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PREFÁCIO

Os estudos científicos contemporâneos investigam muitas das facetas da ciência,


mas tendem a focar nas respostas em detrimento das perguntas. Também
negligenciam a influência da filosofia na problemática, método e avaliação da
pesquisa científica. A presente investigação procura superar ambas as limitações,
focando no projeto de pesquisa promovido ou demovido pela matriz filosófica que o
abriga.
Outro objetivo da presente investigação é restaurar a visão clássica da pesquisa
científica como busca das verdades originais. Essa visão foi seriamente desafiada na
década de 1960 pela opiniões de Thomas Kuhn e Paul Feyerabend, de que cientistas
não procuram a verdade, porque tal coisa não existe; de Bruno Latour e seus colegas
contrustivistas-relativistas, de que cientistas fazem fatos em vez de os estudar
objetivamente; e de Michel Foucault, de que “ciência é política por outros meios.”
No entanto, não quero reviver a visão tradicional da ciência como repositório de dados
confiáveis, e menos ainda defender a opinião estravagante de Popper de que
cientistas são masoquistas procurando falsear suas próprias hipóteses mais queridas.
Apesar de haver nesse livro muitas críticas às opiniões mais populares sobre ciência,
seu impulso central é seguir com a tarefa construtiva de propor a nova teoria da
pesquisa científica que iniciei em meu trabalho de dois volumes Scientific Research
(1967b).
A teoria presente inclui e refina, entre outros, o conceito de indicador ou marcador,
ausente nos relatos empiricistas da mensuração; também inclui e refina o conceito de
referência, ausente nas teorias semânticas mais conhecidas, tal como a de Carnap,
que confunde significado com testabilidade. Além disso, a nova teoria evita a
confusão da mensuração – uma operação empírica – com o conceito set-teórico de
medida; ela também evita a confusão da dimensão de uma magnitude, tal como LT -1
no caso da velocidade, com uma de tamanho; e, por último, mas não menos
importante, a visão presente, ao contrário da visão estruturalista, adota o modelo
saboroso de uma teoria científica como um formalismo matemático dotado de um
conteúdo factual ou conjunto de hipóteses semânticas.
Em resumo, o principal impulso do presente trabalho é propor uma visão de pesquisa
científica, enquanto é conduzida pelos cientistas em atividade. Curiosamente, esse
esforço de chegar mais perto da ciência, enquanto é produzida, também nos leva
mais perto da filosofia do que as visões padrão. Vou argumentar que essa matriz
filosófica da pesquisa científica assume papéis tanto heurísticos quanto reguladores,
e que constitui uma visão de mundo completa que espera-se possa se encaixar na
ciência contemporânea.
Na medida em que satisfaz essa condição de realismo, essa visão de mundo
verdadeiramente tácita merece ser chamada de científica. Longe de ser um jogo
intelectual, esse modo particular de olhar a ciência deve nos ajudar a perceber
crenças e práticas que, como as medicinas alternativas e as políticas sociais setoriais
e oportunísticas, contradizem o assim chamado espírito da ciência e ignoram a
evidência científica relevante, onde elas constituem perigos públicos. Até um certo
ponto, essa característica justifica a antiga visão da filosofia como um guia para a
vida, assim como a visão de ciência de Aristóteles como um corpo único de
conhecimento que pode ser aperfeiçoado.
O corpo principal desse livro é seguido por dois apêndices sobre ciência e filosofia da
mente. O Apêndice 1, pelo Professor Facundo Manes e alguns de seus colaboradores
em neurociência, ocupa-se de uma das Grandes Perguntas, que é a da existência do
livre arbítrio. Essa pergunta, explorada inicialmente em 400 C.E. por Santo Augustine
de Hippo, foi desde então o assunto de debates calorosos mas inconclusivos. Muitos
cientistas, que apóiam uma visão estreita de determinismo, rejeitaram o livre arbítrio
como mais uma fantasia teológica. Assim também fizeram os defensores da metáfora
da mente como computador. Por contraste, Donald Hebb (1980), o fundador da
neuropsicologia teórica, foi também o primeiro cientista moderno a sugerir que este é
um tema legítimo da psicologia experimental. Esta é também a forma como os autores
do Apêndice 1 vêem a questão, e eles examinam uma pilha de descobertas
neurocientíficas recentes fascinantes que são relevantes para o assunto. (Veja
também Burge 1980.)
O autor do Apêndice 2, o zoólogo Dr. Martin Mahner, contribui com a visão científica
do mental, e faz seu melhor esforço para tornar claros alguns dos termos chave
filosófico-científicos que ocorrem na filosofia da mente atual. Ele também mostra que
as confusões que assolam esse capítulo importante da metafísica ou ontologia vêm
retardando o avanço das ciências da mente. Mahner também sugere que as filosofias
da mente prevalescentes ficam para trás das ciências correspondentes, enquanto
minhas próprias contribuições para esse campo têm acompanhado e ajudado a
pesquisa psicológica.
Mario Bunge
Departamento de Filosofia
Universidade McGill
Montréal, Canadá
CONTEÚDO

Prefácio
Introdução
Capítulo 1 No Princípio havia o Problema
Capítulo 2 Projetos de Pesquisa Científica
Capítulo 3 Avaliação de Resultados
Capítulo 4 Ciência e Sociedade
Capítulo 5 Axiomáticas
Capítulo 6 Existências
Capítulo 7 Checando a Realidade
Capítulo 8 Realismos
Capítulo 9 Materialismos: do Mecanicismo ao Sistemismo
Capítulo 10 Cientificismo
Capítulo 11 Tecnologia, Ciência e Política
Apêndice 1 Libertando o Livre Arbítrio: Uma Perspectiva Neurocientífica
Augustin Ibáñez, Eugenia Hesse, Facundo Manes e Adolfo M. Garcia
Apêndice 2 A Filosofia da Mente Precisa de uma Metafísica Melhor
Martin Mahner
Referências
Índice
INTRODUÇÃO

Esse livro focaliza na ciência enquanto é feita, assim como nas suas pressuposições
filosóficas, tais como aquelas da racionalidade e do realismo. Apesar dessas
pressuposições serem na maior parte tácitas, e, por isso, fáceis de serem
negligenciadas, na verdade elas são extremamente importantes, já que algumas
delas favorecem a pesquisa, enquanto outras a atrapalham. Por exemplo, enquanto
o subjetivismo leva à contemplação do umbigo e à fantasia descontrolada, o realismo
nos encoraja a explorar o mundo e a testar nossas conjecturas.
Os pedaços de ciência que aprendemos nas escolas e livros escolares são produtos
terminados, enquanto que os resultados de projetos científicos recentes aparecem
em publicações acessíveis apenas para especialistas. Assim, o Instituto Americano
de Física sozinho publica 19 revistas revisadas por pares. Na ocasião de sua visita a
esse instituto, o famoso professor de filosofia da ciência da Universidade de Princeton
ficou maravilhado ao saber que havia mais do que uma publicação sobre física no
mundo. Obviamente, ele não consultava publicações de ciências.
Publicações científicas divulgam relatos originais, artigos de análises e pequenas
notícias. O nível dos cientistas é avaliado a grosso modo pelo número de trabalhos
publicados nas revistas mais importantes – uma métrica controversa, como
demonstrou o experimento sensacional de John Garcia (1981), porque ela soma a
qualidade da pesquisa com o prestígio da casa acadêmica do autor. Algumas dessas
publicações têm padrões tão altos que publicam apenas um de cada dez artigos que
recebem. A imprensa popular espalha apenas rumores sobre as publicações mais
surpreendentes.
Evidentemente, ler artigos recentes em publicações científicas de renome não é o
bastante para treinar investigadores produtivos. Fazer ciência é algo que se aprende
apenas na prática ou reproduzindo alguma pesquisa científica original, e só fazendo
isso alguém consegue perfurar as grossas camadas de mitos sobre a ciência, tais
como sua confusão com a tecnologia ou mesmo com a busca pelo poder (veja
Numbers & Kampourakis 2015 para um exemplo representativo.)
Tome, por exemplo, a diferença entre pensamento científico e fantasia livre. Enquanto
é verdade que a fantasia descontrolada pertence à literatura, arte e teologia, também
é verdade que o trabalho cientificamente rigoroso sem fantasia é só mais um trabalho
rotineiro, como cozinhar, costurar ou computar de acordo com regras dadas. A
fantasia – o vôo a partir do óbvio ou do bem conhecido – é a essência do trabalho
original, seja na ciência, tecnologia, arte, literatura, gerenciamento, ou na vida diária.
No entanto, não nos deixemos levar pelas similaridades, porque os cientistas
procuram a verdade, que é opcional em outros campos.
Isso, a centralidade da fantasia na ciência, é porque a burocracia universitária alemã
do século XIX colocava matemáticos e teólogos na mesma divisão. Claro, ao fazer
isso eles ignoravam o ponto de que, ao contrário dos teólogos, os matemáticos
passam a maior parte do tempo provando conjecturas em vez de as inventar. Mas
provar só vem depois de conjecturar, e não há regras para como produzir novas
hipóteses: não existe ars inveniendi1.
Outro erro popular concerne a impersonalidade da ciência. Quando se diz que, ao
contrário do amor e do gosto, a pesquisa científica é impessoal, a intenção é dizer
que os procedimentos científicos e seus resultados podem ser examinados e
avaliados de acordo com critérios objetivos, tais como originalidade, clareza, precisão,
consistência, objetividade, compatibilidade com o corpo de conhecimento anterior,
reprodutibilidade e se pertence ao domínio público em vez de apenas a um secto.
Não foi sempre assim. Quando as universidades começaram a ser divididas em
departamentos, em vez de cadeiras, os ocupantes das cadeiras passaram a agir
como senhores feudais, e alguns até declararam ser donos de suas áreas de
pesquisa. Na década de 1960, quando as universidades do Oeste da Europa foram
reagrupadas em departamentos, o proeminente professor Heidelberg, chamado de
M-L, recusou-se a aceitar, e colocou em sua porta uma placa que dizia M-L Abteilung2.
E em uma universidade espanhola, o especialista em análise dimensional – um
pequeno e exaurido capítulo da matemática aplicada – apontou a si mesmo como o
Departamento de Análisis Dimensional composto por um homem só.
Quanto a conexão entre ciência e filosofia, tome, por exemplo, o estudo de qualia ou
propriedades secundárias, tais como cor, sabor e odor. Quando eu estava no colegial
na década de 1930, o estudo de química incluía memorizar as propriedades
organolépticas de várias substâncias que estudávamos nos livros, mas com as quais
nunca mexíamos. Por exemplo, precisávamos aprender que o cloro tem uma
aparência verde-amarelada, sabor mordente e odor sufocante, e tudo era verdade e
útil no laboratório, mas não contribuía para a compreensão da química mais do que
saber como tirar manchas de aventais de laboratório.
Muitos filósofos nos garantem que, desde que todas essas propriedades (os qualia)
são subjetivas, nenhuma delas pode ser levada em conta pela ciência. E realmente,
como Galileu ensinou quatro séculos antes em Il saggiatore3 (1693), a ciência (que
naquela época queria dizer mecânica) lida apenas com propriedades primárias tais
como forma, peso e velocidade. Até hoje em dia, a simples existência de qualia é
usada para refutar o materialismo, vulgarmente identificado com fisicalismo.
Esses filósofos ficariam chocados em saber que qualia está atualmente sendo
analisado como propriedades primárias de certos subsistemas do cérebro (veja, e.g.,
Peng et al. 2015). Esse estudo está sendo conduzido por neurocientistas cognitivos
que, usando técnicas de produção de imagens do cérebro, conseguiram produzir um
mapa gustotópíco completo das qualidades de sabor nos cérebros dos “mamíferos”
(na verdade apenas a família dos ratos). Em particular, eles localizaram o gosto na

1
Ars inveniendi – em latim, ‘a arte da invenção’ implica na determinação da verdade através da matemática na
mathesis universalis (mathesis – ciência ou aprendizado em grego; universalis – universal em latim), que é um
conceito hipotético de ciência universal baseado na matemática concebido por Descartes e Leibniz e alguns
outros matemáticos e filósofos menores dos séculos 16 e 17 (N. do T.).
2
M-L Abteilung – Departamento M-L.
3
Il saggiatore – O experimentador.
ínsula – um órgão localizado sob o córtex cerebral e perto dos olhos. Eles descobriram
que as percepções do doce e do amargo estão separadas por aproximadamente 2
milímetros. Esses qualias podem ser excitados não apenas pela ingestão de comida,
mas também por fotoestimulação ou injetando certas drogas. Além disso, não tendo
lido nativistas como Noam Chomsky ou Steven Pinker, os ratos podem ser treinados
para superar o impulso inato, que é o impulso pela preferência do doce, em vez do
amargo.
Todas essas investigações pressupõem a hipótese materialista (mas não a fisicalista)
de que todo mental é cerebral. Nenhuma delas teria sido sequer contemplada se os
investigadores continuassem presos pelo espiritualismo, dualismo psiconeural ou
computerismo – as três filosofias da mente atualmente favorecidas por muitos
filósofos da mente.
Por último, a presente investigação científica de qualia não é apenas um exemplo da
ação Filosofia -> Ciência. Ela também mostra a ocorrência da ação inversa: algumas
descobertas científicas podem forçar certas mudanças filosóficas – nesse caso, o
aumento do materialismo para compreender a experiência subjetiva e seu estudo
objetivo, até mesmo do livre arbítrio (veja o Apêndice 1).
Mais precisamente, o antigo materialismo, nascido como mecanicismo tanto na
Grécia quanto na Índia dois milênios e meio atrás, é agora apenas um pequeno setor
do materialismo científico, que pode influenciar todas as disciplinas científicas desde
que dome o impulso mental de negá-lo. Por exemplo, a ideia popular de que a
intenção difere radicalmente da causação evapora quando aprendemos que as
intenções são processos do córtex préfrontal.
Quase tudo do que foi dito acima se encaixa na filosofia da ciência. Essa disciplina
não é muito respeitada por muitos cientistas. Richard Feynman disse uma vez que a
filosofia da física é tão útil para físicos quanto a ornitologia para pássaros. Alguém
pode argumentar que cientistas não deixam de filosofar, como quando pensam sobre
a ocorrência real e acesso de alguma entidade ou processo hipotético. Por exemplo,
a questão toda de construir e financiar imensos aceleradores de partículas como o
CERN, Fermilab e Dubna, é descobrir se algumas das entidades e eventos
imaginados por teóricos são reais (veja Galison 1987).
Além disso, se Feynman tivesse prestado alguma atenção a filosofia, ele não teria
confundido leis (padrões objetivos) com regras (prescrições de como fazer coisas);
ele não teria assumido que pósitrons são elétrons movendo-se para o passado; ele
teria visto seus próprios gráficos famosos como recursos mnemônicos, em vez de
registros de trajetórias reais; e ele não teria escrito que, “Desde que possamos
escrever a solução de algum problema físico, então teremos uma teoria completa que
pode se sustentar sozinha” (Feynman 1949).
Feynman podia se dar ao luxo de descartar a filosofia, ignorar o grande debate Bohr-
Einstein sobre realismo, e declarar que “ninguém entende a mecânica quântica”, pois
ele escolheu realizar uma série de cálculos muito difíceis – uma tarefa que não requer
nenhum conhecimento filosófico. Além disso, Feynman trabalhava com um ramo
maduro da física, chamado eletrodinâmica, iniciado um século antes por André-Marie
Ampère, que, em 1843, publicou um trabalho em dois volumes sobre a filosofia da
ciência.
Em contraste, Charles Darwin sabia que havia iniciado uma nova ciência, que tinha
de ser protegida dos ataques do establishment conservador. É por isso que ele usava
em público a máscara da filosofia dominate, enquanto confidenciava suas crenças
heterodóxas e para seus cadernos de notas privativas Notebooks M and N (Ayala
2016; Gruber & Barrett 1974). Neles aprendemos sobre o ceticismo religioso de
Darwin, seu materialismo filosófico da mente (em 1838!), e sua teoria não-empírica
do conhecimento. Em particular, Darwin sustentava que – contrário ao que os
empiricistas britânicos pensavam – toda observação científica útil (não-trivial) é
guiada por alguma hipótese. Tais heterodoxias filosóficas podem muito bem ter
ajudado Darwin a desenvolver suas heterodoxias científicas e, acima de tudo, levar
adiante seu grande objetivo de revelar a árvore da vida.

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