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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA – UFBA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENSINO, FILOSOFIA E HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS –


PPGEFHC
DISCIPLINA: Teorias e Modelos de Ensino e da Aprendizagem
Docente: Prof. Dra. Maria Cristina Penido

Considerações sobre o texto “A dialética da linguagem oral e escrita no desenvolvimento


das funções psíquicas superiores”

Referência:
GERKEN, Carlos Henrique de Souza. A dialética da linguagem oral e escrita no desenvolvimento das
funções psíquicas superiores. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 13, n. 3, jul./set. 2008. p. 549-558.

Este texto-esquema é produto de um esforço conjugado de leitura e apreensão para seminário do


texto de autoria de Carlos H. de Souza Gerken, intitulado “A dialética da linguagem oral e escrita no
desenvolvimento das funções psíquicas superiores”. Como tal, ainda que busquemos um
sequenciamento na argumentação, mesclamos com considerações paralelas, o que pode aproximar o
texto de uma ficha de leitura.

O objetivo do texto é “examinar as contribuições de Vygotsky e Luria relativas à construção de


processos psíquicos superiores” ou “examinar a influência da linguagem oral e escrita no
desenvolvimento dos processos psíquicos superiores a partir dos conceitos de Vygotsky e Luria.

E o que seriam “processos ou funções psíquicas superiores”? Diz respeito à: Atenção voluntária,
Ações conscientemente controladas, Criatividade e Imaginação, Memória, Pensamento, Linguagem e
Formação de conceitos. Para Vygotsky, é através da atividade (ação) que os processos psicológicos
superiores são desenvolvidos. Os processos mentais superiores têm origem em processos sociais!

O autor divide o texto em 3 seções: 1. Linguagem oral e cognição em Vygotsky, 2. Linguagem


escrita e cognição em Luria, e, Considerações finais.

Por que examinar as contribuições de Vygotsky e Luria? Para o autor, os conceitos de Vygotsky e
Luria apresentam riqueza heurística a ser incorporada nas análises dos processos de escolarização e
apropriação da escrita.

Ainda que haja um esforço para explicitar as teorizações de Vygotsky e Luria quanto,
respectivamente, a linguagem oral e a linguagem escrita, encontramos algumas dúvidas e especulamos
um pouco sobre a interpretação do autor sobre Vygotsky e a abordagem psicológica histórico-cultural.
Recorremos a outros autores, como pode ser visto nas referências complementares. E, já acionando uma
delas, citamos: “A linguagem realiza mediação com o outro e a relação da pessoa com ela mesma; a
princípio numa função de regulação e comunicação com o mundo externo frente às atividades sociais,
para posteriormente tornar-se um regulador da própria ação do indivíduo, chegando a transformar-se
em uma ferramenta de diálogo interior.” (PILETTI; ROSSATO, 2013, p.93)

Vygotsky se deteve no exame de processos mentais superiores, tais como a memória, o


pensamento, a linguagem oral e escrita e operações numéricas, a fim de identificar as características
básicas do psiquismo do “homem primitivo”. As suas fontes primeiras foram relatos de pesquisadores,
antropólogos, e de viajantes que tiveram contato direto com “povos primitivos”. A temporalidade dos
estudos de Vygostsky o coloca num cenário de questionamento da antropologia evolucionista e de
surgimento de contra-abordagens como o relativismo cultural.

Vygotsky, segundo Gerken, teria se detido na função psíquica da memória, entendido como o item
de maior relevância na análise dos primitivos. Com base nas considerações do Levi-Bruhl, que será
resgatado por seu parceiro intelectual, Alexander Luria, a memória dos povos primitivos seria concreta e
surpreende por reproduzir os detalhes, os mais miúdos, de fenômenos percebidos diretamente. É o que
Vygotsky chama de memória não mediada, direta. Para este, “o homem primitivo só pode contar com
sua memória direta – ele não possui linguagem escrita. Por isso, frequentemente encontramos uma
forma semelhante de memória primitiva em pessoas analfabetas”. Para Vygotsky, a língua dos
“primitivos”, de povos ágrafos, seria mais tosca, pobre de meios, mas rica de vocabulário, repousando
justamente nas imagens imediatas dos objetos. As palavras do homem primitivo não se diferenciam de
objetos, mas continuam intimamente ligadas às percepções sensoriais imediatas. Daí o impacto que
representaria o aprendizado de um idioma ou a vida a partir dele. O homem primitivo ágrafo reificaria a
percepção por meio de uma linguagem que reflete a realidade, mas não permite uma reflexão sobre a
mesma.

Com base neste eixo, Gerken propõe três questões bem interessantes: 1. Quais as relações
existentes entre a aquisição da linguagem oral e a construção de novas formas mediadas de retenção das
informações do meio ambiente?; 2. Será a linguagem oral suficiente para instaurar uma nova
modalidade de ação que implique em novos processos de retenção das informações?; e, 3. Pode-se supor
que dentro deste modelo exista um momento em que a linguagem oral do homem primitivo não
funcionaria como mediadora de sua relação com o mundo?

Sabemos que, e Gerken reforça isso no texto, que Vygostky enfatiza/foca no enraizamento nos
processos condicionados que se desdobram em novas articulações de totalidades funcionais, que não se
reduzem aos primeiros nem se confundem com os segundos – contrariando o comportamentalismo e o
cognitivismo. Ora, para ele “o comportamento do homem é o produto do desenvolvimento de um
sistema amplo de ligações e relações sociais, formas coletivas de comportamento e cooperação social.” O
que fundamenta a origem “natural” da linguagem é o seu entendimento como uma ferramenta ou
instrumento. A teoria de Vygotsky precisa enraizar-se na natureza e explicar o processo de constituição
do homem, da criação da sociedade e da cultura.

Vygotsky constrói uma teoria sobre a origem histórico-social da linguagem. Há um esforço de


enquadramento, e não nos parece aprisionador, ao contrário, em demonstrar, sob o prisma do
paradigma marxiano, o materialismo histórico, e validá-lo como eixo explicativo da formação da
cognição humana.

Vygotsky e seus colaboradores erigem uma nova concepção de homem para a psicologia.
Entendendo o homem como um ser social e histórico, os processos psicológicos devem ser
compreendidos em sua totalidade e envolvimento.

O conceito de “atividade” é central na teoria histórico-cultural. É ela a unidade de construção da


consciência. E esta é, por sua vez, um sistema de transformação do meio (objetivo e subjetivo) a partir do
uso de instrumento/ferramentas e os signos. Desenvolver, para Vygotsky, é interiorizar instrumentos e
signos. A partir da atividade os processos psicológicos superiores são desenvolvidos. Para Vygotsky, a
criança primeiro aprende e depois se desenvolve. O aprendizado concorre para o desenvolvimento, não
o contrário. Ao contrário de Piaget, para o qual há processos ou estruturas mentais comuns, gerais ao ser
humano, independente da cultura ou da socialização, Vygotsky admite que há processos ontológicos
gerais que dependem da cultura e da socialização. Assim, desenvolvimento cognitivo é conversão de
relações sociais em funções mentais. A educação, socialização, ou aprendizado da cultura é fundamental.
É o próprio processo de humanização. O homem, através das interações, desenvolve-se pelo
aprendizado e se apropria das obras ou do legado socialmente construído, isto é, da cultura material e
intelectual repassada de geração em geração. É preciso, para se humanizar, aprender a usar a língua e os
instrumentos, portanto, faz-se necessário uma mediação. Isso veículo cada um de nós a outros:
precisamos nos relacionar com outros para sermos humanizados. Daí, o nosso desenvolvimento está
vinculado à natureza e à qualidade das mediações realizadas e participadas.

“Não é por meio do desenvolvimento cognitivo que o indivíduo torna-se capaz de socializar, é por
meio de socialização que se dá o desenvolvimento dos processos mentais superiores.” (MOREIRA, 2011,
p. 108). É a mediação que converte as relações sociais em funções psicológicas. Não é conversão direta, é
mediada. Dessa forma, o psiquismo humano deve ser pensado como produto da atividade cerebral e de
todo o contexto em que se inter-relacionam os homens. O desenvolvimento, dessa forma, não é um
processo previsível, universal, ou linear. É construído no contexto, na interação, na aprendizagem.

Retomando o fio argumentativo do texto, depois dessa longa digressão, concluímos a seção sobre
cognição e linguagem oral por Vygotsky considerando, nas palavras do próprio autor, que indaga: quais
são os limites de abstração possíveis para os pensamentos que possuem como instrumento de sua
formulação a linguagem oral sem a presença da escrita? O autor, sob interpretação de Vygotsky, nos diz
que haveria, então, um limite de abstração. O pensamento dominante dos povos ágrafos seria marcado
pela impossibilidade de formular conceitos verdadeiros sobre a realidade, ainda que fossem capazes de
estabelecer ligações causais. Para ele, segundo Gerken, o terceiro e último nível de pensamento só seria
possível pela intervenção da escrita.

Na segunda seção, o autor se detém sobre as considerações de Alexander Luria a respeito da


aquisição da linguagem escrita.

Bom, Gerken remota o fato de que a investigação das diferenças culturais de pensamento não seja
um problema novo para as ciências humanas. No final do século XIX era comum a afirmação da
existência de diferença estrutural entre o pensamento dos povos primitivos e dos povos modernos,
civilizados, especialmente os europeus. Com base nos trabalhos do sociólogo Lèvi-Bruhl, povos
primitivos, iletrados, teriam um pensamento “pré-lógico” ou imprecisamente organizado. Assim,
haveria certa indiferença à contradição lógica, estes povos seriam adeptos de explicações mágicas ou
místicas aos fenômenos naturais.

O programa de pesquisa de Luria seria: como tratar este tema na psicologia de forma a se
harmonizar com a perspectiva materialista? Seria preciso uma teoria que articulasse a origem social das
estruturas internas do pensamento, a explicação das relações existentes entre as transformações sociais e
culturais e as transformações nas formas de compreender e explicar o mundo e uma teoria do
desenvolvimento ontológico do ser humano.

Ora, o contexto e a espacialidade da preocupação de Vygotsky e Luria é a Rússia pós-revolução de


1917, daí a hipótese e o “campo” para testá-la: novas formas de produzir e reproduzir as relações sociais
levariam a novas formas de compreensão e explicação da realidade. Isso parece mover Luria e Vygotsky
num projeto acadêmico e político. A URSS seria, pois, um laboratório vivo para testar essa hipótese.
Gerken descreve brevemente a experiência no Uzbequistão com grupos sociais distintos, cujos
objetivos eram: identificar a existência de diferenças fundamentais nos modos de construção do
pensamento e detectar a influência das modificações produzidas pelo contato com a cultura tecnológica.

O problema de Luria era: quais as consequências cognitivas das transformações que estavam
ocorrendo no mundo do trabalho e suas relações com as transformações em curso no campo da cultura?
Trata-se, portanto, de uma análise das transformações na visão de mundo dos sujeitos em diferentes
processos sociais.

Depois experimentos e outros tantos textos, além da observação direta, Luria conclui que: “há uma
influência positiva da escrita e dos novos modos de relacionamento com o trabalho na evolução e
ampliação das capacidades gerais de classificação, solução de problemas, generalização e abstração”. O
significado da palavra para o grupo de sujeitos analfabetos era diferente! As palavras não eram usadas
para codificar os objetos em esquemas conceituais, mas para estabelecer as inter-relações entre as coisas,
o que Luria chamou de “generalização funcional”. Assim, resumidamente, conclui Luria que: os sujeitos
de uma cultura ancorada nos limites da experiência concreta seriam incapazes de abstrações e
generalizações que ultrapassam os limites do mundo vivido.

Ora, para Luria, a linguagem é que possibilitaria ao sujeito realizar a ultrapassagem dos limites
colocados por sua experiência imediata; e a palavra é o elemento fundamental da linguagem, porque ela
designa as coisas, as ações, as relações, e permite a reunião dos objetos em sistemas – enfim, é a palavra
que codifica a experiência. A palavra não é só um meio de substituir as coisas, é a célula do pensamento.

Revisionismos a parte, décadas depois do estudo, Luria reafirma que “pessoas que vivem em
condições de muito baixo nível socioeconômico e no analfabetismo utilizam, predominantemente, a
classificação de objetos por inclusão em situações reais concretas!” Somente com a alfabetização isso
muda.

Questões para discussão:

- Até que ponto a “limitação” pela predominância ou domínio da linguagem oral implica
em limites para a abstração do pensamento?

- Até que ponto o caráter de realização imediata da linguagem oral impediria a


construção de conceitos, de significados mais abstratos e generalizantes?

Alguns pontos para discussão a partir do texto de Carlos Gerken:

- A relação entre linguagem oral e cognição permanece no campo das hipóteses, mas
ainda são utilizadas de forma ideológica sobre grupos não-letrados ou pouco letrados.

Noutras palavras, persiste a ideia de que a alfabetização será melhor e libertadora.


Haveria um certo etnocentrismo impregnado nesta ideia?

- Vygotsky e Luria: suas teorias estão preocupadas em uma explicação universal a fim de
ORDENAR a diversidade da experiência humana (“evolução” e “progresso”).

Vygotsky e Luria parecem desenhar um esquema teórico marcado por uma dicotomia em
que o saber criado e transmitido no interior das culturais orais, sem a presença da escrita,
seria concreto, pré-lógico, e o saber construído e transmitido por meio da escrita seria
conceitual e abstrato. Há possibilidades de entender este classificação como hierárquica, o
que poderia suscitar uma apreensão um tanto etnocêntrica e evolucionista?

- Pelo prisma de Gerken, sou levado a crer que sim. A imersão temporal e a escolha ou
apropriação teórica antropológica e sociológica para caracterizar o psiquismo humano
mundial parece ser regado de um certo teor evolucionista, no qual as culturas orais se
desenvolveriam “mais” uma vez que se tornassem letradas (com a escrita). Para Gerken,
a aplicação do esquema teórico aos exemplos de culturas tradicionais, através de relatos
etnográficos disponíveis no período, é contraditória: 1. Todas as culturas em que os
europeus tiveram contato nos séculos XIX e XX tinham uma história; e, 2. A linguagem
oral desses povos não tinha função de mediação e de distanciamento/abstração que os
sistemas simbólicos. Assim, os os sujeitos “primitivos” teriam/seriam:

• Memória eidética (imediata, direta, perceptiva);

• Língua falada (concreta) – reflexo direto da natureza;

• Impossibilidade ou limitação na construção de conceitos abstratos;

• Construção de conceitos: só realizável com o advento da escrita.

Décadas depois veremos um forte questionamento de Levi-Strauss, a partir dos seus


estudos de mitos e cosmologias de povos indígenas em diferentes locais no planeta,
materializado no livro “O pensamento Selvagem”. Para este, não há um pensamento dos
selvagens ou primitivos, em oposição ao “pensamento ocidental”. Seria um pensamento em
estado selvagem, pensamento humano em seu livre exercício. Ele não se oporia ao
pensamento científico, como queria Levi-Bruhl, não teria, portanto, uma diferença de grau,
mas de gênero. Para Levi-Strauss, ambas as formas utilizam-se dos mesmos recursos
cognitivos.

Ademais, como já mencionamos acima na “mobilização de Luria”: acreditamos, e caberia


uma proposição de pesquisa, que o programa de pesquisa, sério e ambicioso, ao deixar
resvalar os contextos de expansão e gestão do socialismo soviético, reflete a imersão em uma
metanarrativa ou num projeto de emancipação da humanidade. Algo que está impressão
nas abordagens de inspiração marxiana e marxista: uma epistemológica arraigada de uma
ontologia histórico-social. Vem a minha mente a tese contra Feuerbach na qual Marx
vaticina a importância “não mais de compreender” o mundo, e sim de transformá-lo.
Noutras palavras, uma metanarrativa mobilizadora, que acreditava que “para transformar
os indivíduos, é preciso transformar a sociedade” (CORTELLA; LA TAILLE, 2005, p. 38).

Referências complementares:

CORTELLA, Mario S.; LA TAILLE, Yves de. Nos labirintos da moral. Campinas: Papirus, 2005.
GASPARIN, João Luiz. Uma didática para a pedagogia histórico-crítica. 5 ed. Campinas: Autores
Associados, 2009.

LEVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. 8 ed. Campinas: Papirus, 1989.


MOREIRA, Marco Antônio. A teoria da mediação de Vygotsky. In:____. Teorias da aprendizagem. 2 ed.
São Paulo: EPU, 2011.

OSTERMANN, Fernanda; CAVALCANTI, Cláudio José de H. Teorias da aprendizagem: texto


introdutório. Porto Alegre: UFRGS, 2010.

PILETTI, Nelson; ROSSATO, Solange M. Psicologia da aprendizagem: da teoria do condicionamento ao


construtivismo. São Paulo: Contexto, 2013.

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