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PREFACIO © maior perigo que enfrento, neste prefacio, é dizer tan- to de mim, quanto de Geraldo, que me incumbe apresentar, aqui. Seré isto, porém, de certo modo, inevitavel, pois ele & como um filho espiritual, e nio posso renegar os vinculos da estirpe. Alids, ¢ 0 préprio Geraldo quem os destaca, brava- mente, da primeira & dltima pagina do seu texto, Sendo ele, ainda, entre meus discipulos, aquele que mais rende, na qualidade ¢ volume duma producio auténoma, tam- ‘bém justifica um orgulho paterno, que nio titubeie em de- clararse, nestas linhas. Triste ¢ 0 pai que tem de recorrer 0s artificios de coruja, quando se rende as efusdes do seu afeto mais puro. Este prefacio ministra, conseqtientemente, as pogies cé- lidas dum sentimento doméstico, na hora exata em que foca- liza a elaboracao objetiva e tranqiiila da ciéncia. Tal mistura no s6 confirma 0 que nio pode ser negado, como, igualmente, demonstra que 0 Geraldo integra este fe- meno, em que nos associamos: uma dupla incindivel. Desde 0 primeiro encontro, ja lf vio quase dez anos, per- manecemos atados pelo né gérdio que as relagdes pessoais dleixa imbricado 0 nosso proprio desempenho, na vida publi- cae na defesa duma visdo realmente dialética do Direito. Geraldo quis, inicialmente, estimular-me a escrever 0 que outrora eu difundia, pensando em vor alta, nas aulas. Depois, tornouse, diante dos meus livros, 0 melhor exegeta. Mais do que isto: aplicador da doutrina a outras questées e aspectos, dle que nela eu nao tratava, expressamente. Exemplo claro é ‘\ construgdo da legitimidade juridica dos movimentos popu- Jares, na autotutela do direito & moradia. A tese, ajustada ao u ‘meu posicionamento, porém nele tio sé implicita, serve as virtualidades, que Geraldo soube descobrir ali i Nada mais correto, assim, do que rever, em nés, a amos- tra perfeita da amizade, tal como Hegel a definia. Porque, segundo 0 filésofo, nio se cogita apenas do prazer da com- panhia, mas, entre companheiros, da comuhao de caracte- res ¢ do interesse idéntico, numa certa realizacéo conjunta (Philosophisches Propiidetik, I, 67). Niio relembro curriculum vitae geraldino, porque ja resumin, na excelente orelha, meu amigo Sérgio Fabris — editor sui generis, cuja afeigdo pela cigncia invariavelmente a eoloca bem acima da determinagéo do ‘vil metal”. Prova, do novo, no lanamento deste livro, que editou em razio do sett mérito intrinseco, e no das possibilidades de vendagem Imediata, A orelha diz. ao Ieitor 0 que € € 0 que fez Geraldo, na ddenda transcorrida, entre o bacharelado e a docéncia atual (1973 - 1983), Este volume ¢ 0 marco do periodo; e s6 ele bataria para atestar que nfo apenas fot laborioso, mas, an- tox de tudo, fecundo. O tempo gasto deu ao jovem mestre a enfibratura teorica € a no menor destreza pratica Geraldo realiza, agora, a pesquisa mencionada, sob 0 par lroeinio do CNPq. E assim temos um novo empreendimento, do maior aleance humano, juridico e social. Nisto, ainda mais, fe dlesenvolvem os dons inatos de talento € 0 suporte duma, tailtura notvel, cuja presenga os examinadores jé verifica yam, h casio do mestrado. Paroce feita para 0 temperamento de Geraldo aquela in- festina lente —, pois ele, como Augusto, tim: iis, ademais, um trago que 0 distingue de certas modas © manly da intelligenczia brasileira: Geraldo despreza im proviso @ olhOmetro, Cultiva, ao xevés, uma crescente segus ‘wniga; baseadda na ordem, método e paciéncia. Tanto melhor he {hl © priv de alguns ficeis britharescos, em que se con: sono 08 doves Imprudentes Ts fheame pou beneficlirio das propensdes meio germar ‘let Mo Meu grande Amigo, Continuo ciclotimico, e nio me nos em exercicio do pensamento, quanto nas atitudes impul- sivas do coragdo ¢ da praxis, em geral. Despenteado, intuiti- vo, criativo, seria pouco dizer que ndo me atraem as tarefas, francamente detestadas, de arrumar, polir, oferecer aos meus produtos, todo o brilho imével dum exato acabamento e geo- métrica disposicéo. ‘A duras penas, logro conterme nos limites da disciplina intelectual. E, se mantenho a coeréncia teléolégica, senéo te- Ieondmica, dum projeto, que nunca olvida o seu fim e que, dentro da obra, pouco a pouco se vai precisando, faltam-me, a0 cabo, o lazer e a pachorra, para tomar as humildes provi. dencias, necessdrias a0 ajuste e polimento das peca: Geraldo, nao. E esquisotimico, de aparéncia conciliadora € calma, transpirando amor ao préximo e ao saber organiza- do. Assim é que se habilita a valorizar 0 alheio e que até se delicia, quando a riqueza caética num pensador Ihe abre en- sejo para exercer, sobre o que este tiltimo Ihe mostra, as qua: lidades pessoais de nobre faxineiro. Consideré-las com desdém & puro preconceito de quem se sabe incapaz dum aperfeigoa- mento, a tal nivel, de altruismo honesto e eficaz. Dentro desta condigao, associativa e complementar, é que Geraldo e eu demarcamos as nossas fungdes, no proprio seio da Nova Escola Juridica Brasileira. Ali, eu sou como vuleéo jamais extinto; ele, 0 sereno mineralogista, que cothe as la- vas, esfria, analisa, compara e classifica, Movido pela empatia, ninguém o excede na compreensio afetuosa. Sustentado pelo senso de ordem e limpeza, ninguém mais contribui tio bem e tanto, para realcar o meu trabalho. E 0 intérprete por exceléncia, capaz de introduzir qualquer leigo nos arcanos da pedreira; inclusive, generosamente, ofer- tar uma pedra polida, como se fosse preciosa, tio longe os bons olhos 0 levam, no enxergar diamantes em meu pobre carvao ordinério. Procurando minhas coisas, acho-as mais facilmente nos seus registros arquivos: "Geraldo, onde — raiost — inclut 1 explicagdo do infinito intemo em Hegel, com exemplos de céleulo infinitesimal?” “Geraldo, em que pindia de escrito lancei, originalmente, as duas teses — da dialética juridica 13 emergindo na infraestrutura; e dos conilitos de grupo, néo redutiveis aos de classe?” - Ele conserva tudo, em seus registros; eu, nao. Evidentemente, pe muito de seu, em tudo isto, Nao pensem que se trata apenas de arrumar. ‘Meu proprio insigne mestre de Filosofia, 0 Prof, Henri- que Claudio de Lima Vaz, cujo saber de dureas minas explo- Yo constantemente — embora ele no seja responsiivel pelas ininhas audécias e heresias — foi quem melhor definiu o Ge- aldo: “discipulo, no sentido socratico, © que recebe 0 enst hhamento, para repensélo; responder, criativamente, as inter royagdes do seu mestre; € encaminhar-se, corajosamente, nos roteiros por ele tragados”. Todo pai sonha ter um filho, que se torne, desta maneira, seu discipulo, Mas nem sempre isto occrre; é, até, bastante aro. Tenho, no entanto, o privilégio inverso: achei um discf- pulo que se tornou filho, com os lagos afetivos exsurgindo do afinidades intelectuais. E foi assim que também ganhei a hora, na esposa de Geraldo, a brilhante socidloga Nair He- lois Bicalho de Sousa; ¢ 0 neto em Datiel, 0 filho do casa. Nom mesmo a diferenga dos temperamentos impediu a asso- Ciagio; pelo contrério, cla nos tornou, ja 0 disse, comple- mentares, dentro da familia Neste livro, 0 acompanhamento da minha obra detém- ne om 1981, Até ai — posso atesté-lo — a armagio & correta; ft Interpretagio, fiel; os desenvolvimentos ¢ reaplicagdes, orosamente compativeis com a linha geral dos meus objet Vos, compromissos e propostas. Cumpre, apenas, fazer duas ressalvas, ‘A primeira indica © ambito do texto: Geraldo trata, so- winte, do meu pensamento juridico. E este permanece liga: do @ outros circulos e niveis de reflexio e produciio, tanto anterior, quanto posterior a 1981, Refirome, particularmente, fis questdes filosdficas gerais, que nao cabiam no plano do Irabalho exeeutado e foram, por isto, eliminadas. Assim, por ‘oxemplo, 0» meus giros no underground ontol6gico, onde a iglétiow se enlaga & Teoria do Ser, e descobre o problema die impliongoes teoldgicas, nfo resolvidas na famosa metis “ fora marxiana da casca e do miolo. Na clef de voate do meu pensamento, ha reflexdes relativas a verificagio de que o miolo da dialética é mistico, e no apenas a casca. A minha posicdo, a respeito, encontra-se na obra mais abrangedora © onsada, que preparo — A Reconciliagdo de Promete — on- de volto a Hegel e Mars, para esbocar a minha alternativa. Dois capitulos prontos, circulam, restritamente, como textos em discusso no seminario do ‘TUDO (Centro de Estudos Dialéticos). ‘A segunda ressalva admite que Geraldo tem razio, quan- do renuncia a atualizar 0 seu trabalho, para cobrir 0 perfodo 1981 - 1983, durante o qual jé publiquei cerca de 10 ensaios, de tamanho e importancia desiguais. Néo sé o principal do meu labor jurfdico est focalizado no texto geraldino, como também aquela atualizacdo seria initil. Para atualizar-me, sem risco de desatualizar a atualizacio, ao fazé-la, seria preciso deter a minha elaboracio. E sou o autor vivo, o pensador em transito, que 0 Geraldo nao pretende “matar”, para fazer au- t6psias estruturalistas ou historicistas. O bom filho nao é tum parricida. Feitas as duas ressalvas, que envolvem, paralelamente, os escritos de Noel Delamare — meu pscudénimo literario — posso afiangar que, neste livro de Geraldo, existe uma per feita introducéo as minhas contribuigdes, em campo juridico. E convém repetir que no se restringe 0 discipulo & exposi- ‘cao das minhas idéias, Ele, por assim dizer, as reinveste, com rendimento extraordinério. Eis um terreno em que é auspi- ciosa, em. vez de nociva, a maior taxa de juros... mas isto se deriva, é claro, de que trabalhamos como socialistas ¢ 0 beneficio reverte a0 patriménio cultural e piblico. “ Sobra, afinal, uma questo, a respeito da qual néo me posso manifestar diretamente. ‘Tanta dedicagao ao pensamento Iyriano seria, em ultima anilise, um labour lost? Merece o Lyra tio custosa e demo- rada_homenagem? Ja tive mais do que esperava ¢ a dissertagio de Geraldo vai juntarse ao acervo de comentadores, onde refulgem no: Imes ilustrissimos, como os de Raymundo Faoro ¢ Marilena 15 Chauf. Se estas culmindncias do justo prestigio © mais ou- tras, do Brasil ¢ do estrangeiro, gastaram seu tempo, escre- vendo sobre os meus livros, no sera indesculpivel que um Aiscipulo, um filho espiritual siga o impulso de me consagrar a sua primeira obra, Nem mesmo que Ihe ocorra, em tal prei- 10 comovente, 0 pecado venial de superestimar-me. Em nossa tetra, isto nfo € comum. Hé, inclusive, uma atitude colonialista, que admite a vinculagio aos mestres es- trangeiros, ostentada em calhamacos da reveréncia fanitica. Mas ai de quem se devota a “prata da casa”! Escarnecem, convencidos, althusserianos, foucauldistas, adornescos, haber mastéides, lefebvriformes, até frommiferos bastardos, que, nesta borboleta de Frankfurt, nem acham quanto pague a despesa da importacio. Se € para embriagar-se com zurrapa, mais valeria toma- rem 0 seu porrinho, num 6bulo indtistria nacional. 0 Reno 4 dispensa propaganda. Excluindose 0 preconceito, nao ha decreto que proba servir 4 mesa o vinhozinho modesto € caseiro, Geraldo, por magnanimidade, quis fazer provar ao pébli- co um Sangue de Boi... In magnis et voluisse sat est. 0 pro- jeto generoso; a execucio, impecivel; as belas achegas ex- cedem as proporgdes do meu material. Pensando bem, este prefaicio representa o circunl6quio necessério da gratidio paternal, assim evitando 0 descome dimento de formulas e gestos, que o intelectual chama kitsch © 0 povo, cruamente, de fajuto. ROBERTO LYRA FILHO Aprewe necessaria, preclown @ fossores de FILHO yy GULL De min to a0 ithne sador, @ qh Ihe fle ein 4 Universid Braall, Seg parsagem ¢ 0.0480) () Katia, | tedde de tagto de wn) Jonol, ene wna pele A partir atten ue ue enh na prajeto "lyrh,

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