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PARTE I

PERSEGUIÇÃO
IMPLACÁVEL

VOLUME I

Autor
Orisval Brito

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Índice

Nota do Autor.............................................................. 5

Cap. 1 – New York, 1996........................................... 7

Cap. 2 – O Mal que Chega sem Ser Notado........... 11

Cap. 3 – A Briga.......................................................... 19

Cap. 4 – Envolvido...................................................... 25

Cap. 5 – Mistério......................................................... 29

Cap. 6 – O Medo.......................................................... 33

Cap. 7 – A Yacusa Acuada.......................................... 39

Cap. 8 – O Detetive Filmório...................................... 45

Cap. 9 – A Prostituta Loura......................................... 53

Cap. 10 – A Polícia..................................................... 63

Cap. 11 – Envolvendo a Yacusa.................................. 71

Cap. 12 – Visitando a Yacusa...................................... 81

Cap. 13 – Filmório Vai Fundo..................................... 89

Cap. 14 – Uma Decisão Infeliz.................................... 97

Cap. 15 – Mogkull Abre a Porta.................................. 103

Cap. 16 – Novamente o Medo Irracional................... 113

Cap. 17 – Um Visitante Letal....................................... 121

Cap. 18 – Complicação com a Polícia......................... 127

Cap. 19 – Mais Encrenca.............................................. 135

Cap. 20 – Insólita Intrusão....................................... 147

Cap. 21 – Encontrando Um Mestre........................ 155

Cap. 22 – Sanshiro Desconfiado............................. 159

Cap. 23 – O Urso e o Lobo...................................... 163

Cap. 24 – Pânico...................................................... 169

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Cap. 25 – Terror....................................................... 179

À Guisa de Epílogo.................................................. 189

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Cap. 1 - New York, 1996

Noite fria de inverno. Nas vielas escuras e perigosas, mendigos acendiam fogo
em galões de óleo para tentar amenizar o sofrimento de uma temperatura a oito graus
abaixo de zero. E eram apenas as dezenove horas. Ia ser uma noite de arrepiar na
expressão da palavra.
Nas docas um navio cargueiro tinha aportado fazia menos de duas horas. Seu
aspecto era triste. Velho, com a ferrugem carcomendo grande parte de sua estrutura, a
pintura escurecida pelo tempo, era, enfim, um navio doente. O gigante cansado esperava
pachorrentamente enquanto os homens suados, broncos e taurinos trabalhavam
afanadamente para descarregá-lo de sua carga de grãos, tabaco e quinquilharias vindos
das mais variadas partes do mundo. À medida, contudo, que a noite avançava, a
movimentação diminuía e não demorou tudo estava finalmente envolto naquela calma
do cais, muito semelhante à calma do cemitério. Somente uma fraca vigilância sobre o
grande tombadilho quebrava a monotonia pesada do silêncio e da escuridão fria que a
tudo envolvia e, à sombra dos cuidados humanos, o tráfico praticado em todos os portos
do mundo realizava seus negócios ao abrigo da Lei. Ali, como em qualquer parte do
mundo, tudo corria na costumeira malandragem dos que agem à sombra da Justiça.
Na gigantesca cidade o frenesi da agitação noturna não devia nada àquele sob a
luz do sol. Pessoas corriam em busca de algo, sempre apressadas, sempre indiferentes
ao natural, sempre indiferentes até mesmo aos que passavam à sua volta. Nos hospitais
as pessoas nasciam e morriam, umas em silêncio, outras entre gemidos e estertores de
agonia. Mas a morte também ceifava vidas sob os viadutos fétidos, azedos, mal
iluminados. Algumas, sob o comando de doenças que bem poderiam ter sido curadas se
entre os humanos ainda houvesse humanidade. Outras, sob a lâmina fria de um
assassino que se comprazia em olhar nos olhos agoniados da vítima, onde a luz da vida
apagava-se de mansinho. Aqui, alguém estendia uma mão trêmula para outro alguém
que lhe ignorava a fome, o sofrimento e a dor, mergulhada egoistamente em seus
próprios problemas. Ali adiante, um garçom cheio de mesuras puxava a cadeira para a
dama coberta de jóias sentar-se, acompanhada de um cavalheiro cujas roupas diziam
bem de suas posses financeiras e, o seu olhar, de suas intenções libidinosas. Era a vida
na sua mais rude, mais mesquinha e mais incongruente forma de se manifestar em ação
entre as pessoas que, aos poucos, neste último milênio, tinham descido as escadas da
bestialidade travestidas de civilizadas.
Na avenida mais iluminada e mais movimentada da megalópole as luzes
multicores, esfuziantes, feéricas, caiam sobre Alfa Romeo, Mercedes e limusines
deslumbrantes. No cais, contudo, a luz amarelada dos postes iluminava ruas desertas,
calmas, silenciosas e a carroceria melancólica de algum ônibus carregando os menos
aquinhoados de Pluto.
Mas, em que pese a quietude aparente do cais, nem tudo estava realmente calmo
no gigantesco monstro de ferro. No porão, no escuro de um container, algo se agitou,
como se despertasse de um longo sono. Era um movimento sutil, leve, jamais notado por
olhos humanos porque a escuridão ali dentro era absoluta. Nenhuma luz penetrava no
local. Nem mesmo um fóton. Tudo era escuridão...
New York fervilhava de gente inocente que se ignorava, cada um
cuidando de si e preocupado com seus próprios problemas. Uma cidade com
milhões de solitários. Solitários que se esbarravam uns nos outros e mal tinham
tempo de murmurar um “excuse me”, quando o faziam. Solitários onde o palavrão
era a vírgula em cada frase pronunciada. Uma cidade de pessoas caladas,
fechadas, desconfiadas e frias, tão frias quanto o tempo gélido que, no inverno,
os envolvia, voltadas unicamente para a luta pelo dólar. Dólar do qual a vida de

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cada um dependia. Enfim, New York, uma cidade criada tijolo a tijolo por
humanos, mas paradoxalmente desumana. Em cada esquina um perigo, em cada
noite mil mortos incógnitos que não despertavam qualquer piedade nos
sobreviventes. Uma cidade onde todos os povos viviam lado a lado, cruzavam-
se apressadamente compondo uma gigantesca mole humana que se movia
rítmica e apressadamente, cada qual correndo atrás de seu destino e de sua vida
de minhoca, literalmente de minhoca, pois a esmagadora maioria não tinha como
pensar senão no imediato, no aqui-e-agora e no correr atrás do supérfluo, porque
só pela posse do supérfluo era possível ser-se alguém entre os ninguéns com os
quais se cruzava a cada segundo, dia e noite, na assustadora megalópole. Olhos
desconfiados, olhos medrosos, olhos odiosos, olhos desesperançados, olhos
preocupados, olhos ariscos, olhos perspicazes, olhos buscando facilidades para
seu dono dar o bote em algo pertencente a algum descuidado, olhos vigilantes
para pegar os olhos perspicazes... enfim, olhos, milhares de olhos em rostos de
todas as tonalidades de cores de pele e de feitios de faces.
New York, enfim, uma grande cidade cosmopolita. Uma cidade que recebia de
tudo vindo de todas as partes do mundo civilizado e não civilizado. Desde raríssimas
obras de artes até objetos satânicos e medonhos...
No porão do navio, no escuro do container, algo moveu-se mais
intensamente, porém devagar. Uma sombra dentro da tremenda escuridão. Não
tinha corpo, não tinha forma, não tinha substância, mas flutuava no exíguo
espaço que lhe cabia ali dentro. O aperto, o ar pesado e fétido, a escuridão de
breu, nada disto parecia incomodar aquilo que somente flutuava sem consciência
do local onde se encontrava. Naquele exato momento um marinheiro desceu as
escadas e observou o porão à fraca luz do teto. Aquilo dentro da caixa de madeira
agitou-se e girou sobre si mesmo, chocando-se sem som contra os limites
impostos pela madeira escura. Rodou, turbilhonou, encolheu-se e se estirou,
frenético...
Aos olhos do marujo, tudo parecia quieto, calmo, sem alteração. No
entanto, o homem sentia o coração disparado e seus pelos se arrepiavam de
medo. Um medo que o avassalara tão logo pisara o primeiro degrau da comprida
escada que descia para o sombrio porão. Um medo que parecia ter substância;
parecia estar palpável, em todo lugar, impregnando do degrau onde seu pé
gelado pisava, até o teto de ferro sobre sua cabeça. Por que? Ele se forçou a descer
mais dois degraus, mas suas pernas se endureceram e a garganta secou. Era
medo, muito medo. E atrás do medo a percepção de um alerta subliminar em sua
consciência. Era uma experiência fantástica, nunca antes vivenciada por ele. Não
algo concreto, somente uma indefinível sensação de urgência. Uma consciência
de que estava em perigo. Não estava armado e seu corpo volumoso, de puros
músculos, não parecia mais inspirar-lhe confiança. O homem optou por dar
meia-volta e subir correndo os poucos degraus da escada que tinha tentado
descer. Lá no tombadilho, sob a luz dos faróis que, agora acesos, tornavam o cais
claro como o dia, sentiu-se melhor, mas não teve coragem de contar a seu
parceiro de sentinela que tivera aquele surto de medo irracional. Seria gozado
pelo resto de seus dias no navio. Preferiu calar.

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Cap. 2 – O Mal que Chega Sem Ser Notado

Nada tinha tido destaque no dia da grande metrópole, a não ser pelo contrato de
compra e venda assinado por um homem de circunspecta distinção. Vestia-se como um
inglês e falava como se fosse natural de Londres, mas seu inglês tinha algo que recordava
o falar do século XIX. Era polido e discreto, porém sua presença impunha respeito e
obediência. Sua roupa, ainda que de esmerado talhe, lembrava algo do lendário Sherlock
Holmes. Ele pagou com cheque garantido a quantia estipulada pelo velho casarão
situado fora da grandiosa cidade. De táxi, foi até o local onde, decrépito e de mau
aspecto, sobressaía o casarão estilo século XVIII, embora ainda em pé e sólido. Andou
em volta dele estudando-o cuidadosamente, sem demonstrar nem interesse nem
desinteresse. Com o molho de chaves com que abrira o velho e enferrujado portão de
barras de latão, escolheu a que se adaptou à escura e feia fechadura da porta de entrada
e abriu-a com alguma dificuldade. Poeira, mau cheiro de mofo velho, escadas de
madeira rangendo a cada passo que dava sobre elas. Andou o velho casarão todo até que
descobriu a entrada do porão. Foi lá em baixo. Escuro, cheio de ratos, baratas e insetos
rastejantes de todas as espécies. O homem pisava neles sem se incomodar em os matar.
Não mexeu em nada. Apenas mediu em passadas a largura e o comprimento do porão.
Deu-se por satisfeito e subiu. Trancou tudo e foi direto a uma empreiteira e prestadora
de serviços onde contratou um trabalho de pintura e restauração. Para espanto do
contratado, ele só queria colocar em ordem, pintar os móveis antigos e substituí-los por
outros, modernos, no grande salão de entrada e na sala de jantar. O restante do prédio
deveria ficar tal como estava. Ah, sim, o jardim deveria ser melhorado e tratado. O
estranho não aceitou nenhum empregado fixo, oferecido pela empresa, e impôs que os
trabalhos terminassem pontualmente às 16:30h, nem um minuto a mais. Os homens
deveriam estar fora do perímetro dos muros antes das 17:30h e sem questionamentos. O
não cumprimento desta exigência era motivo para a suspensão do contrato e o
pagamento de uma multa de valor respeitável.
Esquisitices eram comuns na capital do mundo...
No dia seguinte, pela manhã cedo, o mesmo homem que assinara o contrato de
compra e venda do casarão chegou à aduana. Uma construção nova nos terrenos onde
findava a Shore Blvd, por onde se chegava através da 20th Avenue. Conversou
demoradamente com o Chefe da Seção de Fiscalização. Então, ambos desceram até o
porão do navio. O Chefe da Seção de Fiscalização estranhamente não se incomodou
quando o homem abriu o esquife e o examinou. Apenas aguardou cerimoniosamente à
distância. O estranho pareceu conferir o conteúdo no esquife e o fechou. O Chefe da
Seção de Fiscalização ficou feliz por não se ter aproximado daquilo. De onde estava
podia sentir o fétido odor que o caixão exalava. “O desgraçado ali dentro deve ter apodrecido
há muito tempo. Ainda bem que o esquife parece ser bem selado, senão...”. Ele não pôde ver que
o visitante deixara o esquife destrancado, quando fez descer a tampa de madeira negra
e brilhante. E duas horas depois já não se recordava do estranho e de sua mais estranha
ainda, visita.
Um dia depois daquele acontecimento insólito na aduana, uma academia
de lutas marciais, num casarão próximo da Triboro Bridge, na Astoria Bvld,
acabava de encerrar suas atividades oficiais. Nos dojôs permaneciam somente os
alunos mais adiantados que continuavam treinando e praticando os novos golpes
aprendidos, buscando o máximo de perfeição em suas execuções. Entre eles
havia um japonês recém-chegado de Yokohama. Exceto pela corpulência, era
extremamente semelhante a Yushio-Sao, um outro oriental que não fazia idéia da
existência deste sósia. No entanto, este conterrâneo se envolveria na vida de

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Yushio e lhe daria muitas dores de cabeça em pouco tempo. Um tempo que
duraria muito...
O nipônico foi o último a sair da academia. A rua estava movimentada e
colorida pelo brilho dos néons. Furikano-san caminhava apressadamente,
satisfeito consigo mesmo. Vivia só em NY, pois chegara à cidade fazia somente
quatro meses, mas já se movimentava por suas ruas como se tivesse nascido
nelas. Tinha um bom emprego de vendedor em uma empresa de porte nacional
e o salário era muito bom. Pretendia mandar buscar seus pais e sua irmã, tão logo
estivesse mais firme. Estava satisfeito com a vida.
Ia perdido em seus pensamentos, pela 33rd St, quando sentiu uma pesada
mão cair-lhe sobre o ombro, obrigando-o a parar. Surpreso, olhou o homem que
o fitava sorrindo. Mas os olhos do estranho pareciam muito amarelos e felinos, o
que destoava de seu semblante simpático. O estranho fez-lhe sinal para que o
seguisse e se embrenhou por uma viela escura e pouco freqüentada. Confiante
em si mesmo, o japonês seguiu o estranho. Fosse quem fosse, se tentasse atacá-lo
teria uma surpresa e tanto. Quando a escuridão se fez mais intensa na viela, o
homem parou e se voltou para o nipônico. O sorriso que este começara a esboçar
na face desapareceu. Seus olhos se arregalaram e ele tentou correr, mas uma
poderosa manopla de dedos anormalmente grandes agarrou-o pelo pescoço...
Dois dias depois do incidente que não ficou conhecido de ninguém, no cais do
porto, um oriental espadaúdo muito bem vestido com terno sob medida, sapatos de
couro de crocodilo, pegador de gravata de ouro com um pequeno diamante puríssimo
incrustado nele, segurando uma pasta 007 apresentou-se como o advogado Otaka
Furikano, da empresa Importação e Exportação Romay Nihon. Houve uma troca de palavras
em voz baixa com o Chefe da Seção de Fiscalização. Depois, ambos foram à Seção de
Desembaraço Alfandegário e o advogado foi levado para dentro do escritório do gerente
da aduana. Uma hora depois, saiu de lá, entrou na mercedes e sumiu. A misteriosa pasta
preta havia desaparecido de sua mão...
Noite.
Do gigantesco prédio de mais de trinta andares, no Ditmars Bvld, desceu
o engenheiro elétrico Yushio-Sao. Trinta e quatro anos, alto, esguio, atlético,
olhos amendoados, cabelos lisos, de fios grossos e muito negros, pele amarela
típica dos orientais, dos quais descendia diretamente. Um homem sem vícios,
calado, gentil em gestos e de sorriso fácil, Yushio-Sao não deixava transparecer o
quanto New York lhe desagradava. Tendo nascido numa pequena vila de
pescadores japoneses e crescido lá até à adolescência, entre os pacíficos e naturais
do lugar, gostava imensamente do aconchego, da camaradagem e da
simplicidade das pessoas que ainda não tinham sido impregnadas pela febre do
consumismo desenfreado. Descendente de samurais, ainda possuía a espada que
pertencera a seu tataravô, o famoso Tareo Kikawa, chefe de um clã que dera
muito trabalho aos invasores do Japão alguns séculos atrás. A ascendência do
samurai citadino tinha sido agitada, com lances obscuros, muitas mortes e muito
sangue. Seus ancestrais cultuavam os antepassados e tinham a proteção de
Sussunda Tengu, o temido Tengu da Magia. A lenda afirma que as pessoas filhas
deste Tengu têm natureza arrogante, são rancorosas e vingativas, mas são muito
inteligentes e líderes natos. Amealham, durante a vida, grande saber e terminam
excelentes mestres de sabedoria na velhice. São pessoas seguras de si, corajosas,
impetuosas e que sempre tendem a se sentir donas da situação, mesmo que todas
as chances estejam aparentemente contra si. Gostam do Oculto e das coisas

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místicas e não costumam apegar-se a nada nem a ninguém, mas quando sentem
amizade ou amor por outrem, geralmente o conservam por toda a vida. Yushio
destoava, contudo, destas características em sua grande maioria. É verdade que
não se apegava muito às coisas e desprezava tudo o que o ocidental valorizava,
principalmente as futilidades como as novidades da área da computação, os
brinquedos motorizados – automóveis de luxo, lanchas, aviões executivos e
outras bobagens que o tempo logo mostrava quão passageiros eram. Também
nunca se voltara para o misticismo ou para assuntos afins. Interessava-se, sim,
pelas Matemáticas. Estas ciências eram sua paixão e seu hobby predileto era a
leitura de aventuras, geralmente refinadas, não aqueles romances destinados ao
consumismo banal, muito a gosto dos norte-americanos. Lia Tareo Kikawa, um
jovem escritor de seu país que sabia descrever com arte as belezas de um jardim,
as doçuras do andar de uma gueixa ou a variação misteriosa do olhar apaixonado
de uma jovem pudica. Mas era um homem que tinha algumas das mais fortes
qualidades que se dizia serem doadas por Sussunda Tengu. Era corajoso até à
temeridade, desprendido e arrogante. Sua natureza oriental voltava-se para o
cultivo dos bonsais e era exímio nesta arte que exigia paciência e persistência.
Jamais tinha freqüentado os locais onde mulheres se exibiam quase totalmente
nuas, dançando lubricamente em torno de uma haste de aço, enquanto os
freqüentadores babavam de excitação e lhes colocavam dólares nas calcinhas.
Achava aquilo tão bárbaro que se admirava profundamente de que, na cidade
mais famoso do mundo, tal coisa ainda fosse cultuada como algo civilizado.
Yushio estava há oito meses na grande metrópole norte-americana, mas
continuava sozinho. As mulheres do local, mesmo ali, em NY, onde havia uma
grande mistura de raças, não o agradavam. Aquela história de que as louras
norte-americanas caiam nos braços dos homens facilmente, era só mesmo nas
fitas de Hollywood. Na realidade elas eram esnobes, metidas, desconfiadas,
arredias, independentes demais para o gosto de um japonês. E parece que viviam
para casar, separar-se e aporrinhar a vida dos ex-maridos com pensões que lhes
tiravam até as cuecas. O oriental encarava com muito cuidado as louras mulheres
ocidentais. Na realidade, elas não faziam o seu tipo. Eram por demais mandonas
e por demais cheias de regalias inconcebíveis para os de sua raça. Os homens
norte-americanos, que pareciam viver apenas com a cabeça entre as pernas,
mendigavam os favores de suas fêmeas e tremiam na base depois de os
conseguir, pois a qualquer momento poderiam ter suas vidas enrascadas por
uma espertinha louca para ganhar uma vida folgada às custas do triângulo
púbico que traziam entre as coxas. Yushio não aceitava as investidas das
mulheres ocidentais e fugia literalmente delas, evitando mesmo ficar mais de dez
minutos a sós com qualquer uma que fosse desta raça. Sempre dava um jeito de
haver mais gente presente entre eles. Quando sentia necessidade de uma fêmea,
buscava-a entre os de sua raça, no bairro japonês. Embora sentisse que elas eram
um arremedo das verdadeiras gueixas, eram, ainda, melhores do que as do lugar.
Morava sozinho. Seu apartamento, na Crescent Street, era pequeno, mas
muito bem cuidado por uma japonesa idosa. Ali ele se via num recanto natural e
a saudade até que diminuía em seu coração. Vasos com bonsais estavam
cuidadosa e artisticamente espalhados pelo ambiente e a tudo emprestavam uma
agradável atmosfera de mistério e paz, da qual tanto gostava. Fazia as refeições,
preparadas por uma gueixa de aluguel e por ela mesma servida, sentado no chão,

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e comia com os indefectíveis hashi. Jamais entrava em seu apartamento calçando
os sapatos. Tirava-os e os trazia nas mãos até o sapateiro, na área de serviço, onde
os colocava na ordem que estabelecera. Ali, tudo era escrupulosamente limpo e
a iluminação muito bem calculada de modo a fazer que a luz, tanto natural
quanto artificial, estivesse dentro da quantidade necessária ao conforto da visão
e à saúde do aparelho óptico. Em sua geladeira jamais entrara qualquer bebida
artificial e tinha especial aversão à Coca-Cola ou Pepsi-Cola. Nunca se permitira
comer os horrorosos hamburggers e os terríveis baconeggs pelos quais os norte-
americanos literalmente davam a vida. Pizza, nem pensar. Batata frita era um
veneno, aos seus olhos. Adorava o sushi, o sashimi, o yaksoba e não dispensava
um saquê vez que outra antes da refeição. Fazia o ritual do chá com a sua
empregada todas as sextas-feiras, à noite. Era Budista e não dispensava os rituais
do templo no bairro japonês, aos domingos. Não praticava o O-Chikara, a
religião de seus ancestrais. Os rituais para culto dos ancestrais lhe pareciam por
demais bárbaros e os ritos de invocação não lhe agradavam de modo algum.
Assistira a dois rituais, quando jovem púbere, na companhia de seus pais e
sentira medo, muito medo. Não concordava com as oferendas de sangue para os
exigentes Tengus. Flores, perfumes, frutas, vá lá. Mas sangue? Nunca. Yushio
não gostava de ver mortes. Nem mesmo de um animal. Nem mesmo para ofertar
aos temidos Tengus.
Yushio-Sao não era rico e há muito deixara de lado seus sonhos de vir a
ser um novo Bruce Lee no cinema. Além de não conhecer nada do wushu chinês,
não era de modo algum apegado à violência das artes marciais. É lógico que,
quando muito novo, com menos de 10 anos, iniciara a prática de lutas. Chegara
a quinto dan em Aiki-dô, ao grau de shidoshi em Buguei, a velha arte de combate
dos samurais, e sétimo dan em Karatê-dô, mas aquele fogo se extinguira ainda
quando tinha vinte e seis anos. Seus interesses voltaram-se para a vida objetiva,
prática, moderna, a vida da concorrência acirrada, onde quem não é mais que
bom nem mesmo sobrevive. Doutorara-se em engenharia elétrica, entrara para a
Matsuhara Empreendimentos Eletrônicos e fora designado para vir implantar e
desenvolver os escritórios da empresa nos Estados Unidos da América.
Mikio Taisho era a dona do coração que havia ficado empanado pelas
lágrimas de saudade na longínqua terra do sol nascente. Yushio-Sao lembrava-
se sempre dos olhos amendoados da bela japonesa e uma tristeza nostálgica o
invadia. Correspondia-se regularmente com ela e estava quase capitulando na
insistência da moça em vir encontrar-se com ele ali e ali mesmo casarem-se.
Yushio não desejava ter filhos norte-americanos. O “way of life” daquele povo
bárbaro não lhe agradava e não era uma herança que gostaria de dar a seu filho.
O oriental esperou muito tempo por um táxi. Aquilo era outro inferno na
grande cidade. Exatamente ao contrário do que costumeiramente mostravam as
fitas cinematográficas, apanhar um táxi em New York era uma façanha heróica.
Ou estavam sempre lotados, ou estavam indo atender a um chamado em algum
lugar na grande metrópole. Os taxistas indianos, os siks, eram os mais abundantes
e não tinham preconceitos quanto aos passageiros, mas seus táxis estavam quase
sempre ocupados nas horas de rush. Os sul-americanos vinham em segundo
lugar. Então, era preciso esperar que um indiano ou um sul-americano estivesse
atrás da direção e rezar para que o seu táxi estivesse vazio. Desistiu. Pôs-se a
andar, calando no íntimo a grande irritação que lhe assomava ao peito. Mãos nos

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bolsos da elegante e caríssima calça de algodão com lã, sobretudo grosso para
proteger-se do frio e do vento cortante, Yushio andou por mais de duas horas,
vencendo a mole humana sem mesmo olhar os rostos com os quais cruzava.
Finalmente enveredou pela 21st, uma ruela muito feia, suja, estreita e mal
freqüentada, mas que encurtava em quase um quilômetro a distância que ainda
tinha a percorrer até chegar ao seu aconchegante apartamento.
Um pequeno morcego passou voando baixo sobre Yushio-san, que ficou olhando
para ele admirado. Como é que ainda podia haver aquele bicho tipicamente de caverna,
na borbulhante e árida New York?

KKK





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