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Analisando Telenovelas

Maria Carmem Jacob de Souza


organizadora

Esther Hamburger
Pina Coco
Silvia Helena Simões Borelli
Rodrigo Barreto

e-papers

CNPq

Salvador - BA
2004
2 Analisando Telenovelas
Analisando a autoria das telenovelas 3

Analisando telenovelas

organizadora
Maria Carmem Jacob de Souza

Pina Coco
Silvia Helena Simões Borelli
Rodrigo Barreto

e-papers

CNPq

Salvador - BA
2004
E-papers Serviços Editoriais Ltda. 2004
Todos os direitos reservados à E-Pappers Serviços Editoriais. É proibida a repro-
dução ou transmissão desta obra, ou parte dela, por qualquer meio, sem a prévia
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Agradecimentos

A gradecemos aos professores e alunos do Programa de Pós-


graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas
da UFBa, em especial, àqueles que participam dos grupos
de Pesquisa da Linha de Análise de Produtos e Linguagens da
Cultura Mediática, coordenados por Giovandro Ferreira, Itânia
Gomes, Jeder Janotti, José Benjamin Picado, Wilson Gomes.
A nossa especial deferência ao CNPq que através do Edital
Universal tornou possível o Seminário Metodologias de Análise
de Telenovelas, realizado em 2003 (PosCom/UFBa), e a publica-
ção deste Livro. O reconhecimento das valiosas colaborações dos
participantes do Seminário, principalmente de Benjamin Picado,
Amaranta César, Francisco Serafim, Iara Sydenstricker, Esther
Hamburger, Pina Coco, Rodrigo Barreto e Sílvia Borelli.
O carinho especial aos integrantes do Grupo de Pesquisa A-
Tevê e aos inestimáveis bolsistas PIBIC que viveram esta aventura:
Juliana Brito (CNPq), Elen Vila Nova (FAPESB) e Alexsandro
Oliveira (CNPq).
Sumário

Apresentação 9

Analisando a autoria das telenovelas 11

Comicidade e fantástico:
diálogos com o melodrama 53

A heroína e suas metamorfoses 77

Onde tudo começa: Terra Nostra e O Clone87


Apresentação

A Linha de Pesquisa Análise de Produtos e Linguagens da


Cultura Mediática, criada em 2001 no Programa de Pós-
graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas
da Universidade Federal da Bahia, reinventou uma inflexão nas
pesquisas realizadas no Grupo de pesquisa A-tevê, coordenado
por Maria Carmem Jacob de Souza. Assim, desde esta época,
o Grupo enfrenta os desafios da criação de métodos de análise
textuais de telenovelas.
O Seminário Metodologias de Análise de telenovelas,
realizado em 2003 (PosCom/UFBa) pelo Grupo de Pesquisa A-
tevê, com o apoio do CNPq, visava promover uma interlocução
com especialistas em telenovelas e em outras áreas de estudos para
colaborar nos debates advindos das questões mais candentes do
Projeto de Pesquisa em andamento sobre a “Análise da autoria
nas telenovelas Renascer, O Rei do Gado e Esperança” (CNPq)
e nas indagações que compõem as investigações que se dedicam
as análises internas de telenovelas e outros produtos ficcionais
audiovisuais televisivos e fílmicos. O livro Analisando telenovelas
apresenta aos leitores resultados das reflexões desenvolvidas neste
Seminário.

Maria Carmem Jacob de Souza, Professora do Programa


de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas
apresenta no artigo “Analisando Autoria nas Telenovelas” as
proposições gerais do método de análise das marcas de autoria
que considera tanto os modos de organização do processo de
elaboração das telenovelas quanto os modos de funcionamento
das suas estratégias discursivas.
10 Analisando Telenovelas

Silvia Borelli, professora do Programa de Pós-graduação


em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, examina em “Comicidade e fantástico: diálogos com o
melodrama”, a narrativa estabelecida nas fronteiras de diferentes
territórios de ficcionalidade – melodrama, comicidade e fantástico
– observados na telenovela A Indomada. Retoma a importância da
análise das estratégias de comunicabilidade dos gêneros ficcionais
para a compreensão dos modos de reconhecimento e leitura das
telenovelas por parte dos telespectadores.

Pina Coco, professora do Programa de Pós-graduação em Le-


tras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, expõe
em “Heroína e suas metamorfoses” uma das situações narrativas
estruturantes das telenovelas, a presença constante, mesmo que
em novas modulações, das heroínas de lágrimas e sofrimento.

Rodrigo Barreto, mestre do Programa de Pós-graduação em


Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBa), participante
do Laboratório de Análise fílmica deste Programa desde 2000,
foi convidado a examinar a poética do primeiro capítulo das te-
lenovelas O Clone e Terra Nostra. Uma incursão exploratória nas
investigações sobre as marcas de autoria dos realizadores nas
telenovelas produzidas pela TV Globo, em particular, do escritor
responsável e da direção geral.

Espera-se que os leitores deste livro sintam-se estimulados


a colaborar na produção de conhecimento sobre a linguagem da
telenovela, produto mediático de expressiva ressonância na socie-
dade brasileira que vem encantando telespectadores de diferentes
recantos do mundo.
Analisando a autoria das telenovelas 11

Analisando a autoria
das telenovelas

Maria Carmem Jacob de Souza

O telespectador assíduo e experiente de telenovelas no


Brasil identifica diferenças entre uma telenovela e outra.
Os índices mais usados são aqueles que dizem respeito
ao ambiente das histórias: no campo ou na cidade; ao momento
da narrativa: histórias no passado ou na atualidade; ao modo de
encenar o amor: água com açúcar ou amores eróticos e desa-
vergonhados; ao modo de tratar as questões sociais e políticas:
campanhas sociais ou discursos políticos; ao modo de caracteri-
zação de personagens: a espera do retorno de certos vilões ou
heroínas; ao modo de suscitar emoções: expectativas do riso fácil,
da indignação ou da tristeza. Indices outros podem ser lembrados
e mencionados num país, como o Brasil, onde mais de quarenta
anos de telenovelas consagraram escritores, diretores e atores que
com regularidade compareceram na telinha.
Tem-se assim consumidores capazes de enumerar um con-
junto de marcas que identificam determinadas telenovelas com
determinados escritores. Para lembrarmos dos mais recentes
e expressivos, a “senhora das oito” da Tv Globo, Janete Clair,
12 Analisando Telenovelas

que escreveu Selva de Pedra, Irmãos Coragem e tantas outras que


influenciaram outros escritores. Telenovelas associadas ao modo
de narrar de diretores como Daniel Filho e atores como Francisco
Cuoco e Regina Duarte. Um outro senhor das oito a ser lembrado
é Gilberto Braga com seus sucessos marcantes nas telenovelas e
minisséries, acompanhado com freqüência desde os anos noventa
pelo diretor Dennis Carvalho e pelas atrizes Malu Mader e Claudia
Abreu. Uma lista extensa poderia ser aqui apresentada1, contudo,
o intuito destas lembranças é oferecer elementos para caracteri-
zar o fenômeno da autoria das telenovelas que compreende na
sociedade brasileira telespectadores assíduos, principalmente os
da TV Globo, maior produtora deste gênero no Brasil, capazes
de diferenciar umas das outras e de apontar que estas diferenças
dizem respeito aos autores das telenovelas, quer dizer, aos traços
particulares daqueles que as escreveram.
No campo científico os especialistas também examinam tal
fenômeno, afirmando que as telenovelas brasileiras da TV Globo
manifestam marcas de autoria, estratégias estilísticas particulares,
não obstante ser um produto coletivo, comercial, fabril, marcado
pela repetição, esquematização e padronização2. Estudos que
indicam que além do reconhecimento autoral do escritor tem-se
desde os anos noventa a evidente presença da direção geral que
indica uma autoria compartilhada (Souza, 2002). Os exemplos
mais evidentes desde os anos noventa na TV Globo, por exem-
plo, são as experiências de trabalhos das parcerias continuadas de
Manoel Carlos com Ricardo Waddington; Benedito Rui Barbosa

1
Consultar o Dicionário da TV Globo de programas de dramaturgia e entretenimento
(2003), assim como o livro de Mauro Alencar (2002).
2
Consultar Souza (2004); Balogh (1996 e 2002); Tesche (2000); Borelli (1996, 1997 e
2002); Ortiz et al. (1989); Mattelart (1989); Calza (1996); Campedelli (1985); Nogueira
(2002); Pallottini (1998); Hamburger (1998); Kehl (1979 e 1986), entre outros.
3
Manoel Carlos com Waddington: Por Amor (1998); Laços de Família (2000) e Mulheres
Apaixonadas (2003). Benedito Rui Barbosa com Luiz Fernando Carvalho: Renascer (1993);
O Rei do Gado (1996) e Esperança (2002). Barbosa com Monjardim: Pantanal (1990, TV
Manchete) e Terra Nostra (1999). Braga com Dennis Carvalho: O Dono do Mundo (1992);
Pátria Minha (1995) e Celebridade (2004).
Analisando a autoria das telenovelas 13

com Jayme Monjardim e Luiz Fernando Carvalho; Gilberto Braga


com Dennis Carvalho3 e muitos outros.
Estes estudos lançam mão de uma noção de autoria que
pressupõe a existência da possibilidade do ato criativo, inovador
associado à expressão das marcas e estilos próprios, num contexto
de produção fortemente fabril, serial e comercial. Nestes casos
buscam demonstrar a impertinência da premissa que afirma ser
a autoria possível apenas quando o realizador ou os realizadores
têm o controle quase absoluto sobre o processo de produção e
distribuição das obras, condição necessária para o surgimento do
novo, do próprio e particular, da ousadia, do inusitado.
Newcomb (1993) ao mapear as principais pesquisas rea-
lizadas sobre a criação do drama televisivo europeu e norte-
americano apontou como todas elas estavam preocupadas em
verificar a participação dos realizadores nas tomadas de decisão
no processo de elaboração deste tipo de programa televisivo.
Muitos investigadores se mostravam descrentes quanto à capa-
cidade efetiva de criação e de tomar decisões nos contextos de
produção analisados. Preocupação que concerne também aos
realizadores, pois, sem dúvida, quanto maior o poder sobre o
processo, maior o poder para escolher os recursos e as estraté-
gias empregadas.
O que estas reflexões reafirmam é a pertinência do foco de
atenção das investigações sobre as relações entre as situações de
trabalho dos realizadores e o processo de uma criação autoral,
sobre as condições de um processo de trabalho que permita
efetuar escolhas associadas a expressão de estilos e ao reconhe-
cimento autoral. Considerações que apontam para a necessidade
de ampliar o conhecimento sobre as condições do processo
de criação e de reconhecimento da autoria na teledramaturgia.
Conhecimento que ajude a compor categorias de análise mais
precisas para enfrentar os limites interpretativos postos pelos
estudos nesta área que insistem na antinomia inovação-repetição,
desconsiderando as experiências autorais no âmbito da produção
comercial massiva.
14 Analisando Telenovelas

Esta abordagem leva o pesquisador a interrogar, por exemplo,


se a questão da autoria faz parte dos interesses dos envolvidos nas
instâncias de produção, distribuição e consumo das telenovelas.
Caso seja, indagará sobre os pontos de vista presentes neste campo
de interesses, querendo saber onde e como se manifestam. Esta
atitude tende a evitar posturas aprioristicas do analista que ora
desautoriza, ora defende a existência da autoria.
Em suma, acredita-se que estas premissas exigem do inves-
tigador a formulação de perspectivas de análise e interpretação
das marcas de autoria adequadas as condições de produção da
teledramaturgia. Marcas que dependerão da história de produção
das emissoras e da história dos tipos de programa que podem
ser agrupados na rubrica teledramaturgia: telenovelas, minissé-
ries, seriados, unitários e outros. No caso das telenovelas, onde
a autoria do escritor é suposta, torna-se vital elaborar definições
e estratégias metodológicas para identificar e compreender esta
experiência particular de autoria.
Um outro aspecto associado ao anterior toca nas estratégias
metodológicas que contemplerão a imbricação das dimensões
externas da produção e as dimensões internas da autoria exa-
minadas no texto audiovisual. Explicando melhor, a dimensão
externa é aquela que investiga os realizadores que se pensam ou
se comportam como autores, as instâncias de reconhecimento
e consagração destes autores, a história do universo particular
dos modos de fazer e pensar as telenovelas que permitiram a
existência dos autores e os outros aspectos que se referem ao
contexto de produção das telenovelas que conformam a emer-
gência do autor. A dimensão interna diz respeito aos modos
de funcionamento e organização da telenovela que podem
apresentar marcas de autoria dos realizadores considerados
autores: os temas tratados, os tipos de personagens construídos,
o tratamento do espaço e do tempo, os programas de efeitos
particulares.
Esta imbricação analítica entre as dimensões externas e inter-
nas tem sido evidenciada em estudos que investigam produtos e
Analisando a autoria das telenovelas 15

linguagens dos meios de comunicação de massa, mesmo quando


não tratam da questão da autoria4. Por um lado, evidenciam os
limites dos resultados das pesquisas que ao tratarem das dimen-
sões externas tecem afirmações sobre os modos de organização
e funcionamento interno dos produtos, sem de fato as terem
examinado. Por outro lado, evidenciam os limites das proposições
que fazem o movimento inverso, tecem afirmações sobre as di-
mensões externas tendo contemplado de modo rigoroso apenas
as dimensões internas dos produtos.
Estas ponderações geram desafios metodológicos impor-
tantes, em especial quando o problema da questão da autoria nas
telenovelas foi construído supondo a imbricação destas dimensões.
Este artigo decorre destas preocupações e apresenta os resultados
parciais de uma investigação sobre a autoria5, conduzida pela ques-
tão central: Como examinar a questão da autoria nas telenovelas
brasileiras levando em consideração tanto os modos de organiza-
ção do processo de elaboração das telenovelas quanto os modos
de funcionamento das suas estratégias discursivas?
As primeiras partes deste artigo desenvolvem as proposições e
estratégias do método de análise do processo de elaboração das tele-
novelas que gerou o sistema de localização, identificação e seleção
dos autores e das telenovelas que podem ser objeto de estudo das
marcas de autoria. Nas partes seguintes, apresenta-se as linhas gerais
das etapas do método voltadas para a análise textual, mostrando a

4
Ver especialmente as argumentações de Gomes (1996 e 2003); Featherstone (1995);
Bourdieu (1996); Foucault (1992); Martín-Barbero (1987); Jensen & Jankowski (1993).
5
A pesquisa em curso vem sendo apoiada pelo CNPq desde 2001. Atualmente desenvol-
vemos o Projeto : “Campo da telenovela e autoria: análise das telenovelas Renascer(1993),
O Rei do Gado (1996), Esperança (2002)”. As telenovelas foram escritas por Benedito Ruy
Barbosa e dirigidas por Luiz Fernando Carvalho. A pesquisa é coordenada por Maria
Carmem Jacob de Souza, pesquisadora do CNPq, responsável pelo grupo de pesquisa
A-Tevê. Professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Con-
temporâneas da Universidade Federal da Bahia. Participante da linha de pesquisa de
Análise de Produtos e linguagens da cultura mediática deste Programa. Este momento
da pesquisa contou com a participação da bolsista de iniciação científica (Fapesb) Elen
Vila Nova e Alexsandro Oliveira (CNPq).
16 Analisando Telenovelas

importância da articulação destes métodos para a construção do


corpus tópicos de análise das marcas de autoria nas telenovelas.
Importante esclarecer ainda que este artigo apresenta resulta-
dos mais expressivos concernentes ao uso do método de análise
das condições de produção das telenovelas gerador da com-
preensão das funções das instâncias de produção e dos autores.
Os exercícios de aplicabilidade do método de análise das marcas
de autoria nas telenovelas encontram-se em um estágio embri-
onário. Não obstante, este artigo apresenta um dos resultados
preliminares do uso do método de análise interna: a formulação
das hipóteses de trabalho sobre as definições dos fragmentos ou
corpus tópico de análise das marcas de autoria nas telenovelas. Por
fim, os autores e telenovelas objeto de atenção foram: Benedito
Ruy Barbosa com Renascer (1993), O Rei do Gado (1996) e Esperança
(2002), todas elas com direção geral de Luiz Fernando Carvalho
(TV Globo, 21 horas) e com Terra Nostra6 (1999, direção geral
de Jayme Monjardim, TV Globo, 21 horas) e Manoel Carlos com
Mulheres Apaixonadas (direção geral de Ricardo Waddington, TV
Globo, 2003, 21 horas). As indagações e proposições aqui apre-
sentadas decorrem, pois, destas circunstâncias.

Buscando o autor

As experiências de análise textual de obras audiovisuais, prin-


cipalmente cinematográficas, tendem a contemplar a figura do
diretor como um critério importante para definir a classe de filmes
a ser estudada e o propósito da análise. Nestes casos é comum a
exigência metodológica de examinar todos os filmes já produzidos
no período selecionado e de situá-los em uma história das formas
fílmicas, relacionado-os as correntes, tendências e ‘escolas’ estéticas
(Vanoye & Goliot-Lété, 1994, p. 23). Essa escolha pela direção

6
Os resultados de um exercício de análise textual empregando o método proposto neste
artigo foi formulada por Rodrigo Barreto e encontra-se neste livro.
Analisando a autoria das telenovelas 17

como evidência da autoria da obra cinematográfica pressupõe


uma dada construção social do autor, quer dizer, pressupõe um
momento da história da produção cinematográfica que permitiu
eclodir obras que incentivavam o surgimento da noção de autor.
No caso específico do cinema americano e europeu, ocorreu nesse
processo a tendência de associar o autor à figura do diretor7.
A proposta mais usual de análise dos filmes que introduz a
figura do autor considera, assim, a necessidade de contextualizar
as obras na história das formas fílmicas, procurando identificar e
explicar as relações entre o ‘fundo cultural’ que serviu de ‘inspi-
ração para os cineastas’ e os movimentos efetuados pelo cineasta
tendo em vista esse contexto (p.37).
Supondo a pertinência desta experiência de análise fílmica,
estamos diante da seguinte indagação: como adequar esta abor-
dagem para examinar a autoria nas telenovelas? Pesquisadores,
realizadores e telespectadores afirmam que a telenovela brasileira
comporta a figura do autor. Sendo assim, cabe conhecer tanto qual
dos realizadores envolvido é reconhecido como autor, quanto a
história das formas narrativas e audiovisuais deste produto tele-
visivo. Isto para melhor identificar e interpretar as “inspirações”
dos autores existentes observáveis nas telenovelas. Estes aspectos
implicam no uso de um conhecimento acumulado sobre o assunto,
que no caso específico da telenovela é incipiente. Supõe, ainda, uma
outra tradição analítica inexistente nesta área de estudo, aquela que
compara obras de um mesmo autor e obras de autores diferentes,
de épocas diferentes.
Outros problemas associados a estes se referem ao volume
e ao tipo de material a ser analisado. As telenovelas reconhecidas
como autorais produzidas pela TV Globo, por exemplo, têm em
média hoje mais de 150 capítulos exibidos de segunda a sábado
durante mais de seis meses, tanto no horário das 18h, das 19h

7
Trabalho de Bernardet (1994) deixa clara a polêmica quanto aos critérios de definição
do autor no cinema, uma obra coletivamente produzida. O roteirista, o produtor e até
mesmo a ausência da idéia de autor são evocadas.
18 Analisando Telenovelas

quanto no das 21 horas. Uma única telenovela pode significar,


portanto, mais de 150 horas de material a ser examinado. Além
disso, este material é produzido em caráter fabril, sendo reconhe-
cidamente um material para apreciação rápida (com ótimos, bons
e péssimos momentos), não sendo todo ele, em tese, passível do
mesmo cuidado analítico para identificação das marcas autorais.
Decorrem destas condições de pesquisa curiosas implicações.
A primeira refere-se a dificuldade de obter e organizar o material a
ser examinado, já que o acervo de imagens não é disponibilizado
facilmente para o pesquisador, que precisa construí-lo, levando
assim meses para o registro, quando assim o consegue. A segun-
da toca na seleção do material a ser analisado quando a questão
diz respeito as marcas de autoria: quais capítulos, momentos da
telenovela seriam mais apropriados?
Logo, infere-se que é preciso construir tópicos específicos de
observação e análise que permitam tornar viável a possibilidade
do exame cuidadoso do material audiovisual das telenovelas que
possa reconhecer e examinar as marcas autorais. Admitir essas
lacunas não significa a impossibilidade da proposta de análise,
mas a reafirmação da necessidade de se instituir uma linha de
pesquisa nesta área8.
Enfim, sabendo destes limites, esclarecemos que a reflexão a
ser aqui desenvolvida está apoiada, mais fortemente, no estudo de
realizadores e telenovelas da TV Globo, produzidas e exibidas no
horário que sucede o Jornal Nacional durante os anos noventa.

8
Infelizmente, o acervo de imagens do NPTN/USP foi seriamente danificado, mas aos
poucos a instituição o vai recompondo. A Rede Globo aprimorou seu intercâmbio com
as universidades e tem colaborado com o acesso a imagens e aos realizadores. O acesso
as imagens e aos dados das outras emissoras de televisão produtoras de telenovelas no
Brasil é ainda precário. Vale ressaltar que os apaixonados por telenovelas organizados
pelo país já têm um acervo de imagens que precisa ser recuperado pelas universidades,
ampliando assim os acervos de imagens para estudos mais relevantes sobre a história
das formas narrativas e audiovisuais das telenovelas. Outros pesquisadores também
estão desenvolvendo pesquisas nesta área e acredita-se que nos próximos anos ter-se-á
um acúmulo de conhecimento mais significativo a este respeito.
Analisando a autoria das telenovelas 19

O estudo do autor aqui empreendido parte da premissa de


que existe uma construção social do autor específica do campo
de produção das telenovelas. Pressuposto formulado a partir dos
conceitos elaborados por Bourdieu: o espaço das obras, as toma-
das de posição dos realizadores e o campo de produção destas
obras. A partir destes conceitos formulamos a hipótese de que
quanto mais se conhece o campo de disputas e definições próprio
das práticas de produção e apreciação das telenovelas, maiores
condições o pesquisador terá para estabelecer as hipóteses inter-
pretativas sobre as relações entre as escolhas narrativas e textuais
operadas pelos realizadores e as defesas de um determinado tipo
de marca autoral nas telenovelas duma determinada emissora,
numa determinada época.
Tal perspectiva centra a atenção nos realizadores ou produ-
tores culturais, transformando-os em um dos vetores-chave da
análise. Isto significa que examinar as trajetórias dos realizadores
na história de produção da telenovela permitirá localizar o efetivo
papel que eles têm cumprido nas interfaces entre as demandas da
emissora e a satisfação necessária dos telespectadores; entre o re-
conhecimento do realizador-autor e as escolhas estéticas, narrativas
e técnico-operativas que tenham configurado uma marca estilística
peculiar reconhecível: “este é um enquadramento freqüente nas
telenovelas dirigidas pelo Luiz Fernando Carvalho”, “esta é uma
personagem-heroína própria do universo ficcional do escritor
Manoel Carlos”, “este é um diálogo característico das telenovelas
escritas por Carlos Lombardi”.
Examinar as marcas de autoria nas telenovelas significa, na
perspectiva analítica aqui enunciada, um esforço de compreensão
do processo de construção social dos autores das telenovelas.
Esta etapa objetiva tanto selecionar os autores e as telenovelas
a serem examinadas, quanto localizá-las na história das formas
narrativas e de expressão das telenovelas, no seu espaço de
possíveis. Estratégia que redunda na construção mais rigorosa
do corpus de análise.
20 Analisando Telenovelas

Localizando o autor

A “ciência das obras” formulada por Bourdieu (1996) propõe


um método para identificar um campo particular de relações que
permite observar tanto as práticas de produção, distribuição e
consumo de uma obra, quanto as instituições, grupos e agentes
que atuam neste sistema. Identificá-los significa posicioná-los
no jogo das disputas particular deste campo, conhecendo o que
pensam, dizem e fazem. Ao pensar o fenômeno da autoria se deve
observar o jogo particular de disputas que dizem respeito ao reco-
nhecimento e a consagração dos agentes. A existência dos autores
é visto, portanto, como fruto de um sistema de reconhecimento
e consagração passível de ser cartografado.
Nessa medida, as premissas metodológicas formuladas por
Bourdieu levaram a um interessante método de observação e aná-
lise que contribuiu para a compreensão seja dos envolvidos nas
lutas em prol do reconhecimento e da consagração dos autores
de telenovelas, seja das práticas desenvolvidas para tal fim. Permi-
tiu entender, por exemplo, o significado das lutas concorrências
entre as emissoras de televisão na constituição do sistema de
valorização e definição do escritor de telenovela enquanto autor,
pois se tornou uma marca de distinção das emissoras ter no rol
dos escritores contratados os mais consagrados autores do gênero
(Souza, 2002 e 2004).
A identificação dos autores e de suas trajetórias de consagra-
ção, estagnação ou declínio, implica nesta abordagem o cuidado de
relacionar as escolhas dos realizadores quanto aos modos de enun-
ciar e representar nas telenovelas com a posição que ocupavam no
campo no momento de produção da telenovela investigada. Isto
porque, neste caso, as escolhas ou tomadas de posição significam
pontos de vista assumidos sobre o que deva ser uma telenovela,
sobre o que se espera da função, responsabilidade e autonomia
da figura do autor neste tipo de programa de televisão. Mapean-
do este conjunto de pontos de vista o analista torna-se capaz de
Analisando a autoria das telenovelas 21

compreender o que eles representam no jogo de disputas, nas lutas


de reconhecimento travadas com outros agentes, localizando os
movimentos e tendências do campo.
Para ampliar a compreensão dos pontos de vista, das escolhas
operadas pelos realizadores uma outra dimensão precisa ser ob-
servada: as experiências acumuladas sobre o fazer telenovelas que
servem de referência para as tomadas de posição ou decisões dos
realizadores-autores quanto ao modo de construir seus persona-
gens, as estratégias narrativas etc. Bourdieu chama a atenção que
as experiências acumuladas sobre este fazer incluem as categorias
perceptivas conscientes e inconscientes destas experiências.
Logo, os escritores de telenovelas, por exemplo, têm uma
percepção quanto ao que precisa ser pensado e ser executado para
ser considerado um autor. O que se observa, todavia, é que nem
todos parecem ter a mesma capacidade de percepção e uso deste
“espaço de possíveis”, desta “herança acumulada pelo trabalho
coletivo”, do “espaço de possibilidades de escolhas, representações
e atos que podem se realizar, (...), adversários a combater, toma-
das de posição estabelecidas a ‘superar’ (...) conjunto de sujeições
prováveis que são a condição e a contrapartida de um conjunto
circunscrito de usos possíveis” (Bourdieu, 1996, p.266). Herança,
portanto, que envolve as práticas, as percepções das experiências
e as telenovelas produzidas. Parafraseando Bourdieu (1996, p.226)
dir-se-ia que a ação das telenovelas sobre as telenovelas “se exerce
tão somente por intermédio dos autores cujas estratégias devem
também sua orientação aos interesses associados à sua posição na
estrutura do campo.”
Por isso, supõe-se que quanto maior a capacidade para iden-
tificar e fazer uso desta herança os agentes tiverem, maiores as
chances de reconhecimento e consagração, maiores as chances de
serem considerados autores.
Depreende-se desta afirmação um vetor a mais de observação
das representações e práticas dos realizadores - autores: de que
maneira a compreensão e conhecimento que têm sobre as formas
22 Analisando Telenovelas

narrativas e audiovisuais das telenovelas realizadas, interferem,


participam das escolhas que efetuaram, tendo em vista os interesses
que os movem nas lutas por reconhecimento e consagração ?
Em suma, para examinar a questão da autoria faz-se neces-
sário, também, considerar a relação dos criadores com as obras.
Sendo mais específico, o espaço das telenovelas – ou conjunto
das telenovelas que fazem parte da história do campo – pois,
cada telenovela reflete em seu corpo um número de determinadas
decisões estéticas dos seus realizadores. Essas decisões não foram
tomadas em estado de isolamento nem motivadas exclusivamente
por disposições internas dos seus realizadores. São principalmente
decisões tomadas a partir de determinada posição no interior de
um sistema de contraposições, ou campo, constituído por todos
envolvidos na instância de realização de telenovelas. As estratégias
textuais da telenovela reconhecidas como autorais correspondem,
então, a certas decisões estilísticas que foram realizadas no interior
de um universo de possibilidades de escolhas dado pela história
do campo, pelo espaço das telenovelas e pela trajetória dos realiza-
dores, ou posições sucessivas que ocuparam ao longo da história
de produção das telenovelas.
Considerar o papel das tomadas de posição ou escolhas dos
realizadores - autores de telenovelas torna-os, assim, um dos
elementos centrais da investigação, um ponto de partida que ob-
jetiva garantir que os resultados da investigação terão como eixo
os agentes e suas práticas, estilos e modos próprios de esboçar o
“tom pessoal” autoral.

Encontrando o autor no Campo

A idéia de autoria tende a remeter a possibilidade de um


realizador (individual ou coletivo) ser reconhecido como capaz
de dominar determinadas habilidades e elaborar um produto va-
lorizado positivamente por apreciadores capazes de reconhecer
estas características, a suposta qualidade da obra e do realizador.
Analisando a autoria das telenovelas 23

Sabe-se também que nas lutas pela autonomia dos campos da


produção cultural essa noção de autoria vai apresentar nuances a
depender da época, do tipo de obras, das classificações de autoria
em jogo, etc.
Reportar esta noção de autoria a cultura mediática contem-
porânea remete a concepções de autoria e projetos de criação
diretamente associados a um sistema fabril que envolve um con-
junto amplo de profissionais e um conjunto assaz diferenciado
de tipos de obras. Nas artes plásticas a redundância e a repetição
como forma de criticar a dimensão da inovação associada a autoria
vai ganhar força no meio dos adeptos da condição pós-moderna
(Featherstone, 1995). No campo das obras massivas, a autoria vem
se transformando numa importante dimensão para diferenciar
de algum modo os níveis de autonomia que os realizadores terão
diante daqueles que detém maior poder nas escolhas das ativida-
des coletivas de produção e daqueles que financiam o produto
(Canclini, 1989 e Souza, 2002).
Nos modos destes realizadores construírem uma auto-defi-
nição de suas práticas, que não mais dependem apenas do reco-
nhecimento dos pares e de outros especialistas, passou a vigorar
as exigências de aceitabilidade e consumo advindas de um público
caracterizado pela extensão e por diferentes modos de apreciação.
Além disso, o debate sobre a autoria passou a estar associado às
disputas no âmbito dos direitos autorais.
O exame do significado da autoria no campo de produção
específico da telenovela exigiu, portanto, uma investigação sobre
os profissionais, instituições, grupos que participam do processo a
partir de um cuidado metodológico básico, aquele que evita uma
definição prévia de autoria. Nesse sentido, buscou-se identificar
e compreender tanto as diversas formas de se conceber a autoria
naquele universo de práticas concernentes a telenovela, quanto os
envolvidos neste universo: o largo espectro dos realizadores, as emis-
soras de TV, o público consumidor, os anunciantes e um conjunto
de agentes, grupos e instituições afetados hoje pelas telenovelas.
24 Analisando Telenovelas

O que se privilegiou na análise foi, principalmente, a concep-


ção de autoria formulada pelos profissionais realizadores, pelos
representantes das emissoras e pelos principais críticos de televisão
(Souza, 2002). Um procedimento usado foi a identificação destes
agentes e instituições a partir das suas características mais rapi-
damente observáveis. Este inventário foi elaborado a partir dos
discursos existentes sobre as práticas dos envolvidos, formulados
por eles ou por outros, veiculados pelos mais diferentes meios de
comunicação impressos e audiovisuais (de jornais e revistas da Tv
impressos e on-line, a depoimentos em programas de televisão e
outros meios). A todo o momento, cuidou-se para estabelecer as
relações entre o material identificado e a história de produção das
telenovelas no Brasil, ou seja, relacionar as maneiras deste progra-
ma de televisão ser concebido, elaborado, distribuído, consumido
e apreciado com um determinado momento da história particular
deste programa. Este procedimento permitiu ao analista, por um
lado, vislumbrar a história particular dos criadores de telenovelas,
marcada pelos seus habitus e pelas posições sucessivas no campo
(trajetória) e, por outro lado, conhecer as dinâmicas próprias de
elaborar, distribuir e consumir telenovelas consideradas autorais.
Melhor dizendo, foi possível relacionar determinadas definições
sobre telenovela, com as posições dos realizadores e das emissoras
que a produziram e com os dispositivos geradores de reconheci-
mento e consagração autoral.
Esta perspectiva analítica permitiu aferir em qual contexto
geral e em qual situação particular os realizadores podem ser
denominados de autores, mesmo quando avaliam o que fazem
como “rascunhos” (termo muito usado por Gilberto Braga). Um
procedimento necessário para estabelecer as bases gerais para a
seleção das telenovelas que serão submetidas a análise textual das
marcas autorais, seja porque identifica as telenovelas e seus auto-
res, seja porque constrói as hipóteses de localização das marcas
textuais audiovisuais reconhecidas pelos autores, pelas emissoras
e até mesmo por um conjunto de apreciadores como autorais.
Analisando a autoria das telenovelas 25

Convém lembrar que as posições consagradas correspondem


capitais simbólicos adquiridos numa relação com um conjunto de
instâncias de reconhecimento e consagração próprios do campo
estudado ou advindo de campos conexos. No caso das telenovelas
brasileiras, desde as primeiras três décadas de experiências de sua
produção, observa-se que importantes realizadores defensores
dos temas nacionais e de estratégias narrativas próprias partici-
pavam ativamente do campo literário, teatral e cinematográfico,
importando, de certo modo, capitais simbólicos destes campos
para o campo da telenovela. (Ortiz et al., 1989, klagsbrunn, 1991
e Souza, 2004).

Escritores e diretores autores de telenovelas

No final dos anos setenta, por exemplo, a equipe de profis-


sionais responsável pela teledramaturgia na TV Globo já estava
regida por um sistema de autoridade que definia as funções dos
especialistas e a distribuição de poder, de modo a garantir a reali-
zação das obras ao longo de sua exibição, num prazo determinado,
com um determinado nível de qualidade e com uma determinada
estimativa de rentabilidade.
Um olhar retrospectivo sobre este tipo de organização con-
cernente às telenovelas exibidas no horário que sucede o Jornal
Nacional, mostrou, por exemplo, que desde o início dos anos oitenta
havia um tipo de decisão sobre a recorrência de certos escritores
e diretores. Decisão apoiada num conjunto de variáveis definidas
a partir de um leque de dados que conjugavam desde os índices
de audiência conquistados, as hipóteses sobre as expectativas do
telespectador quanto aos temas, as estratégias narrativas, o elenco,
até as avaliações quanto às estratégias da concorrência e às prefe-
rências dos anunciantes.
Basta lembrar a ordem dos escritores de telenovelas exibidas
depois do Jornal Nacional de 1989 a 2004. Neste período foram
exibidas 25 telenovelas. Destas, sete foram escritas por Aguinaldo
26 Analisando Telenovelas

Silva e quatro por Benedito Ruy Barbosa. Gilberto Braga, Glória


Perez, Sílvio de Abreu e Manoel Carlos escreveram cada um deles
três telenovelas. Cassiano Gabus Mendes escreveu mais uma e
Dias Gomes uma outra. Tem-se, então, em 14 anos, vinte e cinco
telenovelas e seis escritores recorrentes (ver Quadro I).
Interessante notar que os escritores parecem cuidadosamente
distribuídos. Um primeiro caso: em março de 1993 estreava Renas-
cer, escrita por Benedito Ruy Barbosa e Luiz Fernando Carvalho.
Os dois surgiram neste horário pela primeira vez e se consagraram
nesta posição. Retornam três anos depois com O Rei do Gado. Em
1999, Benedito Ruy Barbosa volta ao ar com Terra Nostra, mas desta
vez dirigida por Jayme Monjardim. Em 2002, Esperança, também
de Benedito Ruy Barbosa e Luiz Fernando Carvalho foi ao ar.
Outro caso: Aguinaldo Silva tem sido o escritor mais assíduo
no horário. Antes de Renascer estrear ele escreveu Pedra sobre Pedra,
que foi sucedida por Corpo e Alma, de Glória Perez. Depois de
Renascer, ele escreveu, em seguida, Fera Ferida, com Dennis Carva-
lho, na direção geral. Gilberto Braga foi o escritor seguinte, com
a telenovela Pátria Minha (1994), também dirigida por Dennis
Carvalho. Depois de 1994, temos Sílvio de Abreu e novamente
Glória Perez. Dias Gomes, num curto período, vem em seguida,
antes de Benedito Ruy Barbosa. Aguinaldo Silva, mais uma vez,
escreveu uma telenovela depois de Barbosa. Desta vez, foi Manoel
Carlos que veio em seguida, marcando sua recorrência trienal:
em 2000, Laços de Família e, em 2003, Mulheres Apaixonadas. Neste
meio tempo, os escritores que escreveram foi Sílvio de Abreu,
Aguinaldo Silva, Barbosa e Glória Perez. Depois de 1994, Braga
se ausentou do horário, retomando-o em 2004, depois de uma
telenovela de Manoel Carlos, com Celebridades. A cuidadosa enge-
nharia de produção, novamente, pode ser observada: Aguinaldo
Silva escreverá a telenovela seguinte a ser substituída por uma
outra de Glória Perez. Estes dados mostram que Aguinaldo Silva
e os demais escritores, como Braga e Glória Perez, foram por mais
de duas décadas os mais freqüentes escritores das telenovelas do
Analisando a autoria das telenovelas 27

horário mais importante da Tv Globo, e que por mais de uma vez,


as telenovelas foram exibidas uma após a outra9.
Sabe-se assim que a Tv Globo congrega um conjunto expres-
sivo de especialistas da produção simbólica (escritores, diretores,
atores, cenógrafos, produtores de arte, figurinistas e tantos outros)
que a elaboram dentro de um sistema fabril, racionalizado e hierar-
quizado de trabalho. Em linhas gerais, de acordo com Daniel Filho,
o produtor ou o representante da emissora participa na definição
do escritor, este seleciona sua equipe de colaboradores e ambos
avaliam a indicação do diretor geral, aquele que é considerado “a
ponte” entre o produtor e o escritor. O diretor geral define os
outros diretores e o restante de profissionais que comporão toda
a equipe. Decisões que supõem um processo que envolve essas
três figuras: produtor, escritor e diretor geral.
Qual desses especialistas pode ser considerado o autor da
obra? Como essa autoria é definida pelos agentes que participam
do processo de produção, distribuição e consumo da telenovela?
De saída, existem aqueles que argumentam ser difícil a determi-
nação dessa autoria, já que, além de ser coletivamente produzida,
ela é de longa duração e ‘aberta’ (elaborada ao longo da sua exi-
bição), sendo por isso difícil manter o mesmo nível de controle
da obra e dedicação dos profissionais envolvidos durante mais
de 150 capítulos. Características do processo de produção que
torna a obra muito sensível às mais diversas interferências que
podem mudar os rumos e a qualidade da narrativa audiovisual.
Outros consideram que o caráter comercial do produto associado
ao controle relativo dos escritores e diretores sobre a obra não
admite sequer contemplar a figura do autor. Certos escritores e
diretores, assim como certos críticos, afirmam ser o escritor o
autor, apesar do caráter coletivo que caracteriza a feitura da obra e
9
Outras regras do sistema de produção e exibição das telenovelas, presentes desde os
anos setenta, nos três horários tradicionais de telenovelas desta emissora, no quesito
escritores, diretores, elenco, figurinistas, cenógrafos, produtores de arte podem ser
observadas, demonstrando um rigoroso senso de organização do processo (ver Souza,
2004; Alencar, 2002 e Dicionário da TV Globo, 2003).
28 Analisando Telenovelas

da crescente ampliação do poder do diretor geral diante da versão


final da telenovela.
Daniel Filho comunga da vertente que considera o escritor o
autor, o “rei” na TV, principalmente no caso da telenovela brasi-
leira, onde a redação do roteiro acompanha concomitantemente a
gravação e a exibição. É dele que parte tudo, diz Daniel Filho. Ao
diretor geral e sua equipe compete o papel de contar a história e
de conduzir todo o processo de elaboração/ gravação à exibição.
Como responsável pela forma final da obra, espera-se dele um
“diálogo franco com o autor e o produtor sobre o entendimento
da obra (...) como pretende encenar, contar a história”, de modo a
conformar uma cumplicidade entre especialistas colaboradores que
têm “funções e limites bem definidos”. O produtor após passar a
batuta para o diretor-geral, acompanha o trabalho com o objetivo
de ser um contraponto importante na percepção de conjunto de
um mega espetáculo como a telenovela. No caso da TV Globo,
existe a expectativa que seus diretores gerais assumam a função de
produtores, objetivo que explica em parte a criação dos Núcleos de
Produção. De qualquer modo, o acompanhamento da função do
diretor geral é necessário, sendo exercida por aquele que coordena
a Central Globo de Produção (Daniel Filho, 2001).
Esta defesa de autoria de Daniel Filho representa, no esta-
do atual da história do campo da telenovela, um consenso: os
profissionais que detêm a maior capacidade de decisão e a maior
responsabilidade diante do produto final são o diretor geral e o
escritor, sendo que, em geral, ambos contam com mais de um
colaborador. Nesta situação a tendência é considerar o escritor
responsável como o grande definidor das escolhas que conformam
uma telenovela. Tanto que elas são divulgadas como a história do
escritor responsável, reafirmando como ele tende a ser considerado
o autor da telenovela.
Além disso, como a telenovela é um produto comercial
que deve atender aos interesses do público, o escritor necessita
atendê-lo. Ao fazê-lo, resguarda os interesses da empresa e dos
Analisando a autoria das telenovelas 29

anunciantes, garantindo a tendência de permanecer no processo e


quem sabe conseguir negociar com mais liberdade a incorporação
de determinados temas, ritmo das gravações e até mesmo, expe-
riências na composição dos recursos narrativos, cênicos, visuais
e sonoros. Mas o processo não acaba aí, o que a crítica tem a di-
zer, o que os pares têm a dizer também fazem parte desta busca
complexa de novas definições da telenovela e novas maneiras de
se conceber o autor.
O escopo deste artigo não permite explicitar tais posições. O
que interessa aqui reafirmar é a importância de conhecê-las para
definir um dos pontos centrais do método de análise das marcas
de autoria aqui proposto. Dizendo de outro modo, definir o signi-
ficado da existência da figura do autor para os agentes envolvidos
no campo, autoria que prefigura uma determinada concepção de
telenovela, formulada num sistema comparativo com outras teleno-
velas já realizadas, que permite demarcar a partir destas definições,
obras e realizadores que poderão ser objeto de análise textual.
A primazia dada ao escritor não permite inferir que se deve
desconsiderar o papel daquele que transforma um roteiro em texto
audiovisual. Atualmente, é evidente o peso na criação da parceria
que o autor constrói com a direção geral e as implicações dela
no modo de contar a história. Escritores e diretores desafinados
podem comprometer gravemente os resultados econômicos, até
mesmo artístico e estético. As telenovelas de sucesso confirmam
o êxito dessas parcerias que tendem a se repetir mais de uma vez,
mostrando fortes evidências de uma autoria compartilhada asso-
ciada ao reconhecimento de determinadas estratégias estilísticas.
A análise da história do campo da telenovela no Brasil mostrou
que a partir de meados dos anos setenta os principais escritores
passaram a ter o primeiro grande contato com as ingerências das
regras de mercado e das pressões do governo autoritário. A res-
posta desses profissionais a essa nova característica se deu pela
tentativa de subversão dessas regras e pressões. Aprenderam ao
longo do período a fortalecer os sistemas internos de consagração
30 Analisando Telenovelas

de suas práticas, a ampliar o poder de negociação dos ‘espaços de


criação’ e das condições de trabalho com as empresas. A inversão
na formação dos profissionais e nos equipamentos introduziu
novos elementos no debate e nas formas de se conceber as tele-
novelas, como foi o caso da experiência com “as externas” e sua
repercussão na concepção de uma linguagem audiovisual mais
madura, que naquele momento foi chamada de ‘cinematográfica’,
e de enredos mais voltados para a realidade brasileira. Cresceu o
papel do diretor geral, que nos anos oitenta tem se destacado no
processo de elaboração de telenovelas, sendo capazes de definir
uma linguagem audiovisual própria e particular do gênero. Asso-
ciado ao crescimento do papel da direção é observável a tendência
dos escritores a escolherem cada vez mais uma parceria constante
com aquele que vai se responsabilizar pelo produto final: Sílvio de
Abreu e Jorge Fernando; Manoel Carlos e Ricardo Waddington;
Benedito Rui Barbosa e Luiz Fernando Carvalho; Gilberto Braga
e Denis Carvalho etc.
A consolidação de uma linha de trabalho voltada para a
especificidade da expressão audiovisual da telenovela tem sido
considerada, principalmente pelos diretores e produtores, um
importante desafio. Quando se observa a história do horário que
sucede o Jornal Nacional da TV Globo, pode-se dizer que, desde
os anos 70, Daniel Filho e Walter Avancini foram diretores que
buscaram garantir, apesar das condições adversas, a construção
de uma linha de trabalho que defendia o maior controle do pro-
cesso que favorecia a qualidade estética da telenovela e o maior
reconhecimento autoral dos diretores-gerais. Daniel Filho, por
exemplo, mantinha uma regularidade de trabalho com Janete Clair
(Xexéo,1996), e foi, enquanto diretor do núcleo de telenovelas da
Tv Globo, um dos responsáveis pela formação de uma equipe de
produção e de diretores (vale destacar a presença dos diretores
Roberto Talma e Paulo Ubiratan) que deixaram marcas autorais
nas telenovelas do horário ‘das oito’ dos anos 80, conformando
uma forte referência para qualquer produção do gênero.
Analisando a autoria das telenovelas 31

Não se pode negar o trabalho estafante e pouco avesso às


condições ideais da produção artística, nem mesmo as condições
fabris, industriais a que estes realizadores se submetem. Ortiz e
Ramos (1989, p.156) demonstraram que “a criatividade mobilizada
para a criação da telenovela esbarra necessariamente na forma já
padronizada do produto, que limita as inovações, e nos imperativos
econômicos e industriais que o caracterizam”.
Entretanto, dentro deste contexto adverso, observa-se con-
cepções criativas e autorais de telenovelas e de práticas dos reali-
zadores. O caso de Daniel filho e o depoimento de Florisbal, atual
superintendente comercial da TV Globo (Souza, 2004), ilustram
bem o papel criativo e inovador dos realizadores, deixando claro
que a própria empresa também viabiliza a existência dos canais de
reconhecimento das marcas e estilos autorais, já que esse fenômeno
alimenta a exigência das empresas e do público de manterem acessa
a tensão necessária entre as novidades e as fórmulas repetitivas10
geradoras do sucesso.
Uma característica demandada pelos representantes dessa ten-
dência tem sido a importância do diretor para desenvolver formas
de expressão próprias para a teledramaturgia e para a telenovela
que sejam fruto da articulação com outras linguagens audiovisuais,
como o cinema. Articulações que devem preservar e desenvolver
a particularidade da televisão e dos recursos tecnológicos próprios
deste meio. Esta preocupação com a linguagem específica da te-
lenovela traduz um dos temas centrais presentes nas disputas em
torno de critérios de consagração e reconhecimento.
O debate sobre a linguagem da televisão já se fazia sentir no
final dos anos cinqüenta. Nesta época já estava instalada uma in-
teressante diferença entre os escritores e diretores (pois à época,
muitos deles acumulavam essas funções) quanto ao valor da pre-
ocupação estética na televisão. Os realizadores que trabalhavam
nas emissoras no Rio concordavam com Péricles Leal que dizia

10
Atente-se para a leitura do artigo de Pina Coco, neste livro, que examina as frequentes
recorrências de certos modos de construção das heroínas.
32 Analisando Telenovelas

haver um modo diverso de pensar a linguagem entre o “Rio e São


Paulo”. Os paulistas sonhavam em fazer uma TV auto-suficiente,
com sua própria linguagem. No Rio era diferente, a TV era encara-
da mais como veículo que difundia teatro, música, e tantas outras
atividades artísticas. Herval Rossano, por exemplo, concordava e
dizia ser excessiva a preocupação dos paulistas pois, entre outras
coisas, tornava a televisão menos dinâmica: “podia-se levar até
três horas para dizer ‘eu te amo’” (Klagsbrunn e Rezende,1991,
p.44). Vale insistir que os espaços da experimentação existiram em
ambos locais: a TV de Vanguarda em São Paulo e a Câmera Um, no
Rio11, por exemplo.
Essa diferença sugere a permanente tensão entre os grupos
que defendem uma televisão mais voltada para resultados comer-
ciais, sem grandes preocupações poéticas e estéticas, e aqueles que
buscam uma possibilidade de aliar as demandas econômicas com
o desenvolvimento da linguagem televisiva de qualidade.
Tal tensão esteve presente desde as primeiras experiências
de elaboração da telenovela, tendo sido a TV Globo um espaço
privilegiado para o seu desenvolvimento. Benedito Ruy Barbosa
é um exemplo interessante. Ele tem sido um importante defen-
sor dessas inovações, responsáveis pela linguagem própria da
telenovela, sendo o escritor que trouxe, nos anos noventa, im-
portantes marcos renovadores do gênero: Pantanal12 e Renascer13.
Luiz Fernando Carvalho, um dos mais expressivos representantes

11
Jacy Campos introduziu mudanças importantes em termos de linguagem quando criou
o Camera Um, usando uma única câmera em movimento no teleteatro. Câmera Um deixou
a marca da busca de uma linguagem própria para a televisão, inovando no tratamento
cênico, brincando com o telespectador ao lidar com a câmera e os seus limites, uma
câmera que, muitas vezes, narrava sem cortes (Klagsbrunn e Rezende,1991, p. 43)
12
Pantanal foi exibida em 1990 pela TV Manchete, alcançando, pela primeira vez depois
de muitos anos, índices de audiência superiores a telenovela da TV Globo exibida neste
período, no mesmo horário.
13
Renascer é conhecida como a “novela que deixa nova marca na televisão brasileira”. Um
dos responsáveis foi o diretor Luiz Fernando Carvalho. Os primeiros quatro capítulos
de Renascer foram considerados um dos melhores da TV Brasileira (Jornal do Brasil,13
nov. 1993. Revista da TV).
Analisando a autoria das telenovelas 33

contemporâneos dessa tendência autoral da direção de telenovela,


fez de Renascer um sucesso exemplar. Experiência que mostrou
um novo patamar na história da telenovela e da teledramaturgia:
o cinema não seria mais a fonte dos critérios de avaliação e reco-
nhecimento, eles já seriam encontrados na história da produção
audiovisual da televisão14.
Por fim, tanto Barbosa quanto Carvalho têm sido contumazes
defensores da maior autonomia no processo de feitura da teleno-
vela, representando uma postura autoral bem acentuada: Barbosa
não admite dividir a escrita e Carvalho quer deixar sua caligrafia
própria em qualquer produto que elabora. O exemplo deste caso
de autoria compartilhada pode ser observada em Renascer (1993),
Rei do Gado (1996) e Esperança (2003). As duas primeiras de muito
sucesso e a última delas com problemas de aceitação pelo público
que associados a problemas pessoais do escritor, exigiu a mudança
dele nos capítulos finais da telenovela. Esta mudança permitiu
notar o estilo do escritor que o substituiu (Walcyr Carrasco) e a
manutenção da segura direção geral da equipe de Carvalho, que
nestas circunstâncias de risco garantiram níveis respeitáveis na
qualidade e no índice de audiência.
Esta parceria - diretor-geral com o escritor responsável - desen-
volve estratégias próprias de trabalho, mais ou menos integradas,
para lançar mão de recursos técnicos e humanos oferecidos pela
emissora de televisão. Observa-se, ainda, a tendência dos diretores
gerais e dos escritores responsáveis de escolherem equipes de apoio
regulares. Estas equipes atuam ao longo do processo de realização
das telenovelas segundo os modos particulares de condução opera-
dos por estes diretores gerais e escritores responsáveis chamados

14
O jornalista Hugo Sukman pergunta a Luiz Fernando Carvalho: “por que se diz que
quando a TV tem qualidade é cinematográfica e, quando é ruim é TV mesmo?” Ele
responde: “há uma tendência geral em diminuir a televisão e sou completamente contra
isso. As pessoas costumam fazer a comparação: é cinema, é bom, mesmo que não seja;
é televisão, é ruim, mesmo que seja bom. A narrativa cinematográfica é totalmente
diferente da televisão, não lida com tantos diálogos, tantos planos fechados” (Jornal do
Brasil, 12 maio 1995. Caderno B).
34 Analisando Telenovelas

de autores. Estas dinâmicas particulares de trabalho precisam ser


conhecidas para se caracterizar as funções destes profissionais nas
escolhas das estratégias empregadas ao longo dos mais de cem
capítulos das telenovelas. Como o diretor geral e seus seletos di-
retores distribuíram responsabilidades e tarefas? Como o escritor
distribuiu as tarefas na equipe, que tipo de controle instituiu na
equipe? Quais os critérios que estes profissionais usam para avaliar
a telenovela, os momentos que foram considerados primorosos,
as marcas de “tom pessoal” mais evidente, etc?
Ampliar o conhecimento sobre estas dimensões auxilia o
desenvolvimento da fase seguinte do método de análise da au-
toria nas telenovelas, qual seja: o processo de transmutar dados
sobre a produção, o processo de criação e o sistema de avaliação
das telenovelas em dados para elaborar os critérios de seleção do
corpus tópico de análise textual que servirá de base para examinar
as marcas autorais.
Em suma, já se configurou uma hipótese de que as marcas de
autoria são observáveis nas telenovelas da Tv Globo, num certo
horário, de uma certa época. Além disso, os autores que deverão ser
objeto de análise são os escritores, sem desconsiderar as parcerias
com os diretores. Neste ponto, sabe-se também que nas situações
onde existe uma parceria produtiva e estreita com os diretores
gerais, tratar-se-á a autoria como compartilhada.

Buscando as marcas do autor

A etapa da investigação mais voltada para o contexto de pro-


dução das marcas de autoria nas telenovelas atinge o seu objetivo
central quando identifica os realizadores-autores na história do
campo da telenovela, conhecendo as definições em jogo sobre
as telenovelas e sobre o processo de criação autoral, a ponto de
formular hipóteses de trabalho sobre as tendências das escolhas
de gêneros destes realizadores. Esta etapa gera a compreensão
Analisando a autoria das telenovelas 35

da trajetória destes realizadores sem descurar das relações com o


universo de telenovelas que têm feito parte da história do campo
e das escolhas que fizeram. Esta etapa fornece, assim, as hipóteses
iniciais de trabalho para conformar a amostra representativa – as
telenovelas e os trechos das telenovelas – que será objeto de análise
das estratégias internas de organização dos efeitos das telenovelas,
estratégias que traduzem marcas autorais, um “tom pessoal”.
Para a seleção dos trechos das telenovelas, construiu-se uma
diversidade de corpus de análise de caráter tópico (Bauer & Aarts,
2002), específico. Processo necessário quando se está manipulando
um texto audiovisual caracterizado pela sua extensão (de 150 a 200
capítulos, de segunda a sábado, de 45 minutos). Tamanho que difi-
culta tanto a observação sistemática de todos os capítulos de uma
telenovela, quanto a comparação destes capítulos com de outras
telenovelas já realizadas pelos escritores e diretores selecionados
ou por outros realizadores. O corpus tópico é necessário, ainda,
para examinar textos audiovisuais onde o realizador considerado
autor trabalha coletivamente. Alguns escritores autores permitem
seus colaboradores ficarem responsáveis pela criação de certos
personagens e pela condução de suas histórias durante a trama.
Alguns diretores gerais também distribuem responsabilidades
que podem significar ter um diretor da equipe responsável pela
criação e condução de mais de um capítulo da telenovela. Nestes
casos, é imprescindível poder localizar estas situações, a fim de
poder avaliar se é possível identificar recorrências e dissonâncias
que atestem marcas de autoria da direção geral e dos diretores da
equipe nestas telenovelas, por exemplo. Em suma, a construção
de amostras tópicas para a análise textual oferece maior segurança
ao investigador de que está formulando interpretações que consi-
derem a complexidade das instâncias de produção e das instâncias
da obra - telenovela.
A proposta de análise das marcas de autoria das telenovelas
escritas por Benedito Ruy Barbosa e dirigidas por Luiz Fernando
Carvalho, por exemplo, traduziu a hipótese de uma correspon-
36 Analisando Telenovelas

dência das posições que estes realizadores tinham no campo


com a disposição inovadora que buscaram desenvolver em seus
trabalhos, a qual estava associada a um tipo de reconhecimento e
consagração que buscavam imprimir marcas de autoria no gênero
(Souza, 2002).
Todavia, sabe-se que posicioná-los num campo específico de
práticas não é suficiente para identificar, examinar e interpretar
as marcas de autoria na instância da obra. Sabe-se, ainda, que não
são suficientes para construção do conjunto de corpus tópico das
telenovelas a ser examinado. Para tanto foi preciso formular um
método apropriado para análisar os modos de funcionamento e
organização textual das telenovelas.
O método de análise textual da telenovela em exercício no
grupo de pesquisa A-tevê15 nasceu das experiências desenvolvi-
das pelo Laboratório de Análise fílmica. A perspectiva de análise
adotada, formulada por Gomes a partir de uma releitura da Po-
ética de Aristóteles, explora com acuidade as estratégias textuais
desenvolvidas pelos realizadores autores do filme: estratégias
de agenciamento e organização dos elementos de composição
que prevêem e solicitam determinados efeitos dos apreciadores
(Gomes, 1996, p.113). Formulação apropriada para um método
de análise das estratégias textuais das telenovelas, programa de
televisão que busca garantir a maior margem de coincidência
entre o efeito esperado e a resposta adequada a ele por parte dos
apreciadores-telespectadores. O autor-realizador (individual ou
coletivo) é pensado como estrategista especializado na construção
de instruções de leitura que devem provocar determinado efeitos,
sob pena de perder não apenas o reconhecimento, mas também
a condição para imprimir as marcas de autoria.

15
Reafirma-se a fase preliminar desta experiência associada as lacunas da pesquisadora
que tem sua formação ancorada nas ciências sociais. A clareza dos limites impostos pela
origem da formação fomentou uma reordenação no campo de estudos da pesquisadora
desde 2000 para aprimorar a capacidade analítica de textos e discursos audiovisuais
mediáticos. Resultados deste percurso transdiciplinar guiará, certamente, o processo
de investigação em curso e os futuros trabalhos nesta área.
Analisando a autoria das telenovelas 37

Seguindo os rastros das premissas anteriores, o método de


análise textual das telenovelas deve ser conduzido por uma “teoria
sobre o funcionamento” deste programa de televisão examinada a
partir de dois pressupostos básicos. O primeiro exige que se deli-
mite o objeto, telenovela, a partir da “representação da ação que
lhe é particular”, dos gêneros discursivos de representação, pois a
eles corresponderia um conjunto de efeitos próprios e esperados.
Isto quer dizer que esboçar uma teoria sobre o funcionamento
da telenovela exige um conhecimento sobre a sua destinação,
finalidade, o efeito esperado sobre aqueles que a apreciarão. O
segundo pressuposto diz respeito a natureza desta apreciação,
pois a telenovela só existe quando apreciada.
Uma implicação metodológica deve ser ressaltada: o inves-
tigador deve se concentrar na “instância da obra”, no texto, nos
recursos e meios estrategicamente postos na obra16, pois são com
estas estratégias que o apreciador se relaciona, os dispositivos que
permitem o apreciador experimentar ou não os efeitos agenciados
que foram colocados a sua disposição.
Privilegiar o lugar da apreciação, instância da obra destinada
a produção de efeitos, centraliza a atenção do investigador neste
agenciamento de efeitos operados pelo texto. Agenciamento que
faz uso de meios, recursos, materiais ordenados, estruturados de tal
maneira a produzirem os efeitos que se espera atingir no apreciador.
Os meios indicados são os narrativos, cênicos, visuais e sonoros.
Os efeitos mencionados são os estéticos (sensoriais), emocionais e
os comunicacionais (de sentido). Como a cada obra corresponderia
um conjunto de modos possíveis de se organizar, distribuir, fazer
uso, compor estes materiais no processo de geração de efeitos, ao
investigador cabe decifrar estes modos possíveis, assim como os
programas artísticos específicos da obra examinada, o conjunto de
escolhas que ela representa (Gomes, 2003 e Eco, 1991).

16
O termo obra é aqui usado como trabalho artístico em geral, não importanto se
reconhecida como erudita, popular ou massiva. Em alguns momentos do texto, poderá
também referir-se a produção total de um realizador.
38 Analisando Telenovelas

Derivam destes pressupostos alguns procedimentos. O desta-


que dado aos processos que permitem a identificação dos efeitos
é compreensível, pois são eles pontos de partida para a efetiva
observação das estratégias e dos dispositivos que foram capazes
de gerá-los.
Estes pressupostos indicam, portanto, a necessidade do in-
vestigador estabelecer as leis gerais de programação dos efeitos
nas telenovelas que estiver examinando. Para tanto, precisará
identificar os códigos internos de funcionamento da composição
destas telenovelas a partir dos gêneros de efeitos em que elas, em
linhas gerais, têm se especializado.
Até o momento, gêneros ficcionais17 dizem respeito às estra-
tégias de comunicabilidade textuais desenvolvidas nas telenovelas,
estratégias que demarcam regras de condução das orientações de
escritura e de apreciação dos telespectadores. Regras e estratégias
historicamente construídas no imaginário de produtores e teles-
pectadores, que tendem a sofrer recriações e redefinições (Borelli,
2002 e Souza, 2004). Estabelecidas estas premissas gerais, algumas
hipóteses de trabalho concernentes a construção do conjunto
de corpus tópico a ser examinado surgiram. Este artigo indicará
algumas delas, sem a pretensão de esgotá-las.
A primeira delas diz respeito aos critérios para selecionar
quais momentos do texto narrativo devem ser objeto de atenção
do investigador. Para tanto, os materiais reunidos foram: registros
audiovisuais dos capítulos, sinopse da telenovela, boletim de pro-
gramação, resumos das revistas da TV impressa e dos resumos dis-
poníveis em sítios na Internet, depoimentos de telespectadores.
As telenovelas contam em geral com uma sinopse, que pode
chegar a ter trinta páginas, e quase duzentos capítulos, cada um
deles também com este número de páginas. O roteiro e a sinopse
17
Mais uma vez é irrefutável a necessidade de aproximação e apropriação de outras áreas
do conhecimento para ampliar a compreensão dos gêneros ficcionais, as suas formas de
expressão na literatura, em especial nos romances folhetins, no cinema, no teatro e na
teledramaturgia, para poder compreender melhor a relação entre as estratégias textuais
impostas pelos gêneros ficcionais e os efeitos previstos.
Analisando a autoria das telenovelas 39

não podem servir de base para a análise porque muitas vezes não
correspondem ao desenvolvimento final da história exibida na te-
levisão. Além disso, o acesso do pesquisador a este material escrito
e a todos os capítulos exibidos é muito difícil, cabendo ao pesqui-
sador imaginar outros caminhos para conhecer o texto narrativo,
a história contada nas suas nuances e modos de elaboração.
Nestas circunstâncias algumas etapas foram estabelecidas:
i) elaboração de um resumo da história baseado nos boletins de
programação, nas sinopses, quando houver, nos resumos dos capí-
tulos exibidos; ii) elaboração de um resumo descritivo e ampliado
do desenrolar da história, buscando respeitar a composição e o
ritmo da narrativa; iii) criação de um quadro geral que permita
observar o ritmo da narrativa ao longo das semanas e dos meses,
configurando as curvas dramáticas segundo as tramas centrais e
secundárias. Os dois últimos itens lançam mão das mesmas fontes,
precisando recorrer a memória e ou depoimentos de telespecta-
dores que assistiram a telenovela. Neste momento também são
reunidas as matérias da imprensa mais significativas que oferecem
dados sobre a audiência e sobre as repercussões da telenovela na
vida social e na vida de telespectadores.
O panorama geral da história oferece ao pesquisador um qua-
dro de hipóteses de trabalho para rastrear os capítulos gravados
buscando uma correspondência entre o momento da história e
os capítulos registrados. Isto porque dificilmente consegue-se ter
registrado em VHS ou DVD todos os capítulos exibidos. De posse
deste material, o investigador pode passar a fase seguinte, a análise
textual do material audiovisual. O investigador já formulou uma
primeira versão do conjunto geral do texto narrativo, do modo
do escritor narrar a história, os temas tratados, a fase de implan-
tação da trama central em relação a fase do desfecho, as intrigas
principais e secundárias, a caracterização dos personagens, suas
ações e motivos, e tantas outros. Tem-se conhecimento inclusive
das situações consideradas problemas, dos melhores momentos
para os realizadores, críticos de televisão e para o público. Este
40 Analisando Telenovelas

primeiro panorama desenha, por fim, um conjunto de hipóteses


de trabalho sobre os modos do escritor responsável e dos direto-
res contarem histórias neste entrelaçar de estratégias que fazem
parte da fórmula de sucesso com as estratégias que são produzidas
buscando expressar as marcas pessoais.
Formula-se, ainda, uma outra significativa hipótese de traba-
lho, aquela que traça um mapa, mesmo que inicial e provisório,
sobre as estratégias de gênero utilizadas na telenovela. Cabe
retomar as intuições provenientes dos resultados de pesquisa de
Borelli (2002) sobre os sistemas de identificação e observação
da composição dos gêneros ficcionais nas telenovelas. Borelli
demonstrou que é possível identificar as articulações dos gêneros
ficcionais melodramático, cômico, erótico e fantástico na teleno-
vela Indomada (Aguinaldo Silva, direção geral Marcos Paulo, TV
Globo, 1997, 20 horas). Borelli associou os núcleos dramáticos,
plots e até mesmo a caracterização de personagens e situações a
cada um destes gêneros. Procedimento que conseguiu ao mapear
os fragmentos e situações onde determinadas estratégias de gênero
foram acionadas em toda a obra, pois a redundância, a repetição,
a presença de uma estrutura regular ao longo da telenovela são
próprias do seu modo de funcionamento. O caminho criado por
Borelli18 ajudou, enfim, a buscar critérios de identificação dos gê-
neros ficcionais nas telenovelas, pois permitiu construir a seguinte
pergunta: Quais os gêneros ficcionais claramente identificados na
telenovela, eles estão associados aos núcleos dramáticos, ou traçam
de modo mais abrangente as marcas de composição da maior parte
destes núcleos? Exemplificando: vamos poder localizar em todas
as telenovelas da Tv Globo uma associação das estratégias de co-
micidade com determinados núcleos dramáticos, ou em algumas
telenovelas as estratégias de comicidade não passam apenas de
traços de determinados personagens secundários presentes em
núcleos fortemente marcados pelas estratégias melodramáticas?

18
Recomenda-se a leitura do artigo de Borelli neste livro por apresentar esta perspectiva
de análise.
Analisando a autoria das telenovelas 41

Em suma, é preciso estabelecer uma compreensão mais


geral dos modos de se contar as histórias em cada uma das
telenovelas examinadas buscando identificar quais os núcleos
dramáticos em ação, como estão articulados e quais as estraté-
gias de gênero empregadas em cada uma delas. Procedimento
que indicará com maior precisão os trechos que oferecem
mais elementos para o exame dos efeitos, dos materiais e das
estratégias utilizadas. Procedimento que tornará viável a com-
paração de obras dos mesmos realizadores e de realizadores
diferentes. Procedimento que permitirá, inclusive, localizar na
telenovela, variações no modo de construção destas estratégias.
Isto porque os trechos serão caracterizados a partir de um
tratamento cuidadoso da relação deles com o conjunto geral
da obra. Procedimento sem dúvida essencial para examinar as
marcas autorais dos realizadores.
Um procedimento que precisou estar associado a todo este
processo foi o de identificação e localização das unidades que
conformam uma telenovela, pois a extensão deste tipo de obra
está associada a serialidade desenvolvida nos capítulos diários, na
articulação entre eles, entre os blocos internos a cada capítulo,
distribuídos por semanas, meses e pelas fases de implantação,
desenvolvimento e conclusão da história central e das secundá-
rias. Cada um dos capítulos exibidos, registrados ou não, tem um
resumo (de jornal ou revista impressa ou online) caracterizado
com as indicações gerais de quais personagens, quais momentos
da história, quais os destaques dados, quais os elos de ligação sa-
lientados. A partir deste material mais um conjunto de hipóteses
de localização das unidades da história que se deseja analisar é
assinalado.
No exercício realizado com os capítulos da primeira sema-
na de Mulheres Apaixonadas, Renascer e Terra Nostra localizamos
as trajetórias das personagens, o lugar dos protagonistas e dos
personagens das tramas secundárias, o ritmo da exposição dos
conflitos, o tempo do seu desenrolar, os enlaces entre os conflitos
42 Analisando Telenovelas

e personagens durante a primeira semana, comparando com o


desenrolar das tramas e os seus desfechos em cada telenovela19.
Os resultados deste estudo preliminar construíram as hipóteses
que iniciaram o tratamento da observação do material audiovisual
registrado.
Por fim, estes processos de definição do corpus tópico apri-
moram um procedimento anterior que formulava como critério
de seleção dos fragmentos para examinar as marcas de autoria os
momentos onde o escritor e o diretor geral supostamente tives-
sem maior domínio sobre a feitura da obra: quer dizer, os vinte
capítulos iniciais e os vinte finais. Os exercícios de construção do
corpus tópico de análise demonstraram que o método de análise
textual a ser empregado deve estar associado com os processos de
refinamento da localização do corpus tópico e da compreensão da
relação destas unidades com o conjunto da obra. Este processo
oferece ao investigador as condições para definir um conjunto de
momentos da história e capítulos que expressa melhor a dimensão
autoral, amplia a visibilidade das “mãos” dos escritores e diretores,
assim como, se houver, da autoria compartilhada.

19
Recomenda-se, mais uma vez, a leitura do artigo de Rodrigo Barreto neste livro
pois permite observar as diferenças no modo de narrar presentes nos dois primeiros
capítulos de uma telenovela da mesma emissora, exibidas no mesmo horário, na mesma
década e com a mesma direção geral de Jayme Monjardim. O artigo apresenta algumas
hipóteses de trabalho sobre as estratégias narrativas particulares dos escritores: Glória
Peres e Benedito Ruy Barbosa.
Analisando a autoria das telenovelas 43

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46 Analisando Telenovelas

Quadro I
Telenovelas, Rede Globo, 20h* (1989-2003)
Título Período Cap. Roteiro Direção
Aguinaldo Silva com
Ricardo Linhares e Paulo Ubiratan
14 Ago/89 Ana Maria Moretzsohn (direção geral),
Tieta a 196 Reynaldo Boury e
31 Mar/90 Adaptação do Roman- Luiz Fernando Car-
ce “Tieta do Agreste” valho.
de Jorge Amado.
Jorge Fernando (dire-
Sílvio de Abreu com ção geral),
Rainha da 2 Abr/90 a
177 Alcides Nogueira e Jodelet Larcher
sucata 27 Out/90
José Antônio de Souza Roberto Talma
(direção executiva)
Cassiano Gabus
Paulo Ubiratan
Mendes
(direção geral),
29 Out/90 Ricardo Waddington
Meu bem Colaboração de
a 173 e
meu mal Dejair Cardoso,
17 Mai/91 Reynaldo Boury.
Maria Adelaide Amaral
Paulo Ubiratan
Luiz Carlos Fusco (a
(direção executiva)
partir do capítulo 20).
Dennis Carvalho
Gilberto Braga
(direção geral),
Colaboração de
20 Mai/91 Mauro Mendonça
O dono do Ricardo Linhares,
a 197 Filho,
mundo Leonor Basséres.
13 Jan/92 Ricardo Waddington.
Apoio de Sílvio de
Ruy Matos
Abreu
(direção executiva)
Aguinaldo Silva com Paulo Ubiratan
Ana Maria Moretz- (direção geral),
sohn e Gonzaga Blota,
Pedra so- 6 Jan/92 a
178 Ricardo Linhares. Luiz Fernando
bre pedra 31 Jul/92
Colaboração de Carvalho e
Márcia Prates Ruy Matos
e Flávio de Campos. (direção de produção)
* O termo “Horário das 20h” é utilizado aqui para as telenovelas exibidas, de segunda
a sábado, pela TV Globo, apesar de sua imprecisão.
Analisando a autoria das telenovelas 47

Título Período Cap. Roteiro Direção


Roberto Talma
(direção geral),
De corpo e 3 Ago/92 a Fábio Sabag e
185 Glória Perez
alma 5 Mar/93 Ivan Zettel.
Ítalo Granato
(direção de produção)
Luiz Fernando Car-
valho (direção geral),
Mauro Mendonça
Benedito Ruy Barbosa
Filho e
8 Mar/93 a colaboração de
Renascer 213 Emílio Di Biase.
13 Nov/93 Edmara Barbosa e
Roberto Talma (dire-
Edilene Barbosa.
ção artística)
Ruy Matos (direção
de produção)
Aguinaldo Silva com
Ricardo Linhares e
Ana Maria Moretzsohn

Colaboração de
Flávio de Campos e
Marcia Prates.

Dênis Carvalho (dire-


Enredo inspirado no
ção geral)
universo ficcional de
Marcos Paulo,
15 Nov/93 Lima Barreto, mais
Carlos Magalhães,
Fera ferida a 221 especificamente nos
Paulo Ubiratan
15 Jul/94 romances “Clara dos
(direção artística)
Anjos”, “Recordações
Ruy Matos
do Escrivão Isaías
(direção de produção)
Caminha”, “Triste Fim
de Policarpo Quares-
ma”, “Vida e Morte de
M.J. Gonzaga de Sá”
e um personagem dos
contos ‘”Nova Califór-
nia” e “O homem que
sabia Javanês”.
48 Analisando Telenovelas

Título Período Cap. Roteiro Direção


Dennis Carvalho
(direção geral),
Gilberto Braga
Alexandre Avancini ,
Colaboração de
18 Jul/94 Ary Coslov, Roberto
Pátria Alcides Nogueira,
a 203 Naar.
minha Sérgio Marques ,
10 Mar/95 Paulo Ubiratan
Ângela Carneiro e
(direção artística)
Leonor Basséres.
Eduardo Figueira
(direção de produção)
Jorge Fernando (dire-
ção geral),
Sílvio de Abreu
Marcelo Travesso e
13 Mar/95 Colaboração de
A próxima Rogério Gomes
a 203 Alcides Nogueira e
vítima Paulo Ubiratan
3 Nov/95 Maria Adelaide
(direção artística)
Amaral.
Ítalo Granato
(direção de produção)
Dennis Carvalho
(direção geral)
Ary Coslov, Carlos
6 Nov/95
Explode Araújo
a 185 Glória Perez
coração Ruy Matos
3 Mai/96
(direção de produção)
Núcleo Paulo
Ubiratan
Paulo Ubiratan
(direção peral)
6 Mai/96 Dias Gomes Gonzaga Blota
O fim do
a 35 Colaboração de Ruy Matos
mundo
14 Jun/96 Ferreira Gullar (direção de produção)
Núcleo Paulo
Ubiratan
Analisando a autoria das telenovelas 49

Título Período Cap. Roteiro Direção


Luiz Fernando Car-
valho (direção geral),
Carlos Araújo,
Benedito Ruy Barbosa
17 Jun/96 Emílio Di Biase e
O rei do colaboração de
a 209 José Luís Villamarin
gado Edmara Barbosa e
14 Fev/97 Ruy Matos
Edilene Barbosa.
(direção de produção)
Núcleo Luiz Fernan-
do Carvalho
Paulo Ubiratan
(direção geral),
Aguinaldo Silva com
Luiz Henrique Rios,
Ricardo Linhares,
17 Fev/97 Marcos Paulo e
A indo- Colaboração de
a 203 Roberto Naar.
mada Nelson Nadotti,
10 Out/97 Ítalo Granato
Marcia Prates e
(direção de produção)
Maria Elisa Berredo.
Núcleo Paulo Ubi-
ratan
Paulo Ubiratan (dire-
ção geral)
Manoel Carlos Ricardo Waddington
13 Out/97 Colaboração de Alexandre Avancini ,
Por amor a 191 Vinícius Vianna, Edson Spinello.
22 Mai/98 Letícia Dornelles, Ruy Matos
Maria Carolina. (direção de produção)
Núcleo Paulo
Ubiratan.
Denise Saraceni
Sílvio de Abreu
(direção geral)
25 Mai/98 Colaboração de
Torre de Carlos Araújo,
a 203 Bosco Brasil e
babel Paulo Silvestrini,
15 Jan/99 Alcides Nogueira
José Luiz Villamarin
Núcleo Carlos Manga
50 Analisando Telenovelas

Título Período Cap. Roteiro Direção


Aguinaldo Silva com
Daniel Filho e
Fernando Rebello,
Ricardo Waddington
Filipe Miguez,
(direção geral),
Ângela Carneiro,
Alexandre Avancini ,
18 Jan/99 Maria Helena Nasci-
Suave Marcos Schechtman,
a 209 mento,
veneno Moacyr Góes.
17 Set/99 Colaboração de
Ruy Matos
Marília Garcia.
(direção de produção)
Inspirada na peça
Núcleo Ricardo
“Rei Lear” de William
Waddington
Shakespeare.
Jayme Monjardim
(direção geral),
Benedito Ruy Barbosa Carlos Magalhães
20 Set/99
Terra colaboração de e Marcelo Travesso.
a 221
nostra Edilene Barbosa e Ruy Matos
2 Jun/00
Edmara Barbosa. (direção de produção)
Núcleo Jayme Mon-
jardin
Ricardo Waddington
(direção geral),
Marcos Schechtman,
Manoel Carlos
Moacyr Góes,
colaboração de
5 Jun/00 Rogério Gomes
Laços de Fausto Galvão,
a 209 Leandro Néri
família Vinícius Vianna,
2 Fev/01 César Rodrigues
Flávia Lins e Silva,
Ruy Matos
Maria Carolina.
(direção de produção)
Núcleo Ricardo
Waddington
Aguinaldo Silva com Marcos Paulo
Ricardo Linhares. (direção geral)
Roberto Naar
5 Fev/01 Adaptação livre das Fabrício Mamberti
Porto dos
a 203 obras “Mar Morto” Luciano Sabino
milagres
28 Set/01 e “A descoberta da César Lino
América pelos turcos” (direção de produção)
do escritor Jorge Núcleo Marcos Paulo
Amado.
Analisando a autoria das telenovelas 51

Título Período Cap. Roteiro Direção


Jayme Monjardim
(direção geral)
Marcos Schechtman.
Mário Marcio Ban-
1 Out/01 darra
O clone a 221 Glória Perez Teresa Lampreia
14 Jun/02 Marcelo Travesso
Guilherme Bokel
(direção de produção)
Núcleo Jayme Mon-
jardim
Benedito Ruy Barbosa Luiz Fernando
colaboração de Carvalho
Edmara Barbosa e (direção geral)
Edilene Barbosa Carlos Araújo
17 Jun/02
Emílio Di Biase e
Esperança a 209
A partir do capítulo Marcelo Travesso.
14 Fev/03
147, Walcyr Carrasco César Lino
assumiu a autoria, (direção de produção)
substituindo Benedito Núcleo Luiz Fernan-
Ruy Barbosa do Carvalho
Ricardo Waddington
(direção geral)
Manoel Carlos
Rogério Gomes,
Colaboração de
Mulheres 17 Fev/03 José Luiz Villamarim,
Maria Carolina,
apaixo- a 203 Ary Coslov
Fausto Galvão,
nadas Out/03 Flavio Nascimento
Vinícius Viana
(direção de produção)
Núcleo Ricardo
Waddington

Fontes
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UFBa). Dados coletados em sites da emissora Tv Globo; jornais
impressos e on-line O Globo; Jornal do Brasil; Folha de São Paulo
e Dicionário da TV Globo (2003).
52 Analisando Telenovelas
Comicidade e fantástico: diálogos com o melodrama 53

Comicidade e fantástico:
diálogos com o melodrama1

Silvia Helena Simões Borelli

Traços da Comicidade

Se para J. Y. Tadié (1982), I. Calvino (1993) e A. Vincent


Buffault (1994) a aventura, o erotismo e as lágrimas do me
lodrama configuram a essencialidade da ficção, para Mikhail Bakhtin
(1987) a comicidade, o riso compõem a essência da ficcionalidade
popular. Em sua já clássica reflexão sobre a obra de Rabelais, Bakhtin
resgata a história do riso e trabalha com elementos da carnavaliza-
ção do cotidiano nos contextos da cultura e da literatura popular
do XVI; sua análise permite considerar que esses elementos se
encontram ainda presentes em inúmeras manifestações populares
de massa na atualidade. A paródia, a sátira e o realismo grotesco
despontam, em Rabelais, em meio a cenários vinculados ao banquete
- em que abundância e excesso se manifestam pelos atos de comer
muito e beber em demasia - e expressos em marcantes imagens

1
Uma versão preliminar deste texto está parcialmente publicada em: LOPES, M. I. V;
BORELLI, S. H. S. e RESENDE, V. Vivendo com a telenovela. Mediações, recepção, teleficcio-
nalidade. São Paulo: Summus, 2002.
54 Analisando Telenovelas

reveladoras do baixo corporal. Com este inventário Bakhtin qualifica a


comicidade enquanto gênero popular, enquanto forma de expressão
oposta àquela da cultura medieval oficial, eclesiástica e feudal. São
esses mesmos elementos que permitem a Bakhtin esclarecer que a
comicidade não é homogênea; pelo contrário, explicita-se em sua
plena diversificação: o bufo, o burlesco e o grotesco apresentam-se
como categorias diferenciadas dentro de um padrão mais amplo e
expressam momentos variados do processo cultural diversificado.
Além disso, a perspectiva bakhtiniana de análise da cultura abre
uma brecha metodológica de incorporação e transposição dos
tradicionais referenciais da comicidade do XVI para a atualidade.
Vale a pena ressaltar que inúmeros traços da comicidade original
encontram-se em manifestações culturais nos campos da literatura,
circo, teatro, televisão e cinema contemporâneos.
A comicidade manifesta-se em A Indomada não só no tom
adotado mas também, como afirma Aguinaldo Silva:

...nas situações hilariantes como a brincadeira de colocar todo mundo


falando inglês com sotaque ‘nordestês’ (...) A novela tem um pé na
comédia; a gente procura dar um tratamento de humor às situações,
mesmo às mais dramáticas, porque acreditamos que o espectador gosta
mais assim (Sinopse A Indomada: 5-6).

Para reiterar, são vários os depoimentos de receptores, que


reforçam os traços da comicidade expressos na proposta de falar
inglês com sotaque ‘nordestês’:

Tinha uma cidade, que parece que era no nordeste, mas eles falavam
engraçado meio inglês, meio português com sotaque do nordeste. Isto era
mesmo muito engraçado (Tati, Família 3, ES).

Ah, eu acho que o sotaque né, meio... meio inglês assim, acho que, sei
lá, eu achava engraçado certas coisas, certas palavras, meio bizarro
(Beatriz, Família 4, ES).
Comicidade e fantástico: diálogos com o melodrama 55

O que pegava mesmo, e que eu dava risada, era que tinha o sotaque:
era muito engraçado, era uma coisa bastante diferente (Paula,
Família 4, ES).

Uma das cenas recorrentes, apontadas por vários dos entre-


vistados, como característica da comédia é a do raio que cai na cabeça
da Altiva:

Agora: é óbvio que tem o lado cômico que seria o da própria Altiva, nas brigas
com o padre, no raio que cai em sua cabeça... (Cristiane, Família 3, EG).

O casamento não aconteceu, mas aconteceu uma coisa ao contrário do


que aconteceu da primeira vez. Em vez do raio cair na igreja, caiu em
cima da Altiva: aí foi fogo para todo lado, crucifixo... ela ficou dando
choque. O médico...Como é que era o nome daquela menina? Daquela
abestalhada do empório, aquela loirinha ... a Berbela foi tocar nela e
tomou choque; depois o Beraldo também tomou choque. Mas aí quando
o médico chegou já tinha passado (Lurdinha, Família 1, HV)

Tem também a cena que a Altiva levou um raio em cima da cabeça,


mas meu Deus do céu, parece uma comédia (...) É engraçado o guarda
gordo... Se cagava de medo quando era lua cheia, noite de lua cheia. O
delegado Motinha saiu, ele saiu de dia e só voltou no dia seguinte, mas
esse homem se cagou de medo. Ele corria para a delegacia com medo do
Cadeirudo. Ele morria de medo do Cadeirudo, com medo de atacar ele..
(Fernanda, Família 1, EG).

O padre José é apontado, em vários depoimentos, como uma


típica personagem cômica:

Tem o padre José; quando a Altiva ameaça, ele fala: ‘Eu vou
mostrar meu bundão’. Mas eu dou tanta risada, dou tanta ri-
56 Analisando Telenovelas

sada... eu, minha mãe e a Sheila, morremos de rir! (Fernanda,


Família 1, EG).

Primeiro que ele é um padre que é uma piada, ele tem um litro de
whisky na sacristia, ele bate o maior papo com a imagem da santa
e bebe. Toda vez que ele vai no British Club, ele toma o whiskynho
dele e oferece, sei lá, faz uma reverência e bebe. Mas eu diria que ele
é autêntico, eu acho que ele faria isso dessa forma assumida até na
frente do papa ou do bispo, na frente de quem estiver (Cristiane,
Família 3, EG).

Outras cenas, personagens e relações são também reconheci-


das como pertencentes ao mesmo território de ficcionalidade:

Ah! Cômico tinha muito né? Quando o Pitágoras falava, você


tinha que dar risada, porque do jeito que ele agia; mesmo, a juíza
Mirandinha com aquele namorado dela né? A gente dava risada...
(João, Família 2, QC).

O jeito deles falarem era muito engraçado. Aquele delegado Motinha


todo atrapalhado, era muito legal. Deixa eu ver se eu lembro de
alguém mais... Aquele padre meio suspeito [Risos]. O jeito daquele
padre era legal (Juliana, Família 2, ES).

A Cleonice era muito engraçada, a relação dela com a Altiva, que


ela era submissa à Altiva, eu achava engraçado. O delegado com a
Mirandinha, as brigas que eles tinham (Paula, Família 4. ES).

Foi a de terça-feira, não... foi no sábado, que a mulher levantou, ela


estava morta, dentro do caixão, ela abriu o olho e levantou. Todo
mundo riu aqui em casa (...) Tem também o Emanoel: o dedinho,
a hora que ele virava o dedo (...) E a Altiva quando fazia: Well!!!
(João Paulo, Família 2, EG/EV).
Comicidade e fantástico: diálogos com o melodrama 57

É interessante observar como o relato dos receptores revela


a mistura e o entrelaçamento de traços constitutivos, ao mesmo
tempo, do melodrama e da comicidade: a morte e o riso, a maldade
e o riso, a tensão e o riso. O cômico, presente em inúmeros mo-
mentos da história da telenovela brasileira - basta citar a tradição
(re)inventada por autores como Bráulio Pedroso e Silvio de Abreu
(Borelli, 1997) - retoma o diálogo com o melodrama cômico e
com as matrizes clássicas da literatura e do teatro populares. O
melodrama cômico que, de acordo com Décio de Almeida Prado,
caminha do riso em direção à gargalhada trágica:

...revira pelo avesso o melodrama, tratando como farsa situações e


personagens já dezenas de vezes apresentadas a sério (...) o canalha
espirituoso (...) que apesar de sua completa ausência de escrúpulos,
não deixa de ser simpático ao público, pela desfaçatez e audácia quase
lúdicas...(Prado, 1972:89-90).

Ou seja, há um processo de incorporação de traços da comicidade ao


padrão tradicional do melodrama; e dele emergem o humor, a sátira, a
farsa em narrativas que continuam a falar de amores e ódios, pobres
e ricos, justiças e injustiças. Nesse sentido, a comicidade é constitutiva
do universo melodramático.

De acordo, portanto, com alguns dos códigos de orientação


das relações entre melodrama e comicidade, os mesmos perso-
nagens podem viver, concomitantemente, o papel de vilão e vilã
- como por exemplo, Altiva e Pitágoras William Mackenzie - em
episódios absolutamente hilários como as explosões da usina
Manguaba e da lancha onde estavam Helena e Artêmio, entre
inúmeras outras. Não podemos esquecer que a eficácia e a veros-
similhança provocadas por Pitágoras e Altiva - vilões, corruptos
inescrupulosos e farsantes que provocam gargalhadas com um
simples piscar de olhos, um trejeito de boca, um tom de voz
58 Analisando Telenovelas

- devem-se, sem dúvida, à competência e habilidade dos atores


Ary Fontoura e Eva Wilma. Assim, a dupla Altiva e Pitágoras
tornou-se referência para o movimento que parte do riso e pode
aportar na gargalhada trágica:

‘Desta vez faço uma mãe desnaturada’, delicia-se Eva Wilma, acredi-
tando que o público vai, assim mesmo, dar boas gargalhadas. ‘As pessoas
reprimem a agressividade e por isso costumam fazer catarse através de
personagens malvados’ (Sinopse A Indomada:16).

Nos trechos dos depoimentos dos receptores, pode-se en-


contrar a confirmação do prognóstico de Eva Wilma sobre as
ambíguas fronteiras que separam a vilã melodramática das en-
cenações de caráter cômico:

Tem hora que eu penso assim: ’Pô, a Altiva não tem dó de ninguém,
não basta ela ficar na rua por uns nove dias’. Ficou nove dias e quase
nos últimos dias, no oitavo dia, foi lá na casa da Helena e do Teobaldo,
comeu todinho o almoço do pessoal - mas eu dei tanta risada! Não, mas
ela merecia ficar na rua. O cachorro foi lá e comeu o café da manhã dela,
queria dormir com ela (Fernanda, Família 1, EG).

E a mesma cena é contada em outra versão:

A Altiva encontrou com a Berbela, ela estava falando que estava numa
vida boa, que não sei o que, que sempre estava muito gostoso e a noite
ela acabou dormindo no banco da praça. Aí no dia seguinte, aí tinha
um cachorro faminto, e ela guardou uma empadinha e um pedaço de
carne, coxa de frango, aí tudo bem, ela foi dormir, aí o cachorro comeu
tudinho, aí depois o cachorro foi dormir junto com a Altiva. Nossa,
mas a Altiva deu um pulo do banco; nossa eu dei tanta risada, tanta
risada (Lurdinha, Família 1, HV).
Comicidade e fantástico: diálogos com o melodrama 59

E a fusão entre traços do melodrama e da comédia confirma-


se em vários trechos da sinopse da telenovela:

No limite entre o drama e a farsa, o que eles (os autores) querem é fazer
o público rir e se emocionar com A Indomada. Fala-se, explicitamente,
nesse equilibrismo entre comédia e drama (Sinopse A Indomada:7).

A atriz Adriana Esteves, que faz o papel de Helena, prevista


para ser a grande heroína da trama, confirma a fusão entre densidade
melodramática e leveza do humor, na trajetória de sua personagem:

Ela sofreu muito, perdeu os pais cedo e teve que tomar decisões impor-
tantes, mas eu a vejo encarnando tudo isso com uma dose de humor. O
jovem dos anos 90 é muito independente, politizado, sabe reverter muito
bem o sofrimento. Eu imagino nela uma grande mulher, com uma boa
alma (Sinopse A Indomada:10).

E o ator José Mayer, segue reafirmando a mesma tendência,


ao falar do principal herói deste enredo:

...o Teobaldo é um personagem delicioso, um homem deslumbrante,


de ações heróicas; num certo sentido, muito melhor do que eu mesmo.
[Entretanto, completa ele]: mesmo os heróis podem ter uma dose de
comédia ou, pelo menos, de leveza (Sinopse A Indomada:11).

Tudo bem que o objetivo inicial fosse esse! Entretanto, se há


uma coisa difícil de ser confirmada é se Teobaldo e Helena conse-
guiram responder ao desafio contido na sinopse e nas declarações
de Adriana Esteves e José Mayer, quanto à dose de humor, comédia e
leveza destas personagens: elas permaneceram pesadas e carrancudas
em quase todo o percurso.
60 Analisando Telenovelas

Quando interpelados a qualificar quais as cenas que mais


se identificavam com o riso, com o cômico, os receptores de-
stacaram: 1) Cleonice e Pitágoras (comentando a expulsão de
Altiva; 2) A revelação do Cadeirudo; 3) O comício de Ypiranga;
4) Ypiranga assistindo ao vídeo de sua campanha.
Nenhuma destas seqüências parece ser a mais adequada
para revelar os padrões da comicidade. Há outras, no decor-
rer da trama, citadas e comentadas por vários receptores, e já
anteriormente analisadas, que seriam bem mais oportunas para
a explicitação deste modelo. O que vale a pena ressaltar é que
a escolha destes quatro episódios, vem confirmar a tendência,
cada vez mais evidente, de que os territórios de ficcionalidade
não se realizam como mediação, no diálogo com suas matrizes
originárias ou puras, mas sim, incorporando os modelos híbri-
dos, apropriados e reeditados, seletivamente no presente, pela
narrativa dos receptores.
A partir destas considerações, pode-se concluir - tanto
pelo relato dos receptores e escolha das cenas preferidas, quanto
pela leitura da telenovela - que o conjunto das personagens que
sustentam a teia da comicidade em A Indomada, pode ser assim
definido: Altiva, Pitágoras, Cleonice, Scarlet, Ypiranga, Egydio,
Delegado Motinha, Padre José, as beatas e os dois guardas da
delegacia - aliás, presentes na trama, como citação da matriz
hollywoodiana de o gordo e o magro.
Ainda que Altiva - personagem da Casa dos Mendonça e
Albuquerque - seja a responsável por boa parte das manifesta-
ções cômicas, é na Casa dos Mackenzie - fundamentalmente
com Pitágoras e Ypiranga, mas também com Cleonice -, no
British Club e na Igreja - e também na delegacia, espaço de
exposição pouco privilegiado no contexto geral do enredo - que
se localizam as personagens e os cenários que mais caracterizam
este território ficcional.
Comicidade e fantástico: diálogos com o melodrama 61

Narrativa fantástica

A narrativa fantástica (Todorov,1975) pressupõe a aceitação


de uma outra lógica, que não tem como parâmetro a experiência
acumulada no cotidiano. Em territórios de ficcionalidade como a
aventura, por exemplo, as surpresas são conhecidas e até mesmo
esperadas; todos sabem o destino trágico ou feliz de cada herói.
No contexto fantástico, o prazer reside exatamente no desen-
volvimento de um padrão em que regras, pontos de partida ou
soluções reservam surpresas: surpresas nem sempre inteligíveis. Na
aventura, o leitor conhece o resultado e acredita nele; isto porque a
narrativa está pautada fundamentalmente no critério de verossimi-
lhança; as coisas narradas estão muito próximas das coisas vividas,
ainda que em outros tempos ou em outros lugares. No fantástico,
o receptor hesita, quase acredita; oscila entre a crença absoluta e a
dúvida intermitente. Uma questão permanece durante o desenrolar
da trama: aquilo realmente aconteceu? Em boa parte das vezes, a
racionalidade impera e há, na fala do receptor, uma resposta que
desqualifica, por meio da lógica racional, a irracionalidade contida
na narrativa fantástica.
Na proposta inicial da telenovela A Indomada, as manifestações
do fantástico estariam relacionadas ao mistério do Cadeirudo, um
ser estranho que ataca as mulheres que saem pelas ruas durante a
noite (Sinopse A Indomada:6). Entretanto, como se pôde observar,
o fantástico ampliou fronteiras, definiu o tom, condicionou a at-
mosfera e acabou assumindo um espaço significativo na totalidade
da narrativa e no jogo de entrelaçamentos entre os territórios de
ficcionalidade:

Fazer o público acreditar nas loucuras deste universo que mistura magia
com fatos reais é principalmente a atribuição de quem transforma texto
em ação (Sinopse A Indomada:8).
62 Analisando Telenovelas

A propósito disto, e da importância de um trabalho afinado


com os diretores - no caso de A Indomada, os diretores foram o
falecido Paulo Ubiratan e Marcos Paulo -, afirmam os autores:

...um diretor que não está acostumado com nosso trabalho estranha
muito essa tendência de enlouquecer a história; se for muito realista, ele
não entende; os diretores precisam embarcar neste clima mágico porque
depende da maneira como as cenas são feitas para que o público acredite
nelas. E Paulo Ubiratan completa: claro que tudo tem que ser feito
com um critério criativo, mas o interessante do realismo fantástico é
sua temporalidade, que não tem compromisso com um local real; tudo
pode! Entretanto, a gente brinca fazendo sério, senão vira chanchada.
O segredo é humanizar e dar seriedade às circunstâncias deste universo
absurdo. Tem hora de fazer rir e a hora de fazer o público se emocionar
de verdade (Sinopse A Indomada:8).

Assim, um dos traços marcantes da narrativa fantástica diz


respeito ao entrelaçamento permanente dos limites estabelecidos
entre real/realidade e ficcional. Em seu depoimento, o ator José
Mayer confirma esta tendência:

Apesar de [A Indomada] nunca ser omissa em relação à situação


brasileira, o que considero um grande enriquecimento do gênero, a novela
deles [Aguinaldo Silva e Ricardo Linhares] não tem esse confina-
mento realista, a preocupação com a verossimilhança que aprisiona os
personagens (Sinopse A Indomada:11).

E como já se pode prever, pelas próprias condições intrínsecas


ao gênero, os receptores cobram uma certa lógica, sustentada pelo
critério de verossimilhança e pelo confinamento realista, que aprisiona os
personagens. O mergulho nos territórios fantásticos causa estranhe-
za. É como se houvesse a suspeita de que pudessem estar sendo
enganados, iludidos: como se pairasse, na cabeça dos receptores,
Comicidade e fantástico: diálogos com o melodrama 63

a dúvida sobre sua inteligência, capacidade de entendimento e


compreensão, sobre o que a realidade realmente é, ou algo assim. A
avaliação de tramas e cenas fantásticas vem, quase sempre, impreg-
nada de um contraponto com a realidade; à narrativa fantástica
proposta pelos autores, sucedem-se respostas reais, perpassadas
por um certo tom naturalista por parte dos receptores:

Aquela história do Cadeirudo não tinha nada a ver, eu acho. Estava bem
distante. Aquele papo do delegado Motinha, de cair no buraco e sair no
Japão, eu acho que não tinha nada a ver (Juliana, Família 2, ES).
Começa a ficar longe da real quando o delegado cai no buraco e sai no
Japão, quando cai um raio na Altiva e ela não morre, a lua dupla, o
Cadeirudo, que é um tarado bem ridículo, porque tarado existe, mas
não daquele jeito; os relâmpagos que caiam no meio da praça, o outro
que virou anjo no meio da praça, isso não acontece (Tati, Família 3,
ES/QC).

É...essa história de cair num buraco, está parecendo uma lenda que a
professora me contou: se cava um tipo de um poço, mais fundo ainda,
aí se joga lá e cai no Japão. É... ela estava contando esses dias (...)
Aquilo ali não deu mais nem para acreditar né, deu até vontade de não
assistir mais a novela (...) todo mundo pensando que ele tinha morrido;
daqui a pouco ele aparece com uma japonesa (João Paulo, Família
2, EG/EV).

Olha, vou te dar uns exemplos: e aquele da empregada morrer, morrer


e depois viver de novo, aquilo não existe sabe? Na novela né; mas nós
não vamos tão longe. Nem com as flores no túmulo, o Teobaldo recebendo
a mensagem da mãe da Helena, eu achei estranho, aquilo para mim é
zuar com a cara do telespectador; é muito... eu sei que o povo sabe que
aquilo é novela...(risos). Eu tinha uma tia, que acreditava em tudo que
ela via, mas mesmo se colocarem aquilo para gente assim ver, eles vão ver
que é uma novela (...) E tinha também o Cadeirudo que só assustava a
mulherada, e a mulherada pensava que tinha sido estuprada; é a tal coisa,
64 Analisando Telenovelas

eu acho que num batia certo, não dava certo (...) Achei muita mentira.
Eu sou do tipo de pessoa que quando eu vejo que é muito mentira eu até
saiu de perto. Acho ficção. Não dá, não dá, não gosto. Ridículo. Não
dá para acreditar nestas coisas. Cair num buraco, e de repente voltar
do Japão, ah que louco. Acho bobeira, não sei. Acho também que foi
palhaçada aquilo: ela estava procurando umas pedras no fundo do mar.
Aí teve alguém que quase se matou no fundo do mar, alguma coisa assim.
Só sei que ela tinha desmaiado na areia, e apareceu a mãe dela com
as pedras que ela estava procurando. Uma coisa muito babaca. Achei
muita fantasia, só isso (Joana, Família 2, ES/QC).

Na praça acontecia só ficção: cair o raio na mulher e ela continuar viva,


essas coisas. Não tem nada a ver (...) Acho besta, você acha que alguém
cai num buraco vai parar no Japão e ainda volta casado com uma japo-
nesa? É demais! (Maurício, Família 3, QC/EG).

A novela começa a sair da realidade com o negócio do Cadeirudo. Eu


achei um absurdo: não é possível! Além disso, ter duas luas. E a Scarlet
passar pelas grades... efeitos... Nem precisa fechar o olho e imaginar o
mais nítido que seja, impossível (Paula, Família 4, ES).

Nesse sentido, a narrativa fantástica, na manifestação dos


receptores, acaba por aparecer, de um lado, como ignorância ou
como possibilidade/receio diante da ilusão, do desconhecimento;
de outro lado, como a astuta capacidade do reconhecimento da
verdade que se esconde por traz desta fantasia. É esclarecedora a
conclusão de uma das meninas entrevistadas. Quando indagada se
achava que o autor da novela tinha a intenção de fazer com que as
pessoas acreditassem que a estória era real, ela responde:

Não. Acho que, pelo contrário, ele faz para acreditar que aquilo não
é verdade. Acho que é esta a mensagem que ele quer passar. Até para
o pessoal acreditar que é novela. Não é realidade. Mas eu acho que
algumas pessoas acreditam que aquilo é verdade. As pessoas que falo
Comicidade e fantástico: diálogos com o melodrama 65

são as pessoas mais velhas. As pessoas jovens, eu acho que não (Joana,
Família 2, EG).

Ainda assim, algumas cenas fantásticas são lidas pelos re-


ceptores revelando a existência de empatias, projeções, identifi-
cações...

Agora na usina teve o dia que a Helena machucou a perna, não sei o
que aconteceu que ela ficou na usina e, para o Teobaldo encontra-la, a
Eulália [a falecida mãe de Helena] foi colocando um caminho de
velas até lá, entendeu? Foi interessante (Tati, Família 3, EV).

Na hora que cai um raio na cabeça da Altiva. É porque ela estava...


tipo... querendo que o raio caísse em cima da igreja, para não acontecer
o casamento, dai ela queria o mal, e o mal caiu em cima dela. Mas
nesse dia foi legal para caramba! A Berbela foi tocar a mão nela e levou
choque (...) Mas o que não vou esquecer mesmo é do dia que a morta
levantou e a cena do anjo. É, foi legal para caramba. Ele era o único
da novela que não fazia mal a ninguém (...) O cara lá, virou anjo. É
... ele se abaixou e daqui a pouco saíram duas asas. Aí.... foi bonito.
Mas isso dai....pode até acontecer, né? Pode até acontecer (João Paulo,
Família 2, EG/EV).

...por vezes associadas aos sonhos, outras vezes presentes na


própria vida cotidiana. A reprodução de um depoimento sobre
um sonho recorrente, parece esclarecedora:

Eu sonhei que ela [Celeste, uma tia já falecida] estava na casa dela,
que é no alto da rua, lá em cima. Quer dizer, nós estávamos lá. Aí ela
chegava. Todo mundo estava reunido e a gente ficava super feliz porque
ela tinha chegado, mas todo mundo já sabia que ela tinha morrido. Aí
eu falava: ‘Nossa mãe, a tia veio visitar a gente’. A minha mãe falava:
‘é, eu sei disso’. Gozado mãe, mas eu sei que ela está morta, mas parece
66 Analisando Telenovelas

que ela não está morta. Aí eu pegava e falava. ‘Não mãe, ela não está
morta, ela está viva’. Aí eu ficava sentindo ela assim. Aí minha mãe
falava: ‘ela está viva agora, mas daqui a pouco ela vai embora’. Eu sei
que ela abraçava o neto. Vinha, abraçava a gente. Eu sempre sonho
isso. Eu sei que ela está morta, mas eu estou vendo que ela está ali. Eu
consigo conversar com ela. Ela veio falar que onde ela está, está bem.
Nesse sonho estava ela e outra filha dela, que já morreu. Aí eu falava
assim: ‘ela está morta mesmo’. Aí eu pedia para ela: ‘tia, fica aqui com
a gente, não vá embora não’. Ela falava assim: ‘aqui vocês estão todos
juntos; eu preciso ir para lá cuidar dela, da minha filha, que é a Ana
Paula, que já morreu faz bom tempo (Juliana, Família 2, HV).

E quando indagada se considerava isto um sonho, uma certa


fantasia ou uma forma possível de comunicação entre ela e a tia,
a resposta foi: Eu acho que sim. Acho que é verdade. Eu acredito. Muito
(Juliana, Família 2, HV).

As crianças parecem recusar menos a narrativa fantástica e


mergulham, com maior tranqüilidade, no reino da fantasia. O relato
que se segue, diz respeito ao episódio do delegado Motinha que
caiu no buraco e foi parar no Japão:

Tudo isso aconteceu por causa da Scarlet. O Ypiranga foi preso e a


Scarlet falou assim para o delegado: ‘Me dê a chave da prisão, para eu
soltar meu marido’ e empurrou ele para poder pegar a chave. Eu acho
que... Foi uma cena muito rápida. Eu acho que ela foi pegar a chave e
ao invés de pegar a chave, empurrou o delegado. Ele caiu e foi parar no
Japão (...) quem disse que isto podei acontecer foi o Richard: ‘se tivesse
um buraco muito fundo, e não tivesse fim, ia parar no outro lado do
mundo’ (...) Aí, depois de sete dias o padre ia celebrar a missa de sete
dias do delegado Motinha. E o delegado Motinha aparece vivo, casado
com uma japonesa. Aí ele falou assim: ‘Que missa é essa?’, aí todo
mundo levantou assim: olhou para trás... Aí a Scarlet levantou e falou
assim: “Pô, essa japonesa acabou com o meu estilo porque ela estava com
Comicidade e fantástico: diálogos com o melodrama 67

uma roupa hiper chique. Aí todo mundo: “Oh!”. Aí ele contou como
foi (Fernanda, Família 1,EG).

Com a mesma naturalidade, outro episódio é relatado e diz res-


peito à cena em que Eulália, tal e qual uma deusa do mar, caminha
sobre as águas e entrega as pedras preciosas na mão da filha:

... eu acho que o mar levou eles [Helena e Artêmio] para a Ilha do
Enforcado. Lembrei! E é muito bom! Aí a Helena pediu para a mãe
dela: ‘Mãe, você que está aí no céu, que morreu por amor, e o senhor
também pai, que morreu afogado, me ajuda a encontrar essas pedras
preciosas’. Aí a noite ela dormiu e apareceu na mão dela as pedras
preciosas (Fernanda, Família 1, EG).

É tipo assim, ela estava saindo do mar, ela saiu do mar, depois a He-
lena estava dormindo, dai deixou as pedras do lado da cabeça dela. Me
lembrou do filme que eu assisti de Jesus Cristo. Ele andando no mar
(João Paulo, Família 2, EG/EV).

É interessante observar como em várias situações as frontei-


ras entre os territórios de ficcionalidade se mesclam, provocando
alterações nas matrizes originárias do folhetim. O texto da sinopse
de A Indomada não só divulga quais seriam as regras de orientação
para a trajetória da dupla de heróis, como também apresenta alter-
nativas de alteração no modelo tradicional do folhetim:

Ainda que se trate de uma novela muito bem humorada, sabe-se que
cabe ao casal central da trama o ‘eu te amo’ sério. E se o autor resolver
envolvê-los num conteúdo fantástico - embora as regras do folhetim cos-
tumem preservar os heróis - ela é aceita (...) E quem sabe se, ao final, ele
(o herói) acaba domando a mocinha com um passeio de tapete mágico?
(Sinopse A Indomada:11).
68 Analisando Telenovelas

O fantástico colabora, também, na construção do gancho, cria


o suspense, reforça a presença do mistério...

Ah, com certeza, aí é com certeza, eu sempre assistia para ver o Ca-
deirudo, adorava (risos). Quando era noite de lua cheia e eu estava
assistindo, eu acho, não mais... Era envolvente sim. Porque tem aquela
novela que quando acaba o capítulo, você não vê a hora de chegar o dia
seguinte para assistir de novo; ela era assim, não em todos os capítulos,
mas era (Joana, Família 2, ES).

A Grampola ia ficar com o Emanuel e o Emanuel ia virar anjo, santo,


aliás. Essas coisas assim. Quando eu soube que o Emanuel ia morrer e
ia virar santo, ah, eu fiquei impressionada. Eu fiquei pensando: ‘Mas
como uma pessoa vai virar santo de uma hora para outra, só morrendo?’.
Ah, eu não sei, porque eu não sei essas coisas de santo e nem quero
saber. Ah, eu acho muito misterioso. O mistério dos santos tem que
ser descoberto aos poucos. É, eu acho assim. Não sei as outras pessoas
(Fernanda, Família 1, QC).

...e entrecruza-se com outros elementos românticos, da comi-


cidade, do melodrama:

Quando o Cadeirudo atacou a Scarlet, no outro dia, apareceu a lua


dupla, que se transformou numa lua só. Apareceu o reflexo que tinha...
não tinha telhado e eles estavam vendo a lua, como se estivessem numa
casinha sem telhado, aí apareceu. Todo mundo saiu lá fora e viu a lua
dupla e todo mundo lá fora... Ninguém ficou dentro da casa. Viram a
lua dupla e depois todo mundo foi deitar. E quando a Scarlet empurra
o delegado Motinha dentro do buraco (...) aí a lua dupla ficou uma só
(Sheila, Família 1,GD).

A Helena estava grávida do Teobaldo. Ela foi para a usina, só que


o Teobaldo não sabia. O Teobaldo não sabia e foi no túmulo da mãe
dela. Olha que coisa!!! Foi no túmulo da mãe dela e falou: ‘Eulália,
Comicidade e fantástico: diálogos com o melodrama 69

me dê uma luz: onde sua filha está?’. Ela foi acendendo vela, uma por
uma, até a usina, onde ela estava. Quando ele foi chegando, chegando,
ela estava dormindo; quando ele entrou lá, ela acordou e falou assim:
‘Estou com sede’; e ele falou assim: ‘Por que você não pediu uma coisa
mais difícil, como trazer a lua e as estrelas para você?’. Ela falou: ‘Onde
você vai?’. ’Vou aqui pertinho buscar água para você’. Quando ele voltou,
ela falou: ‘Por que você acendeu tantas velas aqui?’; ele falou: ‘eu não
acendi nada’; ‘então quem acendeu?’; ele falou: ‘eu fui no túmulo da sua
mãe pedir uma luz e ela me trouxe do túmulo dela até aqui’. ‘Então foi
uma iluminação’ (Sheila, Família 1, GD).

As personagens que assumiram seu papel no contexto da


narrativa fantástica foram: Emanuel - talvez um dos mais sig-
nificativos -, Eulália, Lucia Helena, Teobaldo, Altiva, Florência,
Ypiranga, Scarlet, Delegado Motinha. E as cenas selecionadas
pelos receptores foram: 1) Scarlet e Ypiranga (na cela da cadeia);
2) A revelação do Cadeirudo; 3) Emmanuel vira anjo; 4) A morte de
Altiva, todas elas já analisadas nas páginas anteriores, em função
de sua articulação com os outros territórios de ficcionalidade.

Territórios de ficcionalidade: entrelaçamentos

Os próprios autores de A Indomada - Aguinaldo Silva e Ri-


cardo Linhares - revelam por quais territórios de ficcionalidade
objetivaram transitar e demonstram como os mesmos se encon-
tram articulados, entrelaçando, dinamicamente, suas fronteiras.
Para eles:

A Indomada situa-se num lugar de costumes risíveis, coronéis mandões


e falsos moralismos, onde acontecem algumas coisas muito parecidas com
o que se lê nos jornais brasileiros e outras absolutamente fantásticas,
mas que, olhadas com atenção, também não ficam muito longe da re-
alidade. Têm, talvez, um tom meio farsesco, como uma obra faraônica
70 Analisando Telenovelas

que atrapalha a vida da cidade, levando um certo personagem a entrar


num buraco no meio da praça e nunca mais sair. No centro da trama,
um belo romance. E, acima de tudo, um clima mágico e muito bem
humorado (...) Mas o que diferencia radicalmente a história (...) é a
intensidade do romantismo (...) Mesmo acentuando a tonalidade épica
da trama os autores pretendem deixar prevalecer o coração (Sinopse
A Indomada:4-5).

Só por este pequeno trecho do depoimento dos autores já se


pode localizar a intensidade da mélange de territórios de ficcionali-
dade que está sendo proposta. As palavras acima grifadas revelam:
traços da comicidade nos costumes risíveis e no tom meio farsesco e
bem humorado; a existência de um falso moralismo ou a intensidade do
romantismo, que podem conduzir à reflexão sobre o erotismo; a
presença de coisas fantásticas e de um clima mágico que de tão explí-
citos não necessitam denominações; o prevalecimento do coração e,
mais uma vez, a intensidade do romantismo que garantem o triunfo
do melodrama, à despeito do entrelaçamento dos territórios de
ficcionalidade durante toda a trajetória percorrida pelo enredo.
Para além das tessituras de ficcionais, o relato dos autores
reforça a perspectiva, cada vez mais evidente, de que as telenove-
las, de tanto enfatizar a relação entre o documental e o ficcional,
correm o risco de transformar o espaço da ficcionalidade num
intenso fórum de debates sobre problemas da realidade brasileira
assumindo, em alguns momentos, as características próprias de
uma agenda setting. Discute-se, às vezes, muito mais os problemas
relativos ao cotidiano no contexto de uma telenovela, do que na
proposta de alguns telejornais. Em A Indomada o espaço reservado
às coisas muito parecidas ao que se lê nos jornais brasileiros foi bastante
amplo, circunscrevendo as seguintes temáticas voltadas para a
realidade: política, corrupção e políticos corruptos (Ypiranga, Pi-
tágoras e Aniceto, Antiófilo e Nonato); o preconceito racial (Inês
e Florência) e de classe social (Zé Leandro e Artêmio); e inúmeros
debates sobre conflitos que se estabelecem entre hábitos tradicio-
nais e mudanças de comportamento envolvendo o jovem casal
Comicidade e fantástico: diálogos com o melodrama 71

Felipe e Carolaine, a possível relação homossexual entre Zenilda


e Vieira, o casamento entre uma mulher mais velha e poderosa e
um jovem rapaz, seu funcionário (Juíza Mirandinha e Egydio), as
meninas da Casa de Campo, a pseudo independência de Santinha, o
jogo, o jogador e o vício (Hércules), a problemática da doação de
órgãos (Dinorah e Sergio Murilo) e outros, em menor evidência.
É interessante observar de que forma o entrelaçamento das
fronteiras da ficcionalidade é apreendido pelos receptores. Quando
indagados sobre o estilo da telenovela, as respostas se sucedem,
dialogando com a mesma tendência:

É irreal, é romântica e um pouco cômica (...) Tem romance com o Artêmio


e a Dorothy, é muita melação. Irreal quando o delegado cai no buraco e
cômica com o prefeito, por exemplo (Maurício, Família 3, EG).

Eu acho que ela é predominantemente cômica. Tem muito mais coisas


absurdas e engraçadas que qualquer outra coisa. Eu me divirto muito
com ela. As maldades são engraçadas, os romances, até o Cadeirudo que
era para ser um tarado é engraçado (Dantas, Família 3, EG).

Acho que é cômica, ela é cômica. Esta, eu só sento para rir. Eu não
agüento esta coisa de falar inglês (Joana, Família 2, EG).

Ah, sim. Tem a própria Altiva, que é uma ruim que faz rir. E de que
eles falam engraçado, com sotaque nordestino e falando algumas coisas
em inglês, como ‘ó xente my god’ ou o delegado ‘little Mota’. Às vezes a
gente mesmo fala algumas dessas coisas. O padre também é engraçado,
o jeito que ele fala (...) Não tem uma cena em especial, é na novela toda:
erótica. Não sei. Se falarmos da Scarlet, não sei se chega a ser erótica.
É um pouco forte, mas também não acho que seja erótica (Cristina,
Família 4, EG).

Retomando algumas das seqüências/cenas de A Indomada,


que antes apareceram no contexto da reflexão sobre o melodra-
ma, a comicidade, o erotismo ou a narrativa fantástica propõe-se,
72 Analisando Telenovelas

agora, uma leitura reiterativa, de um olhar que não focaliza o


território ficcional em sua perspectiva pura ou originariamente
intocada, mas assume o ponto de vista de que as fronteiras que
separam os territórios de ficcionalidade são fluídas, que seus
modelos são dinâmicos e, portanto, históricos e estão, nesse
sentido, aptos a incorporar as transformações que emergem
desta mesma historicidade.
Impossível olhar para o assassinato de Hércules, de alta densi-
dade melodramática, sem encontrar na trajetória desta personagem
traços da narrativa policial, da aventura e de um certo tom de misté-
rio: o que exatamente Hércules escondia, para além da transgressão
e do segredo, de ter se casado com uma mulher negra e, posterior-
mente, de ser obrigado a enfrentar a carga de preconceito de uma
tradicional família como os Mendonça e Albuquerque?
Assim como o assassinato de Hércules, a explosão da usina
Manguaba - completamente inserida na teia do melodrama - su-
põe ação, aventura e suspense e envolve, como seria esperado, os
dois grandes vilões desta trama: Altiva e Pitágoras. O objetivo de
Altiva é claro: arrasar com o projeto de vida da heroína, Helena
e de Artêmio, o filho não desejado; o dele, Pitágoras, denuncia a
presença de um vilão corrupto que acaba cometendo barbaridades
em nome de um cego encantamento - talvez uma paixão! - pela
onipotente protagonista de todas as maldades.
A morte de Altiva - outra das seqüências selecionada pelos
receptores - exibe-se como o castigo destinado a todos os vilões
do melodrama; a sentença fatal que decai sobre o vilão é o con-
traponto exato ao happy end que envolve os heróis: eles já sofreram
tudo o que podiam suportar e merecem, ao final, a felicidade.
Outra que reitera e antecipa o happy end é a cena do primeiro
encontro amoroso entre Teobaldo e Helena, iluminados fantastica-
mente pelas velas colocadas por Eulália, mãe de Helena, que mesmo
depois de morta continua protegendo e colaborando para que a filha
encontre o verdadeiro caminho da felicidade: aqui, o fantástico e o
melodrama fundem-se, mais uma vez, no interior da narrativa.
Nos últimos capítulos, em que triunfa o melodrama e instaura-
Comicidade e fantástico: diálogos com o melodrama 73

se o happy end, duas tramas se destacam inseridas inequivocamente


dentro dos parâmetros da narrativa fantástica: na primeira, o jovem
Emanuel, cujo lugar não era mesmo neste mundo, descola-se da
terra e voa, com longas asas de anjo, em direção ao céu: lá no
alto, no paraíso, encontra-se a felicidade! Na segunda seqüência,
em que se decreta, em respeito às regras do melodrama, o fim da
vilania e o triunfo da bondade, a narrativa fantástica atinge seu
ápice: a ascensão de Altiva - não para o céu, mas talvez para o
inferno! - permite a emergência de marcos fantásticos que escapam
aos parâmetros da experiência acumulada no cotidiano; eles sur-
preendem, provocando no receptor uma oscilação entre hesitar e
acreditar, até que crença e dúvida transformem-se em dois lados
de uma mesma moeda. E para não duvidar de sua capacidade de
compreensão, o receptor aciona mecanismos objetivos e racionais e
qualifica/desqualifica a narrativa, afirmando seu caráter irracional,
porque inútil e desnecessário: pura enganação!
Outra cena que chama a atenção por sua dinâmica ficcional é
a de Florência levantando do caixão durante seu próprio velório.
Em vários relatos ela foi concebida como manifestação da comi-
cidade: a mulher levantou, ela estava morta, dentro do caixão, ela abriu o
olho e levantou. Todo mundo riu aqui em casa! Entretanto, vale a pena
destacar a leitura curiosa realizada especialmente pela Família 2,
que atribuiu a este episódio um toque fantástico/sobrenatural que
se justifica a partir de um fato real vivido e atestado pela dona
da casa. Quando indagada sobre a existência, na família, de uma
história sobre um morto que levantou, o depoimento adquire um
tom inquestionávelmente entrelaçado de realidade, de narrativa
fantástica e de atmosfera melodramática:

Ela não tinha morrido. Isso é real. Eu acho que o nome era Izilda
e tinha uns 18 ou 19 anos. Ela tinha uns desmaios e, então ela teve
esses desmaios e os médicos acharam que ela... E tinha um médico que
cuidava da menina e sabia o que ela tinha. E ele explicou. Eu sei que
no decorrer ela acabou morrendo. Isso não é mentira. Eu estava no ve-
74 Analisando Telenovelas

lório. Ela tinha morrido à tarde, um outro médico, não aquele, atestou
que ela tinha morrido. E, no dia seguinte, está todo mundo lá, numa
chácara, aí a gente começou a ouvir uns barulhos [Xarlote imita com
uns gemidos]. Daqui a pouco, a menina senta. A mãe quando viu
aquilo, em vez de correr para o lado da criança, saiu para fora correndo.
Os homens foram lá, olharam, estava tudo bem, tiraram a menina do
caixão. E para mexer em tudo, de novo, porque isso dá uma confusão.
Precisou levar para o IML, para provar que não morreu. O padre
dispensou todo mundo do velório. O médico que cuidava teve que provar
que a menina tinha a doença... Me parece que o Sérgio Cardoso tinha
essa doença e acabou morrendo, também. Com o Sérgio Cardoso, ele
morreu e o médico estava viajando. Quando o médico chegou, soube e
foi saber. Ele estava vivo e morreu de falta de ar, dentro do caixão. É,
existe esse tipo de doença (Xarlote. Família 2. HC).

Como já se fez referência anteriormente, as seqüências em


que Cleonice e Pitágoras comentam a expulsão de Altiva, aliada
às cenas da revelação do Cadeirudo, do comício em que Ypiranga é
vaiado pelo público na praça e de Ypiranga, na sala com a família,
assistindo ao vídeo de sua própria campanha, comportam traços
inequívocos de comicidade, mas demonstram, respectivamente, a
presença de outras marcas: as do melodrama, dos grandes lances
de suspense e mistério que acionaram, durante todo o tempo, o
imaginário dos receptores, com o objetivo de tentar descobrir
quem, afinal, podia ser o Cadeirudo! Confirma-se, assim, o princípio do
território de ficcionalidade como matriz cultural híbrida e como
produto da cultura popular de massa.
A telenovela A Indomada, como tradicionalmente se pode
constatar na história da telenovela no Brasil e na América Latina,
suscita projeções e identificações privilegiadas por parte dos re-
ceptores, naquilo que diz respeito a seu conteúdo melodramático.
Entretanto, as personagens que na proposta original deveriam ter
sido centrais na composição da teia melodramática - Teobaldo e
Helena ou mesmo Artêmio, expressão do segredo da paternidade
desconhecida - restaram obliteradas por tipos e tramas originados
Comicidade e fantástico: diálogos com o melodrama 75

de outros territórios de ficcionalidade: o receptor identificou-se


bastante com a vivacidade e a atmosfera erótica que cercava Scarlet
e, mesmo Altiva - a típica vilã melodramática e cômica -, ou Ema-
nuel, o jovem anjo, ocuparam lugares de destaque na preferência
qualitativa das pessoas envolvidas nesta pesquisa.
A mélange de territórios de ficcionalidade só colabora no pro-
cesso de construção das mediações e amplia o leque de conexões
e alternativas de constituição do diálogo entre receptores, autores
e produção. Confirma-se o pressuposto teórico da existência de
um contrato de leitura, ou melhor, de um pacto de recepção que prevê
que o leitor/espectador mergulhe no fascínio das narrativas, das
histórias, enredos, façanhas e personagens, reconhecendo esse ou
aquele território de ficcionalidade, falando de suas especificidades,
construindo uma competência textual narrativa, mesmo quando ignora
as regras de produção, gramática e funcionamento dos territórios
de ficcionalidade. Pode-se assumir, neste contexto, o pressuposto
da existência de um repertório compartilhado.

Bibliografia

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renasci-


mento. São Paulo/Brasília: Hucitec/UnB, 1987.
BORELLI, Silvia H. S. “Los géneros ficcionales en las telenovelas
brasileñas”, Telenovela: ficción popular y mutaciones culturales, Eliseo
Verón y Lucrecia Escudero Chauvel (comp). Barcelona: Gedisa,
1997.
CALVINO, Italo. La machine littérature. Paris: Seuil, 1993.
PRADO, Décio de Almeida. João Caetano. São Paulo: Perspectiva/
Edusp, 1972, pp. 89-90.
TADIÉ, Jean-Yves. Le roman d’aventure. Paris: PUF, 1982.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo:
Perspectiva, 1975.
VINCENT-BUFFAULT, Anne. História das lágrimas. Lisboa: Teo-
rema, 1994.
76 Analisando Telenovelas
A heroína e suas metamorfoses 77

A heroína e suas metamorfoses

Pina Coco

A heroína-protagonista dos folhetins do século XIX é de


finida pela dose de sofrimento em sua trajetória, até o
triunfo final da virtude e da justiça. O que não é surpre-
endente, se pensarmos na triste sorte que aguarda as mulheres
no século: às moças de boa família arruinada, o convento; às
abastadas, o casamento, tratado pelos pais, de forma a aumentar
ou, pelo menos, conservar a fortuna; às pobres, o trabalho braçal
em condições miseráveis, ou a prostituição. E às originais, com a
veleidade de viver aventuras, a morte – Emma Bovary sendo-lhes
a padroeira. Se acrescentarmos que o romance folhetim, burguês
por excelência, é conservador, mesmo quando denuncia injustiças
sociais, não se pode esperar senão uma moral severa, que pune
qualquer desvio. O ócio é pai de todos os vícios e o prazer, em
uma sociedade já capitalista, por não gerar nenhum produto, é
impensável. Lembremos que o dever conjugal, para uma esposa
virtuosa, jamais será associado ao prazer...
Como bem assinala Charles Grivel, o sofrimento por si só
não basta: deve ser injusto e espetacular, nessa ordem – quanto
mais injusto maior será e mais fará chorar as leitoras, destinatárias
78 Analisando Telenovelas

oficiais do romance (os homens, sérios, não têm tempo a perder


com tais frivolidades). Donde o vasto cortejo de órfãs entregues
a sua triste sorte, crianças abandonadas em busca do pai perdido;
viúvas arruinadas e obrigadas a trabalhos humilhantes, pois a
função inicial da narrativa dos infortúnios é, como no conto
maravilhoso, a expulsão do seio da família. Obrigadas a viver em
um mundo para o qual não foram preparadas, as heroínas encetam
seu calvário de sofrimentos, físicos e morais.
As prostitutas e as mulheres fatais, que não são necessaria-
mente antagonistas das vítimas protagonistas, irão sofrer ainda
mais, para expiar seus erros e atingir a purificação antes da morte,
vide Marguerite Gauthier.
Interessa-me aqui, em um olhar vindo de Letras, o destino
midiático do folhetim. Com um século XIX que só verá a Repú-
blica em seu final, os folhetins franceses são imediatamente tradu-
zidos entre nós e lidos pela minoria capaz de faze-lo. Será apenas
no início do século XX, com a imigração européia e o início de
uma classe operária, que nos aproximaremos do panorama social
francês do século XIX: os folhetins continuam a ser publicados,
agora em revistas para senhoras.
É com a expansão do rádio, na década de 40, que irão sofrer
sua primeira transformação, adaptando-se ao novo suporte. O
sucesso é fulminante, com ansiosas ouvintes enxugando as mãos
e as lágrimas no avental para acompanhar as desventuras da infeliz
Maria Helena, afastada de seu único filho – bastardo e fruto de
um amor ainda mais proibido por unir jovens de classes sociais
opostas. Trata-se de O Direito de nascer, do cubano Felix Caignet,
que, após percorrer a América Latina, aporta enfim ao Brasil, para
se tornar uma mania nacional, durante longos meses.
As heroínas continuam a sofrer, e as personagens femininas
permanecem imutáveis: a vítima inocente, a vilã, as empregadas
fiéis - cujo ícone é Mamãe Dolores, que cria o bastardo Albertinho
Limonta como seu filho e, embora conhecendo o segredo de seu
nascimento, não pode revelá-lo. Para as ouvintes mais eruditas, a
Analisando a autoria das telenovelas 79

novela é publicada em fascículos, na melhor tradição folhetinesca


da “biblioteca dos pobres”. Um novo suporte irresistível, no en-
tanto, carregará consigo a rádio - novela: a televisão e a imagem.
Entre os dois, o cinema mudo irá explorar as séries em epi-
sódios, sendo Os Perigos de Paulina um modelo do gênero. Cada
episódio terminava, invariavelmente, com uma situação de perigo
mortal: amarrada nos trilhos, a jovem vê com terror o trem que
se aproxima, já a alguns centímetros... Lembro-me, menina, de
assistir, maravilhada, os episódios de ação no Cineac Trianon da
Avenida Rio Branco – mas as infelizes heroínas haviam cedido
lugar a heróis vindos das histórias em quadrinhos: Batman, Flash
Gordon., Super Homem.
É com o advento da televisão, na década de 50, que o folhetim,
transformado em telenovela, atingirá uma recepção nacional e
internacional por vezes surpreendente, atingindo países de cultura
diametralmente oposta à nossa e pontuando o cotidiano de norte
a sul do país. Seguindo a lei imperiosa do romance popular, não
é a surpresa que seduz os telespectadores: resumos semanais dos
episódios e toda uma informação paralela, mantida pelas revistas
especializadas, informa o andamento das tramas, fotografa as
melhores cenas, entrevista atores e diretores. Tal como as leitoras
dos folhetins, quer-se o aparentemente novo, mas sem alterações
estruturais. Qualquer novidade que se desvie do melodrama será
rejeitada – seu destino serão as mini-séries ou especiais, mais pró-
ximos do cinema. A novela segue a confecção dos folhetins: os
primeiros – cerca de 30 – capítulos e a sinopse, para passar à escrita
semanal, conduzida pelos verificadores de audiência. A autoria é
uma questão complexa, pois, como já o fazia Alexandre Dumas,
é em geral fruto de uma equipe, embora o “cabeça” assegure o
tom – o seu – e a assinatura, nos créditos.
O que se faz imperioso, no entanto, é a sede do pathos, em
uma sociedade na qual, ao contrário daquela do século XVIII,
demonstrar publicamente os sentimentos não é de bom tom e
onde a vida coletiva cedeu definitivamente lugar ao individualismo
80 Analisando Telenovelas

do cocoon , bolha de auto-suficiência e sobrevivência comandada


pela Internet. Libertas dos preconceitos suscitados em seu início
(que, aliás, atingiam a própria televisão), as novelas, produtos
tecnicamente sofisticados, já não se limitam às camadas menos
ilustradas, embora ainda sejam parcos os estudos sérios a respeito,
em nossos meios acadêmicos.
Em ensaio anterior, analisei Por Amor, de Manoel Carlos. Volto
a ele, e a seu tema favorito, a família e seus conflitos, desta vez, em
Laços de família. Em princípio, suas heroínas são representativas
dos novos papéis assumidos pelas mulheres na virada do século,
literalmente impensáveis, anos atrás. Sua protagonista, sempre
uma Helena, foi vivida por Vara Fischer, recém saída de mais
uma série de escândalos na sua vida pessoal e de uma clínica de
desintoxicação, mas mantendo seu status de diva e bela mulher. Se
no rádio as vozes emprestavam o tom dos personagens e faziam
sonhar com sua aparência, na televisão, como no cinema, o ator
tem uma parcela de autoria, na medida em que vem com toda uma
bagagem presente no imaginário do receptor.
Helena é uma esteticista, com sua própria clínica, sofisticada,
o que a torna materialmente independente, aos 50 anos, que não
aparenta. Mãe solteira, criou sozinha sua filha, Camila, que estudou
em Londres, onde se apaixonou por um estudante japonês, com
quem vai viver em Tóquio.
Como sempre nas novelas, para facilitar as cenas, vários per-
sonagens moram na mesma rua ou no mesmo prédio, Helena é
vizinha da jovem Capitu, também ela mãe solteira, que, para ajudar
os pais, com quem mora, manter seu filho e pagar seus estudos,
exerce, como diriam os folhetins, a mais antiga profissão do mun-
do... Se nem o trabalho nem o clichê da jovem honesta obrigada
a se prostituir para se manter são novos, é uma aparente audácia
e sinal de modernidade que seja uma universitária, de boa família
e com uma vida dupla, bem entendido, sem que os pais saibam.
Mais ainda: Capitu não se envergonha e considera seu trabalho
como qualquer outro meio de subsistência. Garota de programa,
A heroína e suas metamorfoses 81

ela trabalha para uma agência, como acompanhante para altos


executivos, que pagam mil dólares por noitada.Ainda para ajudar
os pais, divide, alugando, seu quarto com uma amiga, também
contratada pela mesma agência.
Na clínica de Helena trabalha Ivete, sua melhor amiga, cujo
marido é impotente e recusa-se, por medo, a consultar um espe-
cialista. A situação torna-se insuportável, e Ivete discute aberta-
mente com Helena e os colegas a abstinência sexual a que se vê
obrigada, há meses.
A intriga principal é desencadeada logo no primeiro capítulo:
o carro de Helena bate no de Edu, jovem médico de 23 anos.
Levemente ferida, Helena é atendida por Edu e desse encontro
casual surge, bem entendido, um amor intenso e recíproco, para
o qual a diferença de idade não é obstáculo. Vão, juntos, ao Japão
buscar Camila, e mais uma vez, o inevitável clichê romanesco se
concretiza: Camila se apaixona por Edu, e é correspondida. Mãe e
filha, agora rivais, passam a se detestar e, ainda que Helena queira
a felicidade da filha, não pretende abrir mão de seu amor. Camila,
por sua vez, enfrenta a mãe e Edu, entre as duas, não sabe o que
fazer ou quem escolher. Poder-se-ia pensar no belo e cruel filme
de Agnès Varda, Lê Bonheur, mas, apesar de tudo, estamos no
universo folhetinesco, e não haverá mortes...
Seguindo sua mutação midiática, novas heroínas refletem as
transformações contemporâneas da condição feminina: a mulher
madura e independente, feliz ao lado de um amante 30 anos mais
moço; a universitária de família que se prostitui, sem culpa, por
muito dinheiro; a jovem mulher que discute um tabu, a impotência
conjugal masculina e sua necessidade de sexo.
No entanto, sob essa capa de modernidade, o tratamento
que lhes é dado é exatamente o mesmo que às viúvas e infelizes
órfãs do século retrasado. Em contraste com sua aparente força
diante da vida, todas se debulham em lágrimas, sofrem por amor
e buscam um homem para ampará-las e aconselhá-las. Helena tem
Miguel, um livreiro que a ama em silêncio, pois respeita sua ligação
82 Analisando Telenovelas

com Edu, nos melhores moldes cavalheirescos. Capitu tem um pai


que adora e que, suspeitando de algum segredo na vida da filha, a
protege. Ivete tem seu próprio marido, que sofre com ela.
As reações dessas “novas” mulheres são as mais convencionais
possíveis: Helena irá renunciar a Edu; Ivete tentará despertar o
desejo do marido preparando jantares especiais, com champanhe e
lingerie sedutora, sem falar do recurso de apelar para benzedeiras
do bairro.
Capitu é, das três, a mais polêmica e seu personagem, pre-
visto para ser secundário, bateu recordes de popularidade: teles-
pectadoras condoídas aconselhavam-na a mudar de vida; outras,
indignadas, viam nela um incentivo à perdição. O que o autor
evita cuidadosamente: Capitu é politicamente correta, apaixona-se
por um jovem deficiente, adora e respeita seus pais, é uma mãe
exemplar e começa a ser agredida fisicamente por seus clientes
sádicos. Seus sofrimentos apenas começaram, seu destino, antes
da virtude reencontrada, é expiar as culpas para se redimir.
Todas as três têm à mão o verdadeiro amor, ainda que não o
reconheçam: Helena tem seu amigo livreiro, um viúvo de sua idade,
com todas as virtudes em alto grau de um bom marido,. Capitu
tem Paulo, que se recupera de um grave acidente de automóvel,
sensível e compreensivo. Quanto a Ivete, nunca pensou em trair
o marido, que a adora.
A atual novela dita “das oito” é novamente de Manoel Carlos,
e mobiliza, mais uma vez, telespectadores e meios de comunicação:
Mulheres apaixonadas, como o nome indica, põe em foco novas
heroínas sofredoras, sob a capa da modernidade.
A atual Helena é diretora de uma escola para adolescentes
ricos, separou-se do marido e não hesita em reatar com um antigo
amante, que abandonara para se casar. Tal Tchecov, são três irmãs,
uma das quais, sem o problema da impotência, mas com um câncer
de mama, repete, com um marido que a adora, a feliz Ivete, ainda
que atormentada por problemas que, sabemos, serão suplantados.
A terceira é a problemática, um monstro de ciúmes, capaz de
A heroína e suas metamorfoses 83

tentar matar as mulheres que se aproximam do marido. A garota


de programa honesta e de bom coração, mãe solteira e exemplar,
também ela escalada para um papel menor e tornada popular graças
à empatia da atriz, morre, atingida por uma bala perdida. Lorena,
mulher madura, dona da escola onde trabalha Helena, também se
apaixona por um rapaz 30 anos mais moço, que a troca por uma
bem mais jovem, mas enfrenta com sabedoria a situação, pois, no
fundo, corresponde a um personagem clássico do melodrama, a do
ancião sábio. Lorena é sentimentalmente reduplicada por Raquel,
jovem professora de Educação Física, apaixonada por um aluno
adolescente, que a adora e é perseguida por um marido sádico
(versão dos clientes de Capitu) – que irá morrer, bem como seu
jovem amante, pois – apesar da modernidade – seria impensável
uma professora casar-se com um aluno adolescente. Para com-
pensar o desenlace tradicional, Raquel anuncia sua gravidez, que
abençoa a curta e proibida união.
Ou seja, é a nova novela, com o mesmo molde – é bem verdade
que todos já esqueceram a outra, mas com certeza reconhecem
as mesmas emoções arcaicas que povoam o imaginário e que a
literatura popular tão bem explora. Por trás de temas que parecem
ousados e de assuntos atuais, como o câncer de mama e a violên-
cia urbana, há o eterno drama da identidade perdida: o filho de
Helena, que ela pensava ser adotivo, é na verdade fruto de uma
ligação entre Téo, seu ex-marido e Fernanda, a garota de progra-
ma – que também deixou uma filha, cujo pai é um segredo, para
todos (menos para os ávidos telespectadores), ou seja, o mesmo
Téo. As duas crianças se adoram, sem saber que são irmãos e o
pequeno Lucas vai ao enterro da mãe da amiguinha, ignorando
se tratar de sua própria mãe. Cena digna das crianças perdidas e
órfãs que povoam melodramas e folhetins, tudo regado a muitas,
muitas lágrimas.
Mais uma novela de sucesso, apenas começando; outro autor,
conhecido por sua habilidade e sucessos: Celebridade, de Gilberto
Braga. Desta vez, a protagonista é uma ex-top model, hoje uma
84 Analisando Telenovelas

bem sucedida empresária, que lida com as celebridades do título


com calma e segurança. No entanto, um mistério envolve a mor-
te de seu noivo, e Maria Clara Diniz é uma mulher sozinha, que
quer ter filhos e compensa sua maternidade frustrada ajudando
um abrigo para órfãos, exatamente como faziam as damas bur-
guesas do século XIX. Ao entrever Fernando (que está saindo de
um casamento desolador), o amor à primeira vista, sem maiores
explicações, é assumido com falas saídas de folhetins. Maria Clara
se transforma, o que é percebido por todos: mais bonita, olhos
brilhantes, faz castelos no ar. Se o amado não comparece a um
jantar, sua reação é de desespero total, prostrada, em lágrimas.
Fernando diz coisas como “Eu acredito no amor” e “Eu não sabia
o que era o amor”, E ainda “É forte demais”, “Nós vamos ser
felizes juntos” (após o primeiro encontro em que fazem amor).
Mais uma estrada de lágrimas e sofrimentos aguarda nossas
heroínas. Mas, não seriam elas uma espécie de metáfora da própria
telenovela brasileira? Moderna, com extrema competência técni-
ca, reflexo aparente da realidade que nos cerca, mas, no fundo,
expressando os valores e a moral burguesa do século XIX: só o
verdadeiro amor salva, nada é obtido sem duras penas, os maus
terminam por ser punidos e os bons, recompensados. Entre a
realidade, acentuada pela força da imagem, e a ficção, sua origem,
a novela tenta se equilibrar.
Metáfora, finalmente, da própria condição feminina, cujas
conquistas por vezes se misturam à culpa. Helenas, Capitu, Ivete,
Fernanda, Maria Clara assumem sua condição de mulheres fortes,
mas suspiram por um destino mais romântico, para poder, ao lado
do homem amado, acompanhar a novela das oito...
A heroína e suas metamorfoses 85

Bibliografia

BROOKS, Peter. The Melodramatic imagination. New York: Columbia


University Press, 1985.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Os Exercícios do ver. São Paulo: Ed.
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ORTIZ, Renato et alii. Telenovela, história e produção. São Paulo:
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Douleurs, souffrances et peines: figures du héros populaires et médiatiques.
Lleida: L´Ull Crític, 2003. (coletânea)
86 Analisando Telenovelas
Onde tudo começa: Terra Nostra e O Clone - uma experiência de análise 87

Onde tudo começa:


Terra Nostra e O Clone
Uma experiência de análise

Rodrigo Barreto

O incontestável alcance social e cultural das telenovelas


no Brasil e sua forte vinculação econômica a um esque
ma industrial de produção justificam a prevalência
de diferentes modelos de estudo deste produto expressivo. As
abordagens analíticas não necessariamente se concentram na
organização interna das obras, mas privilegiam questões como
o desenvolvimento histórico da teledramaturgia, a organização
do campo de produção das novelas, a discussão sobre o tipo de
representação social presente nestes produtos culturais, as formas
como eles são apropriados por diferentes grupos sociais ou como
afetam o consumo de outros produtos ou de certas idéias, além
da identificação de marcas autorais — do lugar dos realizadores:
escritores e diretores — nas telenovelas.
As análises presentes neste artigo não investem nestas di-
reções, elas não procuram, por exemplo, descobrir ou falar sobre
a realidade através das telenovelas, nem examinar seu universo de
produção ou a influência das condições históricas e socioculturais
88 Analisando Telenovelas

sobre a teledramaturgia. Elas tratam-se de uma experiência de


aplicação de uma metodologia de análise inicialmente concebida
para obras cinematográficas, mas que já foi alargada/ adaptada
para outros formatos expressivos como os videoclipes e a fotogra-
fia. Este trabalho pretende testar o quanto pode ser rendosa sua
aplicação para as telenovelas. O modelo seguido é o das análises
textuais, que questionam o êxito interno de obras expressivas,
procurando identificar a organização dos seus vários elementos e
os efeitos deste intrincamento de dispositivos na recepção.
A perspectiva intitulada Poética do Cinema (Gomes, 2001)
fundamenta-se em uma teoria sobre o funcionamento da obra
cinematográfica narrativa. O momento fundador dessa perspectiva
é identificado na Poética de Aristóteles. Não se trata, no entanto,
de uma aplicação ao cinema (ou a outras formas expressivas atuais)
do que o autor diz no seu tratado sobre ficção e representação
teatral e literária, mas da identificação da importância de algumas
descobertas inauguradas por Aristóteles. Ao analisar representa-
ções em forma de história, o autor percebeu que os elementos são
organizados internamente, visando a produção de efeitos durante
a apreciação, principalmente efeitos emocionais. Segundo Gomes,
“o tratado de Aristóteles cuidava basicamente do teatro e dos re-
latos recitados oralmente. Hoje facilmente podemos identificá-los
[os efeitos emocionais] nas histórias audiovisuais do cinema, da
teledramaturgia e do vídeo, além de nas histórias dos livros, dos
quadrinhos etc.” (Gomes, 2003). Essas estratégias poderiam ser
identificadas para orientar uma eficiente manifestação dos efeitos
esperados, servindo também como critério para o julgamento do
êxito e funcionamento dessas representações.
A organização dos diversos recursos de obras expressivas
— parâmetros visuais, musicais/sonoros, teatrais, cênicos e nar-
rativos — programa a produção de determinados efeitos durante
a recepção ou fruição da obra. A análise destas obras (filmes,
videoclipes e, testa-se neste artigo, capítulos isolados de teleno-
velas) deve identificar o fio condutor, o programa dominante, de
Onde tudo começa: Terra Nostra e O Clone - uma experiência de análise 89

cada obra em particular. Na programação chamada composição


sensorial ou estética (de aisthesis, sensação), os meios e materiais
— como a cor, a iluminação, um ritmo de montagem, a música,
etc. — são estruturados para produzir efeitos sensoriais, isto é,
uma determinada sensação no espectador do filme. No programa
semiótico ou comunicacional, os recursos são organizados para
produzir sentido através da transferência de mensagens ou idéias
(a obra diz alguma coisa ou faz pensar em algo). Por fim, na com-
posição poética ou emocional, meios e materiais são agenciados
para produzir efeitos anímicos ou emocionais (sentimentos, um
estado de ânimo ou de espírito) no espectador.
Serão analisados neste artigo os primeiros capítulos das tele-
novelas Terra Nostra (autor: Benedito Ruy Barbosa, direção geral:
Jayme Monjardim e Carlos Magalhães, TV Globo: 1999/2000) e
O Clone (autor: Glória Perez, direção: Jayme Monjardim e Marcos
Schechtman, TV Globo: 2001/2002). O objetivo aqui é tratar da
organização interna deste “pontapé inicial” de uma história que
costuma se desenvolver por mais de uma centena de capítulos.
Procura-se entender, portanto, a eficaz construção de potenciais
desdobramentos (essencial na ficção seriada), além da relação
entre o investimento em histórias e temas simples de fácil reco-
nhecimento e a introdução de temas e discussões que tragam algo
de novo ou original para o espectador. Renata Pallottini (1998)
destaca a importância do primeiro capítulo para a continuada
vinculação do espectador com a telenovela (“o primeiro passo da
narrativa que a emissora de TV nos está propondo vai determinar
que vejamos ou não o programa proposto”) e a necessidade dele
marcar uma diferença com relação ao trabalho que o precedeu (“o
primeiro capítulo deve, entre outras coisas, cooperar para que o
telespectador se desligue emocionalmente da novela que findou
e fazê-lo interessar-se pelo novo mundo de ilusão que ficará com
ele por mais de seis meses”).
As afirmações presentes nas análises são sustentadas através
da delimitação (com exemplos) das estratégias de manipulação dos
90 Analisando Telenovelas

recursos nos capítulos, com ênfase na construção dos personagens


e situações por eles vividas. O juízo sobre a obra deve ater-se aos
elementos e materiais objetivamente dados nela, por isso, é impor-
tante que o analista, ao interpretá-la procure não perder de vista
que ela convoca certa percepção e leitura, devendo ser observadas,
por exemplo, a predominância de determinados recursos, a relação
entre eles, a presença ou ausência de novidades e as diferentes
funções expressivas ou diferentes efeitos alcançados no produto
analisado. Essa prescrição se coaduna com a afirmação de Tim
Bywater e Thomas Sobchak, para quem “a atividade crítica é um
ato de ordenação, de organização de relações, de observação e
identificação de padrões”.

Analisando Terra Nostra


Caráter histórico em evidência

A imigração como saga familiar e o resgate do contexto de


chegada dos italianos no Brasil do final do século XIX são duas
vertentes desenvolvidas na trama de Terra Nostra. A própria
condução lenta da trama parece a serviço do caráter histórico da
novela: como nela estão mostrados outros tempos, há um outro
ritmo para a narração das situações.
Na introdução do primeiro capítulo, são misturados trechos
de documentários e imagens “complementares” que — especifica-
mente criadas para a novela — simulam uma aparência de registro
“antigo” através de fotografia em preto e branco com granulação
aparente. É mostrado, por exemplo, um jornal italiano, onde se
lê: “Partenza per L’America - Cresce il numero di imigrante com destino
al Brasile”, o que delimita a origem e o destino dos personagens
mais importantes da telenovela.
A vinheta com os créditos de Terra Nostra tem uma organiza-
ção semelhante e traz, de maneira pouco criativa, o mesmo tipo de
apanhado dos temas a serem abordados na trama: em seqüência
Onde tudo começa: Terra Nostra e O Clone - uma experiência de análise 91

ou em superposições, aparecem imagens de despedidas nos por-


tos, lágrimas e expressões de tristeza entre familiares, viagens de
navio, um beijo entre os protagonistas e registros históricos da
vida urbana e rural paulista.
Eventuais diferenças na aparência entre as imagens antigas
e as concernentes à ficção são diminuídas ou relativizadas, nos
créditos, por aparecem uniformemente em preto e branco. Há,
no entanto, a inclusão pontual de algumas cores: um tom verde
colore os olhos em close do par romântico, uma construção urbana
é mostrada em vermelho. No final da vinheta, a imagem de uma
plantação de café passa gradualmente de P&B a completamente
colorida: no firmamento desta paisagem, aparece — em letras
douradas e proporções épicas — a marca-assinatura da novela
com o título Terra Nostra à frente de um céu avermelhado car-
regado de nuvens e sobre um cafezal.
As imagens de aspecto documental (autênticas ou ficcionais)
são espalhadas no decorrer do primeiro capítulo e passam a fun-
cionar como vinhetas esteticamente apuradas, que marcam, para
o telespectador, mudanças no ambiente ou situações da trama.
Nesse caso, a inclusão dessas imagens parece ser um exercício de
zelo estético. No final das contas, mais do que o resgate histori-
cista aparente na embalagem pretensiosa deste capítulo, o mais
relevante em Terra Nostra são as questões afetivas, o apelo sen-
timental, principalmente às lágrimas, dado o desfile de situações
dramáticas mostradas.

A construção romântica

O investimento na temática amorosa — cara à teledramaturgia


— acontece sem demora. Já nas primeiras cenas, os protagonistas1,
Matheu (Thiago Lacerda) e Juliana (Ana Paula Arósio), trocam

1
Na sinopse da novela presente no boletim de programação da TV Globo (01/09/1999),
os nomes dos personagens não seguem necessariamente a grafia própria da língua
italiana. Neste texto, segue-se o mesmo padrão.
92 Analisando Telenovelas

olhares, enquanto dançam felizes, e logo se separam do resto do


grupo, passando a um “cantinho” só deles, ainda que o barco
onde viajam esteja apinhado de gente. Nesse momento, toda típica
construção romântica é acionada: a música de fundo passa a ser
instrumental e suave (em contraposição à música folclórica de
apelo coletivo até então dominante) e são mostrados perfis dos
apaixonados contra a luz, imagens do barco ao longe e reflexos
dourados do sol sobre o mar (em oposição evidente à tomada fixa
sobre o convés repleto de imigrantes).
Além disso, o diálogo entre eles é organizado com a exibição
de planos muito fechados nos rostos dos atores, o que parece,
à primeira vista, uma tentativa de enfatizar a ligação entre seus
personagens. No desenrolar do capítulo, a força expressiva destes
“super closes” parece banalizada, uma vez que seu uso entre per-
sonagens não envolvidos romanticamente (ou mesmo com laços
mais próximos) desarma as expectativas de que este recurso se
tratasse (como se podia pensar através do exemplo de Juliana e
Matheu) de uma forma de representar o estabelecimento de uma
intimidade de sentimento.
Há, na conversa entre os apaixonados, referências a sua
condição de imigrantes, aos pais de Juliana e às expectativas com
relação ao Brasil, o que é absolutamente necessário para situá-los
na trama. No entanto, a ênfase recai sobre a atração irresistível
entre o casal, que é revelada na conversa carregada de declarações
(“está viajando sozinho?”, pergunta Juliana; “não estou mais”, responde
Matheu, que, pouco antes, havia dito “agora que te conheço tenho medo de
te perder”). Os desencontros entre os dois personagens num espaço
“fechado” como o navio parece, às vezes, pouco verossímil, mas
essas breves separações além de reforçarem a necessidade do casal
de estar junto (“onde está a minha Juliana?”), certamente servem para
antecipar separações mais longas no desdobramento da trama. O
telespectador tem uma “palhinha” de todo sofrimento que está
por vir para os personagens, cujo vínculo forte e instantâneo se
justifica por se tratar de um amor de predestinação.
Onde tudo começa: Terra Nostra e O Clone - uma experiência de análise 93

Quando coisas acontecem

As situações no primeiro capítulo de Terra Nostra se passam


basicamente em três ambientes: o navio de imigrantes, a casa de
Francesco (Raul Cortez), um amigo dos pais de Juliana, e a fazenda
de Gumercindo (Antônio Fagundes). Pode-se afirmar, contudo,
que o navio concentra a maior parte da ação da trama: o encontro
de Matheu e Juliana, a disseminação da peste, que resulta no fa-
lecimento dos pais da protagonista e no drama do casal Leonora
(Lu Grimaldi) e Bartolo (Antônio Calloni), cujo bebê é afetado
pela doença. Pelo menos no seu início, Terra Nostra não aposta em
dinamismo ou “ação pura”, características que Pallottini preconiza
como ideais para um primeiro capítulo.
Situação pinçada do repertório melodramático, a doença e
a morte dos pais de Juliana vai sublinhar suas características de
mocinha da trama: a integridade ao não abandoná-los à própria
sorte, mesmo havendo risco de se contaminar, a força ao encarar
o desamparo e, finalmente, a busca do apoio e do consolo do
herói masculino, o jovem Matheu. De modo ainda mais direto, é
organizada a “manipulação” dos sentimentos dos telespectadores
diante dos acontecimentos com Leonora e Bartolo. Há, além da
situação em si — o desespero de uma mãe em defesa de sua filha
—, a aposta em uma interpretação teatralizada e enfática por parte
de Grimaldi, além da utilização do recurso de câmera lenta para
dramatizar ainda mais o momento em que a personagem foge do
médico do navio, evitando que a filha fosse jogada ao mar. Também
Calloni investe numa linha interpretativa semelhante (um tom over)
na cena em que seu personagem tenta pular do navio depois de
tomar conhecimento do desaparecimento da mulher.

Quando se fala sobre coisas

Fora do navio, nos núcleos urbanos (a casa na Avenida


Paulista) e rural (a fazenda de café) da novela, os personagens
94 Analisando Telenovelas

não fazem ou sofrem nada, praticamente só conversam sobre


a chegada dos italianos. Por conta disso, pouca coisa acontece
neste capítulo, o que lhe dá uma certa morosidade, agravada
ainda pelo não estabelecimento de ganchos fortes e estimu-
lantes para os capítulos seguintes. A doença de Matheu, por
exemplo, não é capaz de gerar verdadeira preocupação, uma
vez que nenhum telespectador apostaria na morte do mocinho
da história. Uma outra possibilidade de adesão à história é um
certo medo inespecífico de que a chegada no Brasil venha a
representar a separação do casal, mas, neste primeiro capítu-
lo, a trama não se detém o suficiente nesta possibilidade, não
são apresentadas dificuldades aparentemente intransponíveis,
que já solicitem ou garantam a mobilização do espectador. Já
situações como as de um personagem como Bartolo parecem
inteiramente resolvidas no primeiro capítulo.
Na casa de Francesco, a ação se limita à apresentação dos
personagens, que, provavelmente, conviverão com Juliana
no Brasil: Janete (Ângela Vieira), que já dá mostras de má
vontade e não partilha a alegria do marido pela chegada dos
italianos e Marco Antônio (Marcello Antony), o filho boêmio.
Na fazenda, por sua vez, os diálogos entre o proprietário e o
agenciador de imigrantes têm, nitidamente, uma finalidade de
informar acerca da história da imigração italiana: os motivos
da saída dos imigrantes da Itália, seu papel na substituição
dos escravos na lavoura do café e o tipo de expectativas e
preconceitos com relação a sua chegada. Apesar de soar
pouco natural, a inclusão dessa longa conversa ressalta o in-
vestimento na pesquisa durante o processo de produção da
novela e ainda poupa a realização de cenas que mostrassem
o que somente é falado (uma alternativa mais interessante,
contudo mais dispendiosa).
Os flashbacks que tratam da relação de Gumercindo com
a escrava Naná (Adriana Lessa) e do nascimento de um filho
dos dois são, sem dúvida, os momentos mais movimentados do
núcleo rural. Eles introduzem, na trama, possibilidades futuras
Onde tudo começa: Terra Nostra e O Clone - uma experiência de análise 95

bem ao gosto dos folhetins: a paternidade não reconhecida e


a identidade revelada de um bastardo, além de escaparem da
habitual “falação” sobre os italianos.

Diferentes apelos musicais

A música de abertura com seu tom empolado, quase “ope-


rístico”, combina com a dramaticidade da história romântica:
Tormento d’Amore é um dueto over cantado por Agnaldo Rayol
e a cantora lírica Charlotte Church. O tema da imigração — o
abandono da pobreza na terra natal pela insegurança de um novo
mundo — convoca também uma tradução musical emocionada,
lamentosa, tocante: já nas cenas iniciais de Terra Nostra (antes
mesmo dos créditos) é feita uma colagem da versão de Zizi Possi
para Lacreme Napolitane/Vurria com uma música grandiloqüente
cantada em italiano por um coral.
Pode-se falar de uma inclusão parcimoniosa de temas instru-
mentais no decorrer do primeiro capítulo de Terra Nostra. Eles
pontuam determinados diálogos e criam, a depender da ocasião,
ambiência romântica para Matheu e Juliana, de tristeza (como no
drama da família de Bartolo) ou tensão (como a conversa — pon-
tuada por instrumento percussivo e discreta condução orquestral
— entre Naná e Maria do Socorro/Débora Duarte). A utilização
desses temas instrumentais é precisa, não cai na armadilha de
aparecer ininterruptamente, estando bem equilibrada por muitos
momentos sem qualquer fundo musical.
Por outro lado, a inclusão diegética de elementos musicais,
em Terra Nostra, recorre a certos comportamentos associados
de modo estereotipado a determinados tipos de personagens. O
caso mais evidente é a tarantela tocada e dançada exaustivamente
por um grupo de imigrantes no navio rumo ao Brasil. Adequada
a uma visão clichê de “italianidade”, as idas e vindas deste grupo
são construídas de modo pouco natural: são sempre os mesmo
dançarinos e eles estão rodeados por vários imigrantes espalhados
96 Analisando Telenovelas

no convés do navio com uma disposição aparentemente disso-


nante com relação àquela alegria toda. Também para os escravos
negros, na cena que mostra a comemoração pela sua libertação,
a música diegética sublinha disposição para dança e desenvoltura
na percussão.

Apuro visual e assepsia

Além de pontuados por uma suave música instrumental, os


momentos “a sós” de Matheu e Juliana no convés do navio são
também sublinhados por uma apurada composição fotográfica.
São mostrados os reflexos do sol sobre a superfície do mar e as
gaivotas, a silhueta de um beijo do casal é destacada por uma
tomada contra-luz, os closes destacam a beleza dos protagonistas
e a cor de seu olhos (claros, como cabe aos heróis e heroínas
românticas).
A construção dessa situação ideal — um “oásis” particular
em pleno navio — é perfeitamente coerente com a importância
capital do tema amoroso em Terra Nostra. A extensão deste
apuro estético (também presente na cenografia e vestuário) para
outros ambientes ou situações pode resultar, no entanto, em uma
aparência asséptica que se não é estranha no universo de expec-
tativas de uma telenovela, pelo menos relativiza ou compromete
a aparente pretensão realista de Terra Nostra. É emblemático, por
exemplo, o modo como a senzala de Gumercindo é apresentada:
vazia, muito limpa, com raios de sol penetrando através das grades
na janela. O ritmo lento imprimido ao capítulo reflete-se em um
olhar contemplativo sobre as paisagens e os ambientes internos
— a fazenda, o quarto de quarentena no navio — da história.
Onde tudo começa: Terra Nostra e O Clone - uma experiência de análise 97

Analisando O Clone
Mundo árabe e clonagem

As técnicas de clonagem e seu uso na replicação humana,


além de um olhar sobre a cultura islâmica — particularmente
dos modos como as mulheres muçulmanas estão nela incluídas
— são os temas que animam o primeiro capítulo de O Clone.
Ainda que o público possa ter alguma informação prévia sobre
estes assuntos, há um esforço para delimitar, de maneira clara e
reiterada, a incidência destes sobre a trama. Com o desenrolar da
trama da novela, as situações derivadas destes temas enfatizarão,
certamente, a predominância dos programas de efeitos emocio-
nais: a temática será colocada como pano de fundo para ajustes e
desajustes amorosos e a serviço das estratégias de condução dos
sentimentos (criação de empatia, piedade, indignação, comoção,
tensão etc.) do telespectador.
Por envolver mais personagens ou, talvez, por adequar-se,
mais convencionalmente, a uma trama folhetinesca, o retrato da
difícil condição feminina na cultura marroquina parece delineado
com mais naturalidade do que as inserções sobre o tema clonagem
no decorrer do primeiro capítulo de O Clone. Isso apenas ressalta
a habitual ligação do núcleo central de novelas com o universo
culturalmente considerado como feminino, voltado para questões
amorosas e relações familiares. Segundo Todorov (1980, p.43-48),
essa vinculação estaria prevista tanto no “horizonte de expecta-
tivas” dos leitores (aqui, telespectadores) quanto serviria como
“modelos de escritura” para os autores.
Além disso, a ênfase na informação sobre esses temas mais
gerais estão relacionadas a própria organização da trama, ao modo
como os conflitos vão se desenrolar. Ela funciona de modo in-
trincado com a delimitação das características e situações vividas
pelos personagens, muitas das quais pensadas, primordialmente,
para conduzir as emoções do público.
Não se trata, por exemplo, de discorrer, detalhadamente,
sobre novidades da biotecnologia, mas sim de oferecer uma base
98 Analisando Telenovelas

de conhecimento que permita entender o interesse do cientista


Albieri (Juca de Oliveira) com relação aos clones e suas motiva-
ções para criá-los. Do mesmo modo, não se trata de uma análise
sociológica do mundo muçulmano, mas de uma delimitação básica
das diferenças deste com relação à cultura ocidental (brasileira, em
particular) de modo a permitir a compreensão das dificuldades
futuras a serem enfrentadas pelos personagens.
Ainda assim, neste primeiro passo de O Clone, há um predomi-
nante interesse de “abrir terreno” a respeito destes assuntos. A
primeira investida da novela está relacionada à ética envolvida no
uso da clonagem: logo no começo, Albieri aparece numa grande
conferência, defendendo a utilização do processo para o incre-
mento da produção de alimentos e lembrando dos impedimentos
éticos para a fabricação de um clone humano. Pouco depois, o
próprio cientista, inclinado a romper com estes princípios, põe-se
a refletir (momento em que é utilizada uma voz em off) sobre a
essência do clone: “milagre de Deus ou cilada da vaidade humana?”, se
pergunta Albieri.
Já no primeiro capítulo, está colocada então a questão da du-
alidade entre ciência e religião, sendo que a escolha do islamismo
— um credo de prática mais dogmática — como contraponto à
questão da clonagem parece querer deixar ainda mais evidente esta
oposição. Por isso, o telespectador é, logo neste primeiro contato,
apresentado a várias singularidades da cultura muçulmana: o uso
de expressões da língua árabe; os costumes religiosos, principal-
mente as proibições e limitações de liberdade das mulheres; além
da própria apresentação de um ambiente “árabe” com o deslo-
camento da história para o Egito e Marrocos, onde se enfatiza o
lado típico, pitoresco, com imagens do deserto, de um mercado,
de camelos e de construções mouriscas.
O investimento nesta apresentação quer, certamente, demon-
strar apuro na pesquisa e uma representação autêntica da cultura
islâmica. Até o recurso pouco natural de mostrar personagens
traduzindo para o português toda palavra ou expressão em árabe
Onde tudo começa: Terra Nostra e O Clone - uma experiência de análise 99

— mesmo em diálogos com interlocutores conhecedores do


seu significado — trata-se de uma construção para estimular
o telespectador a se considerar diante de algo verdadeiro. Este
fazer conhecer tanto do islamismo quanto das possibilidades da
clonagem serve como um reforço do vínculo da novela com a
realidade, sublinhando também seu pretendido status de fórum de
discussão de assuntos da atualidade. Segundo Esther Hamburger
(1998), “convenções de representação consolidadas no início da
década de 70 pelas novelas da Globo incluem a noção de que
cada novela deveria trazer uma ‘novidade’, algo que a diferenci-
asse de suas antecessoras e fosse capaz de ‘provocar’ o interesse,
o comentário, o debate de telespectadores e articulistas de outras
mídias (...)”.

Os personagens na trama

Neste particular, a trajetória da personagem Jade (Giovana


Antonelli), a mocinha da história, é emblemática, permitindo
tanto vinculação emocional quanto informação acerca da cultura
islâmica. A protagonista é de origem marroquina e vive desde
muito nova no Brasil, em cuja sociedade não se sente totalmente
incluída. Ela fica incomodada por não ter a mesma liberdade de
suas colegas brasileiras, por ser “diferente”, mas se conforma
com as imposições determinadas pela mãe, com quem vive e com
quem parece ter ainda algum diálogo. As diferenças culturais estão
nas conversas entre as duas e, mais explicitamente, numa ida de
Jade para a praia, onde sua postura reservada e pouco à vontade,
além de seu discreto maiô de cor opaca, destoam dos hábitos da
multidão ali presente.
O primeiro revés enfrentado por Jade é o falecimento de sua
mãe, para o qual o público já havia sido preparado através de uma
conversa sobre sua saúde. A despedida no leito de morte tem uma
construção bem tradicional e carrega nas tintas sentimentais: a filha
100 Analisando Telenovelas

chora e pede para não ser deixada sozinha, enquanto a mãe resig-
nada, fala do seu futuro no Marrocos (“lá, você não vai se sentir
diferente de ninguém”), onde alguns parentes irão ampará-la. Após
a morte da personagem de Walderez de Barros, é apresentada uma
cena mais lírica, na qual o quarto aparece enfumaçado (incenso)
e banhado por uma luz azulada, o que reforça a religiosidade do
momento. Com teor emocional mais contido, ela representa, sem
dúvida, uma tentativa de colocar o público em contato com um
ritual islâmico íntimo: Jade faz orações em árabe, enquanto lava
sozinha o corpo da mãe para a cerimônia fúnebre (“esse ritual só
pode ser feito por uma muçulmana”, diz ela, declinando a ajuda
de uma vizinha).
Novas descobertas acerca da cultura islâmica estão relacio-
nados às vivências de Jade no Marrocos e a seu contato com os
parentes que lá vivem, a prima Latifa (Letícia Sabatella), o tio Ali
(Stênio Garcia) e Zoraide. Parece um pouco estranho o desco-
nhecimento da personagem acerca de alguns costumes de sua
gente (uma vez que sua mãe parecia zelosa da preservação de sua
tradição), mas, ao mesmo tempo, isso acaba sendo um recurso
conveniente para que se estabeleçam vínculos entre a protago-
nista e os telespectadores, colocados em semelhante estado de
ignorância ou surpresa diante desses novos hábitos. Logo na sua
chegada, Jade se perde num mercado de Marrocos, fica assustada
com o assédio dos vendedores, é agredida por transeuntes por
causa de suas roupas, além de presenciar um cortejo fúnebre e o
desfile de um grupo de mulheres, que carregam, pelas ruas, um
lençol ensangüentado como prova da virgindade de uma noiva
recém-casada.
Toda discussão sobre os clones está, por sua vez, concentrada
na figura do obcecado cientista Albieri e há pouca sutileza no fato
do assunto vir à baila em todas as oportunidades em que o perso-
nagem aparece. Isso, obviamente, delimita o papel do cientista na
trama desde o início. Por outro lado, a construção de Albieri deixa,
no entanto, brechas para um desenvolvimento mais polivalente do
Onde tudo começa: Terra Nostra e O Clone - uma experiência de análise 101

personagem. É evidente sua ambigüidade de certo modo incômo-


da, que, seguramente, não coloca o público completamente do seu
lado. O cientista é competente, bem sucedido profissionalmente
e demonstra sincero apreço pelo empresário Leônidas (Reginaldo
Farias) e seu filhos, os gêmeos Lucas e Diogo (Murilo Benício em
papel duplo), além de ser, em função de sua amizade com Ali, o
elo de ligação inicial entre os núcleos árabe e carioca de O Clone.
Uma perda no passado (a morte de sua noiva) motiva sua aridez
amorosa e solidão, tanto servindo como recurso para gerar empatia
entre o telespectador e o personagem quanto para justificar sua
excessiva dedicação à ciência, que parece colocar acima de todas
as coisas. O lado obscuro de Albieri é seu orgulho, sua vontade de
amplo reconhecimento diante dos seus pares e, principalmente,
sua intenção dissimulada de gerar o primeiro clone humano.
Outros personagens importantes têm também um perfil
ambivalente, o que parece absolutamente desejável num primeiro
capítulo, uma vez que abre possibilidades para uma trama com
muito a percorrer. Ali, o tio de Jade e amigo de Albieri, aparece
tanto como um contraponto interessante do cientista ao denunciar
a possível transgressão ética com o uso da biotecnologia, quanto
é mostrado como um defensor ferrenho dos valores tradicionais
islâmicos, que limitam a liberdade feminina ao lhes impor casa-
mentos arranjados ou regras estritas de conduta. Apesar dos dois
posicionamentos estarem ligados a seu forte vínculo religioso,
sua preocupação com relação à clonagem parece encarada positi-
vamente na novela como forma de nuançar o discurso científico
de Albieri e econômico de Leônidas, o empresário financiador
das pesquisas científicas. Este último aparece, por sua vez, como
um pai cuidadoso e preocupado com os filhos, mas, ao mesmo
tempo, tem seu lado controlador, determinando uma formação
profissional para cada filho e obrigando-os a se inserir nos seus
negócios.
Como Jade, portanto, Lucas e Diogo têm expectativas fami-
liares a atender, ainda que este último pareça tranqüilo a respeito
102 Analisando Telenovelas

disso. A caracterização dos gêmeos de O Clone não foge do pa-


drão típico das telenovelas: eles têm, obviamente, personalidades
opostas, ainda que, pelo menos neste primeiro capítulo, não
sejam divididos no esquema maniqueísta de bem e mal. Lucas é
romântico, não está satisfeito com o controle do pai sobre sua
vida profissional e preferia ser músico. A tônica do personagem,
no entanto, é a passividade. Mesmo sua tentativa de se diferenciar
(na aparência) do irmão é pálida. Diogo, por sua vez, parece mais
bem resolvido, sendo voluntarioso e pragmático, mas estranha-
mente inclinado a manter a semelhança física com o irmão, que
ele critica e, de certo modo, lhe constrange.
Os gêmeos são personagens completamente envolvidos no
programa emocional deste capítulo, estando envolvidos nos gan-
chos para desdobramentos importantes da trama. O envolvimento
de Diogo com a nova namorada de Leônidas cria a possibilidade
de ser abalada a tão bem sintonizada relação entre pai e filho. O
encontro de Lucas com Jade (com direito a música-tema român-
tica em momento de detida troca de olhares) lança as bases para
o principal relacionamento amoroso da novela e para o início do
embate entre a protagonista e sua família, particularmente Ali. A
condução das emoções do telespectador é mais nítida nestes pon-
tos de mudança de rumo da história, quando ele compartilha com
os personagens sentimentos como o constrangimento, revolta,
paixão à primeira vista, reconhecimento da injustiça, etc.

Deus e a ciência nos créditos

Sem dúvida, a apresentação dos créditos é um dos momentos


mais esperados na exibição de um primeiro capítulo de telenovela,
colocando-se entre os que mais atiçam a curiosidade do especta-
dor. Em O Clone, os créditos trazem uma “versão coreografada”
da clonagem humana, que mistura elementos alusivos à ciência
e à religião, os dois campos de embate na trama da novela. Com
nuvens ao fundo, onde se reflete a luz do sol, é mostrada a dança
Onde tudo começa: Terra Nostra e O Clone - uma experiência de análise 103

de um homem com figurino exíguo e banhado por uma iluminação


dourada. Sobre o seu corpo, aparecem, eventualmente, luminosas
cadeias duplas de DNA e logo começa um jogo de espelhamento,
no qual as mãos ou todo o dançarino se duplicam.
Além de inacessível para boa parte dos espectadores, essa
referência à ciência através da exibição da estrutura do material
genético é relativizada pela ambiência mística, onde acontece a
duplicação do dançarino: os tons dourados, a luminosidade e o
céu com nuvens parecem imagens mais facilmente relacionadas à
esfera religiosa. Ao final dos créditos, a marca de assinatura de O
Clone traz, no entanto, o título entre dois eixos levemente torcidos
como se vê em esquemas de representação do DNA.
Nos créditos, esse movimento pendular entre referências à
religião e à ciência é alinhavado pelo tema musical de abertura. A
letra da grandiloqüente Sob o Sol tanto trata da presença divina e
da importância da fé (“Sob as nossas cabeças a Luz... Luz da fé que guia
os fiéis...”) quanto do desvendamento dos segredos da criação pelo
homem (“Segredos de Deus tão guardados/ Enfim revelados”). A atenção
sobre o conteúdo da letra é garantida pelo repetido contato do
espectador no desenrolar dos capítulos.

Música por toda parte

A organização musical do primeiro capítulo de O Clone pode


ser caracterizada como uma colagem, quase sem pausa, de canções,
temas instrumentais e inserções musicais diegéticas. Ao núcleo
urbano e rico da novela (Leônidas e os gêmeos) está associado o
trecho em inglês (“Only you can hear my soul”) da canção Luna, que
parece querer expressar sofisticação com seu toque “jazzístico” e
vocal feminino afinado.
No caso de Jade, a caracterização não parte de sua situação
social, mas de sua origem marroquina. Enquanto a personagem
vive no Rio de Janeiro, a escolha recai sobre uma música que funde
elementos ocidentais e árabes (influência marcante, principalmente,
104 Analisando Telenovelas

no vocal feminino tocante e lamentoso), dando conta da posição


da personagem entre dois mundos. Já nas cenas no Marrocos,
apela-se para uma seqüência bastante variada de músicas que
soam mais típicas, colocadas para criar uma ambiência de certo
modo exótica (ou pelo menos, diferenciada) requerida pela trama
da novela. Esse teor exótico não aparece apenas como músicas
de fundo, mas também como manifestações musicais diegéticas
supostamente representativas dos hábitos das comunidades mar-
roquinas. Assim, um grupo folclórico percussivo se apresenta na
recepção de um hotel, uma aglomeração de mulheres comemora
a consumação de um casamento pelos becos de um mercado ou
uma lavadeira canta enquanto realiza seu ofício.
Como é típico no gênero, algumas canções já aparecem como
temas de determinados personagens. É evidente a relação entre a
chegada de Ivete ao hotel no Marrocos e a inclusão da introdução
instrumental de And I Love Her, sucesso dos Beatles. Há, obvia-
mente, um tema do amor entre Jade e Lucas, que marca presença
desde o primeiro encontro dos personagens. É interessante como,
nesta cena, a progressão musical procura expressar o impacto da
atração entre os dois, sublinhando o sentimento de deslocamento
dos apaixonados com relação aos outros personagens.
Inicialmente, Jade apresenta a dança do ventre ao som de uma
música egípcia (“mais animada”, segundo sua prima Latifa), que, in-
cluída diegeticamente, é acompanhada por outras mulheres em cena.
Quando Lucas passa a observá-la às escondidas, a cena passa a ter
um acompanhamento instrumental delicado, mais lento, que procura
dar conta do sentimento de admiração do personagem masculino,
sendo, portanto, uma música que diz respeito apenas a ele. Por fim,
no momento em que Jade percebe que está sendo observada e esta-
belece-se um vínculo de paixão à primeira vista entre ela e Lucas, o
tema de amor A Miragem (“O fogo da paixão deixa se queimar somente por
amor”) os coloca sentimentalmente à parte da situação mostrada na
cena e dos outros personagens. Através da canção, o telespectador
tem o “privilégio” de acompanhar esse deslocamento do par central
para uma dimensão sentimental só deles, o que torna esse acom-
Onde tudo começa: Terra Nostra e O Clone - uma experiência de análise 105

panhamento musical um elemento importante para o programa de


condução emocional, de geração de empatia, do formato.

Luz e cores

Em termos visuais, o primeiro capítulo de O Clone é caracterizado


especialmente pelo cuidado com a iluminação. É notável que, em um
mesmo ambiente (como a casa de Ali), sejam pensadas composições
variadas da incidência de luz através da presença de cortinas, treliças,
persianas em janelas ou portas, que não apenas matizam a iluminação,
mas também lançam, no ambiente, sombras esteticamente apuradas.
Durante a recepção no lobby do hotel marroquino, por exemplo, a luz
realça os contornos do corpo e o brilho do vestido de Ivete, acentu-
ando a sensualidade do momento de flerte com Diogo.
Também nas externas, há um zelo estético diretamente rela-
cionado à iluminação, sendo freqüentes tomadas do nascer do sol
— no Rio de Janeiro, no Cairo e em Marrocos — e um trabalho,
nestes casos, com cores como o amarelo e o alaranjado. Algumas
imagens registram o tremor resultante da ação do calor sobre as
paisagens, tanto na praia do Rio quanto no deserto egípcio.
A paleta de cores neste primeiro capítulo é discreta e unifor-
me, sem tons vibrantes ou muito colorido, cujo uso, no entanto,
pode ser justificado de diferentes maneiras. No Rio de Janeiro,
a casa e o escritório de Leônidas é marcada pelo pêssego, bege
e branco, uma escolha condizente com bom gosto e decoração
clean adequados ao estilo dos seus moradores. O ambiente fami-
liar de Jade e sua mãe na capital carioca é também marcado pela
discrição do bege, cinza, branco e preto, ainda que caracterizada
pela simplicidade decorrente de sua situação econômica. Além
das cores já citadas, são acrescentados, no Egito e Marrocos, tons
terrosos, o ocre — associados ao deserto, às construções locais
etc —, podendo ser vistos, eventualmente, algum verde ou azul
claros nas vestimentas.
106 Analisando Telenovelas

Considerações Finais

Além de coerente com o espírito de experimentação que


animou este artigo, as diferenças nas análises dos capítulos são
derivadas das peculiaridades destes. Há, em Terra Nostra, um modo
característico de organização, no qual acontecimentos são mais
narrados do que exibidos como ações: assim, pouco acontece na
trama de seu primeiro capítulo, do qual é notável um “andar em
círculos” em torno de um pequeno número de situações e um
ritmo lento. O Clone apresenta uma trama mais dinâmica com a
apresentação de personagens com mais dimensões e estabeleci-
mento de situações com possibilidades futuras mais fortes, o que
faz do capítulo analisado um instrumento mais eficiente para gerar
vínculo com o público.
Ainda que exceda as pretensões deste texto, é possível associar
essas diferenças entre os dois capítulos com os particulares estilos
de condução de trama observados em cada escritor. A análise de
apenas um capítulo parece insuficiente para tratar da incidência de
questões autorais sobre as características das telenovelas, ainda que
a inevitável lembrança de outras novelas escritas por Benedito Rui
Barbosa (Terra Nostra) e Glória Perez (O Clone) leve a considerar a
forte probabilidade deste tipo de relação: a identificação de marcas
estilísticas numa abordagem textual careceria, no entanto, de sua
comprovação em capítulos sucessivos da telenovela. Seguindo
uma abordagem semelhante, parece ser bastante plausível apostar
na proeminência da figura do diretor das telenovelas (as duas são
produções do núcleo Jayme Monjardim), principalmente, no que
diz respeito às escolhas relacionadas aos parâmetros visuais.
Em comum, Terra Nostra e O Clone partilham uma construção
de mundo calcada no exótico: a caracterização de italianos e árabes
apela para um inventário dos traços distintivos mais emblemáticos
ou lugar comum destas culturas. É exibida uma entrelaçamento
de elementos religiosos, iconografia, vestimentas, língua, folclore
e música, que não chegam a se constituir numa aproximação
Onde tudo começa: Terra Nostra e O Clone - uma experiência de análise 107

realista, mas imprimem às histórias um tempero mediterrâneo


ou islâmico. Ademais, fiéis ao gênero a que pertencem, as duas
telenovelas são organizadas, primordialmente, para comover e
convocar os sentimentos do telespectador, sendo que este pre-
domínio dos programas de efeitos emocionais ou poéticos está
apoiado em situações que trazem de dificuldades amorosas e
desajustes familiares.

Bibliografia

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don: Longman, 1989.
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Bahia. 2003. Texto não publicado.
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no cotidiano. In: SCHWARZ, Lilia M. (org) História da vida privada
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