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DIVISÕES FUNDAMENTAIS

DO TERRITÓRIO FRANCÊS*

Uma das dificuldades que frequentemente fazem vacilar o ensino geográfico é a incerteza
sobre as divisões que convém adotar na descrição das regiões [contrées]. A questão tem um
alcance maior do que, a princípio, se poderia acreditar; na realidade, ela se refere à própria
concepção que se faz da geografia. Se por esse ensino entende-se uma nomenclatura a ser
acrescentada a outros conhecimentos práticos do mesmo tipo, a pesquisa das divisões
convenientes torna-se muito simples. O melhor método será o melhor memorando 1. Mas para
quem, ao contrário, pretende tratar a geografia como uma ciência, a questão muda de figura. Os
fatos se esclarecem de acordo com a ordem pela qual os agrupamos. Se separamos o que deve ser
aproximado, e unimos o que deve ser separado, toda ligação natural é rompida; é impossível
reconhecer o encadeamento que, contudo, conecta os fenômenos dos quais a geografia se ocupa e
que constitui a sua razão de ser [raison d’être] científica.
Admitamos considerar como um dado, em princípio, que a geografia deve ser tratada, no
ensino, como uma ciência e não como uma simples nomenclatura. Assim, procuraremos menos
discutir os procedimentos do que esclarecer uma questão de método. Em tal matéria, o melhor e
mais seguro é tomar um exemplo — o da França se oferece naturalmente.

Os programas concedem, com razão, uma grande importância ao estudo da França. Nosso
país é uma região suficientemente variada para servir de tema a estudos muito fecundos. Aquele
que tivesse penetrado a fundo na geografia da França possuiria, sem dúvida, dados insuficientes,
porém muito preciosos e suscetíveis de aplicação às leis gerais da vida terrestre. Às vezes, os
*
Versão original: “Des divisions fondamentales du sol français”. Bulletin Littéraire out-nov. 1888. A fonte
desta tradução provém da republicação em: Camena d’Almeida, P. e Vidal de la Blache, P. 1897. La France.
Paris: Armand Colin. Tradução: Guilherme da Silva Ribeiro e Rogério Haesbaert. O termo “sol”, traduzido
neste titulo por “território”, será utilizado ao longo do texto ora como solo, ora como terreno e, mais
raramente, como território, neste caso aparecendo sempre entre parênteses a expressão original “sol”.
1
“aide-mémoire”, no original, significando, segundo o Dicionário Larousse, “resumo destinado a indicar, em
algumas páginas, os fatos importantes, os dados essenciais ou as fórmulas principais de uma ciência, em
função da preparação para um exame” (N.T.).
professores terão que recorrer à geografia dos países vizinhos para explicar certos traços do
nosso. Em geral, contudo, eles, sem arrependimento, poderão limitar-se ao estudo dessa região
que, ainda que sendo aproximadamente a 965ª parte da superfície terrestre, nem por isso oferece
menos riqueza para suas observações. Antes de tudo, podemos nos perguntar se é necessário
dividir em regiões o país que desejamos estudar e se não seria mais simples examinar separada e
sucessivamente os principais aspectos — costas, relevo, hidrografia, cidades etc. É fácil mostrar
que tal sistema iria diretamente contra o objetivo a que se propõe a geografia. Ela vê nos
fenômenos sua correlação, seu encadeamento, ela procura nesse encadeamento sua explicação:
não é preciso, portanto, começar por isolá-los. É possível descrever de modo inteligível o litoral
sem o interior? As falésias da Normandia sem os platôs calcários dos quais são o corte? Os
promontórios e os estuários bretões sem as rochas de tipo distinto e dureza desigual que
constituem a península? Ocorre o mesmo com a hidrografia e a rede fluvial, que dependem
estreitamente da natureza do solo. Por que aqui as águas se concentram em alguns canais pouco
numerosos, enquanto em outras áreas se dispersam em inúmeras redes e fluem de toda parte? Por
que o mesmo rio, durante seu curso, muda de aspecto e de ritmo — ora encaixado, ora
ramificado, claro ou turvo, desigual ou regular — adotando sucessivamente, em síntese, as
características das áreas [contrées] que atravessa? O geógrafo estuda na hidrografia uma das
expressões pelas quais uma região [contrée] se manifesta, e atua do mesmo modo com a
vegetação, as habitações e os habitantes. Não é nem como botânico, nem como economista que
ele vai se ocupar desses diversos temas de estudo, mas ele sabe que a fisionomia de uma região é
composta por esses diferentes aspectos, ou seja, esse algo vivo que o geógrafo deve pretender
reproduzir. Assim, a natureza nos adverte contra as divisões artificiais. Ela nos indica que não é
preciso fragmentar a descrição mas que, ao contrário, é preciso concentrar-se sobre a região que
se quer descrever e que se deve, então, delimitar adequadamente todos os traços próprios para
caracterizá-la. Carl Ritter diz que a natureza “ist keine todte Maschinerei”2. A França, diríamos a
partir dele, não é um mecanismo que se possa desmontar e expor peça por peça.
É necessário, porém, escolher bem essas divisões regionais; ei-nos aqui de retorno ao
tema. Em termos geográficos, seria pouco razoável tomar como guia divisões históricas ou
administrativas. Não falo de nossas 86 unidades departamentais, que não poderiam ser tomadas
seriamente como quadros de uma descrição geográfica. Alegou-se, porém, algumas vezes, que as

2
Em alemão e em itálico no original (N.T.).
antigas províncias ofereciam um sistema de divisões em conformidade com as regiões naturais. É
preciso observar que essa opinião foi emitida principalmente por geólogos; talvez os
historiadores tivessem dificuldade em compartilhá-la. Quando se repassam mentalmente os
incidentes históricos, os acasos sucessivos e as necessidades circunstanciais que influenciaram a
formação desses agrupamentos territoriais, surge certa dúvida sobre a concordância que pode
existir entre uma província e uma região natural. Contudo, até certo ponto, essa concordância
existe em algumas províncias: a Champagne e, sobretudo, a Bretanha podem servir de exemplos.
Porém, o mais freqüente é que as províncias nos ofereçam um amálgama heterogêneo de regiões
muito diversas; a composição territorial da Normandia ou do Languedoc não corresponde em
absoluto a uma divisão natural do solo.
As divisões geográficas não podem ser tomadas senão da própria geografia. Isto ficou
claro. Mas foi imaginada, então, esta divisão por bacias hidrográficas, à qual, apesar das justas
críticas que acarreta, não estamos seguros de que o ensino lhe tenha renunciado por completo,
pois não se abandona de um dia para outro a hábitos arraigados que livros e mapas ditos
geográficos difundiram, rivalizando assim com esta renúncia. Esse sistema de divisões é
aparentemente simples, mas tem apenas a aparência de simplicidade. Na realidade, não há nada
de mais obscuro. O que é artificial [factice] não pode ser claro pois, destruindo as relações
naturais das coisas, condenamo-nos a não nos dar conta de nada. Colocamo-nos em contradição
com as realidades que saltam à vista. Aplicada à França, a divisão por bacias fluviais separa
regiões [contrées] que a natureza uniu, como os pays3 do médio curso do Loire e os do Sena.
Destrói a unidade do Maciço Central. Um geólogo, em certa ocasião, disse que a existência do
Maciço Central, particularidade muito importante do território [sol] francês, havia passado
despercebido pelos geógrafos! Para alguns geógrafos, pelo menos, essas palavras não eram
demasiado severas. Era plenamente justificável diante dos mapas onde, para uso das escolas, era
representado não sei qual esqueleto imaginário cujas articulações se prolongavam até às
extremidades do território [sol]. Todos nós conhecemos, em nossa infância, essas imagens
singulares que recortavam a França em certo número de compartimentos distintos, desconhecidos
para os geólogos e topógrafos. Daí resultava uma fisionomia inteiramente falsa do território [sol]
francês.

3
Preferimos não traduzir “pays”, pois “país” ou “região”, as palavras mais próximas em português, não têm a
conotação específica de “pequena região” empregada por Vidal de la Blache e já legitimada na linguagem
geográfica. (N. T.)
II

Tentemos dar conta, então, do que se deve entender por uma região natural. Para isso, o
melhor meio será liberar-se de toda rotina escolástica e colocar-se, tanto quanto possível, diante
de realidades. A geografia não é precisamente uma ciência de livros; ela necessita a contribuição
da observação pessoal. Jamais haverá um bom professor se ele não envolver o interesse da
observação pessoal pelas coisas que deve descrever. A natureza, em sua inesgotável variedade,
põe ao alcance de cada um os objetos de observação, e àqueles que aí se dedicam pode-se
garantir menos esforço que prazer.
Entre Étampes e Orléans, atravessamos em trem um pays chamado La Beauce e, sem
mesmo sair da portinhola do vagão, distinguimos certas características da paisagem: um terreno
[sol] indefinidamente aplainado sobre o qual se desenvolvem campos cultivados sobre longas
faixas; muito poucas árvores, muito poucos rios (durante 65 quilômetros não se atravessa
nenhum); ausência de casas isoladas; todas as habitações estão agrupadas em burgos4 ou aldeias.
Se atravessamos o Loire, encontramos, ao sul, um pays de mesma planura, mas cujo solo tem
uma cor diferente, onde abundam bosques e lagunas: é a Sologne. A oeste de Beauce, entre as
nascentes do Loire e do Eure, surge um pays acidentado, verdejante, cortado por cercas e sebes
de árvores, com habitações disseminadas por toda parte: é o Perche. Entremos na Normandia. Se,
no departamento do Sena-Inferior, examinarmos os dois distritos [arrondissements] contíguos de
Yvetot e de Neufchâtel, quanta diferença! No primeiro, tudo é planície, campos de cereais,
granjas contornadas por grandes quadrados de árvores, amplos horizontes. No segundo, vê-se
apenas pequenos vales, cercas vivas e pastagens. Passemos do pays de Caux ao pays de Bray. O
modo de existência dos habitantes mudou com o terreno [sol]. Se no departamento de Calvados
deixamos a campanha de Caen para entrar no Bocage, contrastes distintos mas não menos
pronunciados nos rodeiam. Os homens diferem como o solo, e não é de hoje que o instinto
popular distingue as populações dos dois pays. O velho poeta normando do Roman de Rou já
sabia muito bem discernir:
Cil des bocages et cil des plains
[Aquele dos bocages e aquele das planícies]

4
. “Bourgs” no original, significando burgo, vila, povoado onde há mercado (N.T.).
Às vezes, não é só um pays, mas uma série contínua de pays designada pelos habitantes
por um nome que indica, ao observador, a analogia de seus caracteres. É assim que, entre Caen e
Le Mans, se estende, de norte a sul, uma campanha5 de Caen, uma campanha de Alençon, uma
campanha Mancelle. Para o geólogo, essa sucessão de campos representa uma zona de terrenos de
calcário oolítico formando uma borda ao longo dos xistos e dos granitos que se sucedem de
Cotentin a Anjou. Ela se apresenta aos olhos como uma superfície levemente acidentada, cultivada
por cereais, que as estradas e as ferrovias escolhem, preferencialmente, em relação aos pays mais
acidentados que a margeiam tanto a leste quanto a oeste.
Volta-se a encontrar o nome Campagne ou Champagne6 sobre o limite norte do Maciço
Central: ali também designa uma cobertura uniforme de planície margeando um pays
completamente distinto: a Champagne de Châteauroux confinada a La Marche, entrecortada por
numerosos acidentes de terreno e cultivada por pequenos campos aos quais se misturam
pradarias, bosques e charnecas [landes].
As denominações características quase nunca faltam no ponto de contato entre regiões
claramente distintas. Mas as circunstâncias que chamam a atenção variam e se expressam de
modo diferente no vocabulário local. Na extremidade ocidental do Maciço Central, o nome
Terras frias7 designa o pays de Confolens, enquanto o pays de Ruffec, também situado no
departamento de La Charente, é chamado de Terras quentes. O primeiro pays, pertencente ao
Maciço Central, tira seu nome da impermeabilidade do terreno [sol], em cuja superfície a
permanência prolongada da água provoca umidade e neblina. No outro, os calcários fissurados
mantêm a superfície seca, enquanto que as águas se infiltram no subsolo.
Não temamos em multiplicar os exemplos. Em outra parte da França, onde os terrenos
calcários também se apresentam contíguos aos granitos, encontramos uma distinção claramente
estabelecida entre o Morvan e o Auxois – este, um pays de terras fortes e férteis que nenhum
camponês irá confundir com o frio e estéril pays que lhe é limítrofe a sudoeste.
Assim, basta olharmos ao nosso redor para recolher exemplos de divisões naturais. De
fato, esses nomes não são termos administrativos ou escolares; são de uso cotidiano, o próprio
camponês conhece e emprega. Enquanto produtos da observação local, não poderiam abarcar
grandes extensões; eles são restritos como o horizonte dos que os utilizam. São pays mais do que

5
“Campagne”, em itálico no original (N.T.).
6
Grifos nossos (N.T.).
7
Em itálico no original (N.T.).
regiões. Mas nem por isso têm menos valor para o geógrafo. A expressão pays tem como
característica ser aplicada aos habitantes quase tanto quanto ao terreno [sol]. Quando tentamos
penetrar no significado desses termos, vimos que eles expressam não uma simples
particularidade, mas um conjunto de características extraídas ao mesmo tempo do solo, das
águas, dos cultivos e das formas de habitação. Eis, portanto, apreendido em seu estado natural,
este encadeamento de relações que parte do solo e desemboca no homem e que, falávamos no
início, deveria formar o objeto próprio do estudo geográfico! Instintivamente advinhado pela
observação popular, esse encadeamento se precisa e se coordena através da observação científica.
Para compreender o que o ensino geográfico lhe exige, um professor não poderia encontrar
melhor exercício e melhor guia que esses nomes de pays. Aqui está, de fato, o que eu chamaria de
as fontes vivas da geografia. Seria muito surpreendente se este estudo não repelisse para sempre
as más divisões artificiais, que servem apenas para desconcertar os olhos e o espírito.
Mas então, diria-se, como aplicar uma divisão por pays ao ensino geográfico da França, de
modo que possa ser praticada nas escolas? Não recomendamos, de fato, sua aplicação direta.
Além das dificuldades muitas vezes inextricáveis que sua delimitação provocaria, na própria
exiguidade dessas divisões há uma razão peremptória. Em um ensino voltado aos alunos, o
estudo do terreno [sol] fragmentar-se-ia para além de toda medida admissível. As relações gerais
correriam o risco de desaparecer na análise muito fragmentária do detalhe.
Contudo, aconselhamos aos professores que apliquem essas divisões, oferecidas pelos
próprios habitantes, de uma forma indireta, quer dizer, que nelas se inspirem chegar até os
agrupamentos mais gerais que lhes são necessários. O princípio dessas divisões mais gerais deve
ser buscado na própria ordem dos fatos naturais. Em suma, sobre o que se baseiam essas divisões
de pays? Elas resumem um conjunto de fenômenos que dependem quase sempre da constituição
geológica do terreno [sol]. A geologia e a geografia são, de fato, duas ciências distintas, mas
estreitamente relacionadas. Ao estudar os terrenos [terrains], o geólogo se propõe a determinar as
condições nas quais eles se formaram; busca reconstituir, camada por camada, a história do solo.
Para o geógrafo, o ponto de partida é o mesmo, mas o objetivo é diferente. Ele busca, na
constituição geológica do terreno, a explicação de seu aspecto, de suas formas exteriores, o
princípio das influências diversas que o solo exerce tanto sobre a natureza inorgânica quanto
sobre os seres vivos. Outras causas, sem dúvida, também concorrem para determinar a fisionomia
das regiões [contrées]. Se, ao invés de estudar uma região [contrée] restrita como a França,
estudássemos vastas superfícies continentais, seria necessário atentar, primeiro, para o clima; na
fisionomia das grandes zonas terrestres, as considerações procedentes do clima são mais
importantes que as causas geológicas. Pela influência exercida sobre a vegetação, o regime de
chuvas pode, independente de qualquer diferença geológica, modificar a fisionomia das regiões
[contrées].
Entretanto, sem renunciar a beber em outras fontes, a geografia nunca perde de vista a
geologia. Mesmo quando as duas ciências gêmeas parecem divergir, elas não permanecem
estranhas entre si. Só se compreende perfeitamente o terreno [sol] quando se está em condições
de remontar até às origens de sua formação. É assim tanto para a história da terra quanto para a
história dos homens; o presente está muito estreitamente ligado ao passado para que possa ser
totalmente explicado sem ele.

III
(esta parte analisa [a geografia física, sobretudo] das cinco grandes regiões francesas :
Bacia de Paris, Maciço Central, Oeste, Midi, Vale do Ródano e Saône)

IV

No conjunto do território [sol] francês, há outros grupos regionais que eu denominaria


periféricos. De fato, eles se estendem como glacis8 ao longo de nossas fronteiras. Porém, as
grandes regiões das quais acabamos de traçar esse rápido esboço são as divisões fundamentais do
solo francês. É à sua correspondência que se deve seu caráter de harmonia.
Não é por acaso que elas se aproximem das divisões geológicas, a ponto de quase coincidir
com elas. Todavia, é preciso reconhecer que elas também se justificam por razões provenientes
do aspecto do terreno [sol], do caráter da vegetação e do agrupamento dos habitantes, isto é, por
razões de ordem essencialmente geográfica. Tal é, de fato, a concordância íntima e profunda entre
as duas ciências. Certamente, é nessa concordância que os professores devem buscar os únicos
princípios de método que, em nossa opinião, são capazes de conferir ao ensino de geografia um
caráter de precisão e de verdade.

8
Termo francês utilizado em geomorfologia, significando “taludes [escarpas] de fraco declive”, que podem
ser resultantes de processos erosivos (“glacis” de erosão) ou de acumulação de sedimentos (“glacis” de
sedimentação) (Dicionário geológico-geomorfológico. Rio de Janeiro: IBGE, 1969, 3a ed., p. 219) (N.T.).

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