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NATUREZA, CIÊNCIA E RELIGIÃO CATÓLICA: DESVELANDO EQUÍVOCOS

DE LUGARES - COMUNS CRIADOS PELO PRECONCEITO E


DESINFORMAÇÃO

Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social,
Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo
Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na
pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos
Fundamentais do Programa de Mestrado da Unisal.

Tem sido um lugar – comum nos escritos e debates acerca da relação entre Religião
e Ciência a indicação do Cristianismo e, especificamente, da Igreja Católica, como
elementos de atraso, repúdio e repressão ao livre desenvolvimento científico, semeando as
crendices e ignorâncias. A Ciência é apresentada como única via de conhecimento válido
desde o Século XIX com o advento do Positivismo Comteano, que chega ao extremo da
pretensão de erigir uma “Religião Positivista” dotada inclusive de um “Catecismo
Positivista”. 1
No Prefácio dessa inusitada e tresloucada obra, encontra-se a seguinte abertura que
certamente reflete muito bem o pensamento que concebe Ciência e Religião como
contrapostos:
“Em nome do passado e do futuro, os servidores teóricos e os servidores práticos da
humanidade vêm tomar dignamente a direção dos negócios terrestres, para construir, enfim,
a verdadeira providência, moral, intelectual e material; excluindo irrevogavelmente da
supremacia política todos os diversos escravos de Deus, católicos, protestantes ou deístas,
como sendo, ao mesmo tempo, atrasados e perturbadores”. 2
Entender por que uma linha de pensamento que repudia totalmente a Religião e a
culpa por todo atraso e ignorância mundana, necessita erigir uma religião própria dotada de

1
COMTE, Auguste. Catecismo Positivista. Trad. Miguel Lemos. São Paulo: Nova Cultural, 2005, passim.
2
Op. Cit., p. 97.
um “catecismo”, é mesmo um grande “mistério” a ser desvendado e compreendido . 3 Uma
contradição como esta seria cômica, se não fosse tragicamente insana!
Dessa raiz comum onde grassam a desinformação e a contradição, cresce a árvore
com os frutos dos novos ateus dedicados a um contínuo denegrir da Religião e dos
religiosos. Tal como seu mentor original, têm como ponto de apoio a ignorância teológica e
histórica e o desinteresse em informar-se (o que não seria assim tão difícil). Também,
partindo de um ponto de desinformação somente se poderia chegar a destinos equivocados,
tais como a “fé” (elemento claramente religioso) em Teorias Científicas, históricas e
sociológicas (que não deveriam ser construídas sobre esse fundamento). A intolerância para
com o pensamento alheio que se revela tanto pelo vocabulário ofensivo e desrespeitoso,
quanto pelo desinteresse em obter conhecimento sobre aquilo de que se fala ou se escreve,
entra em contradição com toda a crítica “indignada” a certas condutas autoritárias
porventura perpetradas por líderes religiosos em contextos histórico – sociológicos que
deveriam ser levados em conta em qualquer discussão séria, respeitosa e inclusive com
alguma pretensão “científica”.
A Igreja ou as Religiões em geral são comumente apontadas pelos novos ateus como
as responsáveis pelos maiores massacres da humanidade, violências e arbitrariedades
4
danosas à liberdade de pensamento e de expressão. O ateísmo é apresentado como a
panacéia para todos esses males políticos, novamente numa “fé” cega e absurda que não
leva em consideração eventos históricos inegáveis como as bases supostamente científicas
do nazismo que, aliás, apregoava especialmente a perseguição e massacre a um grupo
religioso. Deixam-se de lado as atrocidades praticadas contra a vida e a liberdade humanas
por ditaduras laicas em todo o mundo e no curso da história geral, como se a Revolução
Francesa e a Revolução Comunista não tivessem vitimado inúmeras pessoas, inobstante
suas características amplamente antirreligiosas e atéias.
Um dos arautos mais festejados do novo ateísmo e suas incoerências é Richard
Dawkins que efetivamente apresenta o fim da Religião como a cura para todos os males da
humanidade, desde a violência até a remoção de todos os óbices para o livre
3
E talvez seja esse o grande sustentáculo “religioso” dessa iniciativa Comteana, já que o “mistério” é
realmente uma das bases de qualquer religião a remetê-la à necessidade da “revelação” através do numinoso
(aquilo de misterioso e superior que somente pode ser captado pela consciência por intermédio de alguma
iluminação e pelas qualidades transcendentais da divindade). E haja luz e divindade para compreender isso!
4
Cf. HARRIS, Sam. Carta a uma nação cristã. Trad. Isa Mara Lando. São Paulo: Companhia das Letras,
2007, passim.
5
desenvolvimento, especialmente na área científica. O autor promove uma versão
requentada do antigo e superado argumento do “bom selvagem” encontrável em Rousseau 6
e cuja primeira menção, segundo consta, encontra-se em obra do escritor John Dryden
datada de 1672. 7 Só que agora o “bom selvagem” é substituído pelo “bom ateu civilizado”
exatamente em oposição ao mau, inculto e selvagem homem religioso, capaz das maiores
atrocidades devido ao simples fato de crer em Deus ou ser dotado de alguma convicção
espiritual. Os ateus, por seu turno, seriam “pessoas maravilhosas”, incapazes da prática de
qualquer conduta autoritária, imoral ou má.
Esse e outros protagonistas do novo ateísmo ativista e fundamentalista esquecem-se
(propositadamente ou não) que idealismos do homem, da natureza e do mundo que
pretenderam construir utópicos paraísos terrenos foram e podem continuar sendo causas de
violências contra a vida, a dignidade e a liberdade humanas. Ademais, podem também ser a
origem de ingentes atrasos no desenvolvimento científico.
Um bom exemplo de como uma doutrina que nada tem de religiosa constituiu um
atraso considerável para a ciência é o caso ocorrido na metade dos anos 30 na União
Soviética quando um charlatão de nome Trofim Lysenko conseguiu obter o aval de Stalin
para a defesa de suas teorias genéticas desprovidas de qualquer base científica ao ponto de
ensejar uma verdadeira repressão ao estudo e pesquisa voltados para a genética clássica ou
qualquer teoria que desmentisse ou conflitasse com as idéias absurdas de Lysenko. 8
Freeman Dyson, físico agraciado com o Templeton Prize e indicado ao Prêmio
Nobel devido ao seu trabalho na área da eletrodinâmica quântica, fez um discurso de
agradecimento na cerimônia de recebimento do primeiro prêmio mencionado,
manifestando-se de forma equilibrada, criticando o lado negativo das religiões, mas
reconhecendo suas realizações positivas. Da mesma forma, posicionou-se quanto ao
aspecto negativo do ateísmo, consignando que “dois indivíduos que mais protagonizaram
desgraças no século XX, Adolf Hitler e Joseph Stalin, eram ateus confessos”. 9

5
Deus um delírio. Trad. Fernanda Ravagnani. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, passim.
6
ROUSSEAU, Jean – Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.
Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 2005, passim.
7
La conquista de Granada por los españoles. Granada: Universidad de Granada, 2010, passim.
8
SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios. 10ª ed. Trad. Rosaura Eichemberg. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996, p. 260 – 261.
9
Apud, MCGRATH, Alister, MCGRATH, Joanna. O delírio de Dawkins. Trad. Sueli Saraiva. São Paulo:
Mundo Cristão, 2007, p. 61 – 62.
O fundamentalismo ateísta de Dawkins e outros adeptos defende a existência desde
sempre e atualmente de uma verdadeira guerra ou oposição sistemática entre Ciência e
Religião, devendo ao final dessa suposta batalha de morte, restar em pé apenas uma das
combatentes. Essa é sem dúvida “uma interpretação confusa que se apoia na leitura
histórica obsoleta e já abandonada da relação entre ciência e religião. No passado, por volta
da segunda metade do século XIX, podia-se acreditar que ciência e religião estavam
permanentemente em guerra. No entanto, de acordo com a recente alegação de um dos
principais historiadores da ciência dos Estados Unidos, esse entendimento é visto, hoje,
10
como um estereótipo histórico totalmente antiquado, e desacreditado pela academia”.
Ora, se assim é, impossível não formular a pergunta: onde está o caráter científico do
fundamentalismo ateísta de Dawkins e outros?
O que se verifica na verdade é que não somente a Religião como também muitas
outras visões de mundo podem gerar o fanatismo e o fundamentalismo. Ao contrário do que
Dawkins e companhia apregoam fanatismo e fundamentalismo não são apanágios
exclusivos da Religião. Em seu estudo sobre o fanatismo, Jaime Pinsky e Carla Bassanezi
Pinsky deixam bem claro que o fenômeno não é redutível jamais a uma só face. Eles
delimitam seu campo de estudo em quatro vertentes básicas (religiosa, política, racista e
11
esportiva), mas sem pretender esgotar o assunto e suas repercussões possíveis.
Certamente poderiam incluir, se quisessem, o fanatismo ateu.
Ora, o fanático é aquele extremista, exaltado e acrítico defensor de uma causa, o
12
qual não aceita discussões ou questionamentos racionais. E os fundamentalistas ateus
explicam a violência e os atentados contra a liberdade humana como derivados da Religião
de forma tão acrítica que não parecem perceber que uma das faces da liberdade é
exatamente a religiosa! E mais, não enxergam ou não querem enxergar que atos de
violência podem resultar de motivações variadas e que mesmo quando envolvem a Religião
normalmente estão envoltos também em questões políticas. Para Dawkins, por exemplo,
parece “líquido e certo” que um “bom ateu” jamais “jogará aviões contra arranha – céus ou
cometerá qualquer outro ato ultrajante de violência ou opressão”. Essa é uma afirmação
totalmente inverídica como prova a história tanto recente como antiga, além do que também

10
Op. Cit., p. 64 – 65.
11
PINSKY, Jaime, PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). Faces do Fanatismo. São Paulo: Contexto, 2004, p. 11.
12
Op. Cit., p. 9.
se deve levar em conta que a maioria esmagadora das pessoas que professam crenças
religiosas não agem de forma violenta ou autoritária. Assim como nem todos os ateus são
clones de Hitler ou Stalin, também nem todos os que professam alguma fé religiosa são
terroristas e assassinos. 13
Mas para ateus fundamentalistas como Dawkins uma das principais bases de suas
argumentações desconexas, anacrônicas e irreais é a negativa do “lado mais sombrio do
ateísmo”. Defende-se com isso “uma fé fervorosa e inquestionável na bondade universal do
ateísmo”, recusando qualquer exame crítico desse dogma. É preciso admitir que realmente
há “muita coisa errada na religião contemporânea e muito a ser corrigido, mas o mesmo se
aplica ao ateísmo, que precisa se sujeitar a um autoexame, a um julgamento moral e
intelectual”. A realidade “é que os seres humanos são capazes tanto de violência quanto de
excelência moral – e que ambos podem ser provocados por visões de mundo, religiosas ou
não”. Fato é que criar um “bode expiatório” ateu ou religioso para os males do mundo
jamais será uma boa solução. Na verdade isso certamente já é em si um perigoso
fomentador da repressão e violência contra certas pessoas e grupos. 14
15
Como bem expõe Chesterton a desorientação e inconsistência dos argumentos
antirreligiosos são causadoras de verdadeiros antagonismos internos na própria crítica
levada a termo. O autor apresenta como exemplo a crítica ao Cristianismo quanto à sua
natureza tímida e pouco viril, que deixaria as pessoas apáticas diante de uma agressão e
incapazes de reagir, atuando como um típico rebanho de ovelhas (por todos, Nietzsche,
1844 - 1900). Incoerentemente também se critica o Cristianismo não por sua apatia bélica,
mas por sua agressividade que seria a matriz para todas as guerras da humanidade e por
uma verdadeira inundação de sangue no mundo (vejam-se por todos os já mencionados
neste texto, Harris e Dawkins).
Vistas a contento as incongruências, anacronismos, equívocos, inconsistências e
falta de cientificidade das críticas à Religião como grande quando não única ensejadora de
posturas autoritárias e cruéis, bem como anticientíficas, pode-se passar para a análise de
como é possível superar essa repetição insistente de tolices por meio de um estudo da real

13
MCGRATH, Alister, MACGRATH, Joanna. Op. Cit., p. 81 – 82.
14
Op. Cit., p. 112.
15
CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. Trad. Almiro Pisetta. São Paulo: Mundo Cristão, 2008, p. 144 – 145.
contribuição da Igreja Católica e do Cristianismo em geral para o desenvolvimento da
Ciência no mundo ocidental.
Infelizmente o diagnóstico jocoso formulado por Carvalho quanto à imbecilização
coletiva é por várias vezes comprovado, sendo o tema ora em discussão um dos exemplos
mais destacados. Nas palavras irônicas do autor:
“O imbecil coletivo não é, de fato, a mera soma de um certo número de imbecis
individuais. É, ao contrário, uma coletividade de pessoas de inteligência normal ou mesmo
superior que se reúnem movidas pelo desejo comum de imbecilizar-se umas às outras”. 16
Muitas ideias são propagadas e passam a configurar certezas “científicas”,
“históricas” e “políticas” não por seu real valor e coerência, mas pela força da repetição de
um testemunho unânime de uma suposta intelligentzia que passa a ser o requisito de
17
validade para tudo e sem o qual pode-se dizer que algo nem sequer existe. É por esse
recurso fraudulento que se concentra “obsessivamente a discussão em certas correntes de
ideias, para bloquear ao público o acesso a outras” como um “método elegante de censura
prévia, que dá ao mais tirânico dirigismo mental as aparências de uma discussão
18
democrática”. Já não se almeja a verdade onde grassa uma retórica vazia que visa criar
um convencimento psíquico por meio de uma espécie de chantagem que afasta o debate
argumentativo e o inibe com a ameaça do isolamento intelectual. Dessa forma “as ideias
conquistam adeptos por contágio afetivo; e, uma vez dominantes, já não precisam sequer
ostentar a pretensão de veracidade. Possuem argumento melhor: a força do número que
espalha nas almas dos recalcitrantes o temor do isolamento, vagamente identificado com a
miséria e a loucura”. 19
É de clareza solar que a repetição acrítica e leviana da tese de que a Igreja Católica
teria sido a responsável pelo obscurecimento da Ciência ao longo da história da
humanidade constitui uma dessas “imbecilizações” que vêm ao correr do tempo
conquistando adeptos à força da insistência repetitiva e da criação de certo modismo que
corrompe o intelecto pelo medo de contrariar e ser considerado um elemento estranho à
intelligentzia estabelecida.

16
CARVALHO, Olavo de. O imbecil coletivo I. 2ª ed. São Paulo: É Realizações, 2006, p. 48.
17
Op. Cit., p. 49.
18
Op. Cit., p. 65.
19
Op. Cit., p. 94.
Essa e outras tolices são alardeadas aos quatro cantos por indivíduos que, conforme
o ditado popular “ouviram o galo cantar, mas não sabem onde” (sic). Hodiernamente
autores do calibre de Étienne Gilson e Thomas E. Woods Júnior já demonstraram os
contributos filosóficos e científicosque a instituição em destaque prestou à história da
humanidade. 20
Stanley Jaki tem disseminado a tese, amplamente comprovável por indicações
históricas, de que, “longe de impedir o desenvolvimento da ciência, a doutrina cristã
contribuiu para torná-la possível”. Segundo o autor a concepção cristã e também judaica
concebe Deus e sua criação como uma “entidade racional e ordenada”. Na Religião judaico
– cristã a natureza é descrita como criada por Deus mediante o estabelecimento de uma
ordem imutável que possibilita ao homem prever os fatos naturais e descobrir suas leis
regentes. Por isso não teria sido por mera coincidência que o surgimento da Ciência como
campo de pesquisa e desafio intelectual teve seu surgimento em um ambiente católico.
Certas ideias fundamentais do Cristianismo foram imprescindíveis para o surgimento do
pensamento científico. De outra banda, culturas diversas estavam desprovidas dessa
concepção teológico – filosófica de um mundo regido por leis racionais imutáveis e
identificáveis. Essas outras culturas, marcadas pelo politeísmo, panteísmo, animismo e pela
divinização da própria natureza e das coisas obstaculizavam o desenvolvimento da Ciência.
Na obra “Science and Creation”, Jaki estuda “sete grandes culturas” (árabe, babilônica,
chinesa, egípcia, grega, hindu e maia) e demonstra que a Ciência em todas elas foi
natimorta. A explicação para tal ocorrência estaria nas concepções de universo que
dominavam essas culturas. Em todas havia a ausência de um Criador que teria dotado sua
criação de “leis físicas consistentes”. Muito ao reverso, em tais culturas o universo seria
“como um gigantesco organismo, dominado por um panteão de divindades e destinado a
passar pelos intermináveis ciclos do nascimento, da morte e do renascimento, o que tornava
impossível o desenvolvimento da ciência”. O animismo incrustado nessas culturas antigas,
que confundia as coisas do mundo com a própria divindade, teve o efeito de entravar o
desenvolvimento científico, vez que impedia a concepção da “ideia de leis naturais
constantes”. Ora, se as coisas são Deus e Deus é as coisas, torna-se inviável pensar em
20
Cf. GILSON, Étienne. O espírito da filosofia medieval. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes,2006, passim. IDEM. A filosofia na idade média. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes,
2001, passim. WOODS JÚNIOR, Thomas E. O que a civilização ocidental deve à Igreja Católica. 2ª ed.
Trad. Maria José Figueiredo. Lisboa: Alêthea, 2010, passim.
identificar leis naturais, já que um deus pode muito bem alterar tudo que quiser da forma
que bem lhe aprouver. Esse não é um clima muito incentivador para a atividade científica
que pretende descobrir leis, prever, explicar e até dominar fenômenos naturais. No nível do
pensamento teológico animista “as coisas criadas tinham pensamento próprio e vontade
própria, um ponto de vista que, na prática, excluía a possibilidade de se considerar que
funcionassem de acordo com padrões regulares e previamente fixados”. Com o advento do
Cristianismo, afirmando a divindade somente do Pai, do Filho e do Espírito Santo, três
pessoas em um único Deus, diferente da realidade criada, lograva-se evitar qualquer espécie
de panteísmo, abrindo espaço finalmente para uma visão do universo “como um domínio
de ordem e previsibilidade”. Mesmo no berço da intelectualidade humana da história
antiga, na Grécia, ainda não se obteve um desenvolvimento de algo que se pudesse chamar
de Ciência. Embora, segundo Jaki, tenham sido os gregos aqueles que mais se aproximaram
disso, não chegaram a atingir esse grau de desenvolvimento. Isso porque também atribuíam
propósitos conscientes à matéria e ao cosmo. Aristóteles, por exemplo, afirmava que os
astros realizavam movimentos circulares porque gostavam desse tipo de movimentação.
Para o progresso da Ciência, tal como a entendemos hoje, foi necessário, segundo Jaki, que
21
os Escolásticos promovessem à “despersonalização da natureza” na Idade Média
Clássica. É fato que ao longo da história houve contributos de cientistas islâmicos, mas,
segundo Jaki, tal se deu “apesar do Islamismo e não por causa dele”. Efetivamente a
autonomia de Alá que não se autolimitaria nem mesmo pelas leis naturais por ele
estabelecidas, torna-se hostil à concepção que admite a “existência de leis físicas
consistentes” a serem objeto de uma atividade tipicamente científica. Já o Catolicismo, ao
estabelecer o conceito de “milagre”, apesar de admitir uma excepcional intervenção
sobrenatural daquele que é onipotente, só vem reforçar a existência de leis naturais
invariáveis e determináveis, já que o “milagre” pressupõe exatamente isso, sendo
apresentado como um fenômeno “invulgar”. Aliás, somente é possível conceber um
“milagre” num mundo naturalmente ordenado, onde se possa identificar aquilo que foge à
ordem, que a altera de forma excepcional e inesperada. Do contrário, nada poderia ser

21
Segundo Woods Júnior, foi no período patrístico que a filosofia cristã iniciou “à desanimação da natureza,
ou seja, ao processo de eliminação de toda e qualquer sugestão de que os corpos celestes fossem seres vivos,
de que fossem inteligências, ou de que fossem capazes de operar na ausência de um motor de natureza
espiritual”. Enfim, (...) “para a ciência poder nascer, era necessário desanimar a natureza”. WOODS JÚNIOR,
Thomas E. Op. Cit., p. 103.
tomado como “milagre”, já que o mundo não seria regido por leis racionais pré –
estabelecidas, mas seria mutável de acordo com os apetites de uma ou várias divindades
22
presentes nas coisas ou na natureza. De outra banda, a noção de “milagre”, no sentido
Bíblico, é a de “uma intervenção graciosa, visível e intencional de Deus no mundo, com
múltiplos propósitos”, de forma que não constitui o Sagrado em si mesmo, mas consiste em
“um sinal que aponta para ele”. 23 O “milagre” como um sinal de Deus e não como Deus em
si, deixa o campo aberto para o estudo científico dos fenômenos naturais regidos por leis
racionais e constantes e até mesmo para o estudo e a investigação dos fatos aos quais se
atribui correta ou incorretamente a qualidade de “milagre”, tal como se vê nos processos
canônicos da Igreja Católica para beatificação, santificação e reconhecimento de fatos
milagrosos. Como se vê, há um imbricamento entre o conceito de milagre e o de Ciência. A
concepção da ideia de “milagre” possibilita o surgimento da pesquisa científica e esta é o
caminho utilizado para apurar se num caso concreto submetido à investigação houve ou não
um verdadeiro milagre.
O Cristianismo, manifestado no Catolicismo, rompe com a identificação
Deus/Natureza, posteriormente retomada por Espinosa no famoso adágio, “Deus sive
24
natura” (“Deus ou Natureza). Com esse rompimento, destaca-se a transcendência divina,
colocando o Criador para muito além da Sua criação, “da qual Se distingue em absoluto”.
Deus não se encontra então em um lugar fisicamente determinável e não anima os entes
criados, como ocorre com as divindades naturalizadas do animismo. “É esse atributo que
torna possível a emergência da ciência e o desenvolvimento da ideia de leis regulares da
natureza, dado que priva a natureza material de atributos divinos”. Não possuindo os entes
do mundo criado vontade própria, viabiliza-se a concepção de sua conformação a “padrões
regulares de comportamento”. 25
É claro que não se deve olvidar que a doutrina de Guilherme de Ockham acabou
dando ênfase a uma “vontade absoluta de Deus” em um nível que em nada contribuiu para

22
WOODS JÚNIOR, Thomas E. Op. Cit., p. 84 – 88. Ver também a obra original de Jaki: JAKI, Stanley L.
Science and Criation: from eternal cicles to an oscillating universe. Edimburgo: Scottish Academic Press,
1986, passim.
23
CHAIJ, Enrique. Ainda existe esperança. Trad. Fernanda Caroline de Andrade Souza. Tatuí: Casa
Publicadora Brasileira, 2010, p. 68.
24
Cf. ESPINOSA, Baruch de. Pensamentos Metafísicos. Trad. Marilena de Souza Chauí. São Paulo: Nova
Cultural, 2004, p. 76.
25
WOODS JÚNIOR, Thomas E. Op. Cit., p. 238.
26
“o desenvolvimento da Ciência”. Ele levou a efeito uma distinção clara entre Deus com
sua onipotência e a multiplicidade de indivíduos, dentre os quais não haveria nenhum liame
ou laço além daquele que pode ser indicado como “o puro ato da vontade divina criadora,
racionalmente indecifrável”. Ockham concebe o mundo como um “conjunto de elementos
individuais, sem nenhum laço verdadeiro entre si e não ordenáveis em termos de natureza
ou essência”. Tudo isso leva a consequências que são bastante impróprias à criação de um
ambiente confortável para o desenvolvimento da Ciência: ao rejeitar o universal como
objeto do estudo científico, optando pelo “primado do individual”, praticamente afasta o
intento tão caro à Ciência de identificar leis universais. Outra consequência é a de que
qualquer sistema de causas necessárias e ordenadas é abolido, cedendo para a concepção de
um “universo fragmentado em inúmeros indivíduos isolados, absolutamente contingentes
27
porque dependentes da livre escolha divina”. Até mesmo no campo da Ética, Ockham
propicia certo germe de relativismo, ensinando que “o valor moral dos atos humanos
procede inteiramente da vontade soberana , irrestrita, de Deus”. Este, com seu poder
absoluto, “poderia ordenar o adultério ou o furto, e se o fizesse tais atos não só deixariam
28
de ser pecaminosos, como também se tornariam obrigatórios”. Não obstante, esse tipo de
convicção constitui uma exceção heterodoxa no bojo do pensamento cristão. Jaki chama a
atenção para o escólio de São Tomás de Aquino que, de posse da orientação aristotélica da
virtude da mediania, consegue estabelecer um “ponto de equilíbrio entre a liberdade que
Deus tem de criar qualquer tipo de universo que Lhe aprouver e a Sua consistência na
governação do universo que efetivamente criou”. Assim era importante descobrir qual
universo Deus efetivamente criou a fim de evitar concepções fantasiosas ou abstratas sobre
a natureza desse mesmo universo. Portanto, tendo em vista a absoluta “liberdade criativa de
Deus”, o universo não “tinha de ser de maneira nenhuma”, mas o foi conforme a vontade
do Criador, tornando-se então objeto do estudo humano através da Ciência a descoberta da
natureza desse universo efetivamente criado. Seu conhecimento é acessível ao homem
29
porque ele foi moldado de forma “racional, previsível e inteligível”.

26
Op. Cit., p. 89.
27
REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História da Filosofia – Patrística e Escolástica. Volume 2. Trad. Ivo
Storniolo. São Paulo: Paulus, 2003, p. 299 – 300.
28
KENNY, Anthony. Uma nova história da filosofia ocidental – Filosofia Medieval. Volume II. Trad. Carlos
Bárbaro. São Paulo: Loyola, 2008, p. 309 – 310.
29
Apud, WOODS JÚNIOR, Thomas E. Op. Cit., p. 89.
Pode-se então afirmar que “foi justamente esse sentido da racionalidade e da
previsibilidade do mundo físico que proporcionou aos cientistas do começo da era moderna
30
a confiança filosófica que lhes permitiu proceder aos referidos estudos científicos”. De
acordo com Haffner, somente nesse contexto de matriz conceitual, ensejado pela doutrina
católico – cristã, poderia a Ciência viabilizar-se e promover o seu “desenvolvimento
sustentado”. 31
Goldstein apresenta o pensamento de Abelardo de Bath que enfatiza que a
humanidade do homem consiste em sua apreciação racional do universo criado por Deus
32
para que assim pudesse ser apreciado. Também menciona outro filósofo da Igreja
Católica, Guilherme de Conches, o qual compartilhava da mesma opinião, defendendo que
de “forma geral, a estrutura da natureza que Deus criou permite explicar os fenômenos que
observamos sem recorrer a explicações sobrenaturais”. 33
Por derradeiro, é preciso salientar que o ambiente propício para o desenvolvimento
científico ocasionado pela emergência do pensamento católico – cristão, mediante o
rompimento da identidade Deus/Natureza, não deve implicar em uma relação desrespeitosa
do homem para com o mundo natural. Conforme bem enfatiza a Campanha da Fraternidade
do ano de 2011, intitulada “A criação geme em dores de parto” (Rm 8,22), a Natureza
persevera na vida como criação divina, o que somente pode levar à conclusão de que o
Deus cristão é um “Deus da Vida”. A Ciência, com seus aparatos e recursos deve servir para
a ereção de uma “ética de cuidado” e não de exploração e dominação egoísta e
desrespeitosa para com a criação, as criaturas e a própria vida neste planeta. Neste sentido,
Ciência e Religião podem unir-se no nobre desiderato de conhecer as leis naturais,
desvendando seu funcionamento e interagindo com a obra criativa de Deus, preservando a
vida e conquistando um conhecimento, ainda que limitado, da racionalidade divina que
34
concomitantemente se oculta e se mostra na Natureza.
Certamente, um paradigma a ser seguido, não somente no campo do respeito pela
Natureza como criação divina, mas também no exemplo de humildade e fraternidade

30
Op. Cit., p. 90.
31
HAFFNER, Paul. Criation and Scientific Creativity. Front Royal: Christendom Press, 1991, p. 40.
32
GOLDSTEIN, Thomas. Dawn and Modern Science: from the ancient greeks to the renaissance. Nova York:
Da Capo Press, 1995, p. 88.
33
Op. Cit., p. 82.
34
MANUAL da Campanha da Fraternidade 2011 – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Texto – Base.
Brasília: Edições CNBB, 2010, p. 10 – 133.
insólito, é o de São Francisco de Assis, que soube levar o amor às criaturas e à humanidade
35
por intermédio da fé às mais elevadas alturas. É com essa noção de amor e respeito que
devem Ciência e Religião unir-se, desvendando, no limite das capacidades humanas, os
mistérios do mundo natural.

REFERÊNCIAS

CARVALHO, Olavo de. O imbecil coletivo I. 2ª ed. São Paulo: É Realizações, 2006.

CHAIJ, Enrique. Ainda existe esperança. Trad. Fernanda Caroline de Andrade Souza.
Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2010.

CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. Trad. Almiro Pisetta. São Paulo: Mundo Cristão, 2008.

COMTE, Auguste. Catecismo Positivista. Trad. Miguel Lemos. São Paulo: Nova Cultural,
2005.

DAWKINS, Richard. Deus um delírio. Trad. Fernanda Ravagnani. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007.

DRYDEN, John. La conquista de Granada por los españoles. Granada: Universidad de


Granada, 2010.

35
Op. Cit., p. 55 – 56. O santo supra mencionado, como não poderia deixar de ser, é também apontado como
paradigma na Campanha da Fraternidade de 2011. Para aprofundar o estudo da vida de São Francisco de
Assis: SPOTO, Donald. Francisco de Assis – O Santo Relutante. Trad. S. Duarte. Rio de Janeiro: Objetiva,
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