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O rapaz avançou a passos lentos e determinados. Ela não esboça reação. Jamais
viu olhar assim nem em seus constantes pesadelos. É verdade que os olhos do pai
possuíam brilho quase tão assustador, sem falar que são muito parecidos. Mas aqui esse
horror está em forma mais inocente, se é possível dizer isso. Não. Não é possível dizer
isso.
Num momento ela sentiu assim mas no outro reconheceu o espelho à sua frente.
Na janela uma estrela em meio às nuvens da tempestade anunciada pelos silenciosos
clarões ao longe. Conquanto não mais que cruel impressão ela quis chorar como um bebê
que descobrisse o fim dos meses de aconchego dentro do que em um ano chamará de
mamãe.
Graças a Deus. Com alívio percebe que se enganou. — Dáli… — ela disse. —
Você chegou a me assustar...
Está vestida com um chambre aberto até os joelhos e tem nas mãos presas junto
aos seios flores do campo que lhe dera um rapazinho com quem ficou na noite anterior.
— Não vá deixar cair uma flor tão linda e pisá-la — diz ele e afunda a haste na
seda. — Veja, Adele... O pólen sujou sua pele… Deixe-me limpar...
Não zombará mais dele. Esse tipo de sensação desde sempre o perseguiu como
um murmúrio de janelas ao vento em noite de tempestade. Agora está livre. Olhando as
flores olha as aves dos céus perversos revoando e descendo e chupa as pontas dos dedos.
— Hum...— gemeu, obsceno. — Pólen é tão gostoso...
Ela sorriu um sorriso triste que desencadeou a crise e ele apanhou o canivete.—
Seus cabelos são lindos...
Ela conseguiu balbuciar "Você está louco... "e olhava seus cabelos no chão como
se pudesse reavê-los só de olhar.
— Louco? — disse ele. —Você ainda não viu nada — soletrou. Seu braço
entra pela abertura, erguendo o chambre. Lágrimas escorrendo pelo rosto, ela consegue
balbuciar: — Por quê?
Nascem cinco filetes no alto de sua coxa e fechando os olhos e erguendo o queixo
ela gritou e onde o grito se prolongava o braço de Dali ganhou impulso para cima. — Por
quê? — jogada na cama é tudo o que ela consegue dizer, o corpo inteiro chorando. —
Por quê?
— Por quê? — ele leva à boca a garrafa. A voz ecoa sobre a da irmã — Por quê?
— diz, arrastando as palavras — Ora. Se o Luciano pode, por que teu amado irmão não
poderia?
Por um minuto Adele hesitou na porta. Escuta a madrugada entre dois mundos.
Não há volta. Sua perna direita se adianta no último passo o a marcar com a sola gasta de
suas sandálias baixas a erva rala das frinchas e o pó acumulado no cimento. O caminhão
passou trêmulo sob seus pés e depois ela cruzou convicta a rodovia. O silêncio
escrupulosamente quebrado aqui por um grilo e ali por um latido. Lembra uma cena de
filme, uma canção: a menina fugindo de casa. Onde estavam antes seus olhos e de onde
tirou o coração esse pesado pulsar?
Deu por si inteira no vestido rosa, sim, porque era um vestido, um vestido leve, de
crepe chiffon, e sim era de um rosa quase obsceno. Tinha despertado. Nao queria ser
grande, sequer reconhecida entre seus pares, que agora tinha certeza seriam medicos. Não
Era o que de pior tinham feito a ela: fragmentala em mil pedacos dispersos por um
numero quase igual de mundos. Mas o que sabe não eh sinonimo do que eh capaz de
viver. Porque nao coincidia ou nao exatamente com o que queria. Entao se prometeu isso.
Definir o que queria. Depois executar esse desejo do jeito mais simples. Tipo linha reta.
Talvez com paradas para respirar. Mas isso ela ainda nao tem certeza. Nao tem quaisquer
exceto que o vestido realca seu corpo e nao tem medo de que tenha um corpo assim.
Serah um amigo, o melhor. Mas para que serve um amigo ela nao sabe.
De uma forma ou de outra teria chegado a esse momento; se não precisava ter
sido por meio dessa dor não faz tanta diferença a partir do momento em que a realidade
se cristaliza. Quando os fatos estão estabelecidos e a liberdade se fez. Porque é disso que
se trata. Estava livre. Nunca mais família e conversas inúteis e visitas e pessoas dizendo o
que ela deve fazer; ninguém gritando; nunca mais portas batendo. O silêncio e a solidão
por tanto tempo desejados.
— Não precisa dizer nada. Tome esse copo de água com açúcar
— Tome tudo.
Ela olhou para cima na direção da voz e olhou fundo nos olhos de Keko.
Passou depressa pela praça do coreto e avançou pela rua do jornal e nessa altura
ergueu os olhos para a serra espirada pelo sol. Ficou ali com as faces muito rígidas e os
ombros empedrados tentando discernir o prédio e ver dentro de uma qualquer de suas
janelas. Era sua sina, melhor se sujeitar de uma vez. Umas loja de discos com aqueles
velhos fones de ouvido pendurados. Telhados que absorviam água. Que pena. Porque de
resto eh bem bonita, bem pensada. Meu pai teria feito parecido exceto pelo telhado.
Passaram meninas num andar bamboleante quase uno. Uma olhou para ela com
um rosto asiático e as alças do sutiã apareciam vermelhas mais escuras que o vermelho da
blusa e parecia temê-la ou invejá-la como se soubesse o que ela estava para fazer dali a
alguns minutos.
Seria virgem, pensou Adele. Deve ser virgem. As vozes se perdem na distância.
Ela vira e vê a da cara asiática ajeitando o elástico sob a blusa e percebe que tem até uma
barriguinha, imagine, nessa idade; e culotes; e os próprios seios escapam. Repara na
diferença física entre as amigas mas estão no mesmo ano escolar ao que parece. Outra é
magrinha como a própria Adele um dia.
Ele guiou seu rosto e as coisas ao redor sumiram no cheiro do lençol lavado.
Entregou-lhe gentil as roupas com o pagamento e enquanto se vestia perguntou se o nome
dela era mesmo Adele. — Devia usar outro.
— Um nome de guerra?
Ele sorriu. Ela nem precisou pensar. Engracado que há muito tempo, quando nem
poderia imaginar tal necessidade mas outras decerto que no fim das contas apontavam
para um mesmo caminho de disfarce, pensara em algo assim, para desbravar incognita
um novo mundo.
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Mas pode estar para acontecer alguma coisa neste fim de dia. Parece vir de longe
o prenúncio na brisa. Alguns banhistas se chocam com as ondas, eu mergulho. Saio das
águas gotejando e ponho os cabelos para trás. Enquanto caminho para casa imagino o que
está errado comigo. Casais se beijam nos bancos. O homossexual passeia seu cão.
Adolescentes em grupos na esquina. Mães e suas crianças correndo. Há quanto tempo
tenho andado por essa trilha à beira da estrada? As luzes começam a aparecer nas janelas
e desce quente a noite sobre o Rio de Janeiro. É como se a vida me mostrasse um sinal.
Minha mãe pediu para que eu levasse uma encomenda que ela trouxe de Paris
para sua amiga Teresa. Tomo banho como quem tem pressa. Não tenho respostas. Visto a
camisa e vou à cozinha. Anatólia, a empregada, está cantarolando. Faço um sanduíche de
queijo e como com uma coca. Teresa tem uma filha de minha idade mas que insensato
chorar por alguem que nao lembra que você existe. Não vou suportar por muito tempo
essas refeições rápidas sozinho e continuar me vestindo com destinos circunstanciais. No
saguão do prédio hesito antes de entrar na marcha da normalidade e fazer parte dos
passos das pessoas lá fora.
Vou a pé da Rua Paula Freitas até a Sá Ferreira. Quando Sarah abre a porta eu a
vejo, Esperança. Ela empurra com cuidado o velho na cadeira de rodas.
— Oi — diz Sara.
— Estou indo ao cinema — diz ela. — Por que não diz que vem comigo?
Agora sei seu nome e ela o meu. Vamos nos despedir e não sei como evitar.
Enfeitiçado pela luz nos seus olhos. Não há tempo para timidez. Digo que vou ao cinema.
— Não gostaria de vir comigo?
— Também estou — digo com súbita firmeza — cansado de esperar dias que
nunca chegam.
A noite avancava para o amanhecer que combinamos ver na praia e nada existia
que pudesse mudar o que ela provocava em mim. Sua singeleza e segurança. A
sensualidade sem astúcia. O cumprimento de minhas idealizações. Quaisquer
imperfeições causadas por influência de passado ou destino não poderiam, se existissem,
afastá-la da força de meu amor. Que lei ousaria proibir o que meu ser começava a sentir,
doce revelação súbita, a felicidade?
Esperança era alta e magra. Estava no final do curso de Enfermagem. Não era tão
bonita mas parecia. Acalentava sonhos sem perder o chão. Possuía um riso triste que me
deixava indefeso. Seus olhos brilhavam. Venerava a Virgem e seus cabelos negros
emolduravam seu rosto evocando a própria Senhora.
— Você usa?
Para ela atenção era a chave. Uma estrela desceu dos céus e a seguimos. Sonhos
no olhar de Esperança ofuscam feridas abertas sobre as quais ela ainda não falara. Não
havíamos sequer dado as mãos. Atenção. Simples assim — repetia-se segura. Atentos
usufruimos intensidade alucinógena com temperança.
Olhei para o céu recortado pelo alto dos prédios como a esperar que o Espírito me
enviasse luz que então partilharia com Esperança mas tive apenas uma vontade louca de
sair da Barata Ribeiro onde fomos tomar um café e ir logo para a beira do mar e partilhei
essa vontade com aquela a quem minha alma começava a se apegar de forma tão
desatenta.
Atenção é a chave de tudo. Desde a estrela cadente que vimos até o quebrar dessas
ondas; do tremeluzir da cidade no mar ao som de nossa própria voz; e o cheiro de sal
desprendendo-se da praia; e o cachorro quente da carrocinha. Atenção e nossos pés
vivificam o toque da areia.
Com toda essa introdução foi natural o que se seguiu. Segurei-a pelos ombros e a
virei para mim e a aura de seu perfume e sua respiração em meu rosto anteciparam o
beijo. Debruço-me no sonho em seus olhos. A luz por toda a noite intuida.
Embora tão pequeno o apartamento aproveitava bem o espaço e eu disse que era
um lugar bom de se morar enquanto se prepara uma vida. — Um lugar assim me bastaria
— disse ela sorrindo.
Quando a porta bateu ela avisou que ia tomar um banho. Eu folheava revistas
velhas sobre a mesinha de centro e ela apareceu apenas com a camiseta da noite.
Aproximou-se do sofá onde eu estava e ajoelhou-se. Tirou os meus sapatos de camurça
marrom e as meias com desenhos em ponto cruz. Meu cérebro recebia a circunstância em
crise aguda de limite e a transportava para essas reflexões taquicárdicas que nunca
chegam a ser concluídas, transportadas que são para outro gênero de pensamento,
obscuro e viajante como quando se fica na fronteira. Como quando antes do despertar
mas não mais no sono. Desabotoou minha camisa. —Você está indo muito bem — disse
ela ao abrir o zíper. É assim que deve ser. Dançar segundo a musica.
Concordei humildemente.
—Nao seja tao ansioso. Quero que se sinta bem. Quero que se sinta livre.
A gente não aprende a dançar senão dançando. Minhas feridas estão abertas. Ela
pode ler meus olhos. Mas se hoje é tão diferente de mim, o que nos atrai, é porque um
dia foi tão igual, o que atrai ainda mais.
O chuveiro sobre a banheira. Esperança abre a água com a mão direita e com a
outra me leva para dentro do boxe. Não entra nem tira a camiseta. Quando estou
totalmente molhado, desliga a ducha. Apanha o xampu e lava os meus cabelos.
Seus cabelos ainda mais negros. A água escorre como se a vestisse. Sobre mim as
mudanças de Esperança ao longo da vida, da pobre menina feia à sedutora mulher
independente. Acompanho as metamorfoses contínuas que quando eu chegava na
suposição de entendê-las ela ali já não estava: a própria essência do prazer que me
possuia, o da impossibilidade.
O sabonete erra pela luz amarelada. Ela se vira e abre os braços. As palmas se
apoiam nos azulejos respingados. Sombras e luzes em suas costas. Quando desliguei a
água em definitivo ela encostou a cabeça em meu ombro e nosso abraço foi o das partidas
e dos reencontros.
Uma fresta de manhã (ou de tarde já, talvez) na volta ao quarto divide a cama
onde seu corpo começa a pousar. Mãos apoiadas no lençol enrugado, enruga-se mais a
toalha branca. Um pedido da branca luz. Noto a cicatriz sem dizer nada. Um vermelho
mais vermelho e as mãos multiplicadas — Gemidos e outros apegado a esses. Prendo o
ar. Fecho os olhos.
Sussurrei. — A que horas Magda volta?— O turno dela é 24 por 48, um bom
horário. Só voltará de manhã — respondeu. O telefone toca baixinho, como já tinha
acontecido ao longo do dia. Aroma de cabelos limpos e uma pergunta. — Você nunca
atende as ligações?
Ficamos pois assim mexendo de quando em quando e assim quietos até o dia
terminar, quando exaustos terminamos. Cortinas abertas. As pessoas lá embaixo
derramam-se dos prédios comerciais no sentido da Central do Brasil. Sete e dez no
grande relógio da estação. Se eu estivesse lá embaixo voltando para casa depois de um
dia de trabalho, a posição dos ponteiros teria um doce significado para mime. Se já
conhecesse Esperança, essa janela, vista lá debaixo, entre tantas e igual a todas, seria
única. Vou fazer uma janta decente para nós, disse ela, nada de sanduíches.
Uma nova consciência. Nem esquecimento nem retenção das as coisas. 4h 53.
Tudo tem o seu lugar. Eu não poderia resistir muito tempo (4h56) num relacionamento
com uma mulher abençoada pela Virgem com o dom da liberdade se estivesse eu próprio
preso a espíritos em mim, 5h08. O filamento nervoso de um abajur só agora percebido
rege as nuances dos fios de seus cabelos. Um clarão do terror do que se quer alcançar e se
alcança.
5:14.
Mas assim como passamos a primeira noite sem nos tocar; assim como falamos
sobre Deus e cinema; assim como introduzimos o clima do primeiro beijo; assim como
vimos o sol nascer; assim com passamos a madrugada sem comer e comemos sanduíches
no almoço e bife com batatas à noite; assim como preparamos o amor e fizemos amor; e
dormimos; e tornamos a fazer em outras posições — a satisfação precede sempre, no
amor, um novo desejo e não o tédio. Amar será continuar amando e renovando as
mesmas coisas que fizeram nascer esse amor.
— Seja o que for que estiver pensando — diz Esperança ao recostar a cabeça no
meu peito — a gente descobrirá junto. Agora dorme um pouco.
Amanhecia.
Despertei com a visão da foto de Esperança sentada num carrinho de mão cheio
de flores. Um cântaro no colo e um chapéu de palha. Nos olhos o surpreendente sorriso
sem nuvens. Todavia a foto, que me havia enternecido no dia anterior, era justamente
daquela época do mundo fechado em angústia terrível do qual me falara, não da moça
desprendida que se tornara no Rio e eu conhecera. A mãe jamais acreditou quando ela
dizia do pai. Ameaçou ao contrário expulsá-la de casa. Nenhum homem, mesmo que
fosse verdade, age assim se a mulher não o provocar. Se ele me deixar você me fará
companhia na velhice? Ela disse Mãe, pelo amor de Deus, eu não agüento mais. A porta
da rua é a serventia da casa. Os incomodados que se mudem.
Em seguida Esperança entrou e seu rosto na foto, até então sua única presença ali,
retornou a seu lugar no passado, deixando sua nova encarnação no robe
— Nosso café— disse ela, colocando na cama a bandeja com as xícaras, os pães,
a manteiga, o suco e a omelete. Digo que desse jeito ela está me acostumando mal. — E
a Magda?
Quando Magda chegou sonolenta e cansada estávamos prontos para sair. A amiga
não tem cuidados quanto a mim, o que a tornou uma mulher diferente e trouxe outro tipo
de aura. Quase gostaria que ela chegasse como saiu, desconfiada, pois também devolveria
os ainda incertos instantes em que eu não sabia tudo o que estava por acontecer nas horas
seguintes com Esperança. O prazer da expectativa. Um quê de mistério. A própria manhã
anterior para a qual sua reação serviu de referência. Isso acontecerá mais tarde. Por agora
me senti bem em compreender que o Rio é uma cidade violenta, todos os dias os
noticiários exibem casos escabrosos, portanto nada mais natural que a cautela anterior de
Magda, dissipada junto a meus constrangimentos.
Ela havia criado essa resistência, diz, sua alma foi cauterizada. Criou bloqueios
necessários para a liberdade. Amar fragiliza. O amor expõe ao sofrimento. O amor expoe.
- E nem mesmo por amor -disse - eu quero sofrer mais.
— Sim, necessariamente.
Fica então apenas assim, Esperança, sua cabeça em meu colo. Fica então apenas
assim, pousada em mim como um pássaro ferido. O sol se põe, um flamejante disco-
voador. Ali, descendo sobre as lajes da favela. Vamos, mostrarei a você no caminho
razões para você me amar.
Nessa época, eu costumava passar a maior parte de meu tempo em casa, tocando
violão e compondo em meu quarto, só saindo para as refeições. Na terça-feira porém,
esse cotidiano, já afetado pelo conhecimento de Esperança, deveria se modificar mais,
pois eu começaria o emprego numa biblioteca. Em meu quarto, por todas as paredes,
havia fotos, razão quase única de minhas saídas de casa, para pegar as cenas do nascer do
sol e do poente, pescadores, turistas, jogadores de futevôlei, corredores no calçadão.
Fotografava crianças e mendigos, feirantes e todo tipo de figura exótica do velho Rio. Às
vezes conseguia captar um rosto de mulher como esse, também colado no mural que me
guarda do mundo apreendido. Mas há uma janela e além agora Esperança Acordes de
uma nova canção.
— Oi.
—Será que hoje sai nosso cinema? — pergunta ao colocar a bolsa na cama e me
beijar com uma intimidade que não tínhamos.
Eu não queria acreditar, mas a vida é assim. Tantas vezes desejei Sarah, na
elegância de seu corpo bronzeado, quando vinha com Teresa para ir à praia com minha
mãe, mas por algum bloqueio relacionado decerto à relação de nossas famílias, por medo
do ridículo de me declarar e ser rejeitado, nunca fui além da imaginação. Até o dia em
que com um pretexto perfeito bati em sua porta com a força acumulada pelo longo tempo
de solidão e vi Esperança Desvanecida a imagem de Sarah desde aquela noite. E aqui está
ela. Extrovertida. Elegante. Um olhar inequívoco.— Sempre cantando e tirando fotos,
seu grande vadio— disse, olhando as paredes.
—- O Ricamar tem Woody Allen. Um grande filme deixa sempre uma recordação
que não se apaga. Vamos?
Sempre que desejo entender o que se passou comigo naqueles dias e como
mudariam minha vida, ouço de novo o comentário incrédulo de Sarah àquela minha
declaração.
Não posso deixar de lhe dar razão e me torno um pouco menos arrogante com
relação a essas mudanças, revendo os lábios de Sarah pronunciarem essas palavras
enquanto o vento continuava a soprar pela janela. Mas na hora não me dei por vencido e
repliquei.
Justo agora que não fazemos mais, ela vem me dizer isso? Então, prosseguiu
Sarah, ao cinema ou às fotos? Podemos fazer uns belos nus.
— Ao cinema.
Clic.
Pergunto se minha mãe não está em casa. Sarah responde que não e se vira um
pouco mais de lado.— E Anatólia também não Estava saindo quando eu entrei.
Clic.
Algum dia esse tipo de coisa acaba. E não mais a lei da carne trará o homem
sujeito. Algum dia a criatividade e a arte não mais operarão em favor da vaidade e do
mero prazer, clic, e não se invocará mais a culpa como consolo. Ela agora está de bruços,
sorri insinuante e dá uma piscadinha. Clic. Coloco a máquina de volta na cômoda. O fogo
é o único elemento que não existe, que só existe sob certas circunstâncias e não há,
exceto o inferno, um lugar constantemente em chamas.
Sara abrira as cartas e recolocava as roupas. Eu não estava prevenido. Fui testado
e falhei. Mas um dia tudo isso acaba. Não sei quando. Um dia.
Sara ligou para casa e avisou à mãe onde está e irá jantar. Esperança atendeu.
Sabê-la em contato com a sala de minha casa perturbou-me e aproveitei a campainha
para abrir a porta, o mais naturalmente, como se o telefonema em nada me afetasse.
Minha mãe entrou e Sarah desligou e abraçaram-se — Como vai, querida? — três
beijinhos, essas coisas. Sentam-se e minha mãe começa a falar sobre a visita que fizera
— Minha filha, como estão bem de vida! — e sua ida ao shopping — Meu Deus, como
as roupas estão caras! — etc. Anatólia também voltara e colocava a mesa do jantar.
Atendendo a um pedido, Sarah ligou a TV. A cada cena gargalham. Amaldiçoam as
personagens malvadas. Comentam maliciosamente a beleza do galã.
Minha mãe me olha com olhos brilhantes e com deslumbrado sorriso diz que sim,
faríamos um belo par.
Era cerca de onze horas e estávamos prontos para sair. - Divirtam-se, disse minha
mãe.
Sarah quis entrar em seu carro mas eu disse não, vamos de ônibus e a gente pode
voltar a pé. Sarah naturalmente não era mulher de estrelas ou grandes caminhadas mas
aceitou, acredito eu por puro estímulo da novidade. Pegamos o ônibus e, não fosse pelo
motivo que deveria quebrar nossa noitada, seria por outra coisa qualquer. Não daria certo.
No vídeo-bar não havia clima para conversas sérias. Vimos o filme, bebendo
vinho branco que, para minha surpresa, não trouxe imediatas nem posteriores náuseas.
Dali fomos para um lugarzinho aconchegante também nos quarteirões noturnos de
Botafogo. A baía não tão distante e imagináveis barcos ancorados e cheiro de sábado nas
esquinas. Aqui, a casa onde morei na infância. O que exatamente estou querendo? Sarah
empresta ao vestido de minha mãe sua própria exuberância. A cada clique da bolsinha
prateada os dedos carnudos trazem com os cigarros a atmosfera sensual da sessão de
fotos.
— Agora vem dizer isso? Depois de termos dormido juntos e namorado a noite
toda?
Usá-la? — Você tirou a roupa na minha frente e não era exatamente para posar...
— Porque você deixou que eu acreditasse que queria consolidar nossa relação,
não por uns minutos de prazer que aliás nem tive!
Desse jeito. Quer dizer: se eu nada fizesse além das fotos, ela iria dizer que eu era
bicha, espalharia isso em nossas famílias. Como não fiz, era um...
— Calhorda!
Rua Siqueira Campos, saída do túnel, clarões. Um sinal escandaloso para um táxi,
uma bolsinha luzindo. O veludo estremece o corpo de Sara, seus cabelos parecem a
chama de uma vela soprada. O carro diminuiu a marcha. Perguntei se ela me amava. O
táxi parou, ela se virou para mim e gritou. - Pode ter certeza que jamais amaria um idiota
como você.
— Não estou furiosa com você! Quem é você para que eu estivesse? Mas por não
ter conseguido fazer você deixar de ser um otário, por desperdiçar meu tempo com você,
babaca!
O chofer nos olha paciente. Desliga o motor. Está sorrindo. Eu mantinha uma
certa serenidade porque Sara era uma mulher educada, de muito espírito, decerto sua
notável finura não demoraria a fazê-la ver que não era para tanto. Tudo bem, digo então,
a gente não se ama mas passamos bons momentos.
— Você passou bons momentos! Eu não gozei, não gostei do filme, odiei seu
papo!
Ela entra no táxi e bate a porta. Pingos começam a tamborilar no metal. Abre a
janela e grita novamente, com a cabeça para fora. "Você e aquela putinha se merecem!"
O motorista engata rapidamente a marcha. Ela continua gritando mas a distância e o ruído
do motor arrefecem suas imprecações. O táxi dobra a Avenida Atlântica. A deusa da
tempestade cobre a noite com seu véu.
Grossos pingos chegam a doer . A chuva cai reta e o vento não sopra mais.
Caminho na direção de casa. Grandes ondas cuspidas pelos automóveis da madrugada de
domingo, da grande poça que se tornara a margem do asfalto, respingam em minha calça.
—Fui despedida.
Pergunto-lhe o motivo.
—É que Dona Tereza não pode mais pagar três enfermeiras; ela gosta de mim mas
sou a mais nova etc. Hei! Não fique com essa cara! Eu estava mesmo pensando em deixar
o emprego.
—Mas agora vamos para Santa Tereza e não se fala mais nisso até o fim da festa.
Na ladeira sinuosa a casa iluminada. Gélida lua. O calor de sua mão. Entramos na
sala sacudida e incensada. É a casa de Sandra, amiga de Esperança que a trouxera para o
Rio havia um ano para trabalhar em seu restaurante vegetariano. Um drinque. Móveis
afastados. O cento da sala vazio. Uma dança. Uma jovem a chama e se afastam
abraçadas. No lugar onde ela estava, no balanço da música, surge uma loura de blusa
escura. Sacode os quadris e joga os braços para o alto. Quando os abre, seus olhos
encontram os meus. Esperança me chama e me aproximo da janela. Passando. O cheiro
forte e almiscarado foge para as constelações.
Sandra e Esperança arrumaram o quarto das crianças para nós. O casal tinha duas
filhas que dormiam no quarto dos pais durante a festa. Keko e eu conversávamos na
varanda. Pergunto se eles tinham o costume de dar festas como aquela. Respondeu que na
verdade nem gosta de festas mas sempre lhes cabe alguma despedida. Há algum tempo
tinha sido para uma amiga que trabalhava no curso de idiomas onde ele era professor. Ela
foi para a Itália. A última foi para o antigo namorado dela. Ele foi para Angola. A última
vez que escreveu ele estava em Portugal. No começo, estava entusiasmado mas depois
desanimou. Ficou em situação de rua.
—Ah, querido — disse e perguntou onde eu andava e onde estava na festa de seus
quinze anos. Virada de costas, dois bichinhos. Acordo sem o efeito do vinho exceto por
uma leve dor de cabeça.
O relógio. Uma hora. A cortina filtra a tarde. Vozes de crianças na sala. – Amor,
vamos tomar café. Depois vamos a algum um lugar onde a gente possa conversar. – Ah,
mas eu não quero sair de casa. – Então expulsamos o Keiko e a Sandra. – Será possível?
– Provavelmente nem será preciso. Costumam sair nos feriados com as crianças. – Você
nem sabe: são separados; Keiko não mora aqui.
Sandra se horrorizou com o caos em que sua cozinha se tornara sob a luz
implacável do dia para onde convergem todas as festas. – Meus Deus, acabaram com
tudo, não temos nem para o almoço – disse. – Keiko acorda o Paolo e pede a chave do
carro.
O ex de pijama informa que Paolo e Rosalice não haviam dormido ali. – Não? Ah,
Meu Deus...
Fui como estava, com uma bermuda vermelha de Esperança e uma camiseta
branca de Keiko. Ela tinha quadris e ele não tinha ombros. As coisas que Sandra queria,
eu podia encontrar num mercadinho próximo; meu jornal apenas no centro da cidade.
Comprarei tudo lá. Tomei o bondinho pelo estribo. Na volta, nos arcos da Lapa,
praticamente suspenso no ar, o jornal debaixo do braço e as sacolas nas mãos, protegido
por meus sonhos, passei a viver por alguns dias como uma folha que será deixada na
janela perfeita antes de seguir seu curso no vento até a relva.
– Amanhã começo num bom emprego. Em breve, vou me mudar. Tenho até um
apartamento em vista.
— E a música?
— É só um hobby.
Quero que você venha a Friburgo comigo, diz ela. Vou passar a semana santa.
Preciso refletir sobre muitas coisas. Pergunto quanto a meu emprego. Ela diz que Magda
conhece metade dos médicos do Rio. Arranja um atestado para você. Se puderam ficar a
vida toda sem você, poderão ficar mais uns dias. Dá uma risadinha. Na Páscoa teremos a
decisão acertada.
Não entendi. Decidir o quê? Mas me dei conta de que instantes antes eu esperava
de seus lábios uma palavra de separação. Meu silêncio passou então da dor ao alívio. A
perspectiva de uns dias longe do Rio, num lugar idílico como Esperança dissera ser o
sitio onde passou a infância, com Esperança — por que não? Antes do anoitecer, num
crepúsculo abissal, descemos de bondinho. Quando atravessávamos os arcos, Esperança
recostou a cabeça em meu ombro.
Ao chegar em casa para fazer as malas encontrei um clima estranho. Minha mãe e
minha tia caminhavam de um lado para o outro inquietas cochichando. Evidentemente o
assunto era eu. Fecharam-se num quarto e entrei no meu. Não consigo me concentrar na
escolha das roupas. A meteorologia previu frio na serra. Enfiava as roupas de qualquer
jeito na bolsa e as duas irmãs entram.
Já sabiam?
Ergo olhos para minha mãe e ela continua falando. Sei que nunca conversamos
muito, disse, e nesses casos não há muito que possa ser feito, mas...
Eu podia imaginar. Assim como fizera Tereza demitir Esperança, Sara não se
calaria com minha mãe. O que pretendia? Que vantagem? que vingança? que volúpia?
Fazer-se de vítima? Jogar minha mãe contra mim? Fazê-la me deserdar? Obrigar- me a
romper com Esperança e ficar com ela, com Sarah?
– E sei, meu filho – disse minha tia – que você entende que não pode mais ficar na
casa de sua mãe e — Já estou mesmo saindo. Ela retrucou: Está zangado conosco?
– Ora essa! eu é que devia estar zangada com você! Sei que falhei muito como
mãe mas sempre te amei e fiz tudo pelo seu bem.
Eu também amava minha mãe mas não parecia mais possível erguer uma ponte
sobre nosso abismo aprofundado agora pelo mal-entendido que ricocheteava nas
palavras. Meu Deus! O que estou fazendo neste teatro grotesco? Fecho a bolsa.
– Mãe, não vamos discutir. A vida é minha. Tenho direito de vivê-la como quiser.
Ela franziu as sobrancelhas e passou a mão nos cabelos e disse sim, a vida é sua e
minha tia completou: – E a morte também será.
Morte?
Mentir?
Barulhos fora do prédio. Uma mulher lavando roupas. Sim. Mentir sobre o
emprego. Ah. Quisera correr para os braços de minha mãe e abraçá-la. Não é natural esse
rancor de parte a parte. – Não menti, mãe. Só adiei o início para resolver um imprevisto.
Bem, estou indo.
Mal escuto a voz de minha mãe. Diz – Você bem sabe que não começará nem
nesse emprego nem em qualquer outro. O gato se enrosca em minha perna. Talvez, digo.
Talvez eu viva da música. Estão vendo? Estou levando o violão.
— Meu filho...
— Mãe, vou passar uns dias em Nova Friburgo. Na volta, vou ficar na casa do
Sérgio.
Fiz menção de beijá-la e ela afastou o rosto tão instintivamente que me assustou.
Saí.
Dona Letícia, a tia, disse para darmos uma volta. Não tinha cabimento as visitas
trabalhando. Deixa, menino, eu lavo a louça. A cachoeira está bem bonita. Na trilha, as
folhas secas rangiam e aves cantavam e a brisa gemia entre as árvores. Sentamos na
pedra. As águas murmuravam uma canção de paz no hiato das águas, um pequenino lago,
antes de despencarem no bosque lá embaixo e seguirem seu sinuoso caminho. Cedo ou
tarde desembocariam no mar distante. Nosso recanto de amor naquela tarde e nas demais.
Na verdade não me lembro de ter ficado em minha vida inteira tão continuamente
excitado. Jamais será aplacada a paixão?
Assim por muitos dias, deixa eu ver, umas duas semanas. Um pouco mais à tarde
íamos à cascata. À noite, protegidos com mantas de nossas ardências na friagem,
ouvíamos música. Esperança me mostrou sua coleção de óperas e o fascínio sobre mim
foi instantâneo; mas prefiro, disse um dia, que você cante suas próprias canções. E cantei.
Além das galinhas e dos patos e do feroz Papa, filho do velho pastor da
adolescência de Esperança, havia na casa a gata Mitsy. Dona Letícia a encontrara
abandonada havia um ano. Nas refeições sentada ao pé da mesa Mitsy lançava um olhar
fixo de súplica. “Vem, Mitsy, vem cá”. Ela brunnnn pula e continua ronronando. Quando
eu dava sua comida, iaunnnnnn, agradecia antes de comer. À noite o motorzinho entrava
sob os cobertores e permanecia conosco até de manhã.
P4B; C3BR; P4BD; P3R. Sérgio esperou muito tempo pela minha jogada
seguinte, uma óbvia saída de bispo. A contemplação do tabuleiro não controla o meio e
ganha o jogo mas eu perdera a concentração. B2C também para as brancas. A Tijuca é
um bairro alegre. Fogos e sons de alegria do Borel. A janela dá para lá. Demorei a
perceber a jogada e a responder ainda mais. Sérgio acende um cigarro e liga baixinho a
TV. Roquei e retornei ao amanhã. Eu estava pensando em vida em comum. Estava
pensando em Esperança. Na dificuldade de encontrar um apartamento barato para alugar
no Rio de Janeiro. Não parei de pensar nisso desde a chegada de Friburgo. A mulher de
Sérgio me olha com um quê de reprovação, não me sinto à vontade com ela por perto.
Agora vai dormir. Meu parceiro, mesmo um minuto antes distraído pelo noticiário,
C3BD, retruca rápido. Incomoda-me também que pensem que eu seja bissexual e viciado
em drogas injetáveis, segundo a confissão que eu não fiz a Sara. P3D. Chove. Não creio
que Sérgio pudesse compreender a história. AIDS! Sarah foi longe demais. Tirarei
satisfações? P5D. Pensando bem, a demissão de Esperança provocou nossa viagem e
assim, mentindo para minha mãe, Sarah precipitou o que eu já devia ter feito há muito
tempo, sair de casa. P4R. Viver minha vida.
Minha jogada: C(5C)4R. Levanto para esticar as pernas. Dedos entre os discos na
estante. A dedicatória de Cristina pelo último aniversário do marido. Olhos de novo para
Sérgio. Está de olhos fechados. O casal mal se fala. Está sozinha com o bebê no quarto.
Choro de criança. Vizinhos. Um jornal na estante. — Xeque — declarou na minha
distração. A torre branca se interpõe entre a dama e meu rei. Em negrito o anúncio no pé
da página. Um anúncio pessoal. Essa súbita falta de ar. Essa raiva — ou será tristeza?
Voltei e sentei e a desamparada mão se moveu pelo tabuleiro. D8T+; R3C; D8R; R3T.
Antes de um novo cheque, abandono a partida com a mão estendida de perdedor.
Um momento por que não esperava passar. Sete horas no relógio da Central. A
casa que não será o cenário que desejei. O percurso da casa de Sérgio à de Magda, do
Andaraí ao centro do Rio, num misto de amor e ódio, desespero e auto-estima ferida. O
mesmo corredor do primeiro dia mas não parece o mesmo lugar. A mesma sala do
primeiro dia — a mesma Esperança?
Esperança tem esse jeito de falar olhando nos olhos. – Por que não disse?
Conversaríamos hoje, lembra? Sim, a Virgem morena. 1m78. Sexy. Discreta. Senhores
educados. Talvez nem se chame de fato Esperança. Não falo mais. Era a mágoa contra o
pai e o irmão, o rancor contra os homens? Não. O dinheiro. A independência. Casa,
viagens, segurança financeira. Não sei se entendo o porquê de tanta franqueza.
Quando nos encontramos, ela havia decidido a vida. Quando decidiu, não se
julgava capaz de amar. Ela tem um passado e bem recente. A noite é linda, calma. Eu a
conheci como enfermeira, não por um anúncio. Eis a origens de todos aqueles
telefonemas... Ela não dava o número de Magda. Usava uma caixa postal de voz, preferia
assim. Então perdi contato com sua voz ao levar em conta que ela não tinha atendido as
ligações. Subentendendo da reação de Magda à minha aparição que apenas eu tivera o
privilégio do endereço. Eu havia sido o único.
Não sabe.
***
Em 1983 quando cheguei havia muitos brasileiros, não muitos com bolsas de
estudo e menos do que eu imaginava com ajuda da família. A maioria como eu mesmo,
sem dinheiro. Procurando casa e emprego. Dei sorte. Conheci uma francesa e comecei
logo cuidando de crianças. Depois fui vendedor numa loja e só aí arrisquei tocar na rua.
Mudei muito, portanto. A necessidade que faz o sapo pular lançou longe minha timidez.
O metrô depois - coisa chique com autorização da empresa de trens e tudo. Minha amiga
falou com o pároco e deixei um anuncio no mural na igreja. Deu certo. Um projeto
chamado “Nuits de Rio”. Licence em Estrasburgo, Master Professionnel em Paris. Uma
turnê numa orquestra de 90 músicos. Em Montreux conheci minha mulher, uma
colombiana, mas já nos separamos. E aqui estou agora.
Não imagino mais sexo sem Esperança. Há eunucos que assim nasceram e há os
que se fizeram assim por Deus e outros a quem os homem e há eu sem Esperança. Sim,
doce querida amiga, eu me lembrarei sempre de você.
Gosto de Marais, das pessoas misturadas sobre a grama, mas o que realmente
adoro é tomar um café e voltar para casa, deixando lá fora os passos da marcha e meu
destino circunstancial. É quando dedilho meu poema de posteridade e encho páginas com
um cântico imortal.
Não via a hora de acabar o show para abrir a carta de Esperança. Ela também se
sente bem, realizada. Acredito que a distância seja o lugar onde está mais perto de mim.
Na sua ausência sua presença é mais completa, não há sentimento de posse ou a
inquietação de um desejo constante. Uma voz interior me desmente, é claro; diz estou
totalmente errado e louco e me enganando. Que nosso relacionamento era perfeito e
poderia continuar a ser. Enfim. Não somos pessoas comuns, como as invejo! A elas é
dado amar e deixar de amar. Juntarem-se e separarem-se. A nós restou amar e nos separar
e amarmo-nos ainda mais. O desenvolvimento natural das coisas substituído por um
equivalente transcendental.
Em meu quarto, olho a janela. Lá fora uma estrela. O vento sopra, passam as
nuvens. Eu não voltarei mais mas estou aqui agora. Luz. Além, muito além dos sons de
meu violão, que como uma oração o gravador repete. Além do libreto em minha mesa,
dos poemas, minha história. A vida apenas vivida passa; os sentimentos registrados
permanecem.
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Uma vez quando a viu seminua exposta como apenas ele deveria estar ao lado do
violoncelo (a luz refletiu na costilha, nascia ali) – Você é minha salvação —disse,
deslumbrado. – Não me ame assim – respondeu ela; não preciso desse tipo de amor.
Deitada de costas na cama ri sozinha. Pela ponta dos dedos suas mãos de dão
sobre a cabeça. Se estivesse em pé seria uma prisioneira; vestida assim, uma escrava
sexual. Os cotovelos se apóiam no colchão. A bermuda no cabide do lado de fora do
armário pendurada na chave se desfia como se derretesse. Pingos amarelados de brim
caindo no assoalho. A luz em sua garganta e entre o início dos seios provém dos mesmos
raios na cortina que ondula. Os mesmos dedos que se davam junto aos cabelos apalpam
agora o quadro na parede. Veja essa linha azul, esse azul mais desbotado, esse céu. O
abajur encostado ao tecido da tela aquecida pelo crepúsculo.
– Não olhe para a blusa – retrucou ele quando ela desabotoava o seguinte. – Olhe
para mim – Nao raro ela confundia essas fantasias com sonhos e sonhos com lembranças
e um dia decidiu que no fim das contas a diferença era nenhuma.
A aluna entra e caminha até ele e toca seu ombro e pergunta se é divorciado e se
queria se casar de novo mas ele não chegara a responder a primeira. Ela nem ouve mais a
música alta. Está parada e ele sentado, a boca à altura dos seios. Sempre se sentiu assim
em relação aas moças da pensão. Nessas horas perdia a noção de tempo mas nao de
espaço e achava melhor ou tudo ou nada mas sem Esperança tinha de conviver com essas
experiências incompletas. Os orgasmos agora tinham um depois enlouquecedor.
Pensando assim teve forcas para mesmo tão perto de outro corpo feminino tocar
sim mas para afastá-lo como um cachorro grande focinha um pequeninos para tirá-lo do
caminho. Tenho de dar um telefonema, disse. Era uma desculpa e era verdade.
Caminha na direção do som, mastigando. – Não tem ninguém aqui com esse nome
– Tinha quase se escandalizado. O aparelho era decoração e a hora é completamente
imprópria.
De novo.
— Tudo bem.
— Tudo bem — ela respondeu. — Tente outra vez; vou desligar e deixar fora do
gancho. — Não faça isso. — Deixar o telefone fora do gancho?
— Desligar.
Ele revela que é um músico consagrado. Não que isso importe mas respeitado em
todo o mundo. Ela não ficou minimamente impressionada mas logo sim, quando ele fez
confissões verdadeiras exceto pelo próprio nome.
Está encantada, na verdade. Um homem tão famoso e apesar de tão simples dono
de tanta erudição.
Um mês depois ela trabalha em casa como quando era menina. Dispensou a
diarista e assumiu suas dificuldades e agora o piso espelha o dia. Varre e passa a cera e o
pano e limpa o banheiro com três produtos. Perdeu a prática e as luvas atrapalham os
movimentos. Deu uma parada e abriu a geladeira, pegou uma coca. Nesse tempo tinha
começado a questionar sua evolução profissional e se perguntava se um dia usufruiria de
novo a alegria indizível de tomar refrigerante no colo de um homem ou um banho de
imersão junto nas águas escuras de uma lagoa entre cascatas.
Mas tentará não pensar em Paris. Ele encontrou a paz e não será ela a estorvá-lo.
Então o aspirador ruge como um bicho.
Modelada pelas duas lâmpadas sobre a arca de mogno caminha ereta pela sala A
camisa se depreende quando ela se abaixa ao tirar a mesa se revela o contorno escuro das
pernas que a amiga não deixa de notar ao comentar com a administradora do hospital que
tampouco ela consegue dormir uma noite inteira.
Tomam um gole dos copos do jantar ao mesmo tempo. Os músculos de sua face
estão tesos. Faz um contato visual inequívoco mas se lembra que é sua chefe.
– Pode ser que ele seja um canalha, quem garante que não? Um assassino.
Acontece.
Será hoje, ele pensa ao entrar sob a luz que doura a fachada. Hoje ou nunca.
– Para você está bem amanhã às cinco no parque? – deve ter levado meia hora
para pronunciar a pergunta.
Estava muito ansiosa. Todos notam no trabalho e uma ou duas amigas torciam
para que desse certo; era uma boa chefe, merecia.
Pela manhã no espelho pensava na serenidade que deveria ter. Para o maestro
vulgaridade deve ser imperdoável como falha de caráter.
Se fizera bonita com a ajuda de uma sobrinha. Vestia com garbo um vestido de
gabardine xadrez cujas alças que se cruzavam nas costas.
Lá estava debaixo de um céu rosado sentada no banco com recosto colorido. Ele a
viu e se manteve à distância enquanto outras pessoas sentavam próximas, nos bancos em
torno do playground médio envernizado. Um homem jovem e bonito de jeans e camisa
branca e sapato preto de camurça, como o combinado. Olhou-a de alto a baixo.
Embora ela não fosse tão jovem, não era de se jogar fora. A principio se divertiu
com o engano. Um pretexto decerto para se aproximar. Não parecia uma prostituta.
Talvez uma esposa frustrada. Não importa. Terá o que está pedindo. – Então vamos sair
daqui?
Cheia de dor ela vê diante de si um homem de mais de quarenta anos que aparenta
menos de 30. E não mencionara beleza física, pelo contrário, dissera ser de aparência
comum.
Quando ela deixasse seu apartamento e chegasse o amigo com quem combinara
ver o filme, ele contaria os detalhes da noitada.
Adele quis chorar, mas desistiu. O homem encontrava a cada instante novos
encantos na louca que o abordara.
Mas depois cedeu. Não faria diferença quando ela estivesse morta.
Banhado em suor, o professor de música entrou no prédio logo depois. Você ainda
vai se dar mal, a mãe dele costumava dizer. —Será um irmão irado ou um ex-namorado
ou a própria polícia.
– Você é louca! Vagabunda! E eu perdi uma grande noite com um amigo a quem
amo para estar com você.
– É claro que não ele, sua idiota — disse, fechando o zíper da calça. – Agora
posso até ser preso por estupro...
Ela correu entre os moveis e parou atrás do sofá e pulou na poltrona. Ouviu as
batidas na porta. Duas vozes de homem. Ela gritou e gritou novamente e de novo.
A penitenciária apesar das atuantes. Adele visitava aos domingos o velho amigo
que a viu de longe após tantos e tantos anos. O velho amigo. O antigo amor. Que estava
e nao estava ali. Que a salvara e nao salvara. Sequer a si mesmo. Ou sim. Nao tem certeza
de nada. Para que serve um amigo. Um antigo amor. O amor, aliás. Essa luz encarcerada
e a velha vista da feira onde estaria bem logo batendo fotos. Va saber. No fim das contas
o valor das coisas estah tao pulverizado nos seres humabos, em cada um deles, que saber
ou nao qualquer coisa faz nenhuma diferenca. Fazer sim. Alguma. Nao tao definitiva.
Mas alguma. Cinco anos, talvez menos, na cela úmida.