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A expressão Estado Poiético parece inusitada. Serve, porém, para precisar uma realidade do Estado
contemporâneo, sobre a qual estudiosos começam a refletir.
Esta conferência desenvolve-se em torno de três conceitos básicos: o poder, como conteúdo
essencial do Estado, o ético e o poiético. Convém esclarecê-los, primeiramente, para depois
discorrermos sobre o tema propriamente dito.
I - O Poder
O termo pode ser analisado em dois sentidos: 1) o poder em si mesmo considerado e 2) considerado
na esfera do político. No primeiro sentido, poder é uma "vontade determinante". Aqui aparecem
dois conceitos fundamentais: o de vontade, que pode ser considerada como impulso do querer ou
como razão de querer, querer racional aferido na relação de meio a fim, na medida em que o meio
seja adequado e o fim, compatível, realizável, valorável. O segundo conceito, "determinante",
significa que essa vontade determina uma outra vontade, o que pode ocorrer pela força ou por
convencimento. É, contudo, o elemento força que especifica o poder, considerado o convencimento
apenas como uma dimensão analógica do conceito de poder1. A força pode ser natural ou humana.
A natureza tem força, mas não tem poder, pois não tem vontade.
O conceito de poder pode ainda ser mais restrito, para ganhar precisão científica: essa vontade
determinante tem de ser aceita. Para haver eficácia do poder tem de haver a força que o garanta. A
eficácia é garantida pela força, mas aceita. Exclui-se da esfera do poder a pura coação; tem de
haver aceitação, senão será violência. É uma orientação e determinação de outra vontade, mas
aceita por esta. Se não há aceitação da vontade determinada, ainda que na forma de submissão
(coactus volui e sed volui),2 será violência. Essa aceitação, na esfera do político ou na esfera
pública, aparece na forma de aceitação universal ou reconhecimento, ainda que formal e tácito.
Então, pode-se fazer uma restrição ainda maior: o poder propriamente dito é poder político.
Ao conceito de poder, não como impulso, mas como vontade determinante, dirigida racionalmente,
e na medida em que esse poder se garante pela força (para determinar a vontade do outro com sua
aceitação), é necessário acrescentar a noção do político, ou seja, a sua institucionalização como um
poder, cujas características são a supremacia, a universalidade e a necessidade (não-contingência)
ou irresistibilidade. Essa institucionalização implica uma organização do poder e uma ordenação
normativa, na forma de uma constituição.
Pode-se, portanto, dizer que o poder político tem como elemento material a força e como elemento
formal a sua institucionalização através da constituição, que é o encontro do político e do jurídico,
ou seja, que tem como elemento formal o direito.
A par desses elementos, há ainda um outro também essencial, de natureza ideal - a ideologia. A
força meramente física não poderia dar unidade a um Estado, senão através de um elemento
espiritual, que, combinando-se com os demais, formassem a organização política do poder.3
Todo poder se orienta por uma ideologia. Não no sentido reducionista de interesses de ide, mas de
um conjunto de idéias que dá unidade à cultura de um povo, embora possa ser usada no interesse de
uma classe ou facção, às vezes de modo deformado. São idéias cupulares que dão unidade à cultura
humana. Daí sua importância na gestão política: ela propõe um programa, um projeto para a
sociedade. Toda sociedade política tem um projeto com pretensão de universalidade, para dar
unidade ao organismo político, ou seja, um projeto para toda a sociedade e não só para uma facção.
Um partido político, por exemplo, tem na sua ideologia um projeto para toda a sociedade e não
apenas para o grupo. A ideologia tem essa pretensão de universalidade, ainda que seja justificação
ideária de interesses de classe. Pois esta, para dar unidade à sociedade, tem de ser interesse de toda
a sociedade (assim foi a liberdade e a igualdade burguesa na Revolução de 1789), sob pena de
deformar-se em alienação, sectarismo ou ação de bando.
Essa organização da força, espiritual e material, na forma de uma ordem normativa, apresenta,
assim, os momentos do querer racional determinante, da aceitação e do resultado positivo, a
eficácia do poder.
II - O Ético
Ethos: há duas acepções no grego para essa palavra. São padrões de comportamento. Padrões que
formam a ordem normativa de um povo (moral, religião, direito, etc.). É o que organiza a cultura e
ordena objetivamente, de modo racional, a conduta humana. É o ethos (com h, em grego) como
costume (mores). Quando é interiorizado, temos o ethos (com e, em grego) como hábito. É criado
pelo homem e, como tal, obedece a um princípio de racionalidade. O ethos existe do ponto de vista
racional, é característica da liberdade do homem. Porque o homem é livre cria sua cultura e, nela,
seu mundo ético, a sua ética. Não é determinado instintivamente a criar, por nada: cria a partir da
razão. O conceito de ético e de liberdade implicam um no outro.
A liberdade pode ser pensada num sentido transcendente, Deus, ou no sentido imanente: a cultura
e, dentro dela, o tempo ético, a história. A liberdade é um absoluto e, como tal, é o bem que
caracteriza o mundo humano; nesse sentido, não se encontra na natureza, que é carência.
Ela nos dá a noção de bem. Não é possível encontrar o bem senão no ser livre. Mesmo no caso do
bem ontológico (Aristóteles) em que a carência é o mal, e a perfeição, o bem. Mas só se valora o
bem e o mal a partir da razão, que tem como parâmetro a liberdade. O que veda a liberdade é o
mal. O termo que Aristóteles usa para designar a ação ética, como livre, é pratein; daí, razão
prática. A ação ética segue-se a uma deliberação (proairesis), livre, com vistas ao bem ético, cujo
momento final é o político.4
Essa liberdade, na medida em que o homem a constrói para si e para toda a sociedade, só se
concretiza no mundo do direito. A liberdade objetivada, o ethos na sua forma e conteúdo mais
elevados, é a ordenação jurídica, na medida em que garanta direitos subjetivos (quem não os tem,
não tem liberdade), ou seja, a reintegração da essência que se alienou da sua realidade
substancial pela cisão do poder e da liberdade individual, o que se opera no advento do Estado
democrático de direito contemporâneo.
III - O Poiético
Vem de poiein (fazer, produzir) e se distingue da techné (Lima Vaz). O poiético é o fazer humano
para conseguir um resultado, um produto. Exemplo: fazer um móvel. Esse ato que resulta num
produto é a poiésis; o meio (como tal) é que é a técnica.
Uma razão poiética é uma razão servil; o fato, a coisa conduz a razão. Ex: a construção de uma
parede. Quando se pensa "como fazer" há o comando do intelecto. Quando, porém, se põe a fazer,
se coloca cada tijolo, mecanicamente, a razão é determinada pela realidade; se se desmancha a
parede, então se vê com mais clareza como a razão é determinada pela coisa.
A razão serve ao fazer, às mãos, que seguem a coisa; não é determinante como nas ciências, na
Ética. É instrumental. É a razão servil.
Na Ética a Nicômaco (1140 a), Aristóteles faz a distinção entre a ação de produzir (poiein) e a ação
ética (pratein), que se segue a uma deliberação (proairesis), no plano ético. Essa diferença se
esclarece ainda mais, quando se verifica que o resultado da ação de produzir é um produto artefato,
operando essa ação sobre coisas, ao passo que o resultado da ação ética é um bem caracterizado na
perfeição de ser do homem, a liberdade, que lhe dá o caráter de pessoa.
Na ação de produzir tem-se o impulso de atuar sobre a coisa segundo uma necessidade, e o
resultado desse atuar é o produto. Mediando esse momento inicial e o final está a habilidade de
produzir, ou seja, o domínio da atividade sob regras dadas na experiência individual para atuar
sobre as coisas, a técnica (techné), pela qual se sabe como se faz, mas não o porquê do que se faz.5
Essa atividade traz em si um elemento de racionalidade, pois não é um acaso, ou uma ação
instintiva (tyché), mas se determina pela própria estrutura da coisa a que se dirige, de tal modo que
há a técnica, a habilidade consciente das regras do fazer (techné) e o fazer como um todo, que
resulta num produto (poietiké), mas que pode ser tão mecânico a ponto de aproximar-se de uma
produção quase sem pensar. De qualquer modo, a coisa dirige a ação. Na ação ética não há a coisa
determinando as regras técnicas; o bem é que dirige a ação segundo normas (nomos) do próprio
sujeito, que é o fim absoluto da ação moral, a pessoa. O bem que se quer realiza-se não através de
regras técnicas, mas pela mediação de leis éticas.
B - O Estado Ético
O embate "poder e liberdade" tem dimensões bem diferentes na cultura ocidental, que é por
excelência, ou pelo menos assim se mostrou, uma cultura da liberdade ou que revela e realiza a
liberdade, pois esses dois termos aparecem no mundo ocidental não como oposições abstratas, mas
dialéticas, isto é, não cristalizadas e afastadas uma da outra, como incompatíveis, de modo a
sujeitar o poder à liberdade, mas como momentos que apontam um momento posterior e superior à
sua oposição, pela sua superação. O poder e a liberdade, após cumprirem uma trajetória de lutas na
história do ocidente surgem como faces de uma mesma realidade, o poder político na sua forma
democrática ou do Estado de Direito contemporâneo.
Podem-se distinguir três planos teóricos na busca da justificação do poder ou do Estado,6 vale dizer,
podemos distinguir na história do ocidente, então considerada como história da revelação e da
realização da liberdade através da dialética do poder e da liberdade, portanto da revelação e
realização do poder político democrático de direito, três momentos fundamentais: o período
clássico, o moderno e o contemporâneo, que poderíamos designar como Estado Ético Imediato,
Estado Técnico e Estado Ético Mediato ou Estado de Direito.
Assim, o Estado Ético imediato, que abrange do período greco-romano até a Idade-Média,
caracterizado pela dimensão ética, é um "Estado para", que se justifica por uma finalidade; o poder
é para realizar alguma coisa, não é em si mesmo. E o que o justifica é ético: o bem para o
indivíduo, enquanto existente numa comunidade.
Platão desenvolve o conceito de poder político ético a partir de Sócrates, o primeiro a pôr o
problema ético perante o poder político como o mais importante. A República de Platão, a par de
ser um tratado do poder político, do Estado, é ao mesmo tempo um tratado da justiça e um tratado
da educação. Aí desenvolve Platão esses três momentos que formam o conceito de Estado. A justiça
é nesse movimento a finalidade do Estado, fornecendo ao mesmo tempo a forma de sua
estruturação, já que o justo, como tarefa fundamental do Estado, é dar a cada um o que é seu, o seu
lugar na sociedade, segundo seu mérito, aferido por suas aptidões.7 Justo, na República de Platão, é
distribuir os cargos e encargos do Estado segundo essas aptidões. Entretanto, para isso ser feito, e o
Estado funcionar como tal, como justo, era necessário formar o cidadão para suas funções e tarefas;
isso era feito pela educação, voltada para o desenvolvimento do cidadão quanto à sua formação
ética e inserção na vida social e política.
Ora, a organização política é para Aristóteles o modo pelo qual o homem realiza plenamente o seu
ser e, por isso, sua felicidade. O Estado tem como finalidade realizar a felicidade dos indivíduos, o
verdadeiro objetivo da ética: a eudaimonia. Realizar as potencialidades do ser humano no sentido
de realizar a sua perfeição de ser, física e intelectual, é o sentido da vida do homem, e isso só é
possível no Estado, cuja finalidade é proporcionar que o indivíduo realize suas virtudes e natureza,
com que adquire a felicidade. Das três estruturas sociais que propiciam esse desenvolvimento ou
que pelo menos estabelecem as bases para a sua realização, a família, a relação de senhorio e o
Estado, este é o único onde isso é plenamente possível, pois existe para realizar a eudaimonia em
toda a sua plenitude (família, vida social e política), segundo Aristóteles. Essa plenitude de ser
significada pelo conceito de eudaimonia, a justa medida e a ordenação hierarquizada do bem
(Lima Vaz) só se realiza como perfeição de ser na sociedade. O homem só se realiza, só encontra a
sua felicidade na convivência com o outro, numa organização de poder que torna isso possível.
O Estado Romano não perde a característica ética. Entretanto, o ethos grego, que configurava todo
um comportamento da comunidade por regras e princípios, assume uma característica específica. O
Estado não tem apenas de formar o indivíduo para a felicidade, mas para a comunidade, para servi-
la. A dimensão ética do Estado concentra-se em função de uma técnica específica: o Estado garante
aos indivíduos o justo, e o justo é o direito de cada um. Garantir o direito de cada um, essa era a
tarefa do Estado ou sua finalidade mais importante com relação ao indivíduo.
Isso mostra que, analogicamente à resposta dada pelos gregos à crise de ethos com a ética (Lima
Vaz), o romano responde com o direito a essa crise ou ruptura. O justo, que tinha no sujeito
virtuoso o seu pólo, passa para o pólo oposto, o sujeito de direito e não apenas de dever moral.
Com Santo Agostinho, o Estado continua com sua dimensão ética, pois que tem a missão de
preparar o indivíduo para a felicidade espiritual. Decepcionado como magistrado, depois da queda
de Roma e invasão dos bárbaros, o que pôs em cheque uma civilização e cultura que pareciam ser
eternas, converte-se ao cristianismo e encontra na vida espiritual o único lugar da felicidade. O
poder é um mal, algo demoníaco, fonte do pecado maior: a guerra, que, por sua vez, é fonte da
desigualdade entre os homens. O poder espiritual, este sim justifica-se por ser santo. Daí distinguir
a cidade dos homens, o poder do Estado, e a cidade de Deus, o poder espiritual ou a comunidade
dos cristãos. O Estado só pode justificar o seu poder se a serviço da cidade de Deus, se se submete
ao poder espiritual e o serve no sentido de converter os homens para a cidade de Deus, em que se
realiza a felicidade. É conhecida e muita citada, para significar como Santo Agostinho igualava
todas as formas de poder entre os homens como poder para o mal, a anedota atribuída a Alexandre
no diálogo com o pirata. Ao ser interrogado por Alexandre sobre o direito de infestar os mares com
seus navios, teria respondido o pirata: com o mesmo direito com que infestas o mundo com seu
exército. Não há distinção entre poder do Estado, considerado em si mesmo, e não como
instrumento da vida espiritual, e o poder do bando.
Em Santo Agostinho, essa justificação ética do Estado também se dá pela sua finalidade. É para
realizar o bem que existe o Estado; entretanto, a eudaimonia, que em Aristóteles era a realização da
felicidade na sua pólis, é agora a beatitude, o bem supremo que só se realiza na Cidade de Deus,
pois a cidade dos homens é a origem do mal maior, a guerra, o que fez do poder do Estado um mal,
semelhante ao do pirata. O poder só será verdadeiro se for para realizar o bem, que é a salvação
espiritual. Aqui o Estado aparece como instrumento de salvação do homem. Nessa salvação, o bem
por excelência, está sua finalidade ética.
O poder justifica-se pela sua finalidade, mas também se legitima pela sua origem, que é mais do
que o senatus populusque romanus, isto é, a potestas do povo e a auctoritas do senado,8 mas a
potentia Dei absoluta, Deus legislador, ou o absoluto transcendente.
b) O Estado Técnico Moderno. No séc. XVII, surge o conceito de Estado Técnico, com Maquiavel:
o poder pelo poder. O poder é considerado como poder em si mesmo e não "poder para". A
justificação do poder é a técnica para alcançá-lo e preservá-lo (o princípio de inércia do poder). O
que justifica o poder é ele mesmo, na medida em que o que importa é desenvolver técnicas para
alcançá-lo e mantê-lo. Maquiavel rompe com o conceito de Estado Ético, cuja finalidade era
realizar a felicidade das pessoas. O poder político não tem de buscar sua justificação fora dele.
Justifica-se em si e por si mesmo. A questão não é buscar a justificação do Estado, quer pela sua
origem, quer pela sua finalidade. O poder justifica-se internamente pelo próprio mecanismo da sua
conquista e do seu exercício. Poder é a "aptidão" para agregar, em um determinado momento
histórico, "as forças e os meios adequados a conservação e objetivos historicamente propostos".9 É
o que Maquiavel designa como virtù, a capacidade de obtê-lo e mantê-lo por meios adequados. Eis
como se justifica o poder.
É importante a posição de Maquiavel, pois a partir daí funda-se a ciência política, com objetivo
próprio distinto da Ética, da Religião e da Filosofia. Une a coerção e a ideologia, tornando possível
o estudo do poder como objeto autônomo em relação a outros fenômenos humanos.
1 - O da legitimidade do poder10 na sua relação com o povo. Legítimo se diz quanto à origem,
quanto ao exercício direto e quanto à finalidade. O momento da legitimidade é a esfera da
potestas. A potestas é o momento imediato do desenvolvimento do poder que se manifesta
originariamente, por exemplo, com um sim ou um não, para que se dê o exercício pleno, na esfera
da auctoritas, já dentro da ordem jurídica ou da legalidade.
2 - O da legalidade, enquanto o poder se considera na sua relação com o direito. Nesse caso, não se
trata de justificar o Estado em razão de sua origem, mas segundo a sua estrutura normativa e sua
função orgânica, no momento da execução do poder. Indaga-se da validade dos atos praticados pela
autoridade. O ato de autoridade vale segundo a legalidade, a sua conformação com a lei, o que liga
toda a execução da lei à origem, isto é, à legitimidade. O exercício do poder se dá face à criação e
execução de normas jurídicas. Só a autoridade competente é autorizada por norma superior a criar
norma ou executá-la, dentro de um quadro de competência e segundo um processo regular; é a
esfera da auctoritas.
3 - O da justiça ou ético, na relação com o indivíduo, segundo a sua finalidade, que é realizar a
liberdade, enquanto Estado de Direito. A liberdade, porém, concebida não apenas como livre
arbítrio, mas como autonomia, é a capacidade de o indivíduo determinar a sua própria conduta a
partir da razão prática, tanto no que se refere à sua ação na esfera privada, como na esfera pública
ou política, na medida em que age como autor das normas jurídicas que regulam sua conduta. Essas
duas faces da liberdade estampadas no pensamento kantiano, e que aparecem sob a forma de ordem
normativa, liberdade objetivada, e de direito subjetivo, liberdade subjetivada, constituem a própria
essência do Estado de Direito, de tal modo que grave e incivil afronta à consciência jurídica e ao
Estado de Direito é o desrespeito ao direito adquirido de modo justo.
O poder legítimo não é aquele outorgado pelo povo, como transferência, por ato formal de poucos
segundos e que depois desaparece. A legitimidade do Estado está na vontade do povo, que dá
origem ao poder, mas está também no exercício do poder, permanente ação do povo na relação de
poder, quer através de instrumentos políticos (como plebiscito, destituição, resistência, etc.), quer
através de mecanismos administrativos, do que se chama administração participativa, que é um
direito fundamental.
O Estado de Direito é, assim, o que se funda na legitimidade do poder, ou seja, que se justifica pela
sua origem, segundo o princípio ontológico da origem do poder na vontade do povo, portanto na
soberania; pelo exercício, segundo os princípios lógicos de ordenação formal do direito, na forma
de uma estrutura de legalidade coerente para o exercício do poder do Estado, que torna possível o
princípio da segurança jurídica em sentido amplo, dentro do qual está o da legalidade e o do direito
adquirido; e pela finalidade ética do poder, por ser essa finalidade a efetivação jurídica da
liberdade, através da declaração, garantia e realização dos direitos fundamentais, segundo os
princípios axiológicos que apontam e ordenam valores que dão conteúdo fundante a essa
declaração.
Isso, porém, só poderá ser possível através do assentamento de regras procedimentais, de natureza
técnico-jurídica, pelas quais se garanta a dinâmica dos princípios de legitimidade. Tais regras, já
citadas - regra ou decisão da maioria, de respeito à minoria e de divisão da competência no
exercício do poder -, realizam o momento técnico do Estado, superado na unidade com a sua
natureza ética no Estado de Direito.
C - O Estado Poiético
O Estado Poiético é a ruptura no Estado Ético contemporâneo que alcançou a forma do Estado de
Direito.
É um dado essencial, pelo qual o homem se afirma como ser livre, que nele a pessoa nunca é
conceito heterônomo ou externo, pois é sempre fim em si mesmo (Kant). Fim em si mesmo é ter
em si o logos da liberdade, que a tradição ocidental denomina substância espiritual, ou o absoluto
imanente, que essa mesma tradição denominou imago Dei.
a) Como surge o Estado Poiético?
Uma das características da sociedade civil é ser ela um sistema das necessidades e, como tal, não
realizar no indivíduo a sua liberdade, ou seja, o que ele é em si, pessoa. Como pessoa, o homem é
ser-para-si, portanto livre, na medida em que é autônomo e sabe dessa liberdade. Essa substância
espiritual do homem, esse logos theoretikós-praktikós, digamos, só é possível realizar-se na sua
plenitude na vida social, e essa só pode existir enquanto sociedade livre num sistema de normas,
autodeterminações que o homem cria para tornar possível essa sociedade, de indivíduos como
pessoas. Não é necessário, portanto, provar a liberdade numa primeira instância (embora o faça
Hegel). É suficiente tê-la como postulado transcendental, a priori (Kant), mas que explica a
realidade do mundo normativo. A esfera da pessoa, portanto, realiza-se na organização política da
sociedade, segundo a tradição que vai de Aristóteles, através de Hegel, até nossos dias. Mesmo a
idéia de uma revolução socialista como abolição do Estado outra coisa não preconizou,
implicitamente, senão tentar repatriar a idéia aristotélica de Estado.
A atualidade da análise de Hegel sobre a sociedade civil como sistema das necessidades, não ético,
embora não anti-ético, mostra, com clareza, a nova forma desse sistema: em vez de progredir para a
superação das conexões de mercado que determinam a vida das pessoas, a sociedade civil faz do
Estado o instrumento da despersonalização, da perda da substância espiritual da liberdade. Com
efeito, não é simplesmente a valoração do homem pelo que ele faz, indiferente do saber consciente
desse fazer, o que em si mesmo não compromete a sua liberdade, mas a sua instrumentalização
enquanto é reduzido à pura dependência como ser-para-um-outro, com total supressão do seu ser-
para-si livre, ou fim em si mesmo. Na sociedade civil contemporânea, o homem passa a ser
instrumento para algo e, na medida em que é instrumento para algo, coisa, é instrumento para o
outro, pessoa, que o domina, segundo a estrutura da relação senhor-escravo, guardada
evidentemente a essencial diferença entre a relação de servidão ou escravidão e a do trabalho livre.
O que se quer dizer é que a sociedade civil criou um grupo que domina a técnica através do
econômico, ou seja, transformou em mercadoria a força de trabalho e, como qualquer outro valor
quantitativo, não vê no trabalhador senão a força do trabalho e sua capacidade de fazer, impondo-
lhe o regime da oferta e da procura, expulsando-o da estrutura essencial da unidade de produção, a
empresa. O trabalhador é descartado quando não necessário ou quando diminui o lucro; a empresa é
do capitalista, não da unidade dialética do trabalho e do capital. A palavra mágica com que se opera
essa transformação é o econômico. Mágica porque o econômico é apenas uma ficção, pois o real é
a técnica de produzir coisas na natureza, que depois são transformadas em mercadorias pela magia
do econômico. O econômico, porém, é também uma técnica, mas tautológica: produção do que está
produzido pelo trabalho (da natureza transformada pelo fazer). O fazer econômico, o produzir o
econômico, esta é a determinante da sociedade civil. E os que dominam esse fazer econômico, que
não são as ides trabalhadoras, não se limitam ao controle da economia na sociedade civil; precisam
de um instrumento poderoso; não mais para servir de porrete contra os trabalhadores, como pensou
Marx, mas como instrumento de produção das regras do jogo das relações sociais, especificamente
da economia, com subordinação de todas as demais relações. Precisa da organização política.
No Estado poiético, o produto do fazer é o econômico, que nenhum compromisso tem com o ético,
e procura, com a aparência de cientificidade, subjugar o político, o jurídico e o social. Não é ético,
porque o seu fazer não se dirige a realizar os direitos sociais. Evidentemente, se o Estado realiza os
direitos sociais, esse fazer é ético.
Cria-se, então, no Estado, um corpo burotecnocrata que passa a exercer a soberania, com total
sujeição do político e do jurídico em nome do corpus econômico da sociedade civil. Não se nega
que o técnico ou o cientista econômico sejam essenciais no Estado contemporâneo. Não, porém, o
tecno-crata, detentor do poder de decisão política, que no Estado democrático não lhe pertence.
Com o aparecimento desse aparelho, abre-se uma cisão no Estado: de um lado, a organização ética
da sociedade em que as decisões de soberania se dirigem ao bem comum ou à realização de uma
ordem social justa e, de outro, a burotecnocracia malabarista, que impõe o fazer do produto
econômico sobre o interesse social e jurídico, procurando mostrá-lo, através de sua cartola e de sua
hábil prestidigitação, como interesse público absolutamente sobrevalente.
A cisão do Estado está, pois, nesse embate que se trava dentro dele mesmo, criando dois estados: o
estado poiético do domínio burotecnocrata e o estado ético do domínio da sociedade política,
enquanto Estado Democrático de Direito. É fácil verificar isso no fortalecimento do aparelho
burocrático denominado Banco Central, em todo o Ocidente, das bolsas de valores e da
massificação globalizada do consumo das mercadorias, mas com a concentração da produção de
tecnologia de ponta e do controle do capital financeiro.
A bifurcação do Estado começa a partir de uma divisão anterior, operada pelo Estado liberal: a
separação da sociedade civil e do Estado. Não há um Estado separado da sociedade, pois é ele a
própria sociedade politicamente organizada, ou uma organização política da sociedade, segundo a
qual os indivíduos exercem os direitos políticos. Não só a autonomia privada, mas também a
autonomia política. A característica do Estado liberal é a autonomia privada, enquanto que a do
Estado democrático é a autonomia política.11 Por isso, um Estado pode ser ao mesmo tempo liberal
e autocrático, havendo liberdade de pensamento, de mercado, etc., mas não a participação no poder
político.
A sociedade civil funciona diante das necessidades dos indivíduos, segundo um sistema das
necessidades econômicas dos indivíduos, na total contingência da livre concorrência, da oferta e da
procura. Nela encontramos facções que organizam e dominam a economia e que irão desempenhar
papel importantíssimo na formação do Estado Poiético. Em vez de a sociedade civil, como sistema
das necessidades, superar-se no Estado, que é o sistema das liberdades organizadas, em que o
indivíduo aparece como pessoa, cria-se um órgão burotecnocrático que controla o poder político.
A sociedade civil, como se disse acima, é a ambiência em que se desenvolve o sistema das
necessidades - necessidades que criam setores de produção, ou produção criando necessidades -, e
na qual o Estado é uma entidade separada, característica do Estado liberal, que aparece como órgão
de tutela e fiscalização do livre jogo econômico da sociedade civil, através da força coativa. Cria-se
um órgão burotecnocrata que privilegia o econômico, fazendo do Estado um instrumento da
produção dos efeitos econômicos, especificamente financeiro e monetarista, cujo produto
significativo é o dinheiro. A produção é de dinheiro, que não é um bem econômico em si, mas uma
ficção jurídica, pois vale, é vigente, tem força circulante obrigatória porque institucionalizado
formalmente pelo direito. Economicamente, apenas tem função referencial simbólica. Representa
coisas ou bens.
Com isso, o elemento central e essencial do Estado de Direito é postergado, pois o jurídico, o
político e o social são submetidos ao econômico. O Estado poiético não tem em mira a "produção
social". Entra em conflito com a finalidade ética do Estado de Direito, abandonando sua tarefa de
realizar os direitos sociais (saúde, educação, trabalho), violando os direitos adquiridos, implantando
a insegurança jurídica pela manipulação sofística dos conceitos jurídicos através mesmo de juristas
com ideologia política serviente, exercendo o poder em nome de uma facção econômico-financeira.
O Poder aparece aí, contraditoriamente, como seu fim, pois que é sua tarefa primeira manter-se no
poder e preservá-lo, e ao mesmo tempo como meio para realizar o objetivo técnico-financeiro de
uma facção da sociedade civil. Não é mais o político que toma decisões fundamentais.
No Brasil, isso ocorre de modo mais grave. O político (que tem a dimensão do ético), o jurídico e o
social entram em choque com o técnico de dimensão econômica divorciada da dimensão ética do
social. O órgão do Estado encarregado da realização de sua política econômica passa a decidir
politicamente. Tal Estado passa a ter um organismo paralelo de decisão política, o que traz como
conseqüência uma dissimulada usurpação do poder, com o alijamento do povo, pela submissão dos
seus representantes, das decisões fundamentais, por não ser conveniente a sua participação.
Recentemente, um político de boa formação ética, revelou essa sucumbência, forçado a abdicar do
poder de decisão política que lhe foi dado, dizendo: "prevaleceu o critério técnico"; sem a crítica,
primeiro, da legitimidade do critério técnico, depois, da sua validade e, depois, de sua conseqüência
prática para o bem comum.
O Estado poiético é uma das formas de usurpação ou alienação do poder, operando uma cisão
profunda entre a potestas ou titulação do poder e a auctoritas ou exercício. A alienação começa do
povo para os representantes, destes para o governo, e dentro do governo, do presidente para os
burotecnocratas. É fácil ver que desde Bernardes poucos presidentes exerceram efetivamente o
poder de governo: Bernardes, Kubitschek, Jânio, Castelo Branco, Color e Itamar, este o primeiro a
impor-se à burotecnocracia econômico-financeira, ao estilo bernardiano.
É fácil notar a evolução do plano real. Começa com a formação de lastro seguro para garantir a
moeda, com um superávit de cerca de 10 bilhões de dólares anuais, e com uma política no estilo
mineiro tradicional de desenvolvimento (Governo Itamar), através da retomada da produção de
carros populares e da construção civil, os carros-chefes da economia. Após esse Governo, com o
deslocamento de decisões políticas à chamada área técnica, implantou-se a política de recessão,
cujas conseqüências futuras ainda não se avaliaram; o lastro passou a ser feito, não mais com
dólares pertencentes à nação, mas com dólares eventuais, pertencentes a aplicadores estrangeiros,
que não são especuladores no sentido pejorativo, mas simplesmente aplicadores que observam a lei
de mercado, como qualquer outro, inclusive de governo, aceitos no sistema projetado. Portanto, a
crise da bolsa era prevista, bem como o risco da perda do lastro e do desmoronamento do real, o
qual foi salvo momentânea e aparentemente com a dobra da taxa de juros para a nação pagar,
pagamento garantido com as medidas econômicas de aumento de impostos, corte nas verbas
sociais, nos investimentos, etc., para se conseguir cerca de 20 bilhões de dólares, a fim de
remunerar o "especulador" e manter aqui os seus dólares por mais um ano.
Para manter os aplicadores, teve-se de elevar a taxa de juros de modo a apetecê-los: de 23% para
48% a.a.
O lastro do plano real era de ser feito com o produto de privatizações controladas, com saldo na
balança, investimento permanente, como era a intenção do Governo Itamar.
Como a lei da oferta deu melhores condições de aplicação em outras praças que não o Brasil, como
era previsto e de se esperar, o capital começou a evadir-se, a mudar-se da praça. Na verdade, é
suficiente que os Estados Unidos aumentem os juros em pequena fração, ou que o seu tesouro
emita títulos novos, para que esses aplicadores voltem para a matriz do capital financeiro. Somente
a "crença" ou a acientificidade em tratar a questão poderia sentir-se segura com tal lastro
escorregadio. Isso porque o tecnocrata não é técnico, nem cientista; é ideólogo, com poder político
"particular".
Entretanto, o investidor sabe como cuidar do seu dinheiro, ao contrário do que muitas vezes ocorre
com o administrador do dinheiro público. Ao oferecer o Governo juros tão altos e atraentes, surgiu
a pergunta: de onde tirará o Brasil dinheiro para pagar a diferença referente ao aumento da taxa de
juros? Responde-se com o pacote de medidas destinadas a diminuir as despesas e a aumentar a
receita em cerca de 20 bilhões de dólares, valor próximo ao do aumento dos juros no ano (em
dezembro/97, época da medida, o aumento dos juros a serem pagos pelo Brasil foi de cerca de 2,2
bilhões de dólares, o que daria perto de 25 bilhões ao ano).
Havia um outro caminho, o da desvalorização, ou da verdade cambial, ou seja, da demonstração de
que um real não vale, na verdade, um dólar. Vale menos. Isso traria mais exportação, não
comprometeria a economia, etc. Mas esse caminho comprometeria a reeleição do atual governo.
Por isso foi necessária uma medida que prorrogasse o plano real na sua aparência de eficácia até
depois das eleições.
E o que é admirável: as medidas aparecem como obras geniais, salvadoras, "resposta eficaz" e
tecnicamente correta (a única) à chamada especulação. Sim, realmentte não havia outra saída ou
conclusão; mas quem, porém, criou as causas, os antecedentes, as premissas? Os mesmos.
O grave risco do Estado poiético é a sua natureza para tender para a autocracia através da
burotecnocracia. É que, depois de ter criado as premissas da catástrofe econômica, com ela ameaça
para obter mais poder. Sua lógica é a de cada vez mais aumentar o seu poder, do que se pode
facilmente inferir que o seu rumo é a eliminação dos "entraves", pois, se se perde a docilidade do
parlamento, a conseqüência é caminhar para instaurar o Estado autocrático. Para dar suporte
ideológico ao processo de alienação do poder, procura-se também justificar a alienação do direito à
informação. Para isso, uma falácia prática: o povo, dono do poder, não pode saber dos assuntos do
Estado; precisa ser tutelado.
Grave decisão política encaminhada pelo aparelho tecnocrata foi a da falácia da privatização
emocional e generalizada. Falácia porque não encontra fundamentação lógica. Se a empresa estatal
é viável, então o administrador tem de administrá-la bem, a menos que não tenha competência para
fazê-lo; se não é viável, nenhum particular a comprará. Então, socorre-se de uma falsa
generalização: o Estado é mau administrador. No entanto, vários licitantes nas privatizações são
estatais de outros países.
Além da falácia, ocorre ainda uma ação política não ética. Aliena-se um gigantesco patrimônio
construído durante décadas, sem consultar o seu titular e apenas com avaliações formais.
Grave é, ainda, a privatização da TELEBRÁS, da ELETROBRÁS, que, a exemplo das já feitas, não
lograrão alcançar o que valem. Além de economicamente estratégicas, é sabido que, num país
subdesenvolvido, é extremamente difícil a conciliação do lucro com o interesse público, correndo-
se o risco de o Estado voltar a comprar a sucata no futuro (veja-se o exemplo da Light-Rio).
Como se isso não bastasse, uma nova medida é posta em prática pela burotecnocracia: a Lei Kandir,
cujos efeitos jurídico-políticos e ético-administrativos são a interferência no sistema federativo,
com o corte na receita dos Estados-Membros (em Minas é de cerca de 500 milhões de dólares), e
conseqüente benefício aos importadores, pelo barateamento da matéria-prima. Entenda-se aqui o
princípio de moralidade pública em sentido objetivo, isto é, nas conseqüências negativas ao erário
ou ao interesse público, independentemente do elemento subjetivo, isto é, se houve ou não intenção
do administrador ou mesmo do legislador.
Uma política orientada para o interesse público seria a formação de um pool das grandes estatais
com as boas universidades, para desenvolver a pesquisa científica e produzir tecnologia de ponta,
única porta de acesso ao denominado "primeiro mundo".
Mais ainda se agrava essa insegurança jurídica pela anarquia legislativa, pela orgia de medidas
provisórias, cuja urgência e necessidade é da competência do Supremo examinar (pois a matéria é
constitucional, e não administrativa), a instabilidade da lei e da própria Constituição, cujas reformas
nada têm de necessárias e urgentes (a não ser a tributária e a política), para quem sabe enfrentar o
permanente desafio de administrar bem dentro das regras democráticas. Não se muda a
Constituição simplesmente porque o administrador se depara com dificuldades ou problemas que
deve enfrentar ou resolver. Trata-se de um vício que o Poder Executivo contraiu: diante de qualquer
problema, muda-se a Constituição.
Conclusão
O Estado contemporâneo enfrenta uma cisão no seu interior. De um lado, o Estado liberal (e mesmo
autocrático) realizando o avanço técnico na distribuição do poder a órgãos tecnocratas e burocratas,
introduzindo uma espécie de nihilismo ético e anomia jurídica, conseqüência inevitável pela
legitimação formal do poder da democracia representativa, não participativa, alienado no ato formal
do voto exercido num hic et nunc.
De outro, antagônico ao nihilismo e à anomia, o Estado que recupera o sentido ético do Estado
clássico, o Estado de Direito, que se legitima não simplesmente por uma decisão contingente do
voto formal, mas pela origem na real vontade popular, aferida na permanente participação do
cidadão na vida política, e pela declaração universal, garantia e realização dos direitos
fundamentais (políticos, sociais e individuais), cujos valores centrais são a liberdade, a igualdade, o
trabalho.
O Estado liberal opera essa tarefa técnica e aprofunda a divisão do Poder Político - Sociedade Civil
como um todo, como se coisas diversas fossem.
A perspectiva que temos é a de um Estado Racional, em que os indivíduos sejam autônomos, livres
do ponto de vista de partícipes ativos do poder, titulares de direitos fundamentais. Entretanto, a
teimosia divisora do Estado liberal permanece. A brecha que abre na sua substância real é entre a
declaração dos direitos e sua realização, ou a sua contraditória existência como Estado técnico
instrumental e mecânico, separado da sociedade civil, e o Estado de Direito finalista e orgânico,
que supera a separação sociedade civil e Estado.
A interferência do técnico é fundamental no Estado Moderno, mas não como agente da soberania.
O papel do técnico é ser técnico, nunca político. O exercício do poder cabe ao político.
O traço que distingue e faz o verdadeiro político emergir no mundo social e que dele faz agente da
soberania popular, é a aptidão para captar o universal na particularidade dos interesses individuais,
ou seja, superar a particularidade técnica pela universalidade do bem comum ou da ordem justa. De
sobre isso decidir não pode abrir mão.
Notas
1 Não se cogita de indagar a origem histórica do poder, se na força militar ou não. Ver Foucault,
Michel. Resumo dos Cursos do Collège de France (1970-1982). Trad. Andrea Daher. Rio de
Janeiro: Zahar, 1997. p. 71. Ver Bastos, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:
Saraiva, 1994. p. 12.
3 Cf. Dobrowolski, Silvio. Grupos Sociais e Poder. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n.
88, out./dez., 1980, p. 99 e segs.
4 Aristóteles. Ética a Nicômaco, 1113b. Trad. Francisco de P. Samarandi. Madri: Aguilar, 1977. p.
1200-1201.
6 Vicente Barreto, em Poder e Autoridade, p. 33, fala em justificação pelo fim, tipos e medidas do
poder.
7 Cf. Salgado, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Kant. Belo Horizonte: Editora da UFMG,
1986. § 5º.
8 Cf. Bonfante, Pietro. Historia del Derecho Romano. Trad. José Santa Cruz Teijeiro. Madrid: Rev.
de Derecho Privado, 1944. p. 182-183. Mommsen. Disegno del Diritto Pubblico Romano. Milano:
CELUC, 1973. p. 112.
9 Maurício Godinho (Natureza Jurídica do Poder. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 31) faz uma
importante e clara exposição sobre esse tema.
10 Cf. Baracho. Legitimidade do Poder. Revista de Direito Público, 70, p. 63. Oliveira, Janice
Helena Ferreri. O Poder. Revista de Direito Constitucional e Política, Rio de Janeiro, 2 (3): 313-35,
julho, 1984, p. 327. Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. O Poder e seu Controle. Revista da
Faculdade de Direito da USP, n. 79: 113-39, jan./dez. 1984, p. 121.
11 O conceito de autonomia, privada ou pública, vem de Kant; em Habermas esse conceito não é
claro; toma-o num sentido adaptado, não jurídico, nem moral, nem econômico (Faktizität und
Geltung).