a pronúncia adotada nem era a do
Tetragrama, nem dessas letras gregas conjuntamente. “É quase certo que, na verdadeira
interpretação dessas cópias do AT em grego, nem Yahweh nem o artificio do pipi eram
pronunciados e que, em vez deles, um substituto, provavelmente kyrios, fosse falado, o tipo de
prática demonstrada no NT e em outros escritos gregos do século I, que refletem a base
religiosa judaica” (HAWTORNE; MARTINS; REID p.1449).

Como se observa, a tese jeovista é contrária inclusive à prática já consagrada nos tempos do
NT, em relação ao uso do nome Divino nos textos do AT traduzidos para o grego, não
encontrando também respaldo também, na obra que dizem utilizar como texto-base para a sua
tradução do NT, uma prova de que a prática da inserção de termo na TNM é amplamente
difundida e que seu propósito é dar ênfase à doutrina distintiva do grupo, ainda que neguem
haver inserções dessa natureza em sua tradução.

Da adulteração textual em favor de doutrina distintiva

Sobre a TNM estar em perfeito acordo com os textos em língua original, a STV declara: “...
uma tradução precisa, bastante literal, dos idiomas originais. Não se trata de livre paráfrase,
em que os tradutores omitem pormenores que consideram não importantes e acrescentam
ideias que creem ser úteis” (p.395). Mas uma simples referência a um versículo cristológico
coloca sob dúvida essa declaração. Observe, para constatar, o texto de Cl 1,17, publicado na
“KIT”, ed., de 1985, p. 880:

15
Orígenes (séc. III d.C.), em Hexapla, apresenta a transliteração do texto hebraico do AT para o grego usando
esse artifício substitutivo, onde “πIπI” (pipi) serve de transliteração para ‫( יהוה‬YHWH).
17
Damião Bonfim
TRADUÇÃO DO NOVO MUNDO: TEXTO CONFIÁVEL OU PROPAGANDA IDEOLÓGICA?

A transliteração do texto é a seguinte: kaì autòs éstin prò pánton (“e ele (Jesus) é antes de
todas as coisas”).

A tradução interlinear (palavra-por-palavra) inglesa é: “and he is before all things” –


exatamente como traduzi o texto grego. Mas observe que no texto ao lado, a versão é: “Also
he is before all [other] things” (“Também ele é antes de todas as [outras] coisas”).

Na KIT, o texto da coluna esquerda insere o termo “other” (outras), entre colchetes, alterando
completamente o sentido da colocação. Pois, enquanto no texto grego diz-se ser Jesus anterior
a todas as coisas, o que também poderia ser traduzido por “ele existe antes de todas as
coisas”, pela inserção da palavra “outras” entre colchetes, é adulterado o teor, negando uma
provável indicação da eternidade de Jesus, e o colocando como anterior a todas as outras
coisas.

No texto revisado, publicado em 2015 no Brasil, manteve-se a inserção do vocábulo “outras”,


mas os colchetes foram suprimidos, eliminando-se assim, o indicativo de que esse termo, no
grego, não consta – como se a expressão fosse própria do texto em língua grega – o que não
procede. Compremos as duas mais recentes versões da TNM no Brasil, para notarmos a nova
alteração que descaracteriza a inserção, ao eliminar os colchetes que antes serviam para
indicar a inserção de termos julgados pelos tradutores da referida obra, como necessários à
compreensão no idioma moderno:

TNM, ed. de 1986, p. 1472. TNM. Ed. revisada de 2015, p. 1631.

Desse modo, a TNM adulterou o sentido do texto grego, adequando a tradução ao credo
jeovista de que Jesus foi criado, não sendo eterno, pois não é anterior a tudo criado, mas
apenas a “outras” coisas. Isso buscando fundamentar a equivocada ideia de que se Jesus é o
primogênito, é o primeiro criado; ignorando que a primogenitura, na Bíblia, é um direito de
pertença, que pode ser perdido. Lembremos a negociação de Esaú e Jacó, em que Esaú se
18
Damião Bonfim
TRADUÇÃO DO NOVO MUNDO: TEXTO CONFIÁVEL OU PROPAGANDA IDEOLÓGICA?

desfaz de um direito que lhe assistia (ver Gn 25,29-34). Cena que Alter descreve como “as
exclamações desarticuladas de Esaú em oposição aos cálculos legalistas de Jacó no episódio
da venda do direito de primogenitura” (ALTER, p. 115).

E isso somente é possível, porque a discussão do termo se dá em ordem legal, não exatamente
relacionada à ordem de origem. Assim, o autor de Colossenses faz uso da expressão nesse
sentido, inclusive justificando por que Jesus tem direito (de primogenitura) sobre a criação:
porque por intermédio dele tudo foi criado – no contexto, de maneira exemplificativa, não
taxativa: “Tronos, Soberanias, Principados, Autoridades” (Cl 1,15-16).

É explícito na tradução proposta pela STV, o intuito de tratar o Filho de Deus como uma
criatura, visto que em vez de traduzir o texto preservando declaração de preexistência do
Filho em relação a todas as coisas, insere o termo “outras”, sugerindo que ele mesmo somente
faz parte de tudo criado, mas que é anterior às demais criaturas, sugerindo assim, que ele
mesmo não existe desde sempre.

Postura que também enfraquece o sentido do verbo “ser” – gr: eimi –, na terceira pessoa do
singular (estin), já que “O verbo ser em grego é usado como em português tanto para indicar
existência (Deus existe) quanto para ligar um sujeito a um adjetivo como predicativo” (Deus
é bom)...” (SWETNAM, p.16)

Assim, nesse único versículo percebemos que o texto foi parafraseado a fim de que fosse
adequado ao credo jeovista, que adota o pressuposto de que: “... se a Trindade é falsa,
rebaixa o Deus Todo-Poderoso chamarmos de igual a ele quem quer que seja” (Deve-se crer
na Trindade?”, p. 03) e para preservar esse credo, alteram, quando necessário, o texto que
julgam não concordar com ele. Ou seja, a declaração constante de seu manual (Raciocínios à
Base das Escrituras): “Não se trata de livre paráfrase, em que os tradutores...acrescentam
ideias que creem ser úteis”, é uma informação inverídica e que somente tem força junto
àqueles que desconhecem o que realmente consta do texto grego.

Lamentamos que essa obra, a “KIT”, não seja difundida para os falantes de língua portuguesa.
Talvez, seja até uma forma de evitar que o leitor atento perceba não ser a TNM fiel nem
mesmo ao texto grego que a STV alega ter sido seguido pelo comitê de tradução da referida
obra. Apesar disso, com o advento da internet, obter um exemplar da KIT não é tarefa difícil.

Conclusão

Pelas razões expostas ao longo deste artigo, podemos defender que a confiabilidade da TNM é
produto de propaganda ideológica que visa reduzir os efeitos das contestações acadêmicas a
ela. E é essa propaganda, disfarçada de informação, que minimiza os efeitos de eventuais
comparações que o leitor possa estabelecer entre a sua TNM e outras traduções, cujos textos
divergem exatamente quando, de alguma forma, favorecem interpretações contrárias ao credo
jeovista.

Não fossem as discutíveis opções textuais adotadas na TNM, as inúmeras e anuais


publicações exaltando aquela obra cederiam lugar a, no máximo, simples divulgação de uma
nova edição que porventura fosse publicada; sem, porém, a necessidade de reiterar supostas
qualidades da TNM cujo propósito é dizer ao seu leitor que tipo de imagem deve absorver de

19
Damião Bonfim
TRADUÇÃO DO NOVO MUNDO: TEXTO CONFIÁVEL OU PROPAGANDA IDEOLÓGICA?

sua edição de Bíblia em meio a contestações que a STV sabe, provavelmente terão de
enfrentar.

Todavia, por mais que uma tradução seja considerada boa, absolutizá-la não é prudente.
Dispor de outras traduções, comparar os textos e se inteirar de literatura dedicada ao estudo
do texto em si, podem ajudar no despertar de uma percepção mais crítica e menos vulnerável
a mecanismos de manipulação ideológica acerca das informações que recebemos sob a ideia
de que a verdade é essa ou aquela.

Por: Damião Bonfim dos Santos; 36 anos; casado, pai de dois filhos. Reside em Jaguarari-BA. Formado em Magistério. Aos 19 anos
iniciou seus estudos das Escrituras, como autodidata. De confissão Católica Romana, ingressou, no ano de 2001, num cursou livre de
Teologia Pastoral, pelo Instituto Superior de Teologia e Pastoral de Bonfim (autorizado pelo MEC para vias de reconhecimento). Em
2004 concluiu o curso, e foi convidado a, no primeiro semestre de 2005, ser monitor da Disciplina Introdução às Sagradas
Escrituras (assumindo no semestre seguinte a titularidade da disciplina). Ministrou também, aulas de Escritos Joaninos e
Lucanos. Atualmente é graduando em Teologia, pela UNINTER (curso autorizado e reconhecido pelo MEC). Auxilia nos trabalhos
de formação da Paróquia São João Batista de Jaguarari, sendo um dos comentaristas de um programa de rádio local dedicado a
comentários dos evangelhos. É também um dos orientadores na formação paroquial, ministrando aulas de introdução à crítica bíblica
e escritos do Novo Testamento.

REFERÊNCIAS
ALTER, Robert. Arte da Narrativa Bíblica. São Paulo, Companhia das Letras, 2007
ARENS, Eduardo. A Bíblia sem Mitos: uma introdução crítica. São Paulo, SP. Paulus, 2007.
BARNWELL, Katharine. Tradução Bíblica - Um curso introdutório aos princípios básicos de tradução 3- ed. -
Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil; Anápolis, GO: Associação Internacional de Linguística, 2011.
CHRISTIANINI, Arnaldo B. Radiografia do Jeovismo. 2 ed. Refundida e ampliada. São Paulo, Casa
Publicadora Brasileira, 1975.
GONZÁLEZ, Justo L., Uma História do Pensamento Cristão, VOL. 01. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.
MENEZES, Aldo dos Santos. Merecem Crédito as Testemunhas de Jeová? Rio de Janeiro, Centro de Pesquisas
Religiosas, 1995.
MENEZES, Aldo dos Santos. Por que abandonei as Testemunhas de Jeová. Editora Vida, São Paulo, 2001.
PAROSCHI, Wilson. Crítica Textual do Novo Testamento. São Paulo. Edições Vida Nova, 1993.
WEGNER, U. Exegese do Novo Testamento, manual de metodologia. São Leopoldo: Sinodal, 2001.

Bíblias
BÍBLIA. Português. A Nova Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
BÍBLIA. Português. Almeida, Corrigida e Fiel. Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil, 2007
BÍBLIA. Português. Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas. Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e
Tratados, 1986.
BÍBLIA. Português. Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas. Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e
Tratados, 2015
BÍBLIA. Grego/Inglês. The Kingdom Interlinear Translation of the Greek Scriptures. Brooklyn, NY:
Watchtower Bible and Tract Society, 1985 (Impresso: Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados. SP,
Brasil)

Dicionários e Gramática
DEMOSS, Matthew S., Dicionário Gramatical do Grego do Novo Testamento. São Paulo: Editora Vida, 2004.
HAWTORNE, G.F., MARTINS, R.P.; REID, G.R., Dicionário de Paulo e Suas Cartas. 2 ed. São Paulo. Vida
Nova/Paulus/Loyola, 2008.
PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. 2 ed. Porto: Editora Apostolado da Imprensa,
1961
SWETNAM, J. Gramática do Grego no Novo Testamento; São Paulo: Paulus, 2002.

Literatura da Torre de Vigia de Bíblias e Tratados


A Sentinela, publicação de 15 de novembro de 2001.

20
Damião Bonfim
TRADUÇÃO DO NOVO MUNDO: TEXTO CONFIÁVEL OU PROPAGANDA IDEOLÓGICA?

A Sentinela, publicação de 01 de dezembro de 2004.


A Sentinela, publicação de 01 de agosto de 2008.
A Sentinela, publicação de novembro de 2009.
A Sentinela (Fácil de Ler), publicação de 15 de dezembro de 2015
Deve-se Crer na Trindade, de 1989.
O que a Bíblia Realmente Ensina, 2015.
Organizados para Fazer a Vontade de Jeová, 2016.
Raciocínios à Base das Escrituras, 1989.

Livro Digital

GARCIA, Nélson Jahr. Propaganda: Ideologia e Manipulação (versão para ebook). Fonte Digital:
RocketEdition, de 1999-2005. Disponível em: www.ebookbrasi.com; www.jahr.org; www.ngarcia.org
Acesso em: 30 out. 2016.

21
Damião Bonfim

You might also like