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O pensamento político de Fernão Lopes

Fernão Lopes não foi certamente um filósofo, mas sim um cronista genial
dos acontecimentos que levaram a Geração de Avis ao poder. Em todo o
caso, nas páginas das suas crónicas encontramos momentos decisivos
de afirmação do pensamento político português dos finais da idade
média, com especial relevo para a tese da soberania inicial do povo, já
anteriormente expressa pelo Infante D. Pedro, a par da tónica comum no
fundamento ético e na finalidade espiritual do poder temporal.

Em primeiro lugar cumpre sublinhar o interesse do prólogo da sua


Crónica de D. Pedro I, onde abertamente se refere às questões da
origem e fundamento do poder temporal, «estabelecido por serem os
Crónica de D. João I, de
maus castigados e os bons viverem em paz», donde se segue que tem a
Fernão Lopes justiça por principal suporte.
IAN/Torre do Tombo
Outro vector interessante desta crónica assenta no chamado
personalismo régio, que, à luz da tradição medieval, encarava o rei como a alma da lei, ou
regra mediante a qual ela é elaborada. Este tema estava enquadrado numa mais vasta questão
que era a de saber se o soberano se poderia subtrair ao cumprimento das leis que promulgava.
A posição de Fernão Lopes é a este respeito muito clara: duvidar da rectidão do
comportamento do soberano seria duvidar sobre se a regra haveria de ser direita, «a qual se
em direitura desfalece, nenhuma cousa direita se pode por ela fazer». Temos então que a
justiça é o fundamento da monarquia e que a vida do rei, o seu comportamento e a sua
personalidade deverão ser a regra pela qual a lei é elaborada e transcrita, pelo que o soberano
se assume muito mais como uma pessoa do que como uma instituição onde a sua
personalidade se diluísse, não podendo haver reino com boas leis alicerçadas em maus
costumes. É por isso que as leis têm alma, e como as coisas com alma são mais dignas do que
as que a não têm, assim também as leis se assumem na sua dignidade plena.

Outro tema de inegável relevo nas crónicas de Fernão Lopes, mais explorado na Crónica de D.
João I, é a tese da soberania inicial do povo, expressa no direito que lhe assiste de avocar a
soberania uma vez quebrada a linha de sucessão directa, como veio a suceder com a morte do
rei D. Fernando e com a eleição do mestre de Avis.

Deve pois realçar-se a parte final da Crónica de D. João I, sobretudo pela transcrição que faz
das palavras do Doutor João das Regras nas Cortes de Coimbra, como também perante o
mestre de Avis: «Senhor, eu ei assaz trabalhado por mostrar com vivas razões e direitos que
estes reinos são vagos de todo e a eleição deles fica livremente ao povo».

No entanto, esta concepção da soberania inicial do povo, muito comum na idade média e
fortemente estimulada pelo pensamento de S. Tomás de Aquino, não infirmava a tese paulina
da origem divina do poder, pois que o povo se assumia como medianeiro entre Deus e o
soberano à luz da tese «omnis potestas a Deo per populum» (todo o poder vem de Deus
através do povo) e «populo faciente et Deu inspirante», pelo que não devemos exagerar o seu
alcance pretensamente revolucionário.

Com efeito, esta tese assentava no pensamento de S. Tomás de Aquino, ao entender que
todas as criaturas dotadas de fim próprio deveriam possuir as faculdades necessárias ao seu
cumprimento. Ora, dado que a sociedade é uma entidade transpessoal dotada de fins próprios,
deverá também ela possuir as faculdades necessárias para os atingir, ou seja, para realizar o
bem comum, que se não identifica com o interesse particular.

Finalmente, em toda a Crónica de D. João I se respira outra tese de primacial importância,


articulada com o que no início escrevemos: se a justiça é o fundamento do poder, segue-se
que uma lei manifestamente injusta não é lei e não deve ser obedecida, aferindo-se neste caso
o seu grau de injustiça pela desconformidade com a lei divina. Este tema está subentendido
nas palavras do Doutor João das Regras que ao citar os Actos dos Apóstolos (5, 29) proclama
que «mais devemos obedecer a Deus que aos homens», e que portanto mais deveríamos
obedecer ao Papa do que aos reis, tese que vem expressa, exactamente nos mesmos termos
no livro do regimento dos príncipes de S. Tomás de Aquino.

O contexto preciso desta sua tese remetia para a impossibilidade de eleger o rei de Castela,
pois, segundo a sua linha de argumentação, se pusera ao lado dos cismáticos excluindo-se
das fronteiras da cristandade, pelo que obedecer a tal rei seria desobedecer a Deus e ao Papa.

Esta tese, tendo raízes também antigas, foi uma peça importante na fundamentação futura do
direito de resistência, tanto passiva como activa, como veremos em Diogo Lopes Rebelo.

Obras
Crónica de D. Pedro I, Barcelos, Livraria Civilização, 1994; Crónica de D. Fernando, Barcelos,
ibid., s.d; Crónica de D. João I, Barcelos, 1994.

Bibliografia
Luis de Sousa Rebelo, O Poder Político em Fernão Lopes, Lisboa, Liv. Horizonte, s.d.; Martim
de Albuquerque, O Poder Político no Renascimento Português, Lisboa, s.d.

Pedro Calafate

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