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Causa e efeito? Ou causa-efeito?


Eleutério Prado1

Introdução
Nessa nota de aula, pretende-se mostrar de um modo didático, primeiro, como a
causalidade é concebida na dialética de Hegel para poder expor, depois, como a
concepção de causalidade por ele sustentada é necessária para resolver paradoxos que
aparecem nos processos dinâmicos não-lineares. Para cumprir essa tarefa, será preciso
apresentar, de início, como o entendimento – ou seja, o pensamento que se guia pela
lógica da identidade e nela se fia para enfrentar o mundo – trata a relação de causa e
efeito. Para fazê-lo, diante de um conjunto de concepções que tem uma história e que,
postas em paralelo, mantém diferenças importantes entre si, não restará outra alternativa
do que escolher as mais significativas para apresentá-las tópica, sumária e
seqüencialmente. É o que se faz no que se segue.
Esta nota de aula tem, por isso, quatro partes bem demarcadas.
Na primeira parte, apresenta-se a concepção de causalidade de Aristóteles, com
base em lições de Giovanni Reale sobre este grande pensador grego (2007). Se na época
moderna vai prevalecer uma concepção instrumental de ciência – esta se torna um saber
pragmático que visa, em última instância, dominar o mundo e se apossar de seus modos
de funcionamento –, na antiguidade predominava uma visão contemplativa do
conhecimento – eis que a filosofia procurava chegar a uma compreensão do cosmos
como um todo com base em princípios fundantes e unificadores. E isto se mostrava
também na concepção de causalidade aí surgido, o qual buscava apreender
abstratamente a lógica da produção de tudo o que existe, distinguindo já, por um lado, a
causa e, por outro, o efeito.
Na segunda, apoiando-se em exposição de Mario Bunge, apresentam-se algumas
formulações modernas do que ele mesmo denomina de princípio da causalidade (Bunge,
2008, capítulo 2). E por princípio de causalidade se estenda aqui uma proposição
condicional que estabelece uma lei de causação, ou seja, uma sentença a respeito do
modo de relacionamento entre as coisas (ou meramente entre os fenômenos) que vale
univocamente e de modo universal. Essas formulações, em conjunto, aparecem nesta
nota como representantes do modo mediante o qual o entendimento – que, agora, tende
a se tornar formalista – pensa a causalidade. Eis que esse modo constante será
questionado. O texto de Bunge é empregado especialmente para apresentar a concepção
de causalidade tal como ela se configura na época moderna.
Na terceira, faz-se um esforço para expor a compreensão da relação de causação
encontrada em Hegel de um modo compreensível para muitos. Note-se já aqui que a
concepção desenvolvida por esse pensador alemão, notoriamente tão difícil de ler e de
compreender, parte de uma crítica das noções correspondentes elaboradas pelo
entendimento no curso da história da filosofia iniciado na Grécia Antiga. Hegel, em
suma, contesta a clara distinção e, assim, a separação entre causa e efeito, propondo que
a causalidade deve ser compreendida como ação recíproca. A exposição contida nessa
parte é dependente de uma detalhada explicação de Stephen Houlgate sobre os
parágrafos da Ciência da Lógica – mais especificamente, da lógica da essência –, os
quais tratam das categorias de substância e causalidade (Houlgate, 2007). Aqui,
entretanto, se lerá a Enciclopédia (1995).

1
Professor da USP. Correio eletrônico: eleuter@usp.br; sitio: http://eleuterioprado.wordpress.com.
2

Na quarta, finalmente, discutem-se as idéias de Lucien Sève que incidem


criticamente sobre certas questões lógicas aportadas pela consideração das dinâmicas
não-lineares nas chamadas ciências da complexidade (Sève, 2005). Esse autor procura
mostrar que a dinâmica do caos determinista, quando vista sob o foco analítico do
entendimento, produz paradoxos nas determinações da causalidade, os quais não são
elimináveis pelo poder de discriminação do próprio entendimento. Por trazer em si
mesmo contradições que se afiguram insuperáveis, esse autor passa então a sustentar
que tais paradoxos vêm a ser propriamente antinomias2. E que estas, assim concebidas,
reclamam necessariamente, para a sanidade do próprio pensamento, a intervenção da
razão dialética. Ao acolher a contradição – sem, entretanto, contraditar a lógica formal
–, a dialética que vem de Hegel permite, segundo ele, enfrentar a processualidade
complexa do real de modo inteiramente racional.

Causalidade Antiga
A primeira concepção de causalidade que vale mencionar é a de Aristóteles.
Segundo esse filósofo, tudo aquilo que funda, condiciona ou determina as coisas
existentes no mundo sublunar vem a ser uma causa. Tudo aquilo que é ou devém nesse
mundo é um efeito. Para explicar as coisas em sua existência e seu movimento, ele
julgava necessário considerar quatro causas: a causa material e a causa formal (ou
essencial) elucidam tudo aquilo que está presente no mundo como coisa determinada; a
causa eficiente (ou motora) e a causa final explicam como o existente veio ou virá a ser,
ou seja, move-se, desenvolve-se, produz-se, corrompe-se etc.
Aristóteles era um pensador metafísico que concebia a realidade não só como
aquilo que se manifesta empírica, física e sensivelmente, mas também como substrato
que tem uma natureza supra-empírica e supra-sensível – subjacente à realidade física.
Ademais, como se sabe, a ontologia aristotélica está centrada no conceito de substância,
a qual, segundo ele, caracteriza justamente o ser enquanto ser. Aquilo, pois, que foi
referido na sentença precedente como “substrato” vem a ser, precisamente, a substância
– a qual é também entendida por ele como fundamento primeiro do ser.
Mas o que é, afinal, a substância para Aristóteles?
O ser, para Aristóteles, pode ser apreendido de múltiplos modos e estes lhe
pertencem enquanto tal. Dito de outra maneira, o ser não é unívoco, mas polívoco.
Mesmo contendo múltiplos aspectos, o ser tem uma identidade própria e esta é dada por
aquilo que ele é essencialmente. Eis que, portanto, que o ser é, ao mesmo tempo, plural
e uno – pois contém em si uma fonte de unidade. E aquilo que responde por essa
unidade é a substância. Entretanto, por ser múltiplo, tem acidentes, ou seja,
propriedades fortuitas, não-essenciais. Assim, por exemplo, no que se refere à
substância, o homem é um ser racional; mas, no que se refere aos acidentes, ele pode ser
branco, negro, amarelo, etc. A racionalidade é o atributo formal que define o homem
como homem, ainda que ele possa pensar como grego ou como moderno.
Conforme Reale, ademais, para esse filósofo a substância é o composto da
matéria e da forma, não tanto, porém, a matéria em si mesma, mas principalmente a
forma3. Para que isto fique mais claro, considere-se o exemplo da estátua em que o

2
Kant, na Crítica da Razão Pura, apresenta algumas antinomias que se tornaram famosas. Eis aqui duas
delas: aí ele mostra, primeiro, que o mundo tem um começo no tempo e, depois, que ele não tem começo
algum; mostra também, primeiro, que a matéria é composta de partes finitas e, em seqüência, que ela é
infinitamente divisível.
3
Note-se que “forma” não indica aqui a figura exterior das coisas, mas a sua natureza interior, a sua
essência íntima.
3

mármore é a matéria e a idéia do escultor já posta no mármore é a forma. A substância,


pois, consiste no que faz a estátua ser o que ela é. Note-se que a estátua é de mármore,
mas o que faz dela uma estátua de Apolo vem a ser, sobretudo, a idéia desse deus da
mitologia Grego-romana, a qual estivera presente na cabeça do escultor como projeto,
quando este a produzira. De qualquer modo, vê-se que na concepção de Aristóteles de
substância entra tanto as matérias sensíveis quanto as entidades supra-sensíveis – ainda
que com prioridade ontológica para essas últimas.
Já foi dito que a substância é substrato, ou seja, vem a ser algo inerente ao ser de
que se trata e que, portanto, não pode aparecer como predicado de outro ser. Deve-se
acrescentar, agora, que ela subsiste por si mesma e independe do resto, ou seja, é e
permanece autônoma. Ademais, para Aristóteles, a substância é uma característica
determinada das coisas que existem no cosmos, subsistindo de maneira intrinsecamente
unitária. Não é, pois, um atributo universal e abstrato das coisas; não é, também, algo
plural ou um agregado de partes. Finalmente, deve-se mencionar que a substância só
existe em ato, ou seja, no modo da atualidade. Na esfera do sublunar4, a substância
coincide com sínolo (ou seja, com a união da forma com a matéria) e, portanto, ela está
sempre presente no ser das coisas concretas individuais, coisas essas que habitam
efetivamente esse mundo.
Posto isto, é preciso voltar ao princípio de causalidade de Aristóteles para fazer
uma diferenciação importante. Pois, as quatro causas não se comportam simetricamente
em relação às categorias de potência e ato, as quais atravessam toda a concepção de
mundo de Aristóteles. Eis que esse pensador não quis apreender apenas o que aí está e
permanece, mas preocupou-se, sobretudo, em compreender sem aporias o movimento, a
translação, o crescimento, a alteração, a geração e a corrupção dos corpos. Ele, como se
sabe, combatia os eleatas que negavam toda mudança afirmando que “o ser é, o não-ser
não é”. Ora, como essas categorias permitem a apreensão do movimento? Isso se mostra
usualmente por meio de exemplos: uma semente é uma árvore em potência; crescida,
após ter germinado, será árvore em ato; o mármore é uma estátua em potência; a estátua
vem a ser em ato a forma projetada pelo escultor.
É preciso integrar agora as categorias de matéria e forma, ou seja, de substância,
com as categorias de ato e potência. A matéria enquanto tal é sempre potência, ou seja,
capacidade de receber a forma, tornando-se uma coisa efetivamente presente no mundo.
A madeira, por exemplo, pode se transformar em vários objetos diferentes entre si: um
cajado, uma cruz, um amuleto, etc.5 A forma, por sua vez, tende a ser configurar sempre
como atualidade. A forma estátua de Apolo só existe em ato na estátua de Apolo.
Enquanto projeto é apenas uma forma ideal que ainda não foi concretizada. Segundo
Reale, o ato tem prioridade sobre a potência: só se pode conhecer a potência
examinando o ato de que é potência. “O ato (que é forma) é condição, regra e fim da
potencialidade” (Reale, 2007, p. 55).
As categorias de ato e potência também se articulam com as categorias de causa
eficiente e causa final. Eis que, para Aristóteles, o fim que se cristaliza nas coisas é ato e
a motricidade que a produz é potência. Para compreender essa declaração do filósofo
grego é preciso voltar à prioridade do ato em relação à potência, acima referida. Pois,
não se pode conhecer a causa eficiente antes que esta tenha produzido o seu efeito,
enquanto que a causa final se manifesta já naquilo que foi e está feito. Veja-se com o
próprio Aristóteles afirma isso: “o fim é ato, e graças a ele adquire-se também a

4
Na esfera do supralunar, a substância pode existir só como forma, ou seja, como imaterial, supra-
sensível por excelência, Deus.
5
É importante, aqui, não confundir forma com formato. Este último ver a ser apenas o aspecto vulgar da
forma.
4

potência: de fato, os animais não vêem com a finalidade de possuírem a vista, mas
possuem a vista com a finalidade de verem” (apud Reale, 2007, p. 55).
Note-se, para finalizar essa seção, que Aristóteles, por meio das categoriais de
potência e ato, apreende o movimento como movimento de constituição, estabelecendo
nexos internos entre as coisas e os acontecimentos. A semente (apreendida no registro
da potência) e a árvore (apreendida no registro do ato) não são dois entes
ontologicamente separados e, assim, meramente ligados pela atividade da razão
subjetiva cuja lógica se orienta fortemente pela possibilidade de manipular tudo o que
existe. Porém, mesmo tendo apreendido os nexos internos entre os fenômenos por meio
das categorias de ato e potência, o Estagirita manteve separados a causa e o efeito.

Causalidade moderna
A concepção aristotélica de causalidade teve um papel central no modo de
pensar o mundo até o auge do movimento renascentista, no curso do qual a cultura da
civilização ocidental sofreu uma grande transformação No correr do século XVII, como
se sabe, surgiu o movimento da ciência moderna que veio colocar as idéias antigas de
causalidade – assim como muitas outras – em eclipse. No despontar desse movimento, o
olhar humano desceu do céu e passou a se concentrar no mundo terreno. O saber
moderno desenvolveu-se pouco a pouco para tornar o homem senhor e dono da
natureza.
Nessa nova perspectiva, a causa formal e a causa final foram abandonadas sob a
alegação de que elas não geravam um conhecimento experimental. A causa material foi
conservada numa forma bem modificada, pois se passou a compreender a matéria com
simples objeto de manipulação. Das quatro causas de Aristóteles apenas uma delas, a
causa eficiente, veio a ser considerada digna de permanecer como princípio de
causalidade no novo espírito científico. A causa motora, nessa grande transformação,
porém, deixou de pensada ao modo antigo. Porque, ao se manter agora uma
compreensão atomista da matéria, passou-se também a admitir que o princípio de
causalidade não fosse outra coisa do que expressão de relação puramente externa entre
eventos (manifestações da matéria).
O termo causa passou, então, a indicar uma influência externa que era capaz de
produzir mudança. Ao se pensar o princípio de causalidade desse modo,
concomitantemente se exigiu que ele tivesse expressão matemática, isto é, que pudesse
retratar a produção de eventos por meio de eventos segundo regras fixas ou, o que é o
mesmo, por meio de uma sucessão pré-estabelecida de passos lógicos. Desde cedo, pois,
a ciência moderna confundiu a própria racionalidade como a lógica dos algoritmos,
almejando representar por meio dela todos os funcionamentos do mundo. Ao mesmo
tempo em que o conhecimento digno de crédito passou a se expressar por meio de
proposições formais, fórmulas e programas, instituiu-se como norma de cientificidade
que ele deveria estar fundado empiricamente.
Já Galileu, no começo do século XVII, procurou definir a causalidade eficiente
como um princípio central da ciência dos tempos modernos. Segundo ele, algo apenas
poderia ser chamado de causa se, estando presente, viesse a ser necessariamente seguido
por determinado efeito. Removida fosse essa causa, o efeito não se manifestaria. Dito de
outro modo, ele pensou a “causa eficiente como condição necessária e suficiente para o
aparecimento de algo” (Bunge, 2008, p. 33). Posteriormente, como esse tipo de
definição discursiva – outras semelhantes poderiam ser arroladas – foi considerado
impreciso e vago, passou-se a procurar formulações formalmente rigorosas. Note-se que
a demarcação de Galileu confunde causa com condições para o surgimento de um
5

evento, permitindo que um número indefinido de fatores possa estar operando nos
fenômenos em consideração.
Antes de apresentar sumariamente duas definições formais do princípio de
causação, é preciso mencionar a tese Hume. Segundo esse autor, a noção de causação
está intimamente ligada ao problema da indução. Para ele, não existem idéias inatas,
pois todas elas surgem da experiência de um modo imediato. Como os homens
raciocinam indutivamente apreendendo na própria mente, no processo da experiência,
os encontros constantes de eventos, considerou o ato mental de associação de eventos
como base do conceito de causação. Para ele, portanto, causação é mera hipótese sobre
conjunção de eventos; não expressa o que acontece, mas o que vai acontecer se certas
condições forem satisfeitas.
Ora, a formulação de Hume fornece uma base geral para muitas das
formalizações propostas na literatura analítica do princípio de causação. Mas ela
contém, pelo menos para o filósofo da ciência realista, um problema bem conhecido:
confunde, nessa perspectiva, correlação de eventos com efetiva causação. Respeitando a
formulação empirista original e indicando a causa e o efeito, respectivamente, pelas
letras C e E, esse princípio pode ser expresso do seguinte modo: se ocorre o evento C,
então, e somente então, o evento E sempre ocorre. Caso se deseje introduzir o requisito
de que esse princípio deve expressar uma conexão realmente existente, ele pode passar a
ser expresso da seguinte maneira: se ocorre o evento C, então, e somente então, o evento
E é sempre produzido. Note-se, então, que a diferença entre essas duas formulação é
dada pela distinção existente entre “meramente ocorrer” e “ser efetivamente produzido”.
Na segunda delas, “o efeito não acompanha meramente a causa, mas é engendrada por
ela” (Bunge, 2007, p. 47).
A primeira formulação contém implicitamente três exigências, indicadas aqui
em seqüência: A) o nexo externo entre C e E é incondicional, ou seja, C é necessário
para que E ocorra; dito de outro modo, E não é um acontecimento arbitrário. B) a
prioridade da causa em relação ao efeito é meramente existencial, isto é, não implica em
antecedência temporal entre uma e a outra. C) o nexo entre C e E é constante, não
admite exceções: sempre que C ocorre, E sempre ocorre. A segunda formulação, além
de demandar também essas três, põe uma exigência adicional – que a cláusula de
produtividade seja observada: E não apenas acompanha C, mas é produzido por C.
O principio de causalidade, em sua formulação moderna, está conectado por fios
esgarçados ao mesmo princípio tal como aparece em Aristóteles. Ao se abandonar quase
tudo da formulação antiga, abandonou-se também a visão cósmica do mundo e, assim, a
herança mitológica, apropriada e transformada por meio da razão, de que esse mundo é
um produto divino, intrinsecamente harmonioso. É preciso saudar aqui a virada
materialista da ciência moderna; porém, como o materialismo que passou a dominar
configurou-se como mecanicista, ele deixou ainda um lugar importante para um deus
relojoeiro. À medida que esse materialismo passa a pensar a causa como atuação
extrínseca sobre a matéria, isto é, como relação mecânica, reforça a separação herdada
da causa em relação ao efeito.

Causalidade em Hegel
É interessante partir nessa seção do próprio Hegel.6 Na Pequena Lógica, ele diz:
“no sentido ordinário da relação causal (...) causa e efeito são representados como duas

6
É preciso afirmar neste momento que este escrito só se interessa pelo “miolo racional” das idéias de
Hegel – e não por seu “invólucro místico”.
6

existências autônomas diversas; o que somente são, porém, quando nelas se abstrai da
sua relação de causalidade” (Hegel, 1995, p. 283). O que ele quer dizer por meio dessas
frases tão surpreendentes? Para encontrar a resposta é preciso notar que diz algo mais
sobre esse ponto: afirma que, no sentido ordinário, a causa é finita e que, igualmente, o
efeito é finito. Logo se vê, por isso, que ele quer mostrar, em primeiro lugar, que causa e
efeito são compreendidos usualmente como noções distintas, fechadas em si mesmas, as
quais são postas em relação apenas externamente7. Ademais, se ele diz que assim se
abstrai a relação de causalidade é porque compreende essa relação como nexo interno e
substantivo entre a causa e o efeito. E isto se confirma quando afirma, em seqüência,
que “o entendimento costuma resistir à substancialidade” (Hegel, 1995, p. 283), pois,
em seu léxico, esse termo capital (entendimento) indica o modo de pensar analítico que
distingue e separa, tendendo a não apreender os nexos internos.
A explicação apresentada, no entanto, deixou outra questão em aberto: o que é,
afinal, substância para Hegel? Que se observe desde logo que a cientificidade moderna,
pautada no positivismo e no pragmatismo, não suporta qualquer categoria de substância.
Teria esse termo o mesmo significado que tinha na metafísica de Aristóteles? Como o
Estagirita vincula internamente, mas ainda assim separa causa e efeito, desde logo se
deve notar que a sua concepção de substância não pode ser a mesma de Hegel. Eis que
essa noção, assim como, em geral, todas as outras do filósofo grego, respeitam, em
última análise, às limitações do entendimento. Apenas com Hegel, essas limitações
serão ultrapassadas vigorosamente.
Antes de examinar a categoria hegeliana de substância, note-se que ele, por
assim dizer, substitui “causa e efeito” por “causa-efeito”; eis que afirma que “esse dois
termos não são apenas diferentes, mas também são igualmente idênticos” (Hegel, 1995,
p. 284). Porém, não se entenda por isso que, ao dizer “causa é efeito” ou que “efeito é
causa”, esteja ele afirmando que causa é exatamente igual e o mesmo que efeito. Pois, o
“é” não significa aí um simples “igual” ou a identidade matemática, mas indica isto sim
uma espécie de passagem reflexiva. O “é” hegeliano aponta para uma reflexão
(ontológica) da causa no efeito e do efeito na causa.
Falou-se em passagem; mas de que passagem se trata, propriamente? A seguinte
sentença esclarece esse ponto: “causa e efeito são ambos um só e o mesmo conteúdo, e
sua diferença é, antes de tudo, somente a do pôr e do ser posto” (Hegel, 1995, p. 284).
A causa é o pôr; e o efeito é o ser posto; o mesmo conteúdo se apresenta, assim, em dois
registros diferentes que permanecem inseparáveis. Note-se, ademais, que há uma
contradição dialética entre o ser pressuposto e o ser posto – eis que um deles nega o
outro, sem excluí-lo, no entanto.
Em Hegel, a substância não é substrato que define o ser enquanto ser e, em
conseqüência, não é sínolo e, em particular, forma. Também não é suporte de
propriedades. Houlgate acentua que, para Hegel, substância “não é o ser enquanto tal,
mas o ser que é porque é, o ser como absoluta mediação de si por si mesmo” (apud
Houlgate, 2007, p. 234). A frase pode parecer arrevesada, mas ela diz que substância é a
atividade inerente ao ser, a capacidade de ser por a si mesmo, de passar da potência para
a efetividade. Eis que essa atividade põe os acidentes, os eventos e as ocorrências.
Segundo o próprio Hegel, enquanto expressão de potencialidade interior,
“substância é propriamente relação” (Hegel, 1995, p. 282), ou melhor, relação possível.
E, numa primeira forma, enquanto expressão de necessidade, substância é relação

7
Hegel faz aqui, especifica e diretamente, uma crítica à cientificidade moderna. Ele não se opõe
frontalmente a Aristóteles já que este filósofo integra a causa e o efeito como momentos, ainda que
analiticamente separados, dos processos do ser e do vir a ser. Ao contrário, é possível dizer que ele
desenvolve e aperfeiçoa o pensamento desse autor.
7

causal. A substância, mediante reflexão sobre si mesma, passa nos acidentes – e, nesse
sentido, manifesta-se como capacidade de originar, ou seja, como causa. Na negação de
si mesma como possibilidade, supera-se para produzir efetividades, manifestando-se
como efeito. Ora, essa capacidade de originar não produz apenas os acidentes, mas
também conforma a relação causal propriamente dita.
A relação de causa-efeito, a passagem do pôr ao ser posto, requer o encontro de
duas substâncias: no contato, em uma delas se encontra a causa como imediata e na
outra, igualmente de modo imediato, está o efeito. Dessa maneira, a primeira delas
figura como ativa e a segunda dela figura como passiva. Mas a relação de causalidade
vem a ser justamente a superação desse caráter imediato, ou seja, a reflexão da causa no
efeito. Ora, esse processo de mediação de um pelo outro revela existir, também, unidade
entre ambos; a superação da diferença revela-se como unidade de contrários.
Examine-se, agora, para prosseguir, o seguinte exemplo: a faca corta a manteiga
e é, por isso, causa ativa; a manteiga cortada é efeito passivo. Mas a manteiga permite o
corte da faca e, por isso, é também causa ativa, de tal modo que a faca cortante figura
agora como passiva. O que se vê nesse exemplo? Vê-se por meio dele que a substância
que parece passiva reage, torna-se também ativa; e que a primeira substância passa,
então, a figurar como passiva. Eis que, portanto, a reflexão da causa no efeito implica
também, ao mesmo tempo, a reflexão do efeito na causa – uma espécie de via de mão
dupla. Tem-se, assim, a segunda forma da relação causal: eis que “a causalidade passou,
com isso, para a relação de ação recíproca” (Hegel, 1995, p. 284).
E aqui vale citar um longo trecho do próprio Hegel. Antes disso, porém, é
preciso compreender a expressão “progressão infinita” aí empregada. Com esse termo,
ele quer se referir ao círculo fechado das causas para os efeitos e dos efeitos para as
causas que se nota, por exemplo, num sistema orgânico ou num sistema social. Eis,
pois, o que ele diz:

“A ação recíproca é a relação de causalidade posta em seu desenvolvimento


completo e é também a essa relação que a reflexão costuma recorrer quando se
lhe mostra, como satisfatória, a consideração das coisas sob o ponto de vista da
causalidade, por motivo da progressão infinita anteriormente mencionada.
Assim, por exemplo, quando se trata de estudos históricos, discute-se primeiro a
questão de ‘se o caráter e os costumes de um povo são a causa de suas
constituição e de suas leis, ou se, ao contrário, são seus efeitos’. Depois se
avança até compreender a ambos – caráter e costume de um lado, constituição e
leis de outro – sob o ponto de vista da ação recíproca, de sorte que a causa, na
mesma relação em que é causa, é ao mesmo tempo efeito; e o efeito, na mesma
relação que é efeito, é ao mesmo tempo causa.” (Hegel, 1995, p. 286).

Havendo chegado à categoria de ação recíproca, torna-se possível passar a


discutir os paradoxos referidos na “introdução”, os quais, como lá se havia informado,
aparecem na compreensão dos sistemas dinâmicos não-lineares, mais especificamente,
do chamado “caos determinista”.

Causalidade em sistemas caóticos


Na matemática, chamam-se de caóticos os sistemas dinâmicos cujas trajetórias
são reguladas por atratores ditos estranhos. Tais atratores são assim chamados porque
não são claramente identificáveis como os atratores pontuais e cíclicos finitos que
caracterizam os sistemas bem ordenados. Ao invés, o termo designa uma região do
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espaço de fase em que as trajetórias circulam de forma inesperada para um observador


científico que as contempla na tela de um computador. Quando são representadas por
seqüências de pontos, mesmo estando rigorosamente determinadas a partir das
condições iniciais e dos parâmetros, afiguram-se como indeterminadas. Essas trajetórias
são estritamente reguladas por lógicas deterministas (por exemplo, equações
diferenciais ou a diferenças finitas), mas elas não têm um comportamento que pode ser
dito previsível. Pois, dependem de maneira hipersensível das condições iniciais, sejam
quais forem elas. Se uma segunda trajetória é gerada a partir de uma pequena alteração,
por menor que esta o seja, da condição inicial de uma primeira, ela vai se afastar mais e
mais da trajetória dessa primeira, até um ponto em que as duas passam a parecer
totalmente incongruentes entre si.
Os sistemas matemáticos enquanto tais são ideais e, nessas condições, sempre
se pode supor que uma inteligência laplaciana opera com eles de forma perfeita. Frente
a um dado sistema dinâmico, por mais complicado que este o seja, essa inteligência
mostra-se sempre capaz de determinar o correto ponto de partida, assim como o exato
percurso de qualquer trajetória em particular. Um paradoxo surge aqui, no entanto,
porque, ao se imaginar a existência de uma inteligência perfeita, assume-se
implicitamente que ela computa o que não pode ser computado. Pois, depois de Gödel e
Turing ficou demonstrado que há limites insuperáveis à computação. Em conseqüência,
é preciso baixar, também aqui, os olhos do céu da idealização em direção a terra da
computação real. E, para fazê-lo, é preciso examinar sistemas materiais em que o
comportamento caótico se manifesta fisicamente. Aqui se trabalha com uma variação do
bilhar de Sinai (assim chamado em homenagem ao matemático russo Yakov G. Sinai)
(Ruelle, 1993, p. 57-62).
Imagine-se uma espécie de mesa de bilhar que está posicionada num plano
inclinado suave, mas suficiente, para que as bolas corram sozinhas da parte mais alta
para a parte mais baixa, devido à ação da gravidade. Essa mesa é plana, mas não é vazia
como as mesas usuais de bilhar, pois contém em seu espaço delimitado pelas bordas
uma coleção bem grande de obstáculos convexos (pinos). As bolas entram na mesa por
meio de uma caneleta de largura e comprimento adequados, situada na parte mais alta
da mesa. Quando se põem bolas no ponto inicial da caneleta, esta corre, entra na mesa e,
depois de bater em diversos pinos, chega à borda da mesa situada na parte inferior do
plano inclinado. Quando se observa o que acontece com sucessivas bolas postas na
parte superior da caneleta, vê-se que elas chegam a pontos diferentes dessa borda
inferior, permanecendo aí, então, estacionadas.
As bolas caem, mas o seu ponto de caída varia e não pode ser previsto de
antemão. Ora, isto que é observado reflete, desde logo, duas características do
movimento das bolas antecipada pela teoria dos sistemas dinâmicos: a) há certamente
pequenas diferenças nas condições iniciais de partida de uma bola para outra; b) a
reflexão das bolas nos obstáculos convexos amplia as divergências inicialmente
existentes em suas trajetórias. Como as trajetórias das bolas que aí correm divergem, a
mesa de bilhar em consideração figura como um exemplo de sistema caótico real. Ora, o
próprio modo de funcionamento desse sistema revelado pelo experimento acima
relatado suscita conjecturas paradoxais. Como no percurso seguido pelas bolas atua uma
infinidade de pequenas causas e como estas se encontram entrelaçadas, contribuindo
para o resultado final, isto não rebaixa a própria noção de causalidade na esfera da
ciência? Como a freqüência com que as bolas caem em segmentos determinados da
borda inferior parece aleatória, seria possível pensar que o curso seguido por elas estaria
ainda regido por leis deterministas?
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Segundo Sève, ao se procurar compreender, com base no entendimento, os


experimentos levados a efeito no bilhar de Sinai – notoriamente uma máquina simples,
mas muito especial – aparecem dois paradoxos: o paradoxo da interação e o paradoxo
do indeterminismo (Sève, 2005, p. 59-69), os quais abalam a crença não só na
analiticidade das relações causais, mas também na pertinência teórica da própria
causalidade. Essa máquina, ainda que especial, funciona como um despertador que
acorda o pensamento para certas características gerais da causalidade complexa.

Paradoxos da causalidade
É preciso retomar aqui, pois, o princípio de causalidade. Como se viu
anteriormente, segundo o raciocínio mecânico, a cada causa corresponde um efeito, ou
seja, se uma dada causa aparece, ela é invariavelmente seguida de seu efeito. Ademais,
esse requisito é usualmente acompanhado pelo postulado que afirma a
proporcionalidade entre cada causa e o seu efeito (o qual, diferentemente do princípio
de univocidade aludido, não se apresenta como exigência lógica, mas metodológica).
Dito de modo mais sintético, a causalidade é normalmente apreendida como
determinação unilinear.
E esses supostos se situam na base da formulação de leis, as quais consistem na
identificação de determinadas relações de causa e efeito relevantes que operam nos
processos reais; para tanto, como se sabe, faz-se sempre abstração de uma infinidade de
pequenas causas que também aí atuam, mas são pouco importantes. Ora, um dos
resultados mais espetaculares da teoria da dinâmica não-linear pura e aplicada vem a ser
a descoberta dos sistemas caóticos, em que pequenas causas geram efeitos
significativos. E essa constatação obriga a pensar, em geral, que as causas pequenas
também podem ser relevantes – ou melhor, altamente relevantes na produção de certos
efeitos. Se este é o caso, o esforço de discriminação do raciocínio mecânico tradicional
não fica incólume. Pois, em princípio, “é preciso ter em conta absolutamente tudo;
influência alguma, por mínima que seja, pode ser negligenciada a priori” (apud Sève,
1995, p. 60).
Mais do que isso, se as pequenas causas podem ser relevantes na produção de
certos efeitos importantes não se pode mais tomar por certo o caráter unilinear e a
analiticidade da causalidade que vigora no mundo real. O primeiro, porque a
proporcionalidade entre causa e efeito não vale aí em geral, nem aproximadamente; mas
também porque a univocidade entre uma e outro torna-se bem problemática. O segundo,
porque não se pode confiar sempre na possibilidade de isolar as causas que atuam nos
processos reais, já que são inumeráveis e se encontram profundamente emaranhadas
entre si mesmas. Os processos não-lineares em geral envolvem circuitos de
retroalimentação de várias ordens, sejam eles negativos ou positivos, os quais
contribuem para tornar a realidade intrincada e para desacreditar a adequação da
concepção usual de causalidade.
Havendo aceitado que pequenas causas podem gerar grandes efeitos, também se
torna necessário acolher a idéia de que todo efeito, mesmo sendo diminuto e pouco
importante, pode ter um conjunto muito grande de causas. Este é, justamente, o caso do
biliar de Sinai, pois, o resultado final do movimento das bolas aí depende de uma
quantidade imensa de pequenos fatores, os quais atuam em seu percurso. Quando há
muitas ou mesmo uma multidão de causas, ocorre uma negação do princípio da
causalidade unilinear, o que, para o entendimento, se afigura como um colapso. É assim
que ele passa a por em questão, erroneamente, a própria categoria de causalidade: “a
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noção de causa” – afirma Ruelle – “apresenta-se nesse ponto de uma forma tão diluída
que perde toda a sua significação” (apud Sève, 1995, p. 61).
Ora, é isto o que gera paradoxo da interação complexa, o qual não se dissolve
por meio de distinções apropriadas: o nexo causal, contraditando a univocidade, figura
como plurívoco.
Como conservar a causalidade, aceitando a complexidade do mundo e se pondo
em questão, ao mesmo tempo, a simplificação analítica da ciência moderna? Ora, isto
exige um esforço lógico para ultrapassar as dicotomias do entendimento: em particular,
aqui, aquela estabelecida entre causa e efeito, assim como aquela entre simplicidade e
complexidade na determinação dos processos naturais e sociais. Reclama, pois,
propriamente, que se passe a pensar os processos reais como dinâmicas de interação
altamente complexas em que as causas são, ao mesmo tempo, efeitos e os efeitos, ao
mesmo tempo, causas. E isto só pode ser feito aceitando a lógica da ação recíproca tal
como foi formulada por Hegel. As causalidades descobertas pelo entendimento, nessa
perspectiva, figuram como abstrações razoáveis em muitas circunstâncias, mas não dão
conta adequadamente – ao contrário – da complexidade do mundo real.
Como enfrentar, agora, o paradoxo do indeterminismo. Como se sabe, o
mecanicismo fornece o paradigma em que se baseia o determinismo, pois ele suscita a
crença de que os estados futuros de um sistema são dedutíveis do conhecimento do
estado presente desse sistema, assim como das leis que regem o seu movimento. Ora, o
biliar de Sinai mostra que um sistema mecânico é capaz de comportamento
imprevisível, de tal modo que o movimento das bolas parece conter elementos de
indeterminação. E esse paradoxo configura-se já no nome matemático do processo
dinâmico aí materializado, pois este é designado, como foi visto, pelo termo “caos
determinístico”. Sabendo que por “caos” se entende normalmente a ausência de ordem,
vê-se logo que essa designação é um oximoro: ela faz pensar que a desordem é
consistente com a ordem.
A contradição, porém, é insuportável para o entendimento. Uma forma de
superá-la nesse caso consiste em apelar à metafísica muitas vezes consagrada na
compreensão da matemática. Esta, em sua perfeição lógica, apreende a verdade oculta
na realidade que se mostra imperfeita. Nessa perspectiva, lendo o ideal no real, a
contradição entre ordem e desordem acima apontada desaparece. A ordem é afirmada
como verdadeira realidade e a desordem é tida como aparente. O fenômeno em
consideração – por exemplo, a queda das bolas no bilhar de Sinai – parece imprevisível
porque o observador não conhece com exatidão todas as condições que afetam suas
trajetórias. O acaso observado no comportamento das bolas torna-se aparente, passando
a figurar, então, como produto da fraqueza cognitiva do observador científico. Ora, isto
dá suporte a uma idéia subjetiva de complexidade como aquilo que é difícil de entender
porque exige muitíssima minúcia.
Outra forma de superar o paradoxo acima indicado vem a ser admitir de partida
o caráter intrinsecamente aleatório dos sistemas dinâmicos não-lineares reais. Nesse
caso, as trajetórias das bolas no biliar de Sinai são percebidas como manifestações de
um processo estocástico que opera na dimensão microscópica do sistema. Agora, ao
contrário do caso anterior, a contradição é afastada porque o determinismo é despedido
da ciência como se fosse, em última análise, simplesmente falso. Se ele parece valer no
nível macroscópico de funcionamento de certos sistemas, isto é uma ilusão que aí surge
devido à sobreposição e ao cancelamento mútuo de muitas pequenas causas aleatórias.
Ora, por sua vez, isto funda outra idéia de complexidade, agora objetivista, segundo a
qual a própria matéria está constituída por flutuações microscópicas inerentemente
aleatórias.
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Partiu-se de um paradoxo e se caiu numa antinomia: cada um dos raciocínios


acima parece verdadeiro em seus próprios termos, notando-se, entretanto, que estão em
conflito entre si. Segundo Sève, cada uma dessas teses não vem a ser apenas refutada
por sua oposta, mas elas se refutam a si mesmas. A tese determinista se contradita a si
mesma, pois propõe uma tarefa – o conhecimento minucioso e perfeito das causas e de
seus efeitos – impossível de ser realizada. E o faz porque postula metafisicamente a
existência de um conhecimento perfeito atribuível, supostamente, a alguma divindade.
A tese não-determinista depende de uma ontologia do que se encontra oculto; postula,
assim, uma verdade primeira que não pode ser verificada e que não está confirmada
minimamente, em suas conseqüências, pela história de sucesso da mecânica no campo
da ciência e da tecnologia.
Pondo essas duas teses em confronto, vê-se logo que se está diante de obras do
entendimento que, segundo a sua própria norma, separa e opõe determinação e
indeterminação causal como se fossem noções estranhas uma à outra. E, como se viu no
curso da argumentação precedente, ao tentar expulsar a contradição do discurso
científico, ele cai em contradição.
É preciso, segundo Sève, encontrar uma relação entre causalidade e
determinismo que seja compatível com a indeterminação e a imprevisibilidade de certos
fenômenos. Nessa busca, descobre-se que é preciso acolher a contradição (dialética)
para não cair em contradição (formal).
Descobre-se, em particular, que a inteligibilidade de certos mecanismos, como o
bilhar de Sinai, depende do acolhimento de uma compreensão de complexidade que
remonta a Hegel: segundo esse autor, a infinidade dinâmica e combinatória das relações
e das interações entre as coisas produz um mundo em constante renovação, sujeito a
transformações irreversíveis, em que as determinações e as indeterminações causais
estão presentes como momentos de todos os processos.
Nesse mundo, necessidade e contingência não se apresentam como pólos
contraditórios que se excluem, mas como unidade de contrários. Nos processos que
ocorrem nesse mundo, a necessidade se manifesta por meio de nexos causais que regem
os fenômenos. A ciência então, como dimensão da práxis, cuida de apresentar esses
nexos objetivos como leis. Como essas leis não operam em isolamento de outros nexos
causais, elas se configuram como tendenciais. Ademais, nenhum processo do mundo
ocorre sem que seja afetado por contingências, as quais se originam precisamente – não
de uma aleatoriedade intrínseca do real – mas da própria complexidade combinatória, a
qual não se oculta sob os fenômenos, mas, ao contrário, neles transparece, sendo então
apreendida segundo a lógica da reflexão – não como fundamento primeiro.
E assim se chega nessa nota de aula a uma conclusão: a complexidade solicita a
dialética para não ficar em dívida com a razão. Ela, porém, não deveio para fechar as
questões postas em discussão, mas para plantar uma semente que poderá vingar em
futuras investigações. O esclarecimento da questão da complexidade nas ciências
naturais e sociais é ainda incipiente e controverso.
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Referências
Bunge, Mario – Causality and modern science. New Brunswick: Transaction Publisher,
2008 (4th edition).

Hegel, Georg W. F. – Enciclopédia das ciências filosóficas; I – A ciência da lógica. São


Paulo: Edições Loyola, 1995.

Houlgate, Stephen – Substance, causality and the question of method in Hegel’s Science
of Logic. In: The reception of Kant’s Critical Philosophy – Fichte, Schelling &
Hegel. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

Reale, Giovanni – Aristóteles – História da Filosofia Grega e Romana. São Paulo:


Edições Loyola, 2007, vol. IV.

Ruelle, David – Acaso e caos. São Paulo: Editora da UNESP, 1993.

Sève, Lucien – De quelle culture lógico-phisophique la pensée du non-linéaire a-t-elle


besoin ? In : Émergence, complexité et dialectique – Sur les systèmes
dynamiques non-linéaires. Paris : Odile Jacob, 2005.

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