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Que eu seja perdoado se reprimo o último

trecho do caminho, o Smichover, pois nesse


mesmo lugar do percurso quero interromper o
caminho. O que inicialmente eu, como rapaz,
corria com pressa e sem fôlego para poder
chegar a tempo na aula de latim, e o que hoje,
como pessoa de idade, percorro sem fôlego para
reencontrar a mim mesmo, é a fatalidade
inominável que o século 20 deixou acontecer no
palco grandioso de Praga. Essa fatalidade da
qual fui feito. Esta é a trilha que encontrei: a
suntuosidade indescritível como palco de
catástrofe indescritível.

Nem sempre o que nos motiva a uma leitura é o nosso interesse pela temática ou
pelo autor.
No caso específico do Bodenlos de Vílem Flusser, foi exatamente o desconforto
provocado pela leitura de outro texto do mesmo autor – Fenomenologia do Brasileiro, que
me levou a esta leitura.
O incômodo inicial com a Fenomenologia do Brasileiro foi estrutural; minha
impressão era a de estar diante de um texto escrito em português, que fluía (fluía?) de
acordo com a organização linguística do alemão, concebido por um escritor de origem
tcheca!
Confesso que, fosse há algum tempo atrás, eu o teria abandonado logo de início,
considerando principalmente minha dificuldade em transitar naquele “universo tão
cosmopolita”; mas, na hipótese de ter que declarar minha covardia, entendi que a melhor
opção seria não fugir do enfrentamento.
Decidida a prosseguir, percebi, no curso da leitura que aquele desconforto inicial
seria somente o primeiro de outros tantos que o texto ainda iria me causar. E, em meio a
todas as questões levantadas pelo autor, concluí que a questão que realmente me movia
nem estava tão explícita e, talvez por ser, na minha opinião, anterior a todas as outras seria
a mais encantadora: quem era o homem por trás daquele olhar?
Mergulhei na leitura do Bodenlos como quem mergulha num mar aparentemente
manso, sem ondas, movida por uma curiosidade quase mal intencionada, como que
buscando algo que fundamentasse minha má impressão inicial... Fundamentasse,
fundamento, sem fundamento...
Me parece adequado antes de prosseguir, tentar, em alguma medida, “prefaciar”
esta experiência com o Bodenlos (personificar o próprio livro não me soa tão inadequado),
afim de situar autor e obra em alguma dimensão de tempo e espaço que contribua para uma
apreensão mais ampla das imagens que a narrativa de Flusser é capaz de produzir.
Bodenlos, título da autobiografia filosófica de Flusser; palavra de origem tcheca,
que em português foi traduzida pelas expressões “sem chão”, “sem fundamento”, foi, me
parece uma escolha que, para além de estabelecer o “clima” do livro, como dito pelo
próprio Flusser, poderia ser atribuída também às relações do autor com as questões da
comunicação, mais especificamente com a tradução. Fluente e escrevendo em quatro
línguas, Flusser traduzia e retraduzia ele mesmo seus textos, atividade que lhe permitia
refletir sobre a multiplicidade que, contida nesse processo era capaz de conferir riqueza ao
pensamento, atribuindo sentido, dando significado, criando imagens.
Alguns comentadores acreditam que o Bodenlos tenha sido escrito pelos idos dos
anos 70, quando Flusser já havia deixado o Brasil e voltado para a Europa.
Aproximadamente 30 anos depois da fuga de Praga.
Flusser, ele mesmo um bodenlos, a partir de um ponto de vista de uma suspensão
existencial, pairava – desenraizado que foi - sobre pátrias, culturas, naturezas e línguas
muito distantes de sua Praga. Outra característica muitíssimo interessante, que em alguma
medida, marca o estilo de Flusser é o emprego da expressão “a gente”.
Quando nos propomos a ler um texto autobiográfico, nossa expectativa reside em
encontrar uma narrativa que se firme no discurso em primeira pessoa; numa reflexão sem
distanciamento, fundada na experiência vital do autor, na qual o lugar do leitor, este sim
distanciado, é o de expectador que, como mero receptor, apenas apreende as imagens
naturalmente formadas pela leitura, sem efetivamente nenhum tipo de envolvimento que
não seja o interesse ou desinteresse que o texto possa lhe causar.
“A gente” de Flusser subverte essa relação, a partir do momento em que o uso
desta expressão possa ser compreendido como a fórmula encontrada por ele para marcar
uma forma de “pertencimento desengajado”, fortalecido pelo “atestado da falta de
fundamento”, tão marcado pelo próprio autor. Palavras e expressões como,
desenraizamento, desengajamento, sem fundamento, sem chão, são repetidamente
utilizadas ao longo do texto que, aliadas à expressão “a gente” dão o tom da experiência de
vivenciar o absurdo camusiano, e o consequente estado de existência em suspensão que,
me parece, marcou de forma indelével a vida e a filosofia de Flusser, expressa através de
sua assunção de eterno imigrante.
Por uma questão de método, acredito, Flusser divide o Bodenlos em quatro seções:
Monólogo, Diálogo, Discurso e Reflexões.
Por razões que passam especificamente por minhas preferências temáticas e pelos
afetos que, invariavelmente – e nada acadêmicos - imprimo aos enfrentamentos ou
encontros que estabeleço com os autores que me caem às mãos, escolhi tratar neste ensaio
somente da primeira e da quarta seções.
O fim dos anos 30 tem como cenário uma Europa mergulhada na guerra, acossada
pela expansão nazifascista, pela perseguição racial, principalmente semita; pela
desconstrução de valores políticos e culturais, e de estruturas sociais sedimentadas por
séculos preservadas. Uma cena composta por aspectos carregados de tanta violência e
desprezo pela própria condição de existência do ser humano, quanto de incredulidade
diante dela. E é nesse contexto da experimentação do absurdo que acompanhamos Flusser
em sua volta a Praga.
Praga era para o jovem Flusser o centro cultural da Europa Oriental. Judeu, filho de
intelectuais, Flusser era acima de tudo um “cidadão praguense”, condição que poderia ser
compreendida como algo supranacional. Ser cidadão praguense englobava praticamente
tudo: ser judeu, estudar filosofia, ser marxista, na medida em que o marxismo por “ter
sempre uma resposta” assumia um caráter, de certa forma, acolhedor, uma vez que a
prática judaica era coisa mais ritualística do que de religiosidade propriamente dita.
Praga era o fundamento. Praga era o chão. Viver em Praga era ter a sensação de
ancoragem, enquanto parte integrante e ativa do mundo. E o mundo cabia em Praga. A
filosofia exercitada na universidade, a arquitetura secular, a natureza que, no cumprimento
de seu papel de “estar”, estava ali para ser contemplada e não enfrentada, a convivência
pacífica entre o tcheco, língua mãe e o alemão, incorporado organicamente como segunda
língua, o engajamento em uma cultura que carregava a distinção de séculos percorridos,
discutidos, questionados, transformados e fundamentados pelos maiores pensadores da
história e a certeza do devir naturalmente destinado a um cidadão praguense. Praga era
vida.
Com o prenuncio da chegada das tropas nazistas e a posterior ocupação, Praga foi
deixando de ser Praga. Foi deixando, pois, segundo Flusser, Praga não caiu “de golpe” sob
a sombra da suástica, mas foi se desmantelando, caindo aos poucos...
As mudanças e restrições impostas pelos nazistas à rotina da cidade, principalmente
aos cidadãos judeus, e as notícias do avanço nazista sobre cidades como Viena, davam
conta de um desmoronamento ainda maior: um desmoronamento da realidade conhecida e
vivida até então.
E, de repente, o mundo não cabia mais em Praga. Tanques ocupavam a cidade, cidadãos
praguenses, distituídos de sua condição de cidadãos foram substituídos por alienígenas que
ocupavam as ruas em seus uniformes militares, a filosofia não podia mais ser exercitada na
universidade, agora território proibido aos judeus, os amigos não podiam mais ser amigos,
não se podia mais ser marxista, porque nem o marxismo era capaz de dar conta do absurdo
inacreditável, não se podia mais ser judeu, não se podia mais ser... Praga não cabia mais
em Praga, e o jovem Flusser não podia mais ser em Praga.
E, finalmente Praga morreu. Morreu no exato instante em que a decisão de deixar
Praga nasceu, gêmea da falta de fundamento.
E ao morrer, Praga levou com ela o mundo conhecido engajado, enraizado, pleno
de futuro naturalmente esperado, fundado e fundamentado, que abarcava a família, os
amigos, os estudos de filosofia e o sentido de ser um cidadão praguense. Praga morreu e
com ela o sopro que animava a existência do jovem Flusser.
Com apenas 19 anos, Flusser deixa sua Praga com destino a Londres, em
companhia da família de Edith, companheira que esteve sempre a seu lado. Mas Londres
também não era local seguro. Os nazistas avançavam pela Europa, que em alguma medida
ainda era representação da realidade conhecida. Era preciso, por força da necessidade
inerente ao ser humano, preservar a vida, mesmo que, àquela altura, no sentido
eminentemente biológico: porque era do homem manter-se vivo, mesmo que essa vida não
tivesse mais nenhum sentido, nenhum fundamento. Viver pelo simples fato de manter-se
vivo. Era preciso deixar Londres.
A escolha do próximo destino se baseia numa questão meramente estratégica: era
preciso escolher um lugar que de tão exótico e distante, em alguma medida, destituído de
realidade palpável para a vida conhecida como europeia, não estimulasse o apetite de
expansão imperialista do nazismo. O Brasil então, se transforma numa possibilidade real
de manter-se vivo.
O Flusser que desembarca no Brasil em 1940 é um corpo vivo. Sacodido por um
espírito que, por não dar conta de seu desenraizamento, questiona o tempo todo a si mesmo
o fato de ainda estar vivo. Suicídio era uma possibilidade real, pois de que serve um corpo
cuja alma lhe foi apartada? Por que manter-se vivo se tão vazio de sentido?
De alguma maneira o conflito fora apascentado pela sensação contraditória que a
falta de fundamento provocava: não se tinha mais nada, o que paradoxalmente abria a
possibilidade para se ter tudo. Estava-se vazio, o que por si só remetia à necessidade de
preenchimento. E Flusser reconhecia-se um apátrida. Não somente no sentido da perda da
pátria original, mas também no sentido de ser potencial receptáculo de outras tantas.
E, possivelmente, tenha sido esse vazio, que inclui a ideia do desprendimento do chão,
como descrito por Flusser, no Bodenlos:
Flores na mesa do jantar são exemplos de vida
absurda. Se quisermos intuir tais flores,
podemos sentir a sua tendência de brotar raízes
e faze-las penetrar não importa que solo. A
tendência das flores sem raiz é o clima da falta
de fundamento.

o que tenha lhe dado a capacidade de flutuar sobre temas que lhe foram caros como a
língua, a natureza e a cultura brasileiras e, traçar, a partir de um ponto de vista peculiar, um
panoroma bastante amplo da dinâmica, das relações e do ser do homem brasileiro sob uma
ótica fenomelógica.
Por estabelecer uma diferenciação entre habitação e pátria, ou seja, morar e
trabalhar no Brasil, aprender a língua portuguesa a ponto de torná-la sua segunda língua,
dedicar-se a uma análise filosófica da vida brasileira, não o tornaram brasileiro. Incorporar-
se à dinâmica da vida cotidiana para ele não foi sinônimo de engajamento ou
enraizamento.
O olhar de Flusser sobre o que seria a Fenomelogia do brasileiro abre inúmeras
janelas para horizontes de discussões férteis, plenas de sentido e deliciosamente filosóficas
por não encobrirem as rachaduras, as imperfeições, as imagens fantasiosas que
reproduzimos sobre nós mesmos, sem nos darmos conta da fragilidade dos argumentos que
as fundamentam e da potencialidade criativa e inovadora que nos é natural pelo simples
fato de sermos brasileiros, mesmo que não tenhamos consciência do significado do que
seja “ser brasileiro”.
Eu poderia concluir, se bem que, filosoficamente, estabelecer conclusões possa
representar um encerramento do tema e não a possibilidade do surgimento de novas e
interessantes questões que, penetrar no universo flussiano, foi, no mínimo, uma
experiência provocadora, instigante e renovadora. Uma experiência que transcendeu o
trabalho que nos é tão conhecido da análise textual acadêmica, por vezes dura e
concentrada no aspecto da tentativa de apreensão de conceitos dados e produção de um
texto minimamente coerente e correto. A aproximação com o autor veio confirmar uma
intuição muito particular de que fazer filosofia sem experienciá-la, em alguma medida,
direta ou indiretamente, seja pela vivência pessoal, seja através de imagens captadas,
absorvidas e internalizadas, é não entender seu fundamento primordial: filosofia é vida.

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