You are on page 1of 122

Não acharás, amor,

No poço em que cais

O que na altura guardo para ti:

Um ramo de jasmins todo orvalhado,

Um beijo mais profundo que esse abismo.

Pablo Neruda (O poço)

OS LADRILHOS da fachada amarelejam ao longo do caminho para o fim. Bordas de


blusa ondulam sob o voo leve do pássaro de um sonho. A textura da saia não permite que se
determine a cor e adeja, mansa e inexaurível, tomada de suntuosidade súbita. Os traços de seu
rosto na aura de medo não se atribuem a beleza que os transeuntes detectam. Para o fim. Ela
escuta nos carros que passam. Está escrito no arrebol entre os prédios.

É véspera do inverno e desde que chegou há uma semana faz um frio a que não está
acostumada. Disseram que o centro não estava longe. Que seguisse a avenida até o parque e
virasse à direita no semáforo. Não disseram quantos quarteirões isso significava. Quando
chegava, o ônibus passou por esta avenida. Na frente daquele café ela o viu pela primeira vez.
Um pouco antes ouvira que falavam dele. Está doente. Bem feito, alguém disse. É um canalha.
Morrerá sozinho como sempre viveu. O fim que merece. Entao ela o seguiu de longe.
Aproximou-se quando ele deixou a mesa. Deixara cair alguma coisa. Ela abaixou-se e apanhou a
pequenina rosa.

Luzes de uma janela. Vozes de criança. Um vulto recortado contra a sala. Ela disse aos
vizinhos que o emprego estava certo. - Não precisa ir, Alice. Não precisa ir. Você tem tudo aqui.
Devia terminar a faculdade. Fazer um doutorado. Um dia ela achará o mesmo. Um dia como
sempre quando não mais for possível.

ELA NÃO FALA há dias. A última conversa foi com a moça que viajou a seu lado. Saiu
do ônibus sentindo o esforço. Seu duplo exausto passou pela vitrine enquanto lá dentro a
vendedora apanhava um par de sandálias. Parece seu número. Tiras e ligas, do tipo que ela gosta.
A atendente é bem bonita mas que vale a beleza? Dinheiro é o que vale. Um após outro eles
passam. De Darken Pöbel a Öffner Hilo. Com um ficou na ponta dos pés e com outro deixou o
celular cair. Permitirá tudo. Pomba gemendo em círculos sobre o farelo de tempos de um mundo
inóspito mais inóspito quanto vivos os sonhos.

Ele surgiu do nada: — Aceita um café? — disse. Que moça sozinha na cidade grande
recusaria? Era gentil e muito lindo. Ensinou como se chega à casa da moça. Ela não teria de
passar a noite na rodoviária ou numa casa de acolhida.

Havia platibandas e arranjos de ramos entrelaçados nas janelas do restaurante e todas as


pessoas tinham celulares ao lado das xícaras. Para a garçonete ficou manifesta a diferença de
altura quando os viu pela janela. — Olhe que sorriso sincero — disse para a colega que servia a
mesa que dava para a rua.

O sol da tarde nos cabelos faz de Alice uma santa aureolada. O ombro esquerdo no lado
direito do peito rígido. Não é um rapazola nem tão mais velho como ela a princípio imaginou. O
tecido da blusa lhe cai bem. O que estou dizendo? Não o conheço.

Visto do vão dos prédios o trânsito se arrastava. Ele apanhava papéis de bala e maços
amassados no chão e colocava nas lixeirinhas. — Após o teatro a primeira rua à esquerda. Do
outro lado aparecerá uma padaria. Costuma ter muito movimento.

Se ela quisesse mesmo procurar a casa da amiga.


Alice devolveu o sorriso franco.

Um dia ela se refugiará naquela padaria para comer sonhos em meio ao burburinho dos
bebedores de cerveja do fim de noite e operários tomando café. Terá fãs por ali.

No momento a última coisa que quer é procurar a casa de uma moça cujos propósitos
não ficaram claros, ainda mais agora que havia conhecido o amor de sua vida. Por isso não
resistiu. Foi um beijo perfeito o primeiro sob a lua.

PEDRO ANDREAS HOFFMANN veio do interior para São Paulo estudar arquitetura
mas logo a necessidade fez com que mudasse para Análise de Sistemas e bem a seguir um curso
técnico voltado ao desenho de móveis. Antes de terminar os estudos já estava casado e foram
passar a lua de mel na Europa e cumprindo uma promessa levou a mulher para a Praça de São
Pedro mas naquele domingo o Papa pela primeira vez não fez a oração dominical e estava
estabelecida a primeira de muitas frustrações do casal. Em 2013, o relacionamento estava
desgastado mas nem um nem outro admitia abertamente, na esperança de que a gráfica que ele
tinha aberto viesse a mudar as coisas, sobretudo se ela engravidasse.
Essa evolução material não se fez acompanhar de progresso espiritual ou sequer do
alívio da anedonia e logo seus corpos refletiam isso e ela, outrora magra, tornou-se fornida e
cadeiruda e ele ganhou a barriguinha típica dos prósperos infelizes e nos dois casos os fazia tanto
mais atraentes para terceiros quanto se entediavam um ao outro.
Em junho ela viajou para sua cidade natal, vizinha à dele. Passou dois dias e na volta
esperava que o assento ao lado estivesse vago pois estava muito cansada e queria se esticar
durante aquelas quatro horas e definitivamente não estava com paciência para conversar com
estranhos. Mas a jovem que sentou ao lado, no momento exato em que o motorista ligava o
motor, imediatamente angariou sua simpatia ao se encolher junto ao braço lateral da poltrona ao
lado do corredor, quase pedindo desculpas por estar ali. Conversaram sobre estudos e mercado de
trabalho e de passagem Sonja, a esposa de Pedro, mencionou as confusões na capital por causa do
aumento das passagens e a outra apenas sorriu constrangida por não ter a menor ideia do que se
tratava.
A VITRINE reflete a cabeça inclinada. A dor no movimento é resquício da posição na
viagem. Não é uma dor má: evoca o ombro da companheira. Alice está agora sozinha sobre o
viaduto. Ao longe o trecho de superfície do metrô. Essa que agora eu sou, como a onda solitária
que entre outras é a única que enche e não arrebenta, orla de espuma abortada e cansada,
tensa, sozinha, carregando um mundo destruído, oh Deus — pensou ao focalizar a luz amarelada
nos ladrilhos.

Encheu os pulmões. Ajeitou a meia e se demorou no relevo escuro da parte de trás do


joelho. Como quem faz uma verificação, deslizou os dedos mais para acima e sentiu a maciez
morna. A música nos carros faz parte do brilho metálico que se dilui no ar.

Continuou caminhando ao passar pela entrada do metrô e se despegou da massa humana


na qual quisera se integrar. Atravessou a rua com uma corridinha quando o verde abriu. Sua
sombra corria fiel a seu lado e se uniu à sombra dos cabos elétricos, ultrapassando-os. Parou em
frente à lan-house. Entrou. As pernas doem. Está suada apesar do frio e precisa ir ao banheiro.
Diz seu nome ao pagar a hora ao atendente. O rapaz que entra em seguida escutou e logo terá
oportunidade de repetir em voz alta.

Olhou de soslaio os computadores na penumbra da sala. Tirou o livro da bolsa. Os cantos


das primeiras páginas unidos na mesma dobra. O planeta girou e se aproximou em mapas e
nomes, em números e mares. Puxou a cadeira de modo que suas mãos se acomodassem melhor
ao teclado. Por meio de dedos treinados, acompanhando as telas com olhar amortecido e lábios
compactos, deu-se conta de que um mundo estivera em pleno andamento ao longo de sua
depressão. A respiração retornava ao normal. No prédio em frente, a primavera caía sobre o
muro. O atendente esticou o queixo e logo seus olhos obtiveram o desejado ângulo.

Está escuro mas os usuários não percebem ou não se importam. Lado a lado cada um
olha seu monitor como se contemplasse o nascimento do mundo. A cor no rosto de Alice vem da
tela. Uma e outra vez sem virar a cabeça ele vê o perfil de beleza e serenidade entre cortinas
ruivas. O sol se pôs atrás dos prédios laterais no reflexo d vidro escuro que os separava da rua. O
som da geladeira onde estão os refrigerantes se confundia com uma chuva que de há muito não
caía. O rapaz que a seguia se imagina com Alice pelas ruas do entorno. Chegou a pensar num
motel mas descartou a idéia. Então por que está ali — perguntou-se sem resposta. De moças
bonitas seu trabalho está cheio.
QUANDO ASSUMIU O CARGO de chefia na empresa todos os anos eleita como a
melhor para se trabalhar no País, Pablo Andreas Hoffmann tinha realmente o melhor currículo
dentre todos os candidatos. Ótimas faculdades, mestrado, especialização. E o entrevistador
percebeu ainda uma vantagem adicional: ele sabia lidar com pessoas. Não soube isso na
entrevista. Tinha vasculhado a vida do futuro funcionário nas redes sociais. Suas namoradas e
seus livros, suas bravatas irresistíveis.
Ele não decepcionou seus empregadores. Bastou uma semana para saberem que ia longe
na carreira. Não se dava descanso. Sem qualquer dificuldade de se passar de companheiro de
happy hour ao homem que dá as ordens. Fazer de seu apartamento um abatedouro e as lebres
renascerem em colaboradoras dedicadas de projetos no dia seguinte.
Esticava o horário de expediente em restaurantes com mulheres ou clientes e as vezes
intercalando uns e outras. Em dias inspirados praticamente não dormia. Ontem ainda foi um
desses. O lugar era um casarão dos anos 20 adaptado segundo os prédios holandeses de
containeres. O proprietário tinha ficado muito satisfeito com as soluções para o wifi e a
segurança da rede e particularmente com o uso de blocos de aço, um projeto de arquitetura
sustentável que ficou quase de graça, pois nessa época os irmãos não só ainda se falavam mas
davam sugestões no trabalho um do outro.
Pablo e sua acompanhante ficaram muito a vontade num sofá de couro sintético
alaranjado perto de uma das varandas. O atendimento foi gentil e discreto, adoraram. Saíram
pelo corredor lateral as duas e meia da manhã. Ventava um pouco e o farfalhar da organza sob a
jaqueta dialogava com os sussurros.

UM RIO CORRE lá embaixo. Uma linha cintilante. Quando Pablo tornou a olhar para
Alice, ela via a terra girando. Continuava procurando a casa que devia ter procurado no primeiro
dia, mas não podia fazer as coisas do modo mais simples; não ela. Talvez porque gostasse da
sofisticação das frases nos livros que amava. De como mantinham a clareza e apesar de todas as
curvas chegavam sempre ao entendimento, que é vida. Nisso, ela e a mãe concordavam. Alguma
coisa para atraí-las precisava antes de qualquer coisa ser mais que verossímel, precisava ser
verdadeiro; tinham esse objetivo comum nas direções opostas que tomavam. A terra. Fotos de
satélites em alta resolução.
A TARDE TERMINA. As árvores escurecem mas as copas refletem a luz dos postes
diante da loja. Ao sair ela pensará em igrejas contíguas brilhando na manhã de um domingo. Os
operários batiam o ponto na obra que ao lado levantara ao longo de todo o dia uma poeira
abóbora muito seca, estranho incenso. Alice chega à casa da amiga. Sonja Tuslei. Estar ali, não
na rua, mas diante de um computador, era o tributo à sua negligência, maior que o desejo de uma
nova vida ou a vontade de encontrar um bom emprego e exercitar as virtudes domésticas e ter um
canto seguro onde ler e escrever.

Mulheres e homens movimentavam esse ser que é a multidão em hora de rush. A música
dos carros parados no sinal acelerando em falso . Quando ela levanta a cabeça, relanceia o muro
sujo de profecias. Era um bairro nobre relativamente tranquilo, quase central, nos jardins; não era
dia de feira, como por um instante ela pensara; se fosse, poderia comer um pastel e escapar da
tontura. Apontando o muro pichado, uma mulher diz que tem medo de sair para trabalhar nessa
situação; Alice pensa que isso é passageiro. Que ali poderia trabalhar e morar e ser feliz. Pensa
na doçura do despertar antes do sol e preparar as coisas do novo dia. Água para o café e toalhas e
as roupas. Levar o cachorro para passear. O segurança do supermercado 24 horas olhará para ela
e pensará como é bonita. Tem um casal de filhos mas definitivamente não parece, pensará o
homem.

Pablo a segue no meio do trânsito. Quanto mais caminham, mais ele perde de vista a
razão por que começou a perseguição. Às vezes ele pegava aquele caminho, de carro, por pegar,
apenas porque apreciava os ares do lugar. Ia devagar, olhando para os lados. Uma vez aconteceu
de encontrar a cabeleireira e devolver o sorriso dela. Na cama, ele retira o tênue obstáculo. Ela
não fala. Sente-se bem com alguém que mostre o caminho. Duas horas depois, como se nada
tivesse acontecido, ele tocava seu projeto no escritório. Isso faz uma semana. Ele entende que
não se trata da mesma coisa agora.

Ao olhar para ele de esguelha, Alice pensa em Pedro. No silêncio da madrugada ele quis
em vão seu desejo satisfeito, e satisfeito sem depois, esse depois: casa própria, cotidiano, roupas,
tiquetaquear na cabeceira, cama de casal, controle remoto partilhado, o sol nos móveis a prazo,
horários, conta conjunta e quem sabe os filhos, indubitavelmente os filhos. Ela não poderá
censurá-lo amanhã, pensava ele ao saírem do café. Ele não se declarou, não fez promessas.
Podia ter sido necessário, mas não foi. A mão sob a saia sente que Alice está pronta.
- Então vamos — disse ele quando a garçonete se afastou.

- Vamos — disse ela.

Quando entraram no apartamento, ele tocou o interruptor e um fantasma surgiu onde ela
deveria estar. Por um segundo ele se espantou, mas em seguida estava de novo senhor da
situação. Era um homem religioso. Nossa Senhora iluminada pela lâmpada do nicho, derramada
em leite e luz nas partes em que não havia a blusa lilás um pouco amarrotada mas ainda por
dentro da saia curta agora mais curta por conta do movimento de se abaixar para religar o velcro
da sandália. Cabelos em cataratas negras. Músculos da panturrilha perfeitamente definidos: carne
e leite, imaginará Pablo.

Um sorriso correspondido. Livros reconhecidos. Para onde ela ia?

- Eu te acompanho — disse ele.

Ela se sentiu reconfortada, mas logo se lembrou do homem que lhe ofereceu um café e
abrigo por uma noite que não se consumou, iniciada com a luz no canto do pequeno apartamento
e o movimento dela ao se abaixar para religar o velcro da sandália. Se você quer vida, pensou ela
então, aí tem.

Dentro do fusca havia uma espécie nobre de silêncio nobre que não incomodava.
Haviam passado pela ponte, estrutura sáxea correndo ao longo do asfalto lá embaixo. Ela pensou
o quanto tivera sorte. Levou a mão à parte de trás do pescoço e abaixou os olhos e apertou-os e
abriu-os de novo e, como não tivesse sido nada, levantou o olhar para as janelas e telhados
recortados de frio azul esmaecendo, esmaecendo até a aparição de Darken Pöbel, em quem
pudera um dia confiar. Dirão o seu primeiro amor. Pode ser.

Darken... Mas qual a relação entre ele e esse salvador com quem saíra do café direto para
o apartamento? Darken. Um rapaz de bem. Ali está. O carro descendo a rua sinuosa. Pede uma
informação ao pedestre e segue. Ela olha e há o instantâneo Devia ter o quê, uns quatorze anos?
Viu quando ele parou e tentou estacionar quase em frente ao prédio. De perto parece mais velho,
mas que importa? Rapazinhos têm de se estabelecer na vida. Melhor um homem estabelecido
com dinheiro suficiente para levar a namorada a qualquer programa que ela invente, um
restaurante, um show (e o teatro que ela adora anda tão caro) — incluindo o motel ou, melhor
ainda, o apartamento. Mais um ou dois anos e ela seria uma mulher feita com esse tipo de
necessidade que um menino de sua idade não poderia bancar. Mesmo depois de um ano ou dois
ela ainda será menor — pensou Darken após algum tempo de contemplação. Pode ter sido a
causa da ligeira batida no carro da frente. Tomara que não tenha amassado. É o que menos ele
precisa num dia cheio de chateações. Dá-se ao luxo de contemplar a menina numa tarde tão
pálida e morna em que não se poderia afirmar que o céu limpo estava azul ou era uma variação
do branco. Uma mulher que passa leva as mãos à barriga: é o neném chutando; outra, um pouco
mais jovem e menos bela, leva o carrinho de bebê. Darken fala sozinho. A menina pode perceber.
Quem sabe não esteja justamente falando dela e abre um sorriso que (embora estivesse mesmo)
ele não chega a ver.

Pedro era um homem alto e magro com cerca de quarenta anos, a mesma idade de Darken
quando ela o conheceu. Os cabelos lisos são castanhos e os olhos verdes faíscam. Há uma
estranha delicadeza em seu nariz grande e isso a impressionou logo no primeiro momento. Pedirá
ou terá mandado que ela estendesse a curva da praia erma, refúgio perdido do resto do mundo.
Pedirá — não ordenará embora ela até preferisse — que surjam as rochas altas e redondas em
meio àquela tempestade. E terá tudo o que pedir e mais teria se quisesse e sabe-se lá por que não
quis. Por que em determinado momento seus olhos se cansaram. Surgiu um horizonte descorado
como o que lá fora há pouco baixou do céu e se amassou nos lençóis para frustração e culpa.
Nisso os dois homens foram iguais embora a sequência diferisse: Darken não demorou nada e
estava de novo pronto; Pedro demonstrou com o convite que outra coisa naquele momento não
mais queria ou não podia.

-Então vamos — concorda sorrindo. - Vamos tomar alguma coisa.

Ela está, portanto, no banco do carona do carro de Pedro e no retrovisor de Darken. Vem
de um mundo desconhecido e invade com sua íris pincelada e a luz em seus olhos o torpor
acomodado do mundo ao qual ele se acostumou. Como o quadro em que o pintor recém-desperto
retratou o sonho ideal, colocado na sala de alguém que desprezava a arte e, a partir dali, passará a
viver em função dela.

No carro. Passando pela ponte. Lembrando como Darken aparentava mais idade. O fusca
ultrapassado perigosamente por um caminhão que em seguida sumiu na curva após a igreja em
que no primeiro dia ela tomou sopa para economizar o pouco que trouxera. Estava gelada. Ao ver
com nitidez as linhas de expressão no rosto de Pedro, pensou que era homem atraente — como se
ela pudesse saber o que é um homem atraente; como se tivesse tempo de vida para tanto.

A curva sabe Deus para onde. Está para acontecer o inevitável e isso basta. Ao lado de
Pedro ela se dá conta de como se viciara. Justo ela, ansiosa dos direitos do livre arbítrio. As
sombras vespertinas dos prédios baixos se desenhavam sobre o bairro operário onde ele teve a
idéia de alugar o imóvel na tarde de uma quinta-feira chuvosa. A dimensão do asfalto era
discernida pelas imperfeições onde os pneus passavam.

Eles falam pela mesma boca, Darken e Pedro. Coisas nem tão diferentes.

- Estou procurando um apartamento neste bairro. Você mora aqui há muito tempo?

Na verdade Darken não procurava. Hoje ela sabe que ele tem essa artimanha de sedução.
Conseguiu. Não era exatamente no que ela própria estava pensando momentos antes?

AS LUZES que refletiam nos ladrilhos a coroaram. Pablonunca viu cabelos assim. Foi a
primeira coisa que notou quando esbarraram na biblioteca. Respira fundo e a segue mantendo
distância segura, embora tentado a abandonar a cautela e, como seu irmão, deixar que as coisas
acontecessem logo ou não acontecessem, mas logo. A marcha no asfalto ainda macio pelo sol
não diminuía ou aumentava a marcha com os ventos de anátemas.

Ele puxa o fecho do casaco e cobre a cabeça com o capuz e nesse momento pensa que
talvez não devesse, pois assim fazem os blackbloc. O ruído dos carros significou algo quando ela
se virou e pareceu olhá-lo como se respondesse que não, não usava nada nos cabelos há uma
semana. Os rapazes encostados no carro mexem com ela, os inúteis. Pablogostaria de repreendê-
los, surrá-los, mas não. A nora que a mãe de um pedira a Deus. Que idiota! O recorte dos prédios
no crepúsculo é negro, um pouco torto, serrilhado.

Ela o vira de soslaio na lan-house. Um rapaz distinto e elegante ainda que esteja a pé.
Talvez tenha deixado o carro no mecânico. Talvez o tenha emprestado. Mas num dia de chuva,
havia cerca de um ano, ele passara quase três horas no trânsito na volta do trabalho, e ao chegar
em casa, antes de mesmo de tomar banho e comer, fez as contas e, na ponta do lápis, concluiu
pelo transporte público.
Dobraram a esquina, Pabloe Alice, com diferença de menos de um minuto. A saia o
hipnotizava. O rosto dele é tão meigo — avalia ela pelo retrovisor do carro estacionado.
Pensando bem as roupas dele tampouco são as melhores para esse frio intenso. E pelo jeito ele é
daqui.

Cerca de meia hora depois, na escada rolante, Pabloainda estará perto. No vagão chega a
sentir o cheiro dos cabelos. As pessoas ao redor percebem seu olhar.

Sonja passava a flanela no móvel e pensava onde a moça poderia estar. Faz uma semana.
O ônibus vencia a estrada reta mergulhando em meio às centenárias arvores de folhas poeirentas.
Ela temia que uma manifestação bloqueasse o caminho e ficassem presas sem banheiro. Alice,
imagine, nada sabia acerca de manifestações. Era excitante ideia de ficarem sim presas em algum
hotel de beira de estrada. Mas Sonja logo esqueceu e se perdeu em seu cansaço. Não nasceu para
ser mãe, menos ainda esposa.

- Olha vou te dizer — disse a moça do ônibus. - Vim procurar um emprego, mas meu
sonho é mesmo ser dona-de-casa.

Tem gosto para tudo neste mundo. Foi o da própria Sonja um dia. Mas hoje o
cumprimento desse sonho é um sono insuportável. Os membros tremem de cansaço. E olha que
ela é uma fortaleza, a estar certo o que costumava dizer sua mãe. Até acreditaria, não fosse pelas
evidentes camadas quebradiças entre o que ela é e o que aparenta ser. Antevê o final de seu
casamento com indiferença. Ainda estava sim cativada por aquele belo rapaz que um dia a
convidou para tomar um café na saída do shopping e que tarde agradável. Um café, a pracinha
depois e o mesmo banco por alguns dias até o primeiro e inesperado beijo e a mão sob o
casaquinho que trazia no colo. Em meio a uma conversa sobre a situação econômica do país, o
avanço tecnológico e empreendimento e o tamanho dos danos da corrupção. O casamento assim
nascido.

A igreja surgiu e a fila de convidados para os cumprimentos. O padre é o mesmo que lhe
deu a penitência. Minha filha, disse, mas sabe que diz para nada.

Há três horas os dedos do homem acompanhavam as sombras em seu pescoço.


Caminham pela tatuagem na saboneteira e seguem para os seios detendo-se nos arrepios mais e
mais rijos de um e de outro lado. Precisarei me lembrar disso amanhã, repete para si mesmo. No
meio do expediente sonhando com a gráfica e procurando à saída o imóvel onde montar o
empreendimento. Quer manter perto o corpo de seu desejo em mãos enfim livres por esses
quadrantes, esse umbigo, esse chakra, encontrando por absoluto acaso o que já sabia. Vire. Mais.

Pudesse saber o amanhã. Não, não queria. Importava apenas a quinta-feira ensolarada.
Ela continua olhando direto para o sol, desafiadora. Descalça na grama rente como as unhas. Ela
era bonita e forte como uma velejadora. Estava integrada à paisagem, ao reflexo da água se
volatizando na tarde. Parecia estar ali desde sempre, como as árvores. Na presença dela, ele não
vê tão nítido — verá amanhã, no amanhã que não importa e que amanhã sequer existirá;
lembrar-se-á desse momento, do cheiro da mulher e da luz oceânica que junto dela ele
circunavegava. E lembrar-se-á de um momento anterior, a outra quinta, junto das árvores do
lago. E nas duas quintas choveu igual: uma pancada com relâmpagos pela manhã e depois a
chuvinha miúda ao longo do dia, assim como no dia em que ela foi se confessar. Estava molhada
quando entrou na igreja.

Falaram o que falaram por falar, como acontece sempre antes do sexo. Escolhas afetivas
deviam ser feitas numa pirâmide inversa, da afinidade para os encantos, e só então chegar
debaixo de um casaquinho. Sonja passa a flanela e Pablo se aproxima. Nunca mais. Mas, se não
vai vê-lo de novo, pensa num outro. Rua afora em busca do amante morto. Do início do bairro
aos primeiros brilhos da baía, recebe os sinais. O que dependa de dinheiro não será obstáculo
pois Pedro foi generoso no divórcio.

O primeiro foi o pianista da boate. O segundo um empresário de menos idade confessada


falsamente na cama que rangia em meio a estranhas iniciativas, tipo de coisa com que Sonja por
causa do amante havia se acostumado. Ele dirá na delegacia que a encontrou na rua sórdida e que
é possível que a tenha confundido mas não doutor, posso ter minhas taras mas não sou um
homem violento e só extrapolo quando há consentimento.

Pablo se aproximou de Alice e não sabe se o novo esbarrão foi forçado. Quer crer que
não. Que foi o destino.

- Perdoe-me — disse. Ela sorriu em resposta.

Ela não era da cidade, ele teve a certeza. Suas chances cresceram.
- Você é daqui? — perguntou.

- Não. Cheguei há uma semana.

- Ah - disse ela. Não devo me demorar, pensou. Cometer o mesmo erro de quando
cheguei — Irei agora mesmo atrás de Sonja. Então por que se demora? Por que diz que está
indo ao metrô, que tem como destino a estação tal e de lá ainda pegará um ônibus? Por que
praticamente repete o que fez quando chegou?

- Se você permitir - diz ele - eu posso acompanhá-la. Quando chegar lá será noite alta.
A cidade pode ser perigosa à noite. Principalmente nesses dias em que marginais se aproveitam
das aglomerações.

- Do que se trata? — perguntou ela.

Ninguém sabe ao certo mas ele arrisca que é basicamente um clamor por serviços
públicos de qualidade. - Ademais — acrescentou ele — é mesmo meu caminho. Alice lê o olhar
e vê o quanto é gentil e romântico. Um passante contempla os belos olhos da moça. O que não é
prático a desaponta. Foi assim com Raphael Pendant.

Num primeiro momento o que mais poderia uma mulher desejar? Ele sabia conquistar.
Mas, como um revolucionário (que em muitos sentidos era), não sabia administrar a conquista.
Ali está diante do pai de Alice. Submetendo-se ao interrogatório.

- O que seu pai faz?

- Onde você estuda?

- Que faculdade vai fazer?

Como se já estivessem noivos quando sequer eram namorados e ela nem tinha certeza de
que deveriam ser. Mas o calor que sentiu quando ele se aproximou e outro cheiro se misturou à
fumaça das xícaras de café. Acaba de saber que ele estuda Letras e pretende trabalhar numa Ong
com crianças. Não sabe a relação. Começou a perder aí o desejo. Um cara sem ambição que
decerto não sabia distinguir um Sportage de um Mitsubishi. Mas e o calor? E os lábios
umedecidos? E a intumescida carne? E a sugestão de conhecerem a parte de trás das pedras
lambidas pelo mar do parque?
Por que um cara assim se interessaria por uma menina como ela, Alice não sabia. Nem
por que ela aceitou o convite De perto Pablo não discerne nada especial. Os cabelos ainda são
lisos e brilhantes mas o olhar é banal atrás dos óculos embaçados.

Há quanto tempo ela não se sentia assim? Estava tentando ser boa. Se ele fosse atencioso
ela não iria se aproveitar. Voltou a ser a menina sempre disposta a ajudar um colega de classe
(um colega menino de preferência) mas não negaria ajuda a uma menina. Estava tão cansada, tão
cansada.

O vagão quase voa. Comum ela se tornara, pensa ele, valerá a pena? Num sacolejo
chegaram a se tocar mas ela entendeu que era normal num metrô em horário de rush. Ele se
mantém calado concentrado em não errar. Quando chegaram a uma estação que parecia de
pequeno movimento aí ele falou.

- É aqui.

Sílabas que não se tornaram sua voz. A moça olhou em seus olhos. Ele pensou na
menina.

Ela deveria procurar trabalho. Disse que faria isso. Até o encontrar na empresa, era o que
pretendia. A luz filtrada pelos vidros escuros naquele espaço de dia concedia a Pablo sua face
mais atraente. Formado decerto. Doutor em tecnologia ou algo assim.

- Olá. Está à procura de alguém?

- Sim. Do chefe de recursos humanos.

Pensando bem você pode servir.

Ele não pode evitar os seios onde tudo começa.

O rapaz reduz a passada. O comércio estava com as portas fechadas ou fechando. Não
era um período bom mesmo antes, ainda mais agora, por causa dos saques. Não é um bom
negócio as luzes acesas por mais uma ou duas horas, hora-extra, sem falar da violência urbana na
volta para casa. E agora o vandalismo.

- Desconfio que as coisas tendam a piorar — disse o dono do mercado à mulher chinesa
que estava no caixa. Ela pensou como era possível piorarem. Fez que sim.

- Quer tomar alguma coisa? — perguntou Pablo. A voz da resposta não denunciava
inquietação e ansiedade, pelo menos ele não percebeu.

- Um suco de laranja, obrigado.

O chinês desejou boa-noite. A mulher passou as caixinhas no leitor ótico. - Débito —


disse Pablo e acrescentou o número. Saíram furando as embalagens com os canudos. Marca
conhecida pela qualidade. Talvez a última refeição de Alice, requinte concedido aos condenados.

Alta e magra e simples no vestir. Olhos grandes; atentos; perscrutadores. Tão jovem.
Não por isso nem porque bonita — algo em que ela mesma nunca acreditou. Mas porque era
irmã. Porque se fazia adorar e a adoração preencheu a existência fadada a um final entre livros e
convicções exangues. Parada perante a estante com um deles nas mãos. Estátua de perfeição
marmórea e luminosidade. Reinava. O tomo repousa nas mãos espalmadas quando do
inadvertido olhar. É o ser esperado, a redenção. Exista. Exista pra mim. A iluminação nas
lombadas testemunha o surgimento da criatura. Um dia a ser lembrado. Ela sai do som da página
passada e o encara. O olhar não demonstra medo mas afronta. O volume flutua sobre as palmas
diáfanas. O professor saberá seu nome num ímpeto que não lhe era comum e após o escândalo
jamais deveria ser.

Quando escutou a porta, Pedro virou a cabeça. Deixou a cortadeira e caminhou na


direção do visitante. Àquela hora não podia ser um cliente. Se bem que alguns saibam que, por
cautela, eles trabalham na gráfica de portas fechadas.

- Olá?
Reconheceu a voz e não se deteve. Ouviu-se o estrondo da porta pivotante. O rapaz
entrou e se aproximou da mesa maior no centro da sala. Apanhou com as duas mãos a pasta que
trazia debaixo do braço.

- E aí, Raphael, o que tem para mim?

Raphael gosta da forma como Pedro o trata. Sente-se importante. Não tem nada a
oferecer de si mesmo. Poderia estar melhor de vida. No final das contas fazia sentido o
interrogatório do pai daquela namorada. Devia ter continuado os estudos. Hoje seria um médico
ou um engenheiro. Teria um automóvel, casa própria. Um sítio.

- Aqui pode ser verde. Aqui você quer assim arredondado? - Pedro não fala mais com o
rapaz mas com a mulher que se instalara entre eles.

Ela faz de propósito. Deixa que ele entre antes. Dirigem-se a ele e ela aparece em
seguida. Sou eu quem manda. Está se acostumando. Não vê mais o projeto estendido na mesa.
Olha a moça que veio trazer café. Lembra-se de Alice. Era o problema dela. Nunca ter trabalhado
duro. Nunca ter sido a moça do cafezinho mas sempre a moça dos filhinhos-de-papai. Que não
tardaria a ser dos próprios papais. Apertou os olhos e a viu.

- Perdoe-me — dissera Alice, quando ele descobriu o caso. - Não sou mulher para você.
Não te mereço.

Claro que não. Nem o pai merecia o filho exemplar.

- Ok — disse a que entrara. Estavam então combinados: verde e arredondado.

Apanhou o casaco. Dobrou-o no braço esquerdo e saiu. Poder-se-ia deduzir daquele ricto
um sorriso ainda que não houvesse razão. Preciso fazer alguma coisa, pensou. A chuva que
molhou um lado do seu pescoço agora pinta o agasalho de pequenas manchas escuras cada vez
maiores. Apressa o passo como quem tem uma direção e pressa de chegar. É assim que vê as
pessoas que passam na direção contrária. A voz e o bom-dia do mendigo não soaram como em
outros dias em que não havia qualquer determinação e decidira se acomodar ao que viesse, sem
ansiedade.
Ao virar o rosto, viu a placa do café que não conhecia e pensou que seria uma boa ideia.
Duas moedas não fariam diferença. Colocou o troco na carteira que devolveu ao bolso lateral e
seguiu por aquele caminho não habitual. Quase outra cidade. Quase outro tempo. Está no grupo
de estudantes e é quem fala agora. O som de sua voz é firme, másculo, fascina as meninas.
Conforme os passos o afastavam, as buganvílias grenás perdiam a cor e contraste.

Foi um começo de ano como há muito tempo não se via na história recente do País,
parado em meio a notícias que não paravam. Mas as damas da noite ainda exalavam o cheiro de
infância que o noticiário em nada afeta e após o jantar a caminhada pela praia era a notícia mais
importante: havia uma praia onde caminhar à noite.

- Eu não vou abandoná-lo — disse Alice. — Não posso te ajudar materialmente, mas
estarei sempre ao teu lado.

- Não estará, querida — respondeu o professor. Entretanto, agradeceu.

Uma vez Alice viu sua mãe no mato seco amarelado. Longe o verdor mofo do bosque
que se adivinhava na neblina. Deve ter sido uma bela mulher. Nem tanto talvez, mas cheia de
artifícios. Deve ser hereditário. Fazer alguém como seu pai se casar. Alguma coisa ela deveria de
ter. Azul. Um manequim ao ar livre. Azul — espantalho de grife. Um vento. Um som. Se
quisesse poderia ter parado o sol naquela posição em que sua sombra não mais que borrava o
estalante chão. Foi aqui.

Ele sabia que eu era fraca, pensou a mãe. Que o arrebatamento de um beijo ousado
levaria aonde ele queria ir. Tentou resistir o quanto pode. Não nasceu para ser mãe. Tanto fazia
se acontecesse na possibilidade remota ou na regularidade matrimonial. Pode ter sido uma coisa
ou outra. Alice agora existe.

Ele está calado. Seu beijo é tão ousado quanto quieto. Homem experiente, ela te
compreende. Um filho será estorvo também para você. Um dia teve vida própria. A filha
observa e admira e inveja e não inveja a mãe. A mãe (outro som) num passo de estranha dança.

Alice escutava um piano: sua mãe tinha esse poder. Não quer porém terminar como ela.
Estavam cheios de resquícios do mato ao saírem pela trilha de terra. A mulher nem se lembrou de
passar na escola como prometera à professora. O aproveitamento escolar da menina estava em
franca decadência. O traje de mãe se torna um vestido de chita. A mulher descalça como Alice
escondida e pensativa providenciando um borrão móvel para o chão seco e amarelado.

Luz cortante sobre eles. Sob as árvores que parecem falar umas com as outras. Olhem.
Ficarão juntos. Haverá um final feliz. As árvores do outro lado da rua concordam, farfalham logo
acima de um olhar deliciado que atravessa o olhar de Alice. Está mais e mais agitada. Oh calma
— diz o gato sobre o muro com um levíssimo tremor de pelos. Pablo põe o casaco sobre os
ombros dela. Você parece estar com frio — diz. Não tanto assim, mas sorriu e agradeceu. Ele ia
falar alguma outra coisa quando passou um carro zunindo. O que ia dizer? Esquecimentos o
incomodam como se significassem idade. Como se estivesse se aproximando do momento
inexorável em que se veria em situação similar à do malfadado pai. O motorista imagina que já a
viu antes. Hoje mesmo. Estava na biblioteca. No setor de literatura francesa. O carro passou. Não
deviam estar muito longe agora.

Na padaria, Pablo cumprimenta um rapaz. No instante de sua distração Alice já se havia


adiantado e se aproximado do prédio. Sim: é esse número. Um sorriso e o questionamento de
um sorriso. Toca o botão do interfone, inclinada. A saia acompanha o movimento puro às luzes
do poste e da lua em sua pele misturadas.

- Sim? Alice! Estava mesmo pensando em você! Onde se meteu?

São momentos em que, ao despertar, procura-se a situação do sonho e tenta entender


onde se encaixa na realidade súbita que trouxe o sol na janela. Alice conhece Sonja. De onde?

— Estou com um amigo, ele pode subir?

Antes que Sonja respondesse, aliás já está respondendo, dizendo que sim, claro, Pablo
disse que não poderia, obrigado. Ele estava atrasado. Precisava fazer um trabalho em casa.

Ao passar o cadeado, Pedro tenta entender o que aconteceu com seu casamento. Em que
momento aconteceu. Pensar em Sonja é pensar no que capricho com que arruma os armários. As
roupas de Pedro são triunfais paradas nos cabides. Os cômodos sempre cheirando a talco.
Caminha para casa no silêncio que desce sobre a cidade. Passa a mercearia do chinês. O coração
bate apressado e pesado. Taquicardia? Desde quando? Cansaço provavelmente. Estresse. Muito
sono independente de quanto durma. Frio interior. Não sabia a razão e talvez não houvesse.
Passo largo e hesitante. Por que tudo termina assim? Aquela Sonja morrera. Sua solidão é a
solidão de um viúvo. Na entrada do terminal ele vê o irmão. Não pode ser. Só um cara parecido
— bem parecido. Olha o perfil. A semelhança não desaparece, antes se acentua, e ele se deixa
levar por momentos da infância. O lago, as meninas, brincadeiras de bola e de médico. Não pode
ser ele. Ele nunca vem para esses lados.

A proprietária de uma livraria demonstrou interesse no momento que Pablo estava em


vias de uma decisão drástica. Lembra-se dela com perfeita clareza ao deparar com o cartaz da
mulher no fundo da escadaria do metrô. Representava tudo o que sua vida não tinha. Horários.
Trabalho. Renda. Descanso. Lazer. A intenção de Nastácia era fazer dele sócio ou gerente sem
descartar o relacionamento amoroso. Num jantar que tanto poderia ser romântico ou de negócios
confessou o plano e estar apaixonada. Deixou o rapaz tranquilo e orgulhoso. Ele chegara a temer
por sua sorte. Nastácia era uma mulher feita, experimentada. Seu zelo das coisas, uma espécie de
gestão. Acrescentou ao jantarem, enquanto passava os dedos na sobrancelha direita, que a
proposta não era caridosa. Pablo mostrara nos dias da fábrica merecer uma chance assim. Não
especificou, mas estava incluído o relacionamento no pacote. Saindo do restaurante, as ruas eram
novas para ele. Foi uma tarde agradável.

Ela foi paciente, carinhosa. Criativa. A brincadeira com o número do quarto. Fingir que
dorme enquanto ele a despe, primeiro despe. Aceitar radicalizações de que não gostava acordada
ou não. Os olhos vendados. Sujeitar-se a ser amarrada com meias à cama. Nastácia mostrou
compromisso com as fantasias que inspirava exceto — exceto — quando o assunto — no depois
cedo ou tarde — desviava para simplesmente ficar com ele.

Na loja, ela acaricia a lingerie. A atendente olha para ela, inequívoca, mas ela não
percebe. Os dedos no caleçon tremem.

Moça, diz a atendente, você está bem?


O vidro a reflete. Ela tapa os ouvidos com as luvas. Diz para si mesma qual foi a última
vez, mas quando chegou em casa ergueu a perna esquerda, a sola para o teto, depois o peito do pé
na panturrilha direita, como uma jovem tímida que um dia foi. Na curva do corrimão um brilho
azul torna-se referência para os movimentos da sombra na medida em que os sons se
aproximavam dos significados das palavras murmuradas Porque está namorando. Com ninguém,
é apenas outra vida.

Ao se aproximar do reflexo ela era pura prata pronta a ser derramada nos olhos de um
recém-nascido do anseio de apaziguamento, como ela, com seus seios apontados para quem
questionasse sua. A penumbra dividiu seu rosto, absorvendo metade.

Amanhã não mais estará aqui. Porque está namorando, mas não é mais o bastante. O
corredor vazio é branco como um túnel.

A calçada. Hidrantes. Casas. O tempo. Os lugares no tempo. Aqui costumavam aparecer


umas colegiais com suas caras rosadas. Ali havia gerânios mas agora só asséptica pintura branca
metálica quase extensão da pintura do carro estacionado debaixo da janela. Momentos como os
que ele passara com Alice pesam agora não como arrependimento, mas — Quantas vezes pegara
essa avenida somente para ver outro horizonte! Dobrava na primeira à direita vindo da Prudente
Lins e seguia até a igreja da Perpétua Anunciação. O som do trânsito, os transeuntes, a
mensagem de normalidade.. Podia ir para casa e quem sabe seria uma noite sem brigas. Quem
sabe podiam fazer sexo como costumavam no começo. Mas sem brigas já será ótimo. Eis seu
prédio, duro e frio nas luz do poste e da lua.

Mal Pablo e Alice viram a esquina, num ímpeto simultâneo, os lábios se procuram.
Então se introduziram numa segunda fase em que passado e presente passaram a se confundir
como a resposta de um eco. Eram umas oito e quarenta e cinco da noite. O percurso até o
apartamento é como a névoa que se mistura à superfície de um lago do qual se ignora a
profundidade.
Pablo e Alice em todas as janelas do metrô. Pablo e Alice. Pablo e Alice. - Daqui até em
casa cerca de uma hora - diz ele.

Nesse horário menos, contando a baldeação.

Pedro passa pela esquina. Vê-se no futuro afetado por suas aventuras. Há uma semana, a
moça disse que tinha dezoito anos, mas tinha mesmo? Imaginemos que não. Imaginemos que os
clientes fiquem sabendo. Pusera sua esperança na empresa. Investimentos em tecnologia não
pequenos. Só a calandra custou 322.500,00.

A torre envelhecida empresta ares lúgubres para a Igreja de São Sebastião. Virá à missa
com Sonja no domingo. O reflexo no vidro de seu prédio afirma que é ele quem está entrando e
é, mas poderia não ser. Poderia ser um sósia e o vidro ainda garantiria que era ele.

No hall de seu edifício Pedro se pergunta quem é aquele homem.

- Está à sua espera, senhor.

O porteiro procura na expressão do morador um sinal de que não fez mal em deixar
entrar o visitante. Os olhos de Pedro estão pesados de sono. É o que diz quando o outro o convida
para tomar uma bebida quente. Quem é?

Cai em si. Só pode ser. O namorado que Alice deixara em sua cidade no interior. Os dois
homens saem juntos.

- Não a conheço- diz Pedro ao estranho.

- Tem certeza? O nome Ananda não diz nada? Outro nome para o temor. Não o
namorado de Alice, mas o marido — o pai? — de... Ananda? Na entrada do prédio, deixou que o
outro passasse com quase uma mesura e ao defrontá-lo sentiu-se gelar e pareceu uma boa idéia a
bebida quente. Desceram um pequeno trecho da avenida no sentido contrário das pessoas que
entravam na estação e logo estavam diante do bar e se sentaram. O estranho tinha o olhar fixo em
Pedro. Mundo brumoso que não mais revela ninfas, mas dragões.
Pelo vidro, o café está quase vazio. Menos mal no caso de uma cena. -Amigo, dois cafés
em xícaras grandes, por favor. As folhas rodopiavam e os cacos no calçamento luziam, do outro
lado da vidraça. -Linda noite, não é mesmo? Pedro assente. Imagina o que o homem pretende,
pois sabe que ele esteve com a jovem, mas não usa isso como ameaça. Era muito mais velho do
que ela, de quem enfim se lembra. Homens muito mais velhos costumam ser muito ciumentos.
Homens-pais também. O fundo vazio das xícaras fumegava.

As pessoas que passam veem dois vultos contra um céu noturno muito vermelho. A torre
da igreja se junta ao desenho. Alguém achará que lembra uma cena de filme daquelas que
indicam passagem do tempo — um casal e a torre da igreja, depois a cidade vista do alto, depois
uma rua específica e um prédio específico nessa rua. Subindo as escadas, a porta de um
específico apartamento. Alice se virou para o fundo da sala escura. Os papéis de Pablo estão
espalhados pela mesa. A sombra na metade de seu rosto. Ele a vê num dourado escurecido
delineado por ouro luzente. No lusco-fusco a blusa se solta aos movimentos.

À luz do abajur efeitos concêntricos se esticam até os pés, riscando um espaço


improvável. Um espelho e um relógio antigo supõem solstício e equinócio. Alice está tensa.

- Você precisa de uma massagem - diz Pablo.

Logo amanhecerá e ciclos continuarão narrando a história de uma existência a ser como
todas, esquecida. Terá passado o êxtase e a infâmia. Então, por favor, este quarto é adequado.
Avise-me quando estiver pronta.

A mão esquerda puxa o sutiã por dentro da blusa. Melhor que perambular pela rua? Essa
habilidade das mulheres é pura mágica. Um teto onde passar a noite. A blusa por cima da cabeça
é tratada pela outra mão com muito jeito como se não fosse para ser uma peça de roupa deixada
em qualquer lugar. Quando ela se abaixa, o olhar oculto a perde por segundos. Por segundos, o
olhar é tudo o que tem.
O fecho do meio vai para o lado esquerdo e é aberto. Não é exatamente a acusação que
Pablo se especializou em fazer ao pai? Entre dois estalidos de elástico ela diz que está pronta. Ele
tarda uns segundos e surge.

Contato gelado das mãos com a lisa barriga e resultado visível no brilho da pele. O
sorriso de Alice pode ser de cócegas ou prazer ou pode não ser nada. Riso nervoso que ainda a
acomete depois de todos esses anos. Dezenove. que ela começou cedo. Todas começam cedo
hoje em dia. Depois, onde antes o sorriso, a mordida no lábio inferior. A cólica está passando na
suspensão perfeita da dissipação de uma dor. Os olhos apertados. Os lábios entreabertos. Ele
concede valor a cada movimento como notas de avaliação. Face pálida vívida de quem não
sofreu o bastante, mas pensa que sim. Cheiro de banho tomado. Trouxe decerto algum perfume.
Os braços cruzados sobre os seios.

- Permita-me.

Mas Pedro não pôde. Não quero mais sentir arrependimento, pensou. E seu corpo
atendeu.

Acordei no meio da noite, sufocado por tua ausência. Não importa o que dizem, mas o
que dizem carrega essa sentença. Traz teu corpo macio e o leva de volta. Então me levanto
como se alguns passos pela sala pudessem dar algum alívio e não podem. E eu que sempre
pensei que a solidão é algo abençoado.

Os escritos que me pediu, Beatrice, estão anexos; mas não fazem mais parte de mim.
Estão ligados ao vigor que me abandona.

A senhora Chiem diz que a filha não precisa ir fazer as compras. Estude e passe de ano.
Não seria nada mal se ela aprendesse um instrumento. A mãe era formada e trabalhou fora antes
de se casar. Não queria isso para Alice. Melhor é ter um diploma e se casar com um homem de
bem e viver no estrangeiro. Então Alice foi passear para os lados do lago e no caminho viu a
queimada. Por que as pessoas fazem isso? Queria viver num mundo diferente. Mais verde e mais
justo. Viu de longe a mãe tomar o ônibus para a cidade. Não esqueça essa imagem. Você
também não quer ser igual a ela. Que o de bem signifique um homem que possa lhe dar o que
ela precisa, de outra forma como poderia refletir sobre as coisas essenciais, como a justiça? Esse
homem não tem rosto, mas pode imagina-lo. Tal prazer não combina com nada que conhece.
Escreva um poema. Vaivém lento o bastante para favorecer o devaneio. Nessa posição Pablo não
consegue se controlar. Pergunta se ela já. Alice preferiria que ele continuasse calado.

— Oi. Tudo bom?

— Pablo? Tudo.

— Interrompo alguma coisa?

O que ele poderia estar interrompendo, nessa pensão em que a colocou?

— Nada. Achei que você não ligaria e...

— Por que não?

Ele pergunta, mas sabe o porquê. Deixou claro. Só uma noite. Ou não? Ele paga o lugar
para que eu o deixe em paz.

— Paguei a pensão porque você não podia e lá em casa você sabe...

Silêncio primeiro. Depois: — Não daria certo, né?

— Não, não daria certo. Nunca dá esse -

— Nunca -

— Mas quero -

O que poderia ele querer? O coração dela dispara.

— Que bom que você ligou, pensei muito -

Ela na verdade nem pensara tanto.

— Queria te convidar para jantar hoje.

— Onde?
— Passo aí às oito.

— Tudo bem.

— Então até depois.

— Até. Um beijo.

Parou junto à porta na tarde de outono. Não fazia sentido estar ali, e todavia... Colar os
pedaços de um vaso cujas linhas proclamarão sempre a ruptura. Antes teria recomeçado noutro
lugar, sozinho. Agora a ideia nem chega a se cristalizar. Até o suicídio ficou para trás. No quarto
as batidas e a voz produzem nas feições da mulher deitada uma desanimada excitação. Não
adianta, pensa. Ainda que fique tudo bem de novo, não vai durar. Ela estava cansada como ele.
Pabloentende o que aconteceu com o pai e consente em viver a mesma situação.

Na noite em que se reencontraram. Esperou-a alguns minutos na sala da pensão diante da


TV. Oi, demorei? Ele sorriu. Claro que não. Tchau, dona Francisca. No restaurante, embora
conversem, ele olha ao redor. Como se procurasse. E então? como foi o dia hoje? conseguiu
alguma coisa? Ela diz que, bem, talvez. Então ele a olha nos olhos, mas não escuta a própria voz
com clareza. As pessoas estão vestidas quase a rigor. Ela sempre se torna evasiva quando se trata
de trabalho. Por que ela deve aceitar a fúria do mundo corporativo como sinônimo de subsistir?
Ele mesmo se perguntava se as secretárias que exerciam na firma a mesma função precisavam de
toda aquela estratégia de guerra em nome da subsistência e deixar lar e crianças cuidados por
empregada na prática mãe dos filhos delas. Tão absorto não percebe o quanto ela teria gostado
que ele esticasse o braço e cobrisse sua mão sobre a mesa. Não está interessado. Por que me
ligaria? O que aconteceu após adormecerem? depois que acordaram na manhã daquela noite?
Agora um amante. Rua sem saída. Os prédios róseos . É para o outro lado. Difícil afirmar que
isso ou aquilo determinou o reencontro e mais ainda a sua conseqüência enquanto caminhavam e
após pararem num ponto onde todas as coisas permaneceram em suspenso. Em algum lugar
alguma coisa de vidro caiu e lá vai ela para a pensão sem um único beijo. Sozinha no último
trecho do percurso e sem sequer uma carícia libidinosa de adeus. Então se pergunta o que ele
quer.

Deixou para outro dia mas não pode demorar. Uma jovem como ela não fica muito
tempo sozinha. Tomará alguma coisa antes para dar coragem. Por que ela o intimida assim? Não
pode mais refugar. Como está linda! Uma rosa vermelha no meio da mesa. Dizem perto dela era
uma safra ótima. Casais à beira do compromisso em restaurantes sofisticados parecem crianças
nervosas. Ambiente avermelhado contido no sorriso tímido com que Alice abaixa a cabeça. Não
tem roupa adequada mas se sai a contento com as que tem. Bebe do cálice com olhos num nada à
esquerda, quase acreditando. Mesmos olhos o encaram enquanto ela fala e depois cala e sorri num
mesmo ricto. A rosa e o cálice e a luz avermelhada. Um mesmo enlevamento. O efeito do álcool,
o desejo, a beleza de uma mulher. Folga no dia seguinte. Quem sabe nova vida a partir do dia
seguinte.

Ao entrar em casa Pedro quase disse. Um sujeito muito estranho me abordou hoje. Por
pouco não disse. Iria se trair. Nem pensara nisso antes porque precisava desabafar e antes de tudo
Sonja sempre foi uma boa amiga.

Quando ele se aproxima dela, ela enlouquece. Sem perceberem estavam no andar
superior à sala de aula. Ela o puxou deixando-se pressionar. As sombras se misturaram na parede
lateral. Bons amigos também podiam. Os colegas de classe riam uns para os outros. Finalmente
ele entendeu, diz um. Uma hora ela ia conseguir, diz outra. Meu Deus, acho que devemos casar,
Sonja. Não posso passar um único dia sem você. Não sei se é uma boa idéia, diz ela. Íamos pôr
em risco nossa amizade. Você mesmo disse isso. É eu disse — diz ele — mas era diferente. Será
diferente amanhã se nos casarmos, pensa ela. De um modo ou de outro nunca mais será assim.
Mas havia aquela parte acomodada dentro dela. Queria pouco além de ter uma casa e ser
sossegadamente feliz. Ela deixou-se respirar na cama desfeita. Eram casados agora, com todas as
implicações que isso significa. Os aborrecimentos. O tédio. Mas ele parece realmente feliz.
Reconciliar-se com o irmão e estará realizado. Talvez queira trabalhar comigo. Como vou
disfarçar? pensa ela. Diz: O que um analista de sistemas pode fazer numa gráfica? O que mais
será preciso para que ele descubra? Um dia estava no banho, quando Pablochegou. A última vez
que se viram. Estava no banho e disse alto que estava. Pablopreferia que não repetissem isso. É
meu irmão. Me levava aos lugares quando eu era pequeno.
Alice tem um irmão menor. Não tem certeza se falou acerca dele para fugir do assunto
ou desabafar a saudade ou as duas coisas. O prazer da ociosidade com o caçula. A cadeirinha de
dois lugares na varanda. O assovio displicente se misturando ao canto dos sabiás segundo o
chamado da espécie e a gaiola do melro sobre eles no mesmo ritmo da cadeira de balanço vazia
ao lado. O vento suave do amanhecer também embalando como um gigante cuja função era
acalentá-los não para o sono. Para o dia inevitável e sem descanso mesmo em se tratando de dois
adolescentes de classe média duma cidade do interior da rica província. Jonas e Alice acordavam
juntos muito cedo e desciam os degraus do andar de seus quartos um após o outro lentamente
como se cuidassem para que ninguém os ouvisse. Normalmente naquela cena fios dos cabelos de
Alice dançavam sobre sua testa não chegando a incomodar, como se fizesse parte da canção
assoviada que transportava o menino para muito longe. Olhos entorpecidos confirmam a
impressão da irmã. Em algum momento ele tentava acompanhar o assovio mas saíam apenas
sons ocos e desarmônicos. Sopros apenas que enterneciam Alice quando olhava para ele. Outro
órfão de pai vivo sobrevivendo num mundo sem regras.

— Você está implicando com a idéia. É meu irmão.

Sonja sabia.

— Pode nos ajudar.

Ela sabia.

— Preciso contratar alguém.

Tenho um primo — disse ela — É inteligente, prestativo, honesto. É perfeito —


enfatizou.

Pedro vê uma mulher substancial e discreta recém-saída do banho, pingando pela casa,
falando. Na volta da viagem vim com uma moça — ela acabou de sair, quer dizer nem entrou.
Estava com um amigo tocou o interfone disse que ia subir se o amigo podia vir junto mas nenhum
dos dois subiu. Não sei o que aconteceu. E agora? Ele deve falar sobre a amiga dela? contar sobre
o estranho dele? A vida é estranha, pensou ao olhar as escadas pela porta ainda aberta. Sente-se
desmaiar com o mal-estar no peito e escuta o som do trânsito como se estivesse surgido do nada
em seus ouvidos. Ouve nítido o motor do próximo carro. Vê a nova luz da manhã na sala na
hierarquia das horas. Sonja leva os dedos à boca e quase se inclina como se o estivesse
cumprimentando. A toalha escorregando. Ele desvia os olhos. E essa sua companheira de viagem,
era bonita? Ele pensou em perguntar. Mas não saiu qualquer som de sua boca. É um bom homem
— pensou ela quando se decidiu. Provavelmente um melhor provedor. Quando fazia faculdade
ela apreciou a forma como ele abandonou os estudos para ganhar a vida enquanto
Pablopermaneceu fascinado pelas possibilidades pessoais. Ah — suspira ela com a mão que
apertou o nó atoalhado erguida como quem implora alguma coisa a Deus com olhar
correspondente para os céus à janela.

A cidade efervescente em volta dele. O rosto da irmã, o corpo da irmã. Lágrimas no


anoitecer febril. Jonas: um ótimo aluno. A ponto de tomar coragem. Quantas masturbações
necessárias? Quantas abstenções? Sons do dia nascendo. Os prédios no caminho para a escola.
Os pontos cheios antes do seu. O dia começa. Não há solução. É pecado. Não é natural. Numa
manhã perfeita a alegria proibida de existir. Nem cabe um bilhete. Diante do inelutável a vida
sequer é alguma coisa mas a morte sim algo a se viver. A ser criada como o túnel para a
liberdade do prisioneiro.

Será por isso que sou assim? Pelo que aconteceu a meu irmão? Faz diferença se for? Se
amo em Pedro meu castigo como poderei amar a felicidade com ele? Uma morte entre outras a
ser abafada como tantas nos subterrâneos do metro ou nos corredores da escola. Um aluno
qualquer; um irmão qualquer, de outra espécie. Ninguém precisa dele. Até Alice tem se afastado
ao perceber que as brincadeiras estão indo longe demais. Jamais me afastarei de você. Talvez
seja fruto da culpa em seu coração que também existe no meu. Mas precisamos superar.
Precisamos viver. Preciso de você. Não me abandone. A irmã notou que algo estava para
acontecer. Na rua nas coisas que aconteciam. Nas cores do céu um presságio. O sistema de som
está dizendo que estamos esperando o vagão à frente concluir uma manobra. A escola dirá que
lamenta pensando em formas de manter ocultos os casos ocorridos com outros alunos sob o peso
do rigor do colégio. Pelo menos a motivação de Jonas terá sido outra. Pelo menos isso.
Luzes ruidosas em uma manhã como as outras. Como se fosse a primeira. Um mar não
distante reluzindo. Algo mudou. Igual ao resto do mundo. Um mundo esperado para começo. Ela
a seu lado. Alguém dedilha um violão assim cedo. Como luzes à tona. A questão é que isso é
demais para ele. Não é alguém assim. Não se acostumará com apenas um amor. Em algum
momento se cansará. Finge que não pensou isso. Varre o pensamento para debaixo desse tapete
mágico que são as emoções do momento.

Quieto a contempla adormecida. Alice considerara o desempenho perfeito e imaginou


que ele devia ter um milhão de amantes. Nenhuma diferença considerando que não o amava.
Nem poderia. Não há amor no mundo. Segurança material é segurança material e quem a provê
a provê. Sem transformação de sapos. Sexo é sexo. Que história é essa de noite de amor? Nem
foi uma noite. Sequer uma hora talvez nem meia. Estaria tudo relacionado à vida material?
Reduzido assim ao prazer? Ela sentou-se na cama. Aquele era o mesmo homem que há poucos
minutos a agarrara por detrás, as mãos fortes apertando seus seios, a boca em seu pescoço.
Calada não havia zombaria em seu olhar. Pedro parece não acreditar. Olha-a perplexo enquanto
ela diz para irem devagar. Diz: Não quer comer alguma coisa antes? Não tenho fome — ele
respondeu. A voz era humilde. Ela se aproximou encarando-o. Pelo menos me ofereça alguma
coisa. Eles já tinham tomado o cappuccino. Vai se zangar se ainda estou com fome? O que
significava aquele olhar, ela se perguntou. Quem era aquele homem? Por que mexia assim dentro
dela?

— Por que você não se serve na cozinha?

Ele adiantou-se e passou por ela. É por aqui. Alice o deteve num abraço por detrás, deu a
volta e passou a desabotoar a camisa dele. Você é um homem muito atraente. Não a cozinha mas
o quarto. Para alguma coisa ela tão jovem tem tanta experiência. Mas ainda será um homem sem
função. Ela não o condenava. Sequer parecia decepcionada. Por que achei graça em teus olhos?
Se você está como fome a hora é essa. Oh me perdoe. Tudo bem. Vamos sair e comer alguma
coisa. Uma coisa ela sabe: se tivesse uma renda poderia talvez amar e então existiria amor. Um
trabalho gratificante como sua escrita. Poderia amar. Não é tão má. Vejam, está até chorando.
Quando descem para que a leve à pensão, será a primeira coisa que o porteiro notará. Os olhos
vermelhos. Primeiro imagina que tem a ver com gás lacrimogêneo. Logo descarta a hipótese.
Brigaram com certeza. Nunca esteve antes com mulheres e não soube como tratá-la. Ou ela
descobriu a homossexualidade — no caso a bissexualidade. Alice não foi nem um pouco com a
cara do homem. Não gosta de gente intrometida. Pablosequer o viu, cumprimentou-o sem olhar.
Pensava em como iria viver sem aquela sensação percorrendo seu corpo todas as noites. Aquele
bem-estar. Tudo o que se subtende do pleno prazer sexual. Não é por isso que homem e mulher
se juntam? O porteiro não acha isso. Embora há vinte anos casado jamais sentiu nada parecido.

O espelho do hall distribui luzes e sons.

Risos mais se escutam do que virar de páginas ou caneta em papel. Uma cadeira vaga. De
admirar que a biblioteca tenha um livro desses, mesmo em inglês. Uma moça na cadeira da
frente. Precisa se concentrar. Precisa. É o assunto que fascina Sonja. Leis tecnológicas. A
enciclopédia em sua frente confirmava essa visão das coisas. Veio à biblioteca consultar uma de
papel, das antigas e pesadas, caras e raras. Para se chegar na mesma informação pela internet
gasta-se tempo demais com lixo. Agora vê que tudo pesados todos os aspectos mais ou menos dá
no mesmo. Que menina linda. Difícil tirar olhos dela. Então imaginou a figura de Rheya. Após o
resumo de Gravinsky, novas teorias se multiplicam. As inovações não têm fim. Mas há um fim
para o conhecimento e, além desse limite, é o enfado da carne.

Que tipo é esse Pablo? Como qualquer homem bem adaptado ao mundo resume a vida
entre casa, trabalho e restaurantes nos dias úteis e seus finais de semanas de presumido descanso
são gastos na lascívia de pretextos que se sustentam até o usufruto. Freqüenta o salão nobre de
clubes quando de alguma confraternização da empresa. É discreto. Suas pequenas aventuras
ninguém as nota. As maiores tampouco. Não tem opinião formada além do juízo geral e mantém
perfis em todas as redes sociais. Ali é plenamente feliz e faz questão de que todos o saibam.
Exulta quando percebe a aproximação de um ou outro contato. Não acredita que se possa usar os
dados privados exceto para personalizar a publicidade. Acredita que tem escolha; que quem só vê
TV aberta é que não. Se a linha dos lucros continuar em queda lenta mas regular será pior que a
inconstância dos ganhos e perdas alternados a cada mês, augúrio de inflação ou coisa pior. Bom
que tem enfim um bom salário reajustado pela mesma inflação. Há um destino pessoal ou todos
estamos agregados num mesmo link? Um destino para os países além do crescimento? para seus
habitantes individualmente? E os que não tem mais essa necessidade, como os nórdicos? Um
homem comum, enfim. Desses para quem a questão deixou de há muito a carência mas como o
administrar o excesso. No fundo concorda com o pai. As palavras dele estão cheia de uma
sabedoria em cuja eficiência todavia não consegue crer. Balança a cabeça e seus olhos brilham
esverdeados como o alto da ponta de um mamão que acabou de ser cortada. A menina à frente,
cuja blusa azul se amarfanha em atabalhoados movimentos que acentuam a forma dos seios e as
marcas, balança a cabeça afirmativamente para a colega, vendo com o canto olho que ele a olha
enquanto espanta a dúvida de que foi injusto o que fizeram com o velho. Jamais maltrataria
qualquer criatura. Quanto mais uma humana feminina adolescente. Pisca e entorta o corpo para o
lado direito onde apanha o outro volume sobre a mesa. Logo abandona a compaixão incômoda e
volta a pensar que a vida é um excesso mais do que se pode administrar.

E essa Alice, quem é? Começará a descobrir naquele salão de biblioteca. A tarde do


começo de outro inverno entrando pela clarabóia e um homem maduro (já o chamam
eventualmente de velho) a observa, aliás contempla, à luz também das lâmpadas frias recém-
adquiridas na última licitação que a prefeitura realizou antes do escândalo. É o que ela é. Existe
segundo os olhos que a contemplam, isto é adoram — não, é outra coisa, ou seria apenas o
vermelho dos lábios e é antes algo mais para a transcendência — ou seria apenas a mistura do sol
com as lâmpadas novas mas tem mais a ver com revelação. Som de tosse e murmúrio e risos
abafados para a recém-nascida Alice parece som de seres humanos contrastando com divindades
silenciosas ao redor. Mantém o livro entre as mãos, ou melhor os dedos, as pontas dos dedos,
mal tocando a página que será virada. A página foi virada e na nova página pode descortinar a
combinação de letras que escrevem algo ainda não inteligível. Luz refletida pelo papel quase
espelho. O vestido tremula ao cair em ondas de sonho sobre o corpo sereno porque desisti de
desejar. Corpo fresco como o de Beatrice mas ele não irá lembrar de Beatrice. É outra coisa
agora. Luzes e sons de deuses que desistem de Deus. Um anjo. Ela relanceou os olhos em volta.
Ele estava ali. Olhou o livro. Nova página. Uma viagem. Anjos livres vagam livres não porque
vagam mas porque vagam sabendo não haver destino. Os olhos estão abertos pela primeira vez.
Brilham junto ao reflexo nervoso das lâmpadas como varandas molhadas sob a lua cheia. Pela
primeira vez o mundo a seu redor. Pessoas iluminadas pela luz em seus próprios olhos. Página
nova. Seu dedo conhecendo o toque com que a virará. Mal toca daí a alegria. Não por nada em
particular e por tudo que num segundo se deixa vislumbrar sem memória. A linha com que o
pintor finaliza seu quadro abre o tempo antes do início do próximo. Aí está. É você. A pausa
explica o movimento.
Ao segundo ou terceiro sinal de que não iria dormir mesmo, levantou-se. Anda como
quem vai ao banheiro mas passa e abre a porta rangente do escritório. Sentou-se e diante do
computador imaginou o que poderia ainda dizer que já não houvesse dito. O frio é suficiente para
que ponha o suéter com a delicadeza de um rapaz que cobre a namorada após o amor. . Escuta a
constância dos componentes.

Sou tua amiga, ela costumava dizer. Sou tua amiga, você não está sozinho. Não sabe
quanto tempo acreditou. Tempo demais. Bastante para chegar nessa encruzilhada. Há meses teria
saúde para recomeçar. Forças de arrumar a bagagem sem se cansar desse jeito. Não é uma
encruzilhada. Não há caminho. Mesmo para trás se fechou. Renascer é licença poética proibida.
Cinqüenta e cinco anos sem amanhã. Você não está velho, ela costumava dizer. Você não está
velho. Entrou numa idade em que são necessários cuidados. Só isso. Um clique estranho. O
computador reiniciou sozinho. Desconcentrou-o e sentiu a coluna. Minimizava. Nunca disse a ela.
Se disssse ela acharia que era ainda menos. Ela acreditava piamente em Savone como escritor.

Caminham para pegar o metrô. Ele está fazendo isso para se livrar dela como antes o
objetivo era levá-la para casa dele. Mesmo assim disse alguma coisa com suficiente graça para
que ele abrisse um sorriso com olhos semicerrados fixando os lábios dela. Um cara tão gentil.
São todos iguais. O céu se desbotava como se fugisse do fogo duplamente visível nos olhos que
levavam Pabloa pensar. Bonita. Culta. Inteligente. Por que uma moça assim permanece sem
trabalho? O mesmo que ela pensou há pouco. O que há de errado com o mercado de trabalho
hoje? Tinham alfinal afinidade.

Ela atravessa a rua após olhar para um e outro lado. No meio da travessia ao se sentir
segura dá-se ao luxo de quase desfilar. As mulheres são iguais. Obedecem a vaidade misturada
com sedução não importa a situação em que estejam. Quase caricatas. Ele se consome por causa
dela. A velha história. Renovação de caminhos conhecidos e como que esquecidos embora não,
não pode ser, o que leva ao jogo é a saudade da volúpia experimentada na adolescência e depois
sob os pretextos mais diversos repetida nas contradições do tempo embora não mas não não é
jogo exceto no sentido de que a vida é um ou que pode-se jogar apenas diletante, sem ser a vera,
embora seriíssimo. O fascínio pela mulher mais velha ao ganhar o homem idade irá se inverter
até chegar à lamentável condição de seu pai. Onde Alice entra nisso? Não tão jovem mas com
evidente experiência sem nada supor uma mulher madura. Elo algum com a menina e muito
menos com a antiga patroa. Ela agora corre. Ele já não a vê e portanto não vê os cabelos
esvoaçantes adejando negros e luzidios nem os pés descalços ou o sapato cujo salto quebrou
ficando para trás no asfalto após ela perder o passo e claudicar mas não parar e seguir até o outro
lado. À porta a dona da pensão olha para Alice e precisa menos de um segundo para entender e
dizer a si mesma que sim é claro que entende o que está acontecendo, pobre moça, enquanto ele
num átimo vislumbrou o futuro e por medo da responsabilidade sem convicção o rejeitou.

Para trabalhar tanto assim deve ter em casa uma mulher gastadeira. Só Pedro sabia o
quanto Sonja era simples. O quanto seu coração era generoso. Bem verdade que houve
mudanças. Desde quando e por que, não sabia. Agora um fato novo, pensou ao olhar as gotas
reluzindo nas cores do letreiro. Após levantar a porta de ferro para a ampla sala que a lâmpada
fria iluminou e deixar o empregado entrar dois passos, não dispunha de outros argumentos para
justificar seus casos e os via se aproximando perigosamente de sua vida. Da tranquilidade de sua
vida apesar de tudo. Do amor que sentia pela esposa. Vira-se para a rua. Ainda é noite. A massa
de ar polar determinou uma noite de tempo nublado e temperatura em declínio. Agora são 06:09h
e os termômetros registram 10.4°C. A tendência é que a temperatura caia mais. O trânsito na
avenida está fluindo como não costuma nesse horário. Por que esse rapaz precisa ligar o rádio
tão cedo e tão alto?

Há movimento na rua. Gente que começa o dia cedo como ele. Quando os funcionários
estiverem entrando no emprego que deixou na Imprensa Oficial, o sol já estará alto caso a garoa
realmente pare no meio da manhã. Tem receio de que o tal namorado de Alice apareça. Ou o pai
da Ananda. Tem receio de si mesmo, claro. Aproveite o alerta antes que o momento passe. Nada
é tão tentador quanto a paz.

Sobre as flores bordadas em relevo na fronha fria exceto pela superfície onde repousava a
cabeça de Alice a luz não absorvida ou espalhada percorre nos traços tranquilamente tristes
sucessivos focos ondeados em seu semblante. Chegara a chorar. Quão ridícula por nutrir tais
sentimentos. Adormecendo virou à direita em passos largos para as pernas não tão longas agora
enrijecidas no arrepio. No espelho as transformações de seu corpo dentro da camiseta que ainda
quando viver com Bianca usará para dormir. Envelhecendo. O abajur especula sobre a imagem
refletida.

Pedro adorava qualquer momento com Sonja. Se instalara no passado do qual ela queria
fugir. É que sofreu muito embora sempre tenha sido uma menina forte, adolescente que
enfrentava o mundo e mulher não tinha tempo para perder com coisinhas de mulher. Como ele
gostava de saber isso e aquilo! Quando menstruou pela primeira vez e o que sentiu no primeiro
beijo. Você não é meio depravado?

Não se chocava mas não falava de si mesmo. Ela tampouco se mostrava interessada em
ouvir. Casal perfeito. Onde deixaram de ser? Onde estão os quinze anos dela e dele os dezenove?
Meu Deus, esse rádio! Ajoelhou-se. Acesse e assine. Sonja, perdoe-me. O bairro foi residência e
ateliê do artista. Sonja, perdoe-me, eu Você precisa acreditar que eu te amo. Sempre te amei.
Táxi com passageiros podem usar as faixas em qualquer horário. Ajoelhou-se? Caminhoneiros
continuam bloqueando as principais rodovias do país. Dramático demais. O presidente do Egito
rejeitou o ultimato.

— Abaixe isso, por favor!

Não soaria autêntico. Precisa antes afastar-se das tentações. Por que então está
lembrando o momento em que viu Alice entre as pessoas e a chamou para um café e seu coração
se alegra ao lembrar o beijo? Segura-lhe o queixo e a puxa para si. Seu polegar aperta-lhe a face.
Intensifica-se a sombra ao longo da maçã de seu rosto. Ele está dizendo Vamos, gostosinha?
Inacreditavelmente vulgar. O segredo. Amor camaradagem não é sensual. Em algum momento é
preciso mudar a estação. Onde ela estará agora?

Alice escuta a voz como num sonho. Eu queria que você fosse morar comigo. Mal pode
acreditar. Toque-me. Veja a minha mão perto da sua. A vida que sonhou. O lar tornado realidade
quando menos esperava. O trabalho está mudando — pensara Pabloao conseguir seu primeiro
emprego formal. Não faz sentido duas horas gastas numa condução e o estresse que daí advém.
Por que não se permitir então amar essa mulher assim jovem experiente submissa?

Como agir agora? simplesmente aquiescer? Parecerá fácil demais. Mulher que depois o
homem não valoriza. O rosto virando lentamente. Lábios pálidos. Olhos opacos e cabelos
ressacados. Nem por isso deixa de impressionar a sua beleza trágica e majestosa. Num
movimento teatral pisca e dirige enfim o olhar para os olhos dele. Está prestes a acontecer ou já
aconteceu. Sabe Deus tudo o que escutou a respeito. O que lhe aconselharam. Filhinha — dizia
sua mãe. Amiga — dizia a irmã de Öffner. Princesa — dizia o pai. Todos sabiam como agir em
qualquer situação. Agora você é mulher, precisa se comportar. E todo aquele palavreado
conhecido. As vozes se superpõem em seu cérebro. Ecoam. Ecoam. Mas o que importava a
qualquer deles e por que na verdade deveriam se importar? quem dentre eles adoecerá se não der
certo e quem celebrará caso sim?

No fundo sou uma pessoa boa. Não quero enganar ninguém. Quero fazer um homem
feliz. Sou responsável. Não era pretexto quando disse que viria procurar trabalho. Procurei.
Quando encontrei Pedro tinha procurado. Na semana depois da noite com Pablo. Em que dia
deixei de sair e correr atrás? Meus documentos estão em ordem; abri a conta no banco; tirei
passaporte, caso a oportunidade surgisse em outro país. Tentei. Por que me sentirei culpada se
encontrar um homem que cuide de mim e me dê o teto em que eu possa trabalhar de verdade?

Retirando o olhar de Pabloela respirou fundo e relanceou os olhos para o teto. Chorava.
Embaixo da foto mais recente postou o verso. Está de perfil, sem pose aparente. O abajur é
auréola cuja luz se estende aos objetos na penteadeira. As coisas mudam depressa. O texto ainda
comove mas nada tem a ver com seu momento. Ela não se importa porque pensa que foto e
escrita só eternizam sentimentos que passarão. No caderno à frente do notebook Alice desvenda
Pedro. Desvenda por meio de palavras novas uma bondade antiga. Purifica num corpo campo de
batalha alguém tão corrompido. Discerne nele um outro e outra a si mesma. Valoriza a
capacidade de trabalho e a dedicação que não permite que o tempo se perca. Porém não tem o
costume de ler. Chegou a pensar quando a viu: como uma jovem com tal perfil desperdiça seu
tempo com inutilidades de intelectual. Podia por exemplo ter posto uma cor nessas faces
morbidamente pálidas. Mas o irmão, que também desdenhava a leitura, saberá aproveitar.

Há essa possibilidade. Ela nunca soube moderar as reações durante o sexo. Tenha sido
um tapinha para que se contivesse. Sair do prédio com um leve giro do pulso que traz o visor do
relógio para diante dos olhos e então saber que o sol está onde deveria estar. Alice silenciosa sem
sombra. Num ponto mais calmo da cidade no ouvido de Raphael soa o noticiário da hora do
almoço que Pedro não escuta. A aglomeração quando chegava era mais do que um protesto de
professores por melhores salários. Preserva orgulhoso total alheamento em relação ao que
acontece no trânsito e na cidade exceto pelo paradeiro da moça — onde a poderia encontrar?
Jamais saberei. Sei que ela. Ela. Meu pai costumava falar esse tipo de coisa. Jamais acreditei.
Tem a ver com esse calor benigno. Com o desejo de que ela esteja bem.

Estou bem? É esse desconforto estar bem? a noite escura da alma? a madrugada mais
negra próxima do amanhecer? O suor lhe mareja no rosto e súbito mareja dos olhos a certeza
distraída. Não queria que tivesse sido assim. Afinal ela era minha amiga, minha única amiga. Me
ofereceu sua casa. Sua casa, imagine. Suando e chorando. Pensa que ela queria apenas trabalhar e
ele tinha uma empresa. Se ele tivesse oferecido a vaga de secretária de que tanto precisavam. Se
tivesse sido generoso. E o que mais ele podia fazer senão me seduzir? Ela era uma criança.
Talvez ainda seja. Uma criança agora com uma criança pra criar. A criança dele. A minha
criança...

Pedro sentou-se na cama. Tentando discernir o que fazia parte do sonho e o que tinha
mesmo acontecido. Forçou a mente mas o sonho se esquivou. Deixe pra lá. A luz azulada da TV
mais uma vez não desligada banha o quarto de um céu estranho também onírico. Vale a pena se
angustiar assim com tão sublime luz à janela? Essa expressão de alívio está mentindo. Sonja
aprendeu a interpretar os sinais. Ele fala.
-Oi amor, dormiu bem?

Sim, e ele? Muito bem. Em que estaria pensando? Sonhei, ele quase disse. Mas nem se
quisesse poderia dizer com certeza o que sonhara e o que era simples recordação.

A parte em que ele abre a porta para Alice naturalmente era do sonho. O coração dispara.
Ou ela estaria mesmo ali, a amiga, a companheira de viagem? Recentemente chegara. No mesmo
dia em que a encontrou? Não. Já recusou a idéia. Pense com clareza. As coisas que chegam desse
outro mundo se originam no temor. O olhar de Sonja inquisidor paira no quarto. Força passagem
pelas fraquezas de Pedro e esbarra em seus pensamentos. Diariamente um pouquinho. Ele não
tem a menor idéia do que ela sabe. Por que teme tanto assim? É porque a amo e o amor começa
no respeito. Então é isso. Amor.

Tudo passou. Não foi esquecido mas passou. Pode ser lembrado mas não assusta.

Recente pesquisa diz que as pequenas empresas duram em média não mais que dois
anos. Há dois anos abrira as portas da gráfica. Sonha agora com uma editora e por que não uma
livraria?

Ali no trecho da rua por que passaram no primeiro dia lavada pela chuva e recendendo
sua infância de asfalto ele a encontra e pensa que é seu dia de sorte. Era um dispositivo difícil no
mercado. Alice uma ou duas vezes no futuro olhará o pacote indagando o que poderia ser — ela,
de quem seus pequenos vizinhos no interior zombavam chamando de gatinha e logo emendando a
razão não ligada a beleza mas a curiosidade. Conforme foi crescendo e se tornando moça, se
perguntavam a razão de uma menina tao sem graça chamar a atenção dos meninos mais velhos e
— diziam — até de homens casados.

Naquele instante desenvolvido a partir de convicções que de súbito ruíam, encontraram-


se e foram tomar um café. Ela viu um homem belo e altivo emergir da multidão. Faz um tempo.
Agora Pablo e Alice estão estabilizados no apartamento pequeno no subúrbio suficiente para que
cada um tivesse o seu próprio escritório com pequenas adaptações no quartinho de empregada
enquanto um filho não vinha (não pretendiam que viesse tão cedo). Um filho será renovação que
ela não pretende.

Aperta o botão do elevador com o dedo ainda molhado. Porque as coisas acontecem até
um determinado momento e há um limite para tudo incluindo a coincidência e o desespero e
felicidade e de algum modo estão mais ligados do que se imagina, um homem a quem se ama e
outro do qual depende. Resta entender o passado como entende o futuro, alguma coisa amorfa
encaixada no dia de hoje que não o deve preencher e no fundo sequer motivar ainda que ela possa
se lembrar da virilidade dissipada e imaginar o que seria se tivesse se consumado dentro dela.
Nada relacionado a isso que o marido licitamente poderia fazer todos os dias e entretanto mal e
mal nos finais de semana. No corredor ouviu o celular tocando dentro do escritório. Não correu
mas se dirigiu firme na direção do som. Alô? Bátegas na clarabóia.

Apesar das dificuldades o casal resistia graças a raros momentos de encanto deslocados
da rotina conjugal. Subitos sonhos que se desprendem de onde quer que estejam e fugazmente se
tornam realidade. Ainda posso pensar que um é outro. Por que não? Que mal faço e em que
transtornaria nisso a ordem dos mundos?

Cortinas dançantes na sala de jantar. Ninguém à mesa posta. Luzes e sombras na parede.
Som de portas. A esposa descobrira o caso de Pedro com a professora da sobrinha que um ou
outro ia buscar na escola quando a mãe não podia. Sonja disse que queria o divórcio mas pouco
depois hesitava. A verdade é que o tormento não se instala de um momento para outro. É
concebido, gerado, nasce e dura, dura e vai afetando o universo ao redor até não mais restar
consciência da vida antiga quando se admiravam e respeitavam.
Alice não faz idéia do que possa ser um presente com tais dimensões e formato. Há
algum tempo ela foi abordada na rua por um rapaz elegante e não soube o que fazer quando ele se
apresentou e disse que, se ela permitisse, iria lhe mandar flores e alguma coisa mais. Devia ter se
antecipado à empregada que duas vezes por semana fazia a faxina e visto ela própria quem estava
batendo. Agora é tarde. Desliza pela sala com o embrulho.

Vivo e móvel o azul enquadrado na janela. Faz um ano que se casou. Deixe-me te contar
— disse para a amiga que não via desde os tempos da infância no interior. Então:

-Eu estava na rua do metrô, próxima das escadas rolantes. Um frio de rachar. Ele estava a
meu lado no vagão e conforme as pessoas entravam ia se aproximando. Você o conhece. Não dá
para não perceber um homem assim a seu lado, não é? - a amiga riu e o imaginou a seu lado.
Melhor evitar a tentação. Seu rosto sereno de amiga está tenso. A imagem de Pablo se dissipa
enquanto Alice continua falando.

- Cheguei a pensar em me matar mas não sabia como, não suporto dor.

Aleksándra, a amiga, estava sinceramente em suspenso. Em seu rosto, uma expressão


que Alice conhecia bem, do espelho.

- Quando passava pelos prédios e via as luzes dos apartamentos, meu coração se
apertava. Precisava de um lar. Angustiava não ter um teto sob o qual passar a noite e paredes
entre as quais pudesse me abrigar. Ele? Imagino que estivesse todo o tempo me seguindo. Pra
falar a verdade me esqueci dele. Entrei na lan-house...

— Você não tinha nem celular?

— Não. Ainda não hoje tenho. Mas então entrei — continuou — com o endereço da
moça que veio comigo. Fui pro computador saber pelo site de mapas onde ficava a casa. Quando
descobri, já não sabia se devia mesmo ir.

- E ele ali na biblioteca todo o tempo?

- Ele ali. Provavelmente me seguia.

- Você tem sorte — diz a amiga. É um homem bom.


Perguntou-se o que era aquilo, colocou a caixa sobre a cama e desceu; algum tempo ainda
ficaria se perguntando pensando no papel de presente com o mesmo tipo de pensamento com que
descia as escadas e que a envolvia ainda quando chegou à rua. Havia pouco pusera o vestidinho
verde que ocultava suas formas e chegou a chorar ao se olhar no espelho e ainda fungava ao abrir
a porta. Na portaria a luz perfeita iluminava a passagem de um para outro mundo entre os quais a
luz aponta para um terceiro e provavelmente o único, o do amor sem relações humanas. E o que
haveria se Deus nao tivesse criado o homem. Assim passariam os dias, ela pensando num futuro
cada vez mais possível, o que a inquietava (porque quando o devaneio dizia respeito a coisas
improváveis de algum modo parecia mais real); sua figura passando a fazer parte do interior da
biblioteca, funcionarios a chamando pelo nome e tudo.

No final das vésperas de feriados as cidades grandes estão vazias e isso deprime Alice
sobretudo depois que começou a trabalhar no centro cultural. Nesse outono cheio de cores e
aromas por tanto tempo idealizado entendeu que seu lugar no mundo era anunciado em cada dor
de cabeça, em cada tristeza, em todo desconforto, sobretudo pela alegria gratuita da
contemplação de um pôr-do-sol e das pessoas na rua sobretudo das pessoas na rua num pôr-do-
sol voltando do trabalho, esse descanso que se faz por merecer nos dias em que a vida parece
plena e cheia de tudo, pelo que o ócio não cabe nos dias.

No bar, olhando através da janela, Pablo pensa que ela não o amava mais, que ela nunca
o amou. Que essa é a razão de sua frieza. Mas ela o ama tanto quanto pode amar. Passou sim a
ter repulsa ao sexo. Preciso esquecer — pensou ela, levando as mãos ao rosto num gesto de quase
devoção. Quando ela ficava assim, Pablo tomava suas mãos e as beijava em lágrimas. Tantas que
em algum momento não mais a comoveu.

Nessa noite chegando o pensamento a uma profundeza oca e sem sonhos e o corpo
sacudido por alguma coisa próxima a soluços, sentiu-se viva como um peixe que se debate.
Parecia estar escuro, pelo menos ela não via nada embora continuasse ouvindo o movimento da
rua e sentindo-se praticamente na rua, deitada na rua. Ouviu um nome e demorou mais do que
deveria para entender que era o seu nome antes de perceber de quem era a voz.
Os irmãos conversam no bar. Olham ao longo corredor cheio de memórias, o espelho
que um é para o outro. Até do homem que um dia apareceu no hall eles falaram.

Fizeram o pedido e Pedro seguiu o movimento dos lábios vermelhos que mencionavam
bebida alcoólica. Resistiu a perguntar desde quando. Pablo era adulto. Tiraram os blusões ao
mesmo tempo. O mais velho colocou o seu no espaldar. O mais novo o deixou solto no colo.

- E a gráfica, como vai?

- Vai bem. - Tudo bem graças a Deus.

Depois que Pedro lembrou o incidente em que o menino Paulo estreou um carimbo com
seu nome na porta dos vizinhos fez-se um silêncio pesado. Pablo afastou o saleiro do centro da
mesa sufocando o pássaro da toalha no justo momento em que o irmão teve o mesmo impulso.

- Esse inverno está mais frio que o normal não é?

Pablo pediu licença e foi ao banheiro. Pedro seguiu-o com o olhar e quando a portinhola
se fechou ele tornou a se perder nas lembranças. Na volta Pablo se viu no vidro da janela em tom
sobre tom. Estava ficando calvo. Sentava-se quando percebeu que o murmúrio que pensara ter
ouvido realmente ouvira e que o irmão esperava uma resposta.

- Como? — perguntou.

Pedro repetiu. - Diga o que sabe a respeito de Sonja — os olhares se cruzaram num ponto
até então impensável. - Tenho escutado coisas — disse. - Seja franco.

Pablo afastou o rosto num movimento imperceptível e sustentou o olhar. - Vamos, pode
me dizer.

— Do que está falando?

Pablo desliga o telefone. Tira os óculos e aperta o cenho. Diz à secretária que desmarque
o cliente das duas. A foto de Alice o observa.

- Não sei nada exceto que jamais vi amor tão grande — respondeu Pablo. - Você tem
sorte — enfatizou.
Alice procurava trabalho como as meninas esforçadas que não se contentam com a
educação formal que se estende sem fim sob as asas dos pais. Como eu pude ser tão cruel e me
aproveitar da situação?

Está bem — pensaram juntos. Deixemos disso e falemos direito de mamãe.

- Outro dia ela deixou a torneira aberta e quase inundou a casa. Outro esqueceu o forno e
mais um pouco haveria um incêndio.

- Mas isso pode acontecer com qualquer pessoa — retrucou Pedro.

— Não com tanta frequência, meu irmão. Por isso fui num médico amigo meu e ele
disse...

O avental do garçom um dia foi vermelho e um dia talvez tenha sido lavado.

- Não preciso.

- Aceite.

- Realmente não preciso.

- Por favor aceite.

- Não, obrigado.

- Pedro, pelo amor de Deus, sei que as coisas estão difíceis.

- Como sabe?

- Estão difíceis para todo mundo.

- Você não se inclui em todo mundo?

- Tenho um salário alto, bônus, etc. Não dependo da economia mundial.

- Toque sua vida, mano. Vou me virando. Sério. É tudo uma questão de perspectivas.
O comércio estava fechando. A voz, os irmãos não perceberam imediatamente, era a do
dono do bar. Elevou-se entre outras vozes que se confundiam com as sombras.

— Crianças, entrem!

Os bares noturnos estão abrindo. Há movimentação também no hotel ao lado.

- Outro café? — perguntou Pablo enquanto pedia a saideira.

O entorno do bar está tranquilo e tranquilo permaneceu apesar da aproximação e da


passagem da hora do rush. Tarde e pela primeira vez em seu casamento, Pablo teve consciência
do tempo. Talvez pelos trajes dos passantes, talvez pela leveza das expressões e pelo gênero das
conversas. Mais de nove com certeza. Agora a posição da lua mais alta e menos brilhante dá
também seu testemunho.

O nascimento da noite.

Há algo que o incomoda acerca de explicações a que todavia sente-se obrigado. Isso é
estar casado. O limite para os anseios de vida. No apartamento acima do bar as crianças já
dormem e sonham.

— Tenho que ir agora, meu irmão. Bom te ver.

Depois que Pedro saiu, o dono do bar pediu por favor que o irmão batesse a porta com
força pois a fechava com demasiada delicadeza e nao fechava.

O suéter aperta-lhe os seios. Naturalmente soube assim assim o provou mas detestava
ficar muito tempo nas lojas de roupas. Mas foi uma boa compra considerando que deveria esfriar.
Tornou a ver a luz pela janela e chegou mais perto da réstia de sol. Sim: uma réstia de sol. De
sol! Sim. A rua. Sufocante e descorada. O cheiro de asfalto ao primeiro calor do dia respondendo
como um corpo de mulher a um abraço de homem após meses de esquecimento do que é estar
agasalhada.
O bloqueio fazia com que a fila de caminhões chegasse a mais de sete quilômetros de
extensão blasfema sob o sol. A poeira subia ronceira contradizendo o asfalto com a impressão
que era uma estrada de terra, áspera e crua como uma estrada qualquer sob o sol dum meio do
dia.

O motorista estava atrasado. Perdera dinheiro com os congestionamentos na cidade e


agora a carga perecível perecia. Essa gente está se aproveitando do momento e querendo aparecer
na televisão. Era ele mesmo caminhoneiro e se sentia privilegiado por ganhar a vida em
condições adversas e se sustentar doente e sustentar a filha. A curva fez com que a menina fosse
jogada para o alto ao lado do pai descendo com um baque seco contra o assento, avermelhando
ainda mais a mancha na pele branca e arrepiada que Pablo adorava. Ele nem usou de força mas
esteve perto, numa espécie de silencioso limite. Ele ainda não tinha dado por si em meio aos
homens.

- Ai, pai, cuidado — disse ela, gaguejando a cada impulso. - Tenha cuidado — repetiu.

Procurou se segurar enquanto os homens cresciam à frente do veículo imparável alheio à


pauta do piquete. Mal percebeu quando a cabeça bateu no vidro ao mesmo tempo em que a pedra
em sentido contrário o ultrapassou.

Foi como uma bomba, como um relâmpago. Só acordará para reconhecer o corpo.

Na janela do hotel as cortinas crescem como velas dum barco à deriva roçando a cama de
casal. A porta se abre e a menina entra estranhamente chorosa cortando suspiros com os sons
guturais e foscos próprios dos prantos infantis. O quarto parecia a cela de uma escrava medieval
cujo senhor teria se comprazido em conferir outra punição caso não percebesse o corte fundo na
testa macia com a qual o vermelho e o inchaço não combinavam.

— Seu pai? Como assim? O que houve?

A menina se movimentava como um fantasma. Com a visão turva dos fantasmas, não
reparou em como a palma da mão de Paolo estava ferida. Sentiria decerto se eles fizessem o que
ali foram fazer, mas não havia clima. Não sei se algum dia eu me recuperarei disso, pensou ele.
Era pai dela. Meu Deus, o pai dela. Um ser humano e o pai dela.
Misturada à multidão, Alice pensa que se juntando às pessoas poderia sentir como elas.
Andou pela rua em frente ao beco enchendo o peito diante da face gentil da estação. Passava por
jovens de jeans e camisetas com pesadas mochilas ou arrastando as malas com rodinhas até o
meio-fio onde as puxavam. Levou a batata frita à boca, os olhos girando e o pescoço se movendo
no ritmo pesado das botas na calçada. A voz do taxista é monótona e ela não percebe qualquer
significado nas palavras mas faz um imperceptível sinal de sim com a cabeça

Essa voz é ainda a mesma mas logo se perderá em desejável anonimato. Esbarra em duas
pessoas antes de se sentar. O motor de um ônibus saindo dialoga com o ribombar lento de um
trem. Não vê as pessoas. Revira as coisas na bolsa.

Embora pequena como as de hoje em dia, a máquina ainda fazia clic como as antigas.
Aos repetidos cliques ela esperou por alguém, segundo o homem que fixara discreto o olhar em
seus joelhos. De pé diante do anúncio de uma agência de viagem azulando a parede atrás,
enquadrou a menina que se abaixava no sentido da bagagem. As pernas unidas e as mãos
espalmadas na parte interna das coxas mais escuras por efeito de meias de nylon. Mãos brancas,
quase brancas. Plenamente brancas onde a luz resvala dourando o teto do ônibus estacionado
encontra o mindinho esquerdo dobrado sobre a barra desfiada do short cheio. Essa era a menina
que o rapaz à frente destinado a ter um lugar a seu lado durante a viagem via nos precários
prelúdios de imaginação e desejo que não necessitam de uma imagem fiel. Alice o focalizou
também e quando batia a foto teve um presságio. Outro homem, bem mais velho, surge no visor.
Braços abertos para um último abraço na namorada suspensa.. Invertido no vidro com o horário
de saída do ônibus; aéreo entre lágrimas que julgava por ele. Que ingênuo — pensa Alice. Ou
um santo.

Alice e Pedro sairam naquele dia do aeroporto....

Um homem grisalho caminha pelas redondezas. Digamos que tem uns quarenta e poucos.
Pode ser mais. Em alguns a idade como que se interrompe e ou morrem jovens ou têm a
decadência fulminante de que nem o espelho nem o parente próximo darão qualquer alerta. Esse
tipo de homem. Desencantado. Desejoso dum último projeto que faça sentido. À procura como
quem olha letreiros na rua. Procura decerto mais que um barbeiro.

É um salão amplo envidraçado. Dessa parede vítrea ele verá Alice e um carrinho de bebê
e logo a mãe ansiosa. A seguir o som do carro de polícia não mais longo que uma inspiração
após falta de ar. Depois a mancha azul de um passante apressado — braços luzidios balançando
quase abertos: asas. O rosto intenso interrompendo a idade.

Desce do ônibus olhando o muro de tijolos aparentes quase oculto por florezinhas
brancas que o mato alto em redor tornava exuberantes àquele sol baixo e frio. Tomou coragem e
encaminhou essa energia para a espera. Tinha isso com ele, a diferença entre a paciência da
espera e o engano do contemporizar. Decidiu pernoitar num hotel e ir de manha pois precisava
mesmo cortar o cabelo.

A esquina da casa de telhado quase oriental. Um breve espreguiçar ao alcance dourado


daquele raio. Ela aperta os olhos e alonga os músculos do braço muito branco e comprime os
dedos dos pés ao passar diante de uma persiana entreaberta por dedos indiscretos. Não se
imagina observada. Não tem esse instinto sempiterno das mulheres.

Esteve quase o dia todo na estação entre partidas e despedidas enquanto ônibus após
ônibus encostavam nas plataformas em complicada manobra de contorno das pilastras e muros e
outros ônibus já estacionados sob os gemidos das portas e motores. A noite azul descia do céu
revelando pálidas estrelas e Alice se despedia dos pais pela janelinha por onde a paisagem até a
casa de seus tios a acompanharia. Foi um tempo muito bom e não deve se queixar. Também
agora é uma privilegiada. Faz o que gosta. Imagina, receber dinheiro para trabalhar numa
biblioteca! Não se importa se o marido vai encontrar a jovem amante noutra cidade. Graças a isso
pôde tirar o dia para as fotos. Terminará a vida com ele em paz sem mais culpa. Agora se
misture ao mundo. Bem vinda aa vida.

O eco diminui dentro dela conforme a estação se esvazia. No caminho de volta para casa
outras ruas e casas passeavam na sua memória como um filme projetado na praça e entre os
carros e junto às pessoas sacudindo no metrô. É uma criança que volta para casa após a escola e
nem aqui nem ali é seu lugar.

- De onde você tirou isso de escrever uma história a partir de fotos rasgadas? —
perguntou Alexandra.

O que um homem de seus quarenta ou cinquenta anos vê quando a vê passar pela


barbearia?

Em primeiro lugar Imagina o quadro perfeito (porque é um pintor).

O barbeiro percebeu as manchas de tinta em seus dedos assim que ele entrou. Ele não
notou que o outro havia percebido na verdade nem sabia que estavam manchados ou se sabia não
fazia caso. Apenas sorriu pensando o quanto era um velhinho simpático e como ficava bem de
branco.

Sim: precisa que ela pose. Precisa tomar coragem e lhe pedir.

Olhos fechados. As mãos no rosto. Dedos finos. Unhas discretamente tratadas. Apertou o
canto dos olhos. A língua antes em seu ouvido agora luta contra sua própria língua. As unhas
discretamente tratadas cravadas nos cabelos espessos. O prisioneiro ocupado com a blusinha
branca de decote em V e logo com a fivela do cinto em L.

Quando saia do apartamento e retorne ao hotel há de ser com a certeza do novo emprego
e do amor do patrão. Ela se recompôs sentindo-se uma fruta que não deveria estar exposta com
marcas evidentes. Não lembra em que momento chegaram a se deitar no chão entre as canetas
que caíram do copo, a mão dele sem se dar ao trabalho de retirar a última peça, alargando o
elástico.
Ondas modificam a textura da areia e tornam possível as pegadas onde antes havia
espalhamento. Os dedos dela se agarraram à estante e a alça lembra um arreio no braço muito
branco no momento em que os olhos param entre vida e morte entre as coxas se alastrando para o
cérebro. Ela balança a cabeça e os dedos finos buscam a caneta que permanece quieta no copo.
Chegara. Fantasiando um Pedro que não conhece carregara o pensamento do homem que deixou
a cadeira de barbeiro.

A letra redonda atravessa de canto a canto a primeira foto e a janela oscila sob o
luminoso. Alaga a varanda de impensáveis matizes. Alice era um vulto verde agora violáceo. Se
Pablo tivesse ido para casa assim que saiu do bar teria encontrado um alaranjado totem. Se eu
fosse um pintor — pensou o vizinho — teria o elemento para um quadro perfeito. O som da voz
do estranho de seus cinqüenta anos a transtornará. Ela pensará em homens maduros como o seu
primeiro deveria ter sido. Não imagina como ele a descobriu nem se interessa em saber a razao
por que deseja que pose para ele.

— Infelizmente não posso — disse, pensando em como faria. — Não, não posso-
repetiu. Dois seres unidos por projetos derradeiros. Não se aproximará porque já está próxima.
Inelutavelmente unida. Trata-se de administrar o fato consumado.

Ela entra na sala. Quase negra. Fecha as cortinas. Negra. Senta-se. Azulada pelo monitor
passa as fotos. A determinação a inspirará caso do trabalho não se afaste. Nasceu muito tarde.
Cresceu com os que apostam na felicidade e partilhou o deleite dos sentidos pelas mesmas redes
sociais. Por volta da vigésima foto, Pabloentra. Resolveu a meio caminho. A menina não atendia
o celular e ele achou melhor deixar como antes combinado. Por agora de novo a taquicardia e a
falta de ar e suor frio e dor no estômago. Não é nada e de nada valerá se queixar com ela. Não
pode tomar o comprimido que lhe dará segurança. Seria a morte perfeita. Riu negro. Quando
faltou energia por alguns minutos, os dois estiveram frente a frente iluminados apenas pela lua.

A escuridão envolvia a silhueta polida de um corpo novamente acostumado ao trabalho


duro da casa num vestido leve e surrado, limpo, sem pretensão exceto o conforto. Passos acima
dos demais sons. No porta-retrato, uma menina com roupa de balé calça as sapatilhas. A seu lado
Alice sorri, o rosto inclinado para a direita. Os olhos dele identificam o perfil pelo qual se
apaixonou. Piscam e ele se perde sob árvores que farfalhando parecem falar. Fixado no alto das
pernas que a saia xadrez revelava no movimento junto ao interfone. Sob a janela, a mesa nua. Os
vizinhos que costumam ver tudo dessa vez não o viram entrar e por isso o silêncio é ainda maior
na camada sobreposta dos sons longínquos.

- Oi, amor.

Por que logo hoje resolveu me chamar de amor? Está inclinada, quase decidida,
decidida, a se encontrar com o pintor.

- Como foi com teu irmão?

- Como poderia ter sido?

- A que horas Na mesma em que eu estiver indo ver esse homem você vai?

Não sei como lidar com isso — pensa. Apesar de respeitar o marido, tem esses rasgos de
conhecer outros homens, como quem gosta de ficar em casa mas não resiste a um convite sair.
Para ele, ou se amava ou não. Ela discordava calada. Agora esse elemento novo. Conhecer outro
como ela. Como ele (Pablo) não era. Assim próximas essas árvores formam alguma coisa tão
familiar a ponto de inquietar.

Esse desespero. Seu passo é claudicante e acompanha a linha da calçada mas subitamente
desgarra e invade a grama no sentido do asfalto. É um logradouro íngreme e não daria para ver se
um carro viesse em sua direção. Lembra o dia em que com um recorte de jornal acertaram o
aluguel da casa mas tenta em vão se lembrar do que então sentia. Menos de um mês após ser
pedida em casamento. Não há ninguém além dela na rua. Seus tênis são verdes e não está de
meias e seu vestido cinza e grosso parece um uniforme. Quando ela olhou para trás o som da
respiração pesada se agitava. Aí o coração dispara e o estranho frio faz suar. Não adiantará o
que quer que faça ou diga. Pablo imagina coisas da própria cabeça como se fossem um fato e ela
não sabe como lidar com isso.
Sonja com muito sono mantém o olhar nos prédios pontilhados de azul claro caminhando
na direção deles com a taça em uma das mãos e a garrafa na outra como se fosse servir alguém.
Está com muito sono, tem tanto a fazer e nada fará direito por causa do sono. Sente no cristal as
mãos cada dia mais ásperas. O som dorido e insistente é o canto de um curioso pássaro entrando
pela janela, retângulo de luz que não ilumina.

Com ternura perdida sorriu ao lembrar-se de Pedro. Um moribundo que caminha sem
saber ou talvez acredite piamente num milagre. Demora-se ante as paredes de quadros e pôsteres.
Vasos e toda a tranqueira que em tese deveria encher a casa e dar a cara de um lar. Mulher é
competente nisso. Ela nunca. Não depois de certo dia. Olha os vários pares de óculos escuros
sobre o móvel como se pudesse fazer brotar deles um novo olhar e renovados dias de sol. Com
uma empregada e com Pablo casado deve ter mais tempo livre para redescobrir o marido. Não
redescobrir o príncipe pois ele jamais será um. Mas olhe que leva jeito. E que vigor para as coisas
práticas! para o cotidiano estafante duma pequena empresa. Fornecedores, clientes e com quem
mais é preciso lidar. Outro tipo de príncipe.

Alice geme como árvore ao vento em sua janela quando lembra. O homem das coisas
práticas que quase conheceu. Considerando o tamanho da cidade, as casas não são tão longe uma
da outra. Fecha a porta. Deixa para trás os cachorros, os encanamentos, as fofocas, a garagem, o
play, os filhos e as mães — não cansam de tanto se amarem? De tanto sentimento familiar?
Quando bateu a porta do prédio, estava livre.

Dá uma última olhada na fachada e torna a se perguntar se valia o aluguel. Concluiu que
sim considerando a localização e o comércio. Sobre essa casa falou com Sonja no ônibus.
Acabou de amanhecer e a cidade lavada pela chuva noturna ainda guarda o cheiro úmido de
asfalto escurecido e as vidraças estão cheias de lágrimas mais serenas que a paz dos mortos.

Não parecia uma menina. Ao contrário. Parecia estar no controle. Toda curvas e luzes.
Praticamente o chamou para a casa dela. Que tipo de casa poderia ser? A dos pais? Um quarto de
albergue? Pablo deu-se a permissão de ir — um necessário exílio de si mesmo — e não se sentiu
culpado, ainda que a menos de duas horas estivesse pensando em como passar um tempo maior
do final de semana com Alice.

— Amor, você vai demorar?


— Ah querida olhe só que chato, apareceu um problema.

Impressiona a naturalidade da menina diante da situação. Parece feliz do alto de seus


quinze, dezesseis anos. Quem mais no mundo sorria assim? Afinal, é um apartamento. Uma linda
cobertura com vista para o mar. O apartamento de uma amiga. Após servir um café ela pede
desculpas e licença e uns trinta minutos para fazer a lição de casa. Senta-se diante do computador
e começa a escrever consultando um livro ao lado e ignorando solenemente a presença do homem
que agora a vê segundo o reflexo da vidraça e o spot. Ele tem certeza de que não é o primeiro.
Ainda assim há a lei.

Se sou inocente perante minha consciência mas não perante a lei ainda sou inocente?

Concede-lhe conforto a estranha familiaridade: a água que quis beber, o ar à janela, o


abajur que acendeu — tudo onde ele sabia que estaria. Até o par de sapatilhas de balé evocavam
o mais natural dos mundos.

Ela termina o trabalho e esfrega os olhos. Tira os óculos e se aproxima do homem


adormecido no sofá. Parece uma criança. Está com um de seus óculos escuros e sorri. Quem
sabe queira recuperar a visão da adolescência. Ela retira-os delicadamente. As luzes levam a
ninfa que o conduzia pelo bosque mas lhe oferecerem outra. Lentamente aproximam-se os lábios.
A pele da menina é rosada e tem traços de acne. Os dedos se abrem sobre a camisa branca mais e
mais amarrotada. A mãos dele descem pelas costas desnudas e lisas acompanhando um sulco e
do outro se aproximando. Se a luz ainda acesa se apagasse nesse momento não perceberiam. A
última imagem que ele tem é de uma jovem singrando soberba sobre ele, soberana e vagamente
desajeitada. Um mar pelo visto bem conhecido.

Quando ele voltava para casa sentiu a palpitação acompanhada de falta de ar e vertigem.
Tentou se lembrar se precisou do comprimido. Não. Tudo correu naturalmente quase como uma
brincadeira que ela não queria terminar. Mas ele precisava.

- Tenho de ir — disse pensando Não deve ter sido fácil para um caminhoneiro comprar
uma casa dessas.
Ah ela entende, disse ela. E abriu um sorriso imperceptivelmente piedoso.

Ainda com a respiração acelerada ela se detém no alto das escadas, na saleta onde
começa o corredor para os quartos. Lá embaixo alguém bate a porta de um carro. Ela se pergunta
se era mesmo a sério que planejou a fuga. Que pretendia falar a respeito com um homem que
naturalmente não estava minimamente preocupado com nada além de si mesmo. O pai, ao
contrário, a amava. Todo aquele conforto em grande parte só chegou a ser alcançado por causa
dela. Ele pensava que queria que a filha tivesse o que a mãe não teve e talvez por isso tenha
procurado fora, longe de casa. Ela reconhece o amor paterno e se deixa descansar nesse amor.
Quase entende o que ele dissera à irmã que falara em ir o mais depressa morar sozinha. Filha
minha só sai de casa casada. Então qual exatamente o papel da fantasia em tudo isso? Tocar e
envolver e sentir o calor que avermelha os olhos — animal alucinado atacando. Pensa se
fantasiaria assim caso tivesse um irmão mais velho. Precisa estar preparada porque a vida se dá
não entre animais enlouquecidos mas após a transformação deles em homens de bem. Não
convinha passar dos limites e acreditar que tinha as rédeas até porque amanhã seus quinze anos
terão se transformado em trinta e quarenta e a carne despenhar-se-á e a fila andará com essas que
nem nasceram fazendo o papel que ela hoje faz.

Voltando para casa, o pensamento de estar de novo com a menina - um pensamento do


qual o homem mais velho deveria fugir como o diabo da cruz — fará com que se enleve e
imagine-os ao ar livre lá em cima na colina por exemplo entre grandes pedras e pequenos
arbustos guiando os pés jovens pela encosta verde e a cada passo o mar se distanciando lá em
baixo e o som do mar — outros sons já não havia — longe longe longe cada vez na atmosfera de
um outro planeta.

Alice fazia algum esforço para ser merecedora do tanto amor que ele lhe dedicava?
Estará ele com algum problema que não quer contar? Não quer que eu me preocupe. Deve ser
isso. Se a menina for ao menos boa e precoce o bastante para o confortar... É bem capaz que seja
isso. Não quer que eu me preocupe. Ele é tão diferente de Pablo, Pablo só pensa em si mesmo. O
pensamento confortou Alice da nova ausência do marido sem um aviso que justificasse possuir
um celular. Não iria dizer naturalmente que estava tendo um caso; mas podia pelo menos dizer
que está bem, que está vivo.
Pablo notou que Sonja havia emagrecido e reagia com menos fervor as suas carícias. De
todos os seus casos era aquele de que não poderia prescindir. Pareceu-lhe razoável pedir a ela,
sussurrando. Devolveria sua autoconfiança. Os olhos dela o encaram e depois se fixam num nada
adiante e novamente nele e agora cabisbaixa ela parece cansada ao dizer que ele não precisa se
esforçar tanto.

- Está tudo bem. Vai ficar tudo bem.

Ela está distante. Magra, fria e distante. Poderiam ter se casado. Teria sido melhor. Ela
pisca e seu olhar agora se perde com tamanho desdém que dignifica seu rosto até então apenas
lascivo. É tarde. O que poderia ter sido feito não foi e a vida pune. Parece ter sido num outro
mundo que se conheceram e se amaram e foram tão gentis um com o outro. É pouco — pensou
ele quando ela em silêncio consentiu.

Estava morrendo. Pedro assustou-se ao perceber que a velha taquicardia do irmão tomara
derradeiro caminho. Ele próprio não percebia? Como lhe dizer? Se consolará com a idéia de que
sempre teve isso desde pequeno e que você também tem e pronto, assunto encerrado E agora,
com esse problema com a justiça, já pensou se for condenado e tiver que cumprir pena em regime
fechado? O que será da esposa caso aconteça o pior? A idade dela conta contra agora. E a
inexperiência. E não falar inglês. Mas o que ele podia fazer agora sem causar uma grande
confusão ainda maior? Ele se permitira abandoná-la à própria sorte — que história é essa agora?

Via Alice impulsionando a roda da máquina de costura com a mão esquerda que agora
cerrada dá pequenos socos laterais à altura de seu próprio pescoço enrijecido e doído pelas horas
em que está trabalhando em fronhas coloridas enquanto espera o marido que poderia ser ele,
Pedro, se não tivesse mantido o compromisso com Sonja, um erro, agora sabe; mas as coisas não
funcionam assim, não dá pra se manipular o destino. Se de fato o irmão adoecer, o que restará
para Alice senão algo como isso, um trabalho de costureira noite adentro e finais de semanas
incluídos? Ali está alongando o pescoço para um e outro lado e encostando-o num e noutro
ombro e pegando repetidas vezes o celular para ver se não deixou escapar a mensagem de alguma
cliente. Sozinha e mais sozinha porque Pablo não só será ausente como é mas nunca mais estará
para o mínimo sequer. Caixa postal. Um suspiro e levanta-se. Um banho. O pijama. A noite
deixada lá fora. Voltas pela casa. A janela de novo aberta com o sabiá. Pode ter acontecido
alguma coisa.

O nevoeiro é nuvem um pouco mais alta do que na rodovia onde quase cem carros
colidiram causando tamanho engavetamento no mesmo dia em que os importados estão mais
caros para proteger a produção nacional. A fábrica do automóvel japonês de Pedro, funcionando
meio-expediente após os estragos do tsunami, era fonte de preocupações por conta da reposição
de peças. Ia ele assim. Atento ao GPS. O rádio ligado. O braço pendente na porta. Procurando a
rua onde diziam talvez encontrasse o componente. Tenta um trajeto alternativo quando a vê. Toda
alegre e saltitante. Ali. Deixa esse cara passar.

Música na loja que acaba de abrir. A atendente acompanhando canta. O nevoeiro se


dissipa. A jovem deixa de cantar e pergunta se pode ajudar. Pode. Nisso exatamente. Em falar
com Alice de costas para Pedro. Mas o carro parou. Por que estava tão agitada? Pelo retrovisor os
olhos do homem vêem o casaco marrom balouçando sob o coque escuro. Conhece-a melhor de
costas. Conhece-a melhor do que há um minuto atrás não imaginaria. Imóvel ali sentado. Teso e
aprisionado no mal-estar. Não tinha forças para abrir a porta do carro e chamá-la. Mal podia
respirar. A moça de costas inquieta para cá e para lá. Quando a conheceu era um outro homem.
Como se tivesse envelhecido exatamente no dia seguinte àquele; como se passado e futuro ali
tivessem se dividido.

Há um ano.

Os olhos de Alice deram com uma caixa grande e prateada que da estante refletia como
um espelho, onde podia observar cada movimento dele. Via com alguma clareza que parecia mais
velho e taciturno. amadureceu desde que ela esteve no seu apartamento.

Pode avaliar os fatos de uma distância segura.

Ele pensa que desde aquele dia seus sentimentos acerca das coisas eram apaixonados,
inclusive no que dizia respeito a Sonja. Mesmo quando pensava em Alice. Teria ela encontrado
trabalho? Ele ainda precisava de uma assistente. Não. Seria loucura.
Seria loucura — pensou ela — esperar ainda que ele lhe oferecesse trabalho? Porque é
evidente que faltava isso em sua vida. Uma renda. Não depender de Pablo e tirar qualquer
resquício de vínculo entre seus escritos e subsistência. Ele mergulhou num silêncio sem vestígios
e quando voltou a si ela já não estava lá. A mão direita se abriu sobre o banco do carona ao
longo do percurso entre o Centro Cultural e o apartamento. A maciez do acolchoado e a textura
do revestimento o fascinaram como se estivesse tocando a pele de uma mulher. A pele de Sonja.
Não se tratava apenas de fidelidade, mas o som do vento e os pés na terra. Das estações.

Duas dimensões: numa ama e noutra vive. Querer que coincidam é pedir demais.

Ela chegou em casa após o marido. Não o vê e caminha a passos rápidos. Entra no
banheiro e fecha a porta. É um homem leal. O pai que não tive. O patrão (bons tempos). O
amigo. O amante. Nem podia alegar solidão uma vez que nos últimos tempos ele se esmera em
estar presente e disponível. E ela sabe o quanto com os problemas da gráfica não deve ser fácil.
Na verdade apenas imagina, pois deixou há muito de se inteirar das coisas da empresa. Em outras
palavras...

— Sonja?

A luz da lâmpada inunda a lágrima.

Dá por si chorando miudinho., orvalho numa era abandonada. Fragmento de tempo entre
o flash de sua última lembrança e o novo chamado do homem. Entreabre a porta após misturar as
lágrimas com a água da torneira. Pedro está engordando, mas esses fios brancos lhe daom muito
charme. Parece ter uns cinquenta. É a gráfica. Trabalha e engorda e envelhece.

- Estou bem — diz ela, o sorriso molhado.

Ele pergunta se ela quer que ele faça algo para comerem. É demais. Por que está fazendo
isso com ela?

- Não chore.

Ele não disse isso. Quando ele se afastou para a cozinha, ela bateu a porta de leve.
Abaixou a cabeça, respirou fundo e pensou quando e como isso aconteceu. Por que deveria
acontecer? aonde ela pretendia chegar e — Sonja disse a si mesma que talvez tivesse sentido
atração pelo irmão mais novo mesmo antes de conhecer Pedro. Se foi ou não assim, qual a
relevância?

Ela está cansada — pensou ele. O trabalho doméstico exercia sobre a mulher um poder
terapêutico. Por que abriu mão dele? Isso de trabalhar fora e procurar emprego e isso de
empregada — tudo isso vai acabar com ela.

A primavera ainda não começou mas o sabiá já está cantando pontualmente às quatro e
meia da manhã. O aposentado do final da rua garante ao filho pelo telefone que na casa em frente
à sua é às quatro, quatro e quinze no máximo. Seja como for, esse sabiá vê o movimento
começar com seu canto e nunca se saberá se canta por causa do movimento ou se o movimento
começa por causa de seu canto. Segunda. Quando o mercado vinte e quatro horas está fechado da
meia-noite às seis ou sete para balanço. Tardou um pouco mais. Só começou com a luz do dia.
Alice notou porque foi a hora em que saiu. Ia ao médico. Teme essa gravidez. Reza para que os
indícios sejam falsos. Não está preparada para ser mãe. Talvez nem queira ser mãe. Confunde-a
agora que era fiel e devotada não encontrar mais o êxtase dos tempos promíscuos.

Garoa. Cidade cinza. Passos molhados. As flores grenás, conforme a senhora a quem
pergunta (de onde tirara essa extroversão?) são as buganvílias ou primaveras. O sol nasceu. Entre
as pessoas por quem passa assuntos tão inúteis quanto os ruídos de um elevador enguiçado cujos
cabos ainda balançam e roçam um no outro sem levar para cima ou para baixo. Sexta começa a
estação. Tocarão Vivaldi no boletim meteorológico como se Vivaldi fosse comum. Como se
fosse uma celebridade dessas que a internet faz nascer e a TV embala e no dia seguinte será
esquecida. As estações sem sentido do planeta adulterado. Botinhas na calçada molhada subindo
na direção do metrô a levarão ao marido ou a momentos antes, a dias antes, ao beijo, a Pedro.
Segue na direção da manhã alta por ruelas que parecem retardar a inevitável entrada no túnel de
vento que a carrega. Peixe aos pulos reavivado pela correnteza. Caminha como se não fosse
parar. As imagens em que tropeça terminam num murmúrio desconexo. Não haverá lágrimas
nos olhos desse homem se acaso lhe disser que será pai.
Meio-dia. O médico disse entre irônico e convicto que não há sinal de criança. Agora é
procurar um canto calmo num restaurante e enquanto come refletir ao som do vozerio. Entre uma
e outra estação do metrô a fome aumentou. O remédio começou a fazer um efeito incômodo de
cansaço e língua pastosa. Está mole, adormecida. Trinta e cinco graus e seis. Em alguns casos é
normal — disse o médico como se tentasse acreditar. Depois deu alternativas. Diabetes, vesícula,
sabe Deus. Talvez uma causa emocional. Cadáver fresco é mais quente. Seu corpo é sábio, mais
que ela. Devia ter sido a última noite. Quis ludibriar o destino e eis o resultado da sobrevida. Um
adultério mais cedo ou mais tarde. Não. Caminha na direção da balaustrada. Se apóia e vai
girando a cabeça no sentido do horizonte avermelhado e belo e poluído. Isso não. Importa antes
o dever que o bem-estar. Homens e mulheres estão cada vez mais fracos à força de tecnologia,
sedentarismo e medicação. Obsessão de conforto. Nem teria ido ao médico se o bom Pablonão
tivesse pago um particular. Os médicos de convênio estavam em greve. Pagou embora não
tivesse recebido nada ainda por seu último trabalho já que ainda não o enviara ao cliente porque
os correios estavam em greve. Quando enviar ainda demorará a receber porque a quantia é maior
do que se permite para transações assim no auto-atendimento e os bancos vão entrar em greve.
Não adianta ludibriar o tempo no mundo movido a dinheiro. O tempo não se deixa corromper. O
tempo a quer assim decadente em seu físico porque insistiu em continuar. Respira profundamente
e pisca escondendo por um átimo o entorno úmido e vermelho de seus olhos no céu.

Diante do espelho gira o pincel de maquiagem pensando em suas conquistas recentes sem
saber se valera a pena. Observa as rugas de expressão se formando no extremo dos olhos sob os
quais o branco escurecia. Casara-se com quem achou mais prudente e concretizara na carne o
sentimento do outro homem a quem amava. Isso não deveria fazer com que a experiência
devolvesse aos sonhos algum proveito? Deslizou a mão num último movimento róseo. Ou seria
um vício? a compulsão que satisfeita se esgota para logo se renovar do nada e para nada? A pia
gelou seu ventre quando se aproximou mais do espelho. Achou que os lábios tinham ficado por
demais vermelhos. Artificiais. Essa não sou eu.

Na feira as cores vivíssimas. Alice chegou a pensar que havia enlouquecido e que limões
e bananas e maças contra o branco dos aventais e acima das barracas o vultoso azul do céu
primaveril fizessem parte de um desvario contra o qual não sabia se deveria lutar ou se acomodar
àquele rude prazer visual. Tempo encapsulado no sofrimento escapando pela aceitação de todo
detalhe do destino e qualquer de suas nuances permitindo o próprio destino não rígido mas não
totalmente mutável. Carma que permite o arbítrio como maça raspada com uma colher. Ela era
uma criança.

Desculpe. Um sorriso correspondido. Ela não consegue evitar, vive esbarrando. Isso às
vezes traz coisas boas. Nem sempre. A fome aperta. O restaurante pode bem ser o do centro
cultural. Por que não? Não é tão caro e a comida é boa. Passa a última quadra de barracas e
desce pela outra entrada da estação. Não está mais à espera de um inesperado salvador. Não
acredita mais nessa possibilidade. Encontrara repouso. Levanta-se para pegar a sobremesa.
Encontrara a paz. Saboreia o pudim e se pergunta onde foi parar a paixão nesse processo. Se os
homens se tornaram figurantes na nova etapa de sua vida onde está o protagonista? Onde está de
fato Pablo? O homem na mesa ao lado percebe o levíssimo tremor em seus olhos. Os figurantes
eu sei que estão sempre — sempre — ao redor. Mas o que há pior do que se queixar e sobretudo
se queixar quando tudo está bem e quando pode até se dar ao luxo de repetir um pudim saboroso
sem pensar em quanto custará. Seu sorriso não tem qualquer motivo ao se dirigir à biblioteca.
Um ricto apenas. Levou o sol da tarde ao ultrapassar a roleta e entrar no salão. Não é permitido
entrar com alimentos — disse a funcionária apontando o cartaz. Mordeu o último pedaço do
chocolate e entrou no espaço de memórias semelhantes a folhas caídas retida em labirinto de
sonhos no barulho de passos.

Apoiada na barra do metrô pelo antebraço, apanhou o telefone no bolso. Olhou o visor
com aquele olhar baldio e sem sentido com que os visores de celular são olhados. Movimentou os
lábios ao escutar com um quê devoto a voz do outro lado e dirigir os olhos para o chão como se
observasse um exército de artrópodes manchando o mapa iluminado da linha. Logo estará diante
de Pabloque estará diante da TV e ela se sentirá culpada. Por quê? Não tem porquê. Só culpa,
culpa em retrospecto, ainda que se torne santa. É sua segunda pele, a culpa. E Pabloum santo já.
Para alguém como ela o atroz Pedro teria sido melhor. Sai do elevador com flores nos braços
entre as quais seus dedos delgados podiam ser confundidos com hastes. Recusa-se a continuar
questionando seu relacionamento com o marido. Era seu melhor amigo e digno de toda
confiança. Se algo faltava — algo que sequer saberia nomear — ora, algo que sequer se pode
nomear, isso não existe. Não existe.

Pablo passou pelo restaurante assim que Alice saiu. o encontro. No mesmo caixa que ela
pagara o almoço com dinheiro proveniente das ideias dele, pediu um café antes de ir para o local
onde marcara A garçonete uma vez já os vira dois juntos. Casal bonito fazem.

Pergunta-se se não está ficando sério demais. Passa pela rampa que leva à biblioteca e
segue para a rua. Vira à esquerda e entra no metrô pensando o quanto deprime esse apego ao que
não pode durar. Pensando o quanto seria bom se não fosse proibido. Talvez o ser proibido seja a
única coisa que em meio a tudo se sustente apesar do preço a ser pago. Que pode ser perdição ou
puro tédio ou a lembrança vívida do que não se viveu. Sem esperança nem receio nem confiança
nem desespero. Nem liberdade nem a falta dela pois a cela está aberta. A consciência disso é
descoberta constrangedora denunciada pelo olhar impudente com que Sonja sai do metrô e sob o
sol se revela ao longe.

Na cama quente e desarrumada o casal está dormindo. Não. Ele está acordado. Tenta
entender. Foi não mais que um flash. Alice de costas na loja. Silêncio que quase se pode tocar.
Deixa disso. Olhe aí do seu lado. Você tem a melhor mulher, a mais linda que um homem
poderia ter, a mais — não: Sonja anda fria, distante. Cansada, ele sabe. Por que não basta saber?
Não conseguiu evitar a comoção que fez de seu corpo uma pedra aureolada descansando no leito
dum rio fundo como alguém experimenta uma roupa cuja cor detesta.

Há quanto tempo está deitada? Talvez uma hora. Nem meia quem sabe. Deitada satisfeita
da satisfação vespertina, não é difícil imaginar o marido. Pelos movimentos sabe que ele está
acordado e pela respiração que está olhando para o teto. Tudo o que ela vê é a noite na janela
aberta. Amor — dizia Pedro nos primeiros meses — é essencial para a gente dormir bem. Nunca
será sono suficiente para impedir as impedir as sombras do pecado. Contorna a imagem
Pablosem desfazer o espaço mútuo a que não podem renunciar, por exemplo — pensa Pabloao
descer as escadas do metrô —, como renunciei à menina. Ela hoje faz dezessete anos. Arruma
sua cama com os movimentos delicados e os olhos perdidos e a máscara de sorriso que se
tornaram típicos após a tragédia. Ele realmente não a tem visto mas a rejeitará, se acontecer? A
garçonete também viu Pablo e Sonja. Não na lanchonete mas entrando num hotel na periferia. Na
verdade também Pablo e Sonja fazem um belo casal. Mas ele é bem mulherengo — riu consigo
mesma.

Ele não é mulherengo. Se tivesse alternativa não trairia o irmão. Por que ela ficou com
ele e não comigo — perguntava repetidamente. Ela sorria e dizia que foi pela mesma razão que
ele, mesmo se encontrando regularmente com ela, casou-se com outra. Não sabia que era possível
esse tipo de ciúme e era mais que possível: comum. O pior dos dois mundos. Olhando para o
teto Pablo naquela tarde viu o filme de seu encontro e namoro com Alice, o que Sonja
imediatamente suspeitou e de pronto decidiu que isso não permitiria. Já se sentia humilhada
demais.

Pedro se aproxima da janela e ali se debruça respirando com alguma dificuldade por ter
subido as escadas correndo. Insere-se no retângulo verde ao som de um latido e do chamado que
a vizinha atende. Quem a quer ver o vê antes e quase pode ver que ofega, as faces vermelhas e o
peito taquicárdico. A falta de um elevador no prédio é compensada pelo valor do aluguel o que
todavia não impede a tormenta de dívidas. O verde escurece e foge; a vizinha aparece desbotada,
irreconhecível. Estar assim — acredita ele — tem o lado bom de atenuar os apelos
extraconjugais, sobretudo num sentido que represente algo mais do que um caso. Entorpecido
percebe novamente vazia a janela de onde a mocinha surgiu para avisar ao namorado que já
estava descendo. Lá embaixo o casal se cumprimenta com um beijinho em cada face. Passam a
caminhar pela aeração da vereda ao redor do prédio. Vivem. A vida para ele se manifestará outra
vez? O garoto impossível que enlouquecia os pais com a bola e as meninas com as mãos bobas
no play, não sabe para onde foi. Esse homem cujo coração aos poucos se acalma. Sabe o quanto
o bem-estar será efêmero embora quase possa apalpar o alívio. Calmo até demais agora. Apático.
Nem memória nem jogos. Assaltado pela paz que retira a vontade. Fazendo tudo diretinho e só.
Os dois lá embaixo olham para cima, para algum ponto além dele. Pensando acerca do tempo que
o céu prevê para o resto do dia. Um dia beijou a prima e se surpreendeu por ela não o ameaçar
com delação. Procuram um canto nas escadas como se tudo tivesse sido planejado. Sensação
mais próxima da alegria que o beijo consentido de Kátia, sua primeira namorada. O que a gente
sabe não irá além do que se espera que vá. Onde estão indo esses dois? A idade dela regula com
a de Alice e ele parece que poderia ser filho de Pedro e puxa dois livros da mochila aberta e os
entrega com rápidas explicações. A mocinha agradece. Seu sorriso também evoca o de Alice.

Esse meu bondoso esposo. Beijou-o. Beijou-o pensando no outro. Lembrando como um
dia o beijou pensando em ter um lugar onde passar a noite e quem sabe os demais dias. Passou
por aquele momento, o pior ou é agora meu Deus o que tenho agora? preciso reencontrar aquela
moça que ia postar seu último poema e que não tinha para onde ir — para ela a vida vale a pena
não para essa ela que me tornei. Pensa em Pedro e ali está ele. Preocupado com a política
econômica. Preocupado com o dólar. Preocupado com os fornecedores. Preocupado com a
entrega. Uma sirene onde ele está — onde esteve há um ano. Tem a ver com outro assalto a
caixas eletrônicos. São mais de cem este ano. O trânsito congestionado por causa dos curiosos.
Alice pensa por que não tentou se desvencilhar. Ele não é tão forte nem ela tão frágil. Enquanto
a cortadeira eletrônica segue o compasso dos blocos de hospital Pedro pensa que ela poderia ter
gritado. Feito ou dito alguma coisa. Não foi um estupro aliás não foi mesmo. Oi amor, enfim
consegui falar contigo. Você viu? O caixa eletrônico na loja aí do lado. Fiquei preocupada —
disse Sonja ao telefone. Tão preocupada ou nem tanto quanto Alice vendo do corredor por onde
Pabloestá entrando, mal tomando consciência do beijo da mulher, as imagens no jornal do meio-
dia. O que podia fazer? Não havia como se comunicar. Então seu amor transbordou como uma
gazela foge dos leões.

Ele perdeu um tempo enorme com contatos de rede social. Não lembrou da hora do
almoço. É solitário comer entre deliciosas mulheres fúteis e homens sofisticadamente grosseiros.
Onde encontrar Sonja? Hoje é o dia em que ela disse teria um compromisso? Tampouco lembra
se é hoje que a menina disse estar de novo livre porque o pai ia viajar. Foi a primeira vez que
falou do pai. Quando disse que ele estava na maior parte do tempo fora pois era caminhoneiro.
Deu uma ligada para ela quando a página demorou a carregar por conta de tantos acessos
simultâneos. Ela se levantava da cama larga no quarto feito dia. Inundado duma luz que realçava
por todos os lados tanta juventude. Caminhou colocando a camiseta sobre a calcinha,
desengonçada e rosa no equilíbrio de pato de típicas e petulantes adolescentes. Derramou café do
bule na xícara ainda bocejando e antes de atender o telefone discretamente silencioso olhou na
direção da cama ressoando discreta como um bicho. Ah. Oi. Ele percebeu o abismo.

Ouviu sem prestar atenção nas razões por que ela hoje não podia. Desligou e não passou
pela cabeça ligar para Alice. Não lembrou de médico ou problemas de saúde. Poderia encontrá-
la para almoçar. Não pensou nisso exceto muito mais tarde quando a noite caía e transpirava o
novo projeto. Pensou para avisar que ia chegar mais tarde. E que ela não pensasse que havia
mulher envolvida. Era trabalho mesmo. Trabalho que a sustentava. Alice não tinha do que
reclamar. Entendo. Fica tranquilo — dirá Alice e irá para a cozinha deixar a comida pronta para
quando ele chegue.

Ainda à tarde Sonja passou no cabeleireiro excitada como se tivesse alguma coisa nova
em vista. Elegante. O riso dela é o das fadas — pensou o único homem no salão, fixado nos
ruivos cabelos soltos adejando ao movimento da cadeira giratória. Único e ela não o viu. E aí,
meninas? Tudo bem? Sabem quem eu vi? — e por aí. A tarde passou rapidamente. A chuva
prevista foi um chuvisco e os camelôs que vendiam guarda-chuva nem tiveram tempo de ganhar
algum. Gente, tanta, vultos, cores, sons. De vagões, de máquina de gráfica, vozerio de
cabeleireiro, teclado, sons de sistema. E eles. Protagonistas das suas e de algumas outras vidas.
Sabedores uns dos outros mas não todos de todos. Num sentido misterioso em que cabe lógica
rígida. E a hora do almoço e a noite nas empresas e nas casas são o tempo que de todos precisa e
de todos prescindirá.

Há um tempo estavam sentados na suave proustiana obscuridade da pequena sala


cheirando a livros sem sentir a amenidade da tarde. Para ela fazia frio como em qualquer
obscuridade e as iluminações eram também a sensibilidade da pele afetada pela mudança de
temperatura e imune à temperatura em si. Ele suava. Não poderia justificar o fato com algum
temor relacionado à maledicência dos vizinhos. Era calor proveniente da idade em que menos se
está imunizado contra qualquer coisa inclusive o amor impossível ou possível num mundo que
não existe e até da emoção de em Alice ter reencontrado, não, ter encontrado a escada pela qual
enfim se permite subir entre a florescência fora de tempo só perceptível pelo cheiro da sala
sempre fechada. Partículas delineadas pelos raios da tarde prateando o bule fumegante. Quando
ela tornou a encher as xícaras, seu rosto se transmutava em quase imperceptíveis mudanças nos
olhos e rictos hesitantes entre o sorriso e o pranto e sutis movimentos do maxilar e das maças do
rosto construindo sobranceiras estradas na terra de tardias acnes sobre nervos e músculos
detonados.

O negror do café reluziu e pareceu a ambos um sinal. Ela sabe. Não por intuição
admissível, ela sabe e está perto de ter o conforto da convicção do que se sabe e a segurança do
que se faz. À vontade como um menino tímido se transforma no piano que domina. Eu o amo.
Não como amo o filho que não deveria amar. Mas amo. Não como o pai que não tive — até
porque tive. Amo a dor em seu olhar. Amo a pessoa com um passado que um dia eu serei. Num
tempo e lugar pouco antes inimaginável ele viu movimentos femininos em sua casa anacrônica e
as mãos de dedos compridos e cruciais atravessando em sua frente e a sombra dos braços
esfriando a luz do sol obliquo sobre seus braços em repouso sobre a mesa.

A noite desceu áspera com fagulhas subindo de algum fogo e desaparecendo no negror
do abismo acima. Quando Alice riu gostosamente e tapou parte do rosto, teve um irrefletido
cuidado de que não precisava. Ele indagou se tinha dito algo engraçado. Ela se apressou em
negar para não cultivar a inelutável intimidade nascida, embora tivesse rido sim porque na noite
anterior lera a passagem de Milly no mesmo Absalão que ele citou. Sabiam as horas pelo espaçar
dos transeuntes na rua mais que pelo espaçar dos motores de carro na avenida não muito distante.
Os dedos dele estão relaxados e abertos sobre a toalha da mesa. O sol naqueles minutos antes do
crepúsculo entrando pela janela. Nem escuro nem claro nem quente nem frio. Ele então falou
mais sobre literatura e sobre a independente beleza dos textos avulsos de Giácomo mesmo
quando comparados às obras respeitadas de Joyce e não passou pela cabeça dela que houvesse
qualquer sugestão. Mas ele tinha sim uma certa predileção por amores incomuns e a seguir
mencionou Sally Seton de alguma forma identificando-a com Alice (nesse ponto ela não mais
sorria, absorta em como também sua vida poderia ter ficado de pernas para o ar se a situação de
Sonja fosse outra. Com sorte a gente sobrevive — pensou. Estão ambos sorrindo. É mais do que
mereço — pensaram juntos.
Com o final da tarde o rosto de Alice escureceu e se avermelhou e a tênue sombra sobre
o assoalho chegou até a janela ainda aberta misturada aos livros pelo chão nos quais subia como
se fossem escadas. Se olhasse para cima entenderia que os estalos vinham do ventilador de teto
muito lento, numa velocidade quase vietnamita. Ele volta e meia lembra de que se esquecera da
resolução de não se aproximar mais de uma moça. Ele pisca e respira fundo e ao expirar está
dizendo que não gosta de sopa e que durante toda a infância foi obrigado a tomar sopa e por isso
passou a detestar sopa, respondendo ao que ela havia perguntado: se ele não tinha sopa em pó ou
legumes para que ela fizesse uma rapidinho. Estava ficando frio.

Mantendo-se ereto Pablo olhou mais acima. Céu acinzentando. Depois viu o carro
estacionado sob árvores, um perigo nesta cidade. Entrou e foi direto ao fogão. A mesa da sala o
duplica agora a partir do braço forte e dos músculos realçados pela camiseta. Escuta passos no
corredor sem mover a cabeça. Estão muito próximos agora. O vulto se move à janela. Ah, você
está acordada. Ao se olharem viram um no outro muito de si mesmos. Silêncio no mundo não
significa paz. Sequer ausência de ruídos. Remorsos.

Em casa no quarto preenchido pelo outrora amado ressonar de Pedro que agora mal pode
suportar, pequenina e ousada como uma criança correndo num parquinho, sente-se um fantasma
de si mesma diante das paredes úmidas dos fundos do prédio onde da mesma janela um dia por
muito tempo vira apenas o azul do céu. Mas como? Sinceramente o amava. Por que não pode
mais sequer partilhar o mesmo teto? Graças a ele não tinha que temer as noites ao relento que
profetizara quando a empresa de jogos eletrônicos faliu. E ali estava. Dependendo de alguém
para subsistir nesse mundo protegido das ruas bêbadas da madrugada. A rua dos mendigos e das
prostitutas e dos filhinhos-de-papai em intermináveis baladas. Redoma contra a sordidez dos
vícios também seus um dia. Também das doenças mais ou menos corriqueiras. Protegida —
pensa — onde outros não estão. Um caso sério. Situação muito grave. Gravíssima. Abre o fecho
da maleta em que levou as roupas para ficar os três dias no hospital. O pulôver exala um cheiro
antigo, de felicidade. É grave e desesperador. Os movimentos dela são lentos e medidos como se
estivesse roubando as roupas e o resto. Um celular. Um carregador. A carteira de couro onde
estão os cartões. É uma situação desesperadora. Não a rua. Depender de alguém. Gira a tampa
do vidro de perfume. É como se um violino tocasse. Está chorando.
A filhinha de Pedro e Sonja nasceu num domingo ao som dos sinos da igreja. A menina
passou a infância tranqüila num lugar tranqüilo que só quando era uma mocinha ficou conhecido
como reduto de prédios luxuosos e amplos condomínios. É aqui. Foi bem clara a explicação de
Alice. O carro do vizinho dos Ryeowon manobrava para entrar tangendo o poste principal da rede
elétrica no qual desbotado e majestoso em sua permanência estava o gravite M&S.

— Por favor...

Com seu passo firme herdado da mãe e um toque sensual aprendido de Alice havia
chamado a atenção do porteiro e agora o chama. Um cãozinho latiu e rosnou para Bianca que
lhe devolveu um sorriso carinhoso. O homem se aproxima sem disfarçar quanto o impressionava
tamanha beleza e elegância. Espero que Alice não tenha exagerado na produção. Olha esse
homem. Achando decerto que sou uma perua emperiquitada.

— Sim, senhorita. É aqui do lado.

A primeira impressão causada foi de obscuridade e pouca ventilação. Talvez por isso as
plantas — pensou a menina. O advogado acreditava que era resultado do tempo em que as janelas
estiveram fechadas. Quando as abriram porém pouco melhorou a iluminação e o ar permanecia
sufocante. Mas Bianca estava encantada com o lugar. Pensou em como seria legal receber os
amigos naquele cantinho agradável. Uma sala de estar praticamente ao ar livre. Gostou sobretudo
do sofá vermelho com almofadas fofas ainda que provavelmente pediria ao tapeceiro que lhe
fizesse um recobrimento de outra cor. De que cores você gosta — perguntou a corretora. Gosto
de verde — disse a menina.

Foram as pombas. Foi a debandada das pombas que juntas abandonaram o telhado em
frente rumo às luzes da fonte num caleidoscópio profético aos olhos de Bianca . Que a levou à
decisão de ali querer morar. Quando mais tarde ouvir isso Alice lembrar-se-á da cena que Pedro
descrevera — a filhinha soltando-se dos pais e perseguindo as aves pela praça recortadas, menina
e pombas, contra as águas luminosas de uma fonte e o som do sino, o mesmo que tocava
enquanto ela nascia. Talvez fosse mesmo um bom presságio o das pombas mas a esse ponto?
abrir mão da renda do aluguel de inestimável valor para os estudos dela? Nunca me queixei nem
tinha do que mas por algum outro meio a menina soube das dificuldades quando ela era bem
pequena e eu a tinha de deixar na creche. Quando Bianca abriu a porta para o advogado, segura
do que queria, sentiu um arrepio na pele. Como se tivessem depositado ali camadas de passado e
futuro — a trágica morte da mãe, a da avó, a do tio e a do pai e a de Alice — mas sentiu também
um elemento cuja textura era firme e a cor viva como a da fonte. Doces momentos inesquecíveis.
Voo num céu sem nuvens que lhe proporcionaria a companhia de Alice como tutora. Passando
ambas todos os dias para sair de casa diante de uma treliça de glicínias.

Abriu a porta de vidro que dava para o salão interno ladeando a enorme cozinha fria
e iluminada como se tivesse num passe de mágica aterrissado nos dias frios e secos do verão e a
angústia se transforma em tristeza. Pensamentos vadios vindos de um coração que não
reconheceu logo como seu ligava antes à beleza de Alice, na falta de lhe conhecer melhor a alma.
O que entendia ao dobrar as pernas lisas e longas e se lançar no sofá com os cabelos se
espalhando pela grande e leve almofada dum tom mais escuro que logo repousava em seu colo e
onde logo seus cotovelos repousavam, era a ligação inexorável entre a dor e o amor, entre a
tristeza e o trabalho. Seu pensamento antes mero passatempo ocupa agora um lugar sagrado. Que
bom que você acredita — disse Alice. Que bom que você aceita.

Quando deu por si estava na ladeira do centro cultural. Faz calor mas ela treme.
Estava só. Foi mais ou menos ali que eles entraram no carro cheirando a novo e começaram a
rodar pela cidade na direção da casa dele. Ouvindo como se os carregassem gritos e palavras de
ordem misturadas a delirantes buzinas e a um mar vulgar de murmúrios sobre a avenida que
ciciava na chuva. Ela tem receio de olhar para o lado e ver seu perfil. As conversas das pessoas
pairam e passam como entrecortadas nuvens invisíveis sem fazer sentido. Como se gritassem com
ela. Por que agiu assim? Por que se entregou por um abrigo noturno? Naturalmente achando que
na pior das hipóteses eu deveria ter me assegurado de que isso era mesmo verdade e que se tinha
de me entregar para um estranho não deveria ficar desabrigada do mesmo jeito como se não
tivesse. Gritando comigo Por que se apaixonou? Então ela espera que a qualquer momento as
vozes se tornem a da mãe que morrera naquele ano. Pelo tom saberá que ela desculparia qualquer
coisa desde que soubesse que a filha não passaria pelas mesmas coisas que ela passou. Mas Pedro
era apenas um homem bom, trabalhador. Nunca viu todo o dinheiro com que costumam imaginar
um empresário lida diariamente. Pedro Você. Os passos tristes ecoando nas pedrinhas do jardim
artificial ao lado do café como os de um soldado que avança e pára a uma distância segura
sabendo o que quer ao som do pássaro do mar que cantou naquele momento como se gritasse e os
outros respondessem. Acho que são gaivotas mas não pode ser então não sei mas não importa.
Quanto tempo ficamos nos olhando sem palavras alheios ao que estivesse em volta fixos
encarando e meu corpo responde de um jeito como nunca. Eu ia desviar o olhar eu realmente ia
mas você segurou meu rosto como se deixar meu olhar se desviar significasse me deixar partir
sem cumprir a promessa. Minhas mãos estão como que soltas no ar. O som das pedrinhas não
parou de todo embora seus passos tenham parado. Minhas mãos enfim descansam em sua jaqueta
como num porto seguro e o som dos lábios se soltam no ar junto às vozes dos pássaros. Não
estou simulando estou sim correspondendo com todas as minhas forças. Seu rosto se inclina
primeiro para um lado depois para outro e eu peguei tipo um cacoete assim mesmo sem qualquer
sentido sozinha em geral rindo lembrando, fingindo nunca, lembrando. Suas mãos abertas em
minhas costas me aproximam e não há mais distância segura quando sua boca se abre e se fecha
sobre a minha como um predador sobre uma presa feliz e por alguns segundos vi de novo os seus
olhos e por alguns segundos você viu de novo os meus que confessavam amor ao receber o novo
toque de seus lábios agora discretos quase santos num som breve que já ignorava os pássaros
como se buscássemos o ar antes de mergulhar de novo. Meus braços se erguem como numa prece
e o tecidos do agasalho sussurra levando minhas mãos e os dedos que caminham sobre sua gola
como se tocassem piano ou imitassem dançarinos. Ali eu soube que você acreditou e que para
sempre acreditaria mas não podia saber mais e imaginar além do permitido, pelo bem de minha
própria alma. Os dedos em seus ombros. Caminhando em seus ombros. Dobram-se um de cada
vez e depois tornam a se abrir sobre a textura da jaqueta que exalava o cheiro que por muito
tempo para mim seria o seu e ainda é o seu quando em momentos como agora aqui na rampa
descendo eu recordo. Esse pássaro é aquele. É aquele. O canto terminava assim pungente
enquanto eu não me soltava de sua boca com a mão direita envolvendo seu pescoço e a esquerda
pendente em seu ombro. Estou pendurada agora como se soltá-lo significasse realmente
despencar. Estou pendurada e quente e soluçando como se chorasse e quem sabe não estivesse
mesmo. Você permite agora que eu me solte. Agora você permite que eu me solte sem cair.
Depois naquele ponto da avenida em que fica a loja de informática ela pensa que devia ter
evitado esse caminho. Duas vezes o encontrou por aqui. É possível portanto que torne a
acontecer. Nada ela desejaria mais mas ele jamais acreditará que ela não resistiu a seu beijo o
tanto que deveria porque estava sinceramente apaixonada, pela primeira vez. Há quanto tempo a
luz doura aquele detalhe do prédio? O que existe existe entre a alma e o objeto no corredor que
liga os olhares. O sino tocou assustando as pombas pela terceira vez. A primeira que Alice ouvia.
Esse momento soaria na memória enquanto o sino vibrasse. Você. Consequência da luz na fresta
sob a porta. Do toque do sino. Do cheiro das damas da noite. A luz que contorna a edificação
harmonizando o impossível de ser harmonizado. A nuvem iluminada e a firmeza geométrica.
Então ela atravessou o sinal descuidada e o motorista lançou o anátema.

Nunca brigavam e raramente faziam amor. O que aconteceu? Que palavras duras! De
onde Pabloas desencavou? de onde desencavou tantas verdades a respeito dela? Como a desnuda
assim? Não a ela mas àquela que ela foi. Não com gritos mas palavras brandas.

Mais tarde ao jantar sozinha como de costume na mesa da cozinha cuja lâmpada falhava
seguidamente enquanto ela pensava no transtorno que seria estar em casa refém do eletricista,
ouviu passos pesados nas escadas e por um segundo esperou que ele abrisse a porta ou como não
era raro tocasse a campainha porque havia esquecido a chave. Mas os passos continuaram para o
andar de cima calcando pesadamente os degraus como se pudessem depois jorrar vinho. Seria
bebida amarga pela raiva ali contida. Não poderiam portanto ser os passos dele pois as únicas
iras de Pablose destinavam a Sonja, com quem sempre brigava e a cada reconciliação era o amor
melhor. Estavam sempre ligadas à possibilidade de ser o pai de Bianca .

Acaba de entrar no quarto pelo corredor de luz que clareia o móvel entrevisto e ilumina
as lombadas dos livros na estante. Como sempre a primeira coisa que fez foi abrir a janela. Dia
luminoso e luminoso o perfil de Sonja contra o dia recortado. As mãos trançadas para trás no
fecho do vestido. Girou e surgiram como se estivessem nascendo os pequeninos desejáveis seios.
A insensatez com que vinha se comportando naqueles dias após a contratação da empregada não
era naturalmente indício de leviandade. Não vale a pena imaginar o que poderiam ter sido, esse
casal impetuoso e pujante, caso não aprisionados na normalidade. Ela escuta o que ele diz e
responde qualquer coisa, sentando-se na beira da cama. Realmente ainda é linda. Linda e calma.
O vermelho dos olhos dele e o vermelho dos lábios dela. Menos linda que Alice mas muito mais
digna. O fecho sob o pequenino colar havia resistido e ela lhe pede que abra, por favor. Ele
pergunta alguma coisa sobre aonde ela foi mas quando os olhares se cruzam está arrependido.
Não quer sugerir suspeita. É a última coisa que poderia ter em relação a ela.
Ela estava confusa. Há pouco tempo um toque de Pedro a teria enlouquecido. Um prazer
no qual não confiava mais. Mas sim era prazer. Um movimento que se perdia como nas sinfonias
a que nos habituamos e do qual jamais duvidaremos. Será por todo o sempre deleite apesar de
todo questionamento. Fecha a janela. Pingos de luz ainda entram pelos furinhos da persiana como
notas do vento que faz a leve cortina adquirir formas estranhas côncavas e convexas e a
transforma num implacável pastiche de exímia dançarina oriental arfando. Luz e vento e música
imaginada. A vela de um barco importuno rumando para as férias que eles nunca tiraram. Quase
não falam. Não é um mal. Foi a melhor época da vida a que menos conversavam. Em que nada
precisava de um discurso lógico como agora. Um velho barco capaz de atravessar mares mais
tormentosos.

Quanto tempo depois de tirar a poeira dos móveis e pensar na moça, ela viu Pablo
naquela situação nova? Ele lhe dirá que ter uma empregada faz toda a diferença para um homem
sozinho. Para uma mulher também. Ela corre em sua direção. Abraça-o. Beija-o. Quando o solta,
ele ainda sente as marcas do aperto nos braços. Solitário menino perdido. Desvia o olhar. Esses
arroubos de Sonja o incomodam. Não pretende uma vida assim intensa. A lógica do projetista
determinou um futuro calmo. Sem inquietações evitáveis. Mas está ali. Se encontram há seis
semanas mais ou menos. Cinco semanas e meia, ela sabe: anotou em algum lugar. Ainda de pé
ele recompôs a camisa com um sorriso que era um pedido de desculpa, mas ela não notou. Na
verdade também está ajeitando o cabelo. Resta saber quem tomará a iniciativa óbvia e como.
Então ela se virou e foi para o quarto e ele a seguiu. Como se houvesse nisso uma metáfora.

Alice imaginava um amor sublime e se deixava arrebatar. O ardor de seu corpo


correspondia à luminosidade das esferas a que era levada. Entre requintadas árvores protegia os
montes sagrados em silêncio denso, e a memória e os projetos se dissolviam na ausência de bem-
estar ou de dor. Não se engane. O êxtase desse sonho não resistirá ao toque do telefone ou ao
girar da chave. Não se alegre. Ele chegará — se chegar — falando das promoções injustas de
algum colega. Não se transformará nesse deus crepuscular que te toca. Solta os cabelos descendo.
Arruma a mesa. Acende o fogo. Bem a tempo. A chave estala. Pabloentra. Imagina, amor, que
deram a chefia àquele idiota do... Até religiosa ela meio que se tornou mas o odor em que a
oração sobe é o mesmo da cozinha onde parece que esse arroz queimou.

Cheiros antigos tanto acolhiam a infância renegada quanto a velhice não mais temida. E
mesmo um aroma vago de tempos anteriores a seu nascimento e posteriores à sua partida do
planeta que não teve a delicadeza de perceber que ela não se adaptaria, retirando o convite. Pensa
nisso na macia e robusta poltrona do avião ao som de seus fones bloqueadores do redor — nave
para o mundo ideal fugidio no toque da aeromoça em seu ombro ou na turbulência que não a
assustou mas sim o passageiro ao lado. Antes do casamento não podia se imaginar num voo para
outro país a fim de ficar não mais que algumas horas e em nome do marido fechar o contrato que
ele não pôde pessoalmente. E em que isso mudava as coisas? O avião sai da turbulência e
restabelece seu murmúrio de mar. Ela de novo adormece sem ouvir mais o choro da criança.

Foi uma viagem cansativa. Em casa torna a adormecer olhando a cortina obediente à
brisa. A luz se imiscui nas persianas fechadas através de cada mínimo interstício. Nada restou.
Plano ou esperada surpresa. Suspira na fronteira entremundos uma prece acima da compreensão
de Deus, evocando-se como sempre naquele dia gelado e angustiante sem qualquer expectativa de
amanhã, e todavia aqui está o amanhã além de todo o esperado. Devia ser grata. Não será o
amor a paixão pela imperfeição do outro, que será necessariamente a paixão pelo outro, pelo que
é no cotidiano e não por uma fantasia de si mesma? Homens jovens sem defeito e competentes
como Pablose deixam subjugar por seu sexo e pensam com o sexo seus pensamentos mais
profundos. Depois de longa suspensão a cortina tornou a tremular. A luz pode determinar o
espaço como nitidamente demonstra o caminho do sol na parede oposta assim como a textura
agora que o feixe molha o cortinado e desce por ele. Talvez devesse se concentrar no conforto.
Talvez devesse. No quanto o conforto até mesmo permite seus questionamentos. Mas pensa que
não haveria questionamentos se fosse simples e alienadamente feliz. Para que servem a leitura e a
escrita exceto o saber que as coisas são ou não como deveriam sem possibilidade de mudá-las?
Que o amor não concretizado vale mais que o affaire mais intenso — que talvez o affaire mais
intenso seja o affaire não consumado. É provavelmente uma regra do amor. Ser tanto mais
verdadeiro quanto menos real. Jura ter ouvido o lamento e o grito de júbilo da floresta em que os
amores se perdem em meio às folhas estalantes de passos renegados pelo dia e grandezas a que o
pleno despertar dará outro nome. Acorda. Entreabre os olhos. Acredita que é sábado sem descrer
da treva onírica. Se ao menos tivesse força suficiente para esticar o braço e alcançar o celular na
cabeceira... Caso esteja certa, caso seja sábado, há uma conflito sintático a ser atenuado na
monografia. Respirou fundo para que a ordem fosse dada a seu braço. O desenho da janela ainda
se movendo. Quadricula o teto. Faz com que o livro à cabeceira se incendeie. Colore de
vermelho-escuro a mochila marrom jogada na cadeira. Sim. Amanhece. Como mesmo aconteceu?
Um professor na cantina da universidade. Um convite. O olhar de uma jovem desconfiada. Está
mudando. Gostaria que alguém esperasse dela uma mudança. Gostaria de presentear esse
alguém. Cada vez menos Pabloé essa pessoa. Ele preferia a outra, a morta. O céu estrelado à
janela diz para ela não perder as esperanças e não se acomodar. Pega o celular e está mesmo na
hora. Refletindo se deve ou não corrigir o trabalho, talvez não, pensa. Talvez a sintaxe viva de
conflitos e o conflito demonstre o quanto está viva. Como o sol na cortina e nos interstícios da
persiana. Como em algum outra parte da manhã o professor.

Ele não parecia interessado no que ela sentia, pelo menos não agora, e Bianca mal sentia
a insistência das carícias, imersa que estava nos seus pensamentos. Ele se deu por vencido. Seria
a terceira vez aquela tarde embora nunca de modo completo. Bianca : estátua de moça sob a
chuva do entardecer. No corpo resquícios da segunda vez. Cansada. Nem decidira se gostava dele
tanto assim. Era um bom amigo, o melhor. Raramente se transformam em outra coisa. A meia-luz
incide ao longo da parte abaixo dos joelhos que naquela posição crescia e brilhava. Talvez fosse
melhor de novo puxar conversa. Mas como foi — perguntou ele.

— Minha mãe chegou no mesmo ônibus que Alice. Deixou com ela o endereço caso ela
porventura precisasse de alguma coisa e era muito provável que precisasse pois viera procurar
trabalho numa cidade em que não conhecia ninguém. Mas por uma ironia do destino conheceu
meu pai também...

Quase se arrependeu de ter dito aquilo mas entendeu que não precisava. Ele era um bom
amigo. Rapaz de inteira confiança que levava a sério quando ela falava. As coisas que contava
não deviam sair do quarto mas não podia simplesmente deixar de contar. A vida que viveu.
Menor que qualquer das que imaginou. Viveu-as ambas como uma só. Pensando no quanto os
céus quiméricos eram mais azuis do que esse à janela, pensou que não. Que a cortina que filtra a
luz também será palpável caso ela se levante. Caso aceite as cores vívidas do sonho pela natureza
febril do respirar humano, a maça firme e vermelha que aplacar a fome será o ovo do pássaro do
sonho colocado na fruteira. E o rapaz de calça jeans áspera e camiseta cinza justa assumirá as
imagens dos rapazes de seu sono. A alça do sutiã pendia na cadeira e a blusa escorregara até o
assoalho.

A ironia maior ainda estava por vir, a coincidência maior — continuou.

— Meu tio a conheceu na rua alguns dias depois de ela ter estado com meu pai e
acabaram se casando.

Nesse ponto o interesse dele despertou. Realmente muita coincidência. Quis saber o que
aconteceu, se eles souberam um do outro na mesma época. E se eu disser que não é tudo? Que
vovô, que mal tinha contato com os filhos, acabou se tornando o melhor amigo de Alice? que
soube — ele sim antes que todos — de tudo? Com uma frase que se constrói mais pelo desenho
das palavras e da pontuação do que pela decência da gramática, ela quer dizer alguma coisa mais
ampla e viva como o marulhar à janela azul, como os pássaros da noite e como os pequenos
insetos em torno das plantas dos vasos da varanda, como a umidade macia das glicínias na treliça.
Não. Não devia ter falado nem o que falei. Até porque quem poderia entender? É mais do que eu
mesma consigo.

— Seu avô não é aquele professor que teve problemas na escola com uma aluna?

Ela não irá responder toda a verdade. Omitirá o que julgue denegrir a imagem do velho
que adora. Sentada na cama, as mãos entrelaçadas pendem entre as coxas morenas. A luz
incidindo sobre a pele elástica dos joelhos luzidios exceto pelo arroxeado de uma queda quando
lavava o piso da cozinha. Diz que o avô amava mesmo a garota e mais não digo por que não
entendo direito esse desejo dele de que ela fosse — não, não é isso

— Ele amava mesmo a menina e achava que poderiam viver uma história de amor e
cumplicidade antes de ele morrer e depois ela ainda teria toda a vida pela frente algo assim, nunca
vou conseguir expressar o que sequer consigo captar
O assunto havia ido longe demais mas agora já disse que vovô conheceu Alice e se
deixar assim no ar aí é que ele vai mesmo pensar mal deles...

— Ele a conheceu numa biblioteca Parece que toda a família dela carrega essa sina de
conhecer Alice numa biblioteca e ficaram muito amigos.

O rapaz diz que Bianca quase não falava da mãe nem da avó. Ela admitiu de imediato.
Pensou que realmente tinha esse bloqueio. Estragaram as vidas de seu pai e seu avô mas se uma
pessoa não confiar em alguém nessa vida e se não tiver um confidente acaba enlouquecendo.
Então ela contou sobre a separação dos avós e sobre a relação difícil do avô com os filhos e
questionou o argumento de que envergonhou os dois diante dos colegas. Para dar também um fim
à conversa que tinha ido longe demais ela disse:

— Se encontraram todos no casamento de meu tio e Isso está longe de terminar o assunto

— Que situação constrangedora deve ter sido.

- A única situação realmente constrangedora é como minha mãe morreu.

Não iria falar mais. Subitamente viu o rosto fresco do amigo e nos olhos dele a frescura
do próprio rosto e dos próprios olhos. Eram tão jovens...

— Você me ama?

Essa menina é mesmo bem louquinha —se preocupa com isso um minuto depois de me
rejeitar?

— Me ama?

Ele não respondeu logo. O que eu posso dizer? Ela aproximou os lábios dos lábios dele.
Acho que amo apesar desse jeito amalucado dela. Ele correspondeu de um jeito mais delicado do
que de costume. Parece que ela gosta de delicadeza; quando sou afoito me dou mal.

— Amo. Te amo de verdade.

— Bem, ela disse — Vou acreditar. Preciso. Podemos ir até o fim agora.

As aves revoluteando na varanda viveram. O ar entrou nos pulmões dele de um jeito


diferente, mais pleno, como se a respiração precisasse ser consciente de si mesma. A brincadeira
estava chegando ao final e agora ele não sabia o que devia acontecer depois — ele, que no antes
era tão eficiente. A língua dele se tornou áspera. Precisamos de um tempo. Pelo menos de uns
minutos. Ela se afastou e sentou-se na beira da cama. Quanto mais a gente vive menos entende as
mulheres e desde pequenas. Não tinha sido por amor nem por desejo nem por qualquer coisa
relacionada ao que estava prestes a acontecer. Ela entendeu o acaso que liga as mais importantes
decisões como uma luz na escuridão. Sim porque era uma total escuridão — pensava ela ao olhar
o crepúsculo enquadrado enquanto continuava desabotoando a blusa branca do uniforme — um
branco aromático cheirando ainda ao produto que Alice havia usado para passar e lembrando
vagamente tons amadeirados de perfumes cuja função primeira é induzir a pessoa próxima a
pensar que tinha a ver com o cheiro doce da maconha misturando-se ao aroma de flores. Por mais
que tentasse se forçar a desviar o pensamento sempre recaía na figura materna, em Sonja se
desnudando para Pabloe se entregando ao tio, com quem terá um contato muito pequeno mas
extraordinário depois do qual não conseguirá deixar de pensar que ela fora fruto da relação
errada. A camisa finalmente abandonou seu torso Que coisa linda em meio aos ruídos abafados
do pano lembrando uma bandeira cuja razão do hasteamento ela não compreendia mas não dava
mais para parar. Ela usa esmalte quase cinza, só agora ele percebe, quando os dedos desengatam
pelas costas o sutiã Que coisa mais linda. Ela não desvia o rosto para ele. Não há sombra de
sedução em seu comportamento, parecendo antes que está sozinha apenas se despindo para
dormir.

O professor Savone se tornou conhecido entre os universitários mais do que por ser um
homem probo e educador competente. Era o que qualquer um sabia dele. Vejam, o Savone —
diziam. Decerto — respondia um dentre os outros — em busca de sua mais recente descoberta
científica. Quem não estudava na universidade, como Alice, tendia a acreditar. Ao procurar ela
um livro nas estantes, embora impossível deixar de admirar seu corpo nos trajes leves, não
passou pela cabeça dele o pujante o caráter provisório que toda roupa necessariamente tem.
Péssima a funcionalidade e a disposição das estantes. Ele sentiu o sol lá fora dentro de seu peito
tocado pela maciez dos dedos que predestinados percorriam as lombadas.

Ela tentava se afastar para outro corredor. Ele a olhava sereno. Ela não consegue
simplesmente não consegue se afastar. Se houvesse alguém do lado oposto da estante entre dois
livros inclinados veria o rosto dela fresco e quieto igualmente inclinado. Após alguns ensaios os
olhos se desviam para o lado onde sente a presença do professor. Essa pessoa do outro lado da
estante não o estaria vendo exceto pelo pestanejar e pelos rictos dela mas não saberia que tipo de
sentimento expressavam porque ela havia retirado do rosto qualquer esboço confessional. A mão
quente em seu ombro só depois na cantina produzirá um choque de futuro. Sombra sobre sombra
nas lombadas. Ela não escutou direito mas acredita. Na história da vida dele há visões.
Humilhação e lágrimas. Inconformismo. Ela acredita que não há segunda intenção em seu
convite. Mas será ela capaz? É só uma mesa num evento literário com estudantes do segundo
grau. Mesmo assim um desafio. Quando deixaram o balcão, Alice afinal sorriu. O professor
estava realizado. Conseguira a palestrante para antigos alunos. A sombra no espelho será
iluminada quando mãos preparadas abrirem a janela no momento devido.

A casa foi construída num terreno sombrio à prova de enchentes. O arquiteto a encontrou
pronta em sua mente ao contemplar o espaço. Determinou naquele momento onde seria o quarto
e a sala, o banheiro e o escritório, e como as pessoas se deslocariam ali dentro. Ouvia os passos
delas como um escultor cinzela uma forma a partir de um lampejo que se modificará com o
andamento do trabalho mas manterá aquela figura original tosca e eterna em sua imaterialidade.
Um homem gordo num terno mais elegante do que seria lícito esperar pelos demais transeuntes
disse que era um belo projeto e uma execução competente. Seu assistente, com quem foi
almoçar, aquiesceu e falou consigo mesmo. Está adquirindo contornos quase humanos. As moças
que riam alto e os rapazes que sussurravam sabem o tipo de pessoa que irá viver ali. Não pode
ser alguém que o consenso indique normalidade. Está recém pintada e com um aspecto escuro de
antiguidade. Há musgo revestindo o muro e campânulas envolvem as ruas em sobrenatural
flagrância.

Um regato passa pelo fundo da casa. O sol morno de fim de primavera se põe e no
crepúsculo as paredes rosadas se revestem de milagre quando dos raios desviados pelas águas. O
homem sai à janela e pensa que é hora. Alguns dos gatos se enroscam em suas pernas; outros
passeiam pela pia da cozinha sem tenção. Passaram-se os tempos glamourosos e a mágoa se
dissipava. Distinguir da decadência a circunspeção que nunca coube no convívio social. Não
mais auréola de vaidades. Não mais desejo. Permaneceu a nudez da sabedoria que se concretiza
como esse tronco mal iluminado quase sem cor. Se a morte está às portas haverá ele de retirar de
sua proximidade a vida que a jovem pode oferecer — seiva que só jovens possuem e da qual não
são conscientes. Alguém em algum momento terá de entender.

Um homem de palavra. Generoso. Perdoador. De que serviu? Na varanda o sol atinge um


momento não mais esperado. Terá de dar um jeito na bagunça. Aposentos de moribundo no qual
a probidade de outrora se esconde e onde também a antiga loucura. Caos interior de que a casa é
fiel reflexo. Amanhã ela estará aqui. A luz que se apagou iluminou a chegada da improvável
ninfa.

Debruçado na janela pensativo ouve os cães e portas e passos que se acompanham de


fragmentos de frases. Toras serradas para a construção da torre a que se propôs. Não sabe as
horas. O dia inteiro chuvoso lhe tirou as referências da luz. Há outras. Aquela moça costuma
passar ao meio-dia — provavelmente intervalo para o almoço. Cheiro de comida permeia o ar por
volta das onze. Quando do caminhão de gás começarem a descer os botijões em baques
metálicos antecedidos pela musiqueta do falso sino, será o meio da tarde. Janela emperrada como
ele. Logo começarão os trovões e o vento e as religiosas chuvas de verão. A tempestade é
confiável. Compreendeu de modo trágico a inutilidade das virtudes. Havia arbítrio? Cada móvel
da casa vibra sob as bátegas. Cada utensílio. Detalhes da decoração que se fez sozinha. Objetos
que se distribuíram na inconsciência desesperada quando soube que havia sido expulso e sob que
acusação.

Se tivesse dado ouvidos aos colegas e feito o mestrado e só pensado em casamento


quando sua situação financeira estivesse definida, as coisas teriam sido diferentes. Foi quando
pensou se essa realização não comprometeria a estrutura de seu destino, aquilo em que podemos
exercer alguma escolha. Pautou a vida segundo raciocínios sensatos que não encontravam
respaldo na realidade. Verdades inverossímeis. Orgulho da nobre determinação. Mas as coisas
simplesmente acontecem. Independente de vontade ou fé ele era levado, arrebatado —
arrebatado! — uma, duas, três vezes, todos os dias. A tibieza do hábito não prevalecia. Casou
cedo. Casou para não se separar. Na noite em que se sentaram para discutir os detalhes do
divórcio era como se ele não estivesse. Estava ali outro enquanto ele vagueava por mundos que
com o tempo se fariam familiares onde não há normalidade e a terra não é regida pela tirania dos
valores da vigília e da consciência. Mas seu coração não estava pronto. Só à noite os arredores
adquiriam a atmosfera licenciosa na proporção inversa dos sons dos trovões que se afastavam.
Saía cedo. Levava a recém-esposa à universidade e ia para a escola e de lá para o jornal e ficava
até os exemplares serem impressos e de madrugada os vícios estavam guardados na vizinhança
de aparência inocente. Casinhas que pareciam saídas de contos de fadas. Chegava tão cansado
que caía na cama e dormia. Decerto nascera aí sua perplexidade. A esposa passou a arranjar
desculpas para se furtar ao que a levara ao desvario de querer casar. Mais tarde ele é que pedia
desculpas. A rua terminava numa avenida larga onde no meio do quarteirão em cuja esquina se
erguia límpida a igreja mórmon entraram para oficializar o divórcio. Nascera cedo demais e era
homem. Só uma mulher e uma mulher jovem tem autoridade de se fazer compreender num tempo
assim. Melhor se for filha das redes sociais e das manifestações de rua. Há abertas no céu. Irá
então à Biblioteca. Passara-se a tarde longa, monótona e produtiva, e ele saía do prédio quando
ouviu o sussurro do vento que o queria impedir. Ela ainda estava sentada onde esteve toda a tarde
quando o reconheceu. Uma menina de camisa branca e saia curta — uma saia xadrez
definitivamente imprópria. Ele estacou e se abaixou no aperto de coxas e panturrilhas que não
acusaram o raro movimento, ficando da altura dela. Falou. Perguntou se ele queria mesmo ir.
Claro — ela respondeu e sorriu como a dizer que não deveria agir assim com uma mulher,
mesmo tão jovem, principalmente tão jovem. Ele entendeu. Não diria isso nunca mais. Quem
sabe ela saiba também como ele deva agir e o que dizer aos filhos.

O que pode interessar o que eu acho? Se você insiste, meu filho, acho naturalmente
que você poderia ter ajudado e dado a ela um lugar na gráfica até porque o primo de Sonja não é
uma pessoa de confiança e sequer estava interessado no lugar e no final você teve mesmo de
contratar um estranho. Deu sorte pois Raphael é um ótimo rapaz. Mas não teria sido o mesmo
com ela? Ela também não está demonstrando o quanto é de confiança e competente em tudo o
que faz, sem falar na virtude misericordiosa com que suporta a instabilidade emocional de seu
irmão? Eu diria que não é tarde. Eu diria que se não foi tarde para mim não pode ser para você.
Eu diria que você teve essa sorte de poder se redimir.
Naquela noite embora de verão não choveu. Decidiram de madrugada que os filhos, os
dois filhos, ficariam com a mãe — na verdade com os pais dela, com os avós, que arcariam com
as despesas. Savone não precisava se preocupar e em tese os filhos eram o único problema para a
separação. Temporária. Sim, entendemos. Você precisa ir atrás de seus sonhos. Tudo resolvido.
Ninguém cogitou o quanto um casamento desfeito pode ser devastador na vida de um homem em
quaisquer termos. Legais, profissionais, afetivos. Sobretudo quando se é um homem jovem
alguns anos mais jovem que a média dos divorciados e alguns anos mais velho dos que andavam
à procura de emprego. Ninguém cogitou (ou a esposa naquela noite já sabia?) o quanto vingança
de ex-mulher é funesta. Ou que seus dois filhos pudessem ser influenciados pela mãe como se
fossem garotinhos. Por vinte anos o professor esteve sem vê-los. Agora o posto de trabalho na
universidade tão arduamente conseguido lhe fora tirado. Tudo estará porém esquecido quando
estiver entrando no velório do filho, tremendo. A jovem olhará para ele, incrédula e comovida.
Mais por ele mesmo, pelo professor, do que pelo esposo morto. Pai e filhos. Um em especial.
Num dia um tapa no rosto; noutro, a mão em seu ombro. E o beijo. Quantos há? Não apenas o
sensual. Há o que suga a vida; o que tenta calar; o que luta em silêncio. Tantos. Tantos tapas
também.

Seu pai pensaria decerto, ao saber que ele ergueu as mãos contra uma jovem, que gerara
um monstro. Monstro! Podia ouvir sua calma voz veemente enveredando pelos labirintos da
alma lacerada. Isso ele não imagina: que desde que a reviu sem conseguir lhe falar está assim.
Pungido. Lacerado. O professor não saberá nada além de que ela se apaixonou desde o primeiro
beijo. O tapa — como furacões rebaixados a tempestade tropical — não será digno de menção.

Relutei em admitir que havia realmente algo a mais e afinal concordo. Não há uma
separação de tempo nem de espaço. Há a vida. Um abismo de mundos no mundo. Tantas vezes
pensei o que teria a ensinar aos alunos que eles que não soubessem e o quanto era inútil saberem
o que eventualmente desconheciam. Nada a ver com idade, personalidade, tempo ou falta de
tempo e tudo a ver não com a pregação de algum novo profeta mas com a boa e velha vontade.
Queremos que seja de um jeito ou de outro e ponto: daremos um jeito de que assim seja. Não há
o que eu possa dizer quando alguém se sinta abandonada e recuse a presença que está ao lado à
espera. Não há o que eu possa fazer quando se acredita que houve uma substituição afetiva,
mesmo diante de um cão fiel. Para quem essas coisas façam sentido, o que pode mudar a dor do
outro estar ali para nada e se sentir como um morto? Naturalmente não há culpados. Quase nunca
há e aqui sem sombra de dúvida. Não houve uma ação de despedida para algo novo mas reação
de simples sobrevivência. Não sei se essa sua avaliação corresponde à verdade, quero dizer, se
tudo é manipulação e falsidade etc. Prefiro que não seja porque aí haveria a possibilidade de
conhecimento de causa nessa queixa. Na verdade sequer sei se esse seu pensamento é real ou só
uma velha vontade de ferir. Difícil imaginar que as redes sociais um dia irão se extinguir, mas é
reconfortante que aquele papel tenha se salvado do absurdo dessas mágoas. Sempre sim sempre
experiência — isso que a gente tem para usar à frente em novas situações porque não foi usado
na situação em que se a adquiriu. Resta a imagem de cabelos emaranhados sobre o rosto, sinais
estratégicos pelo corpo, sobrancelhas sombrias sobre belos e doces olhos singelos, unhas cortadas
rente na ponta dos dedos de afresco, a um tempo realidade e fantasia, e assim não podem
decepcionar ou não decepcionar mas apenas registram um tempo de vida protegido do abismo
nos sonhos sim mas que tocaram em algum momento a realidade e nisso escaparam da mera
imaginação e se eternizaram numa homenagem que pode ser feita a qualquer tempo enquanto
houver vida e depois do fim quem sabe ainda persista na memória da outra estação desse ano
sagrado.

Saíram. Os passos de saltos pesados toam no caminho oco da passarela sobre a


biblioteca, vinda de uma reforma que não retirou esse efeito acústico não percebido pela maioria
dos leitores, lentos para qualquer coisa além de si mesmos. Acompanham um ao outro como
violino e piano numa elegia de câmara com um elemento de abstração percebido sem cores
imaginativas exuberantes pelas pessoas sentadas nos bancos laterais, enquanto eles avançam
entre o perfume das flores vermelhas nos canteiros de ferro recém-dispostos.

Dois passos dela para um de Savone. A atendente do guarda-volumes observa o quanto


os ombros dele e os quadris dela são largos. O andar do homem supõe determinação. O da jovem
não afeta de sensualidade. Ela quer apenas agradar o homem sem saber a razão. Acreditando
haver uma razão. O que é tudo o que ele precisa que ela acredite para que o mal-entendido não
destrua essa oportunidade única da dor.
Passam pelos estudantes sentados no café. Ela tira da bolsa o celular e desliga para ter o
que fazer com as mãos. Ele vê algo mais que isso, uma deferência. Entraram rente ao plástico
junto à mureta, improvisado como proteção contra a chuva. Sentaram-se à mesa com migalhas
dos clientes anteriores. Luzes acompanham os movimentos de um e de outro e logo novas luzes
nascem a partir da aproximação da garçonete que passará um pano úmido na tampa de silicone
duro e branco e recolhendo dois envelopinhos de açúcar e um canudo amassado Estou tão
cansada disso preciso sair mais cedo e falar com aquele cara se a oferta ainda está de pé. Levando
eventualmente um lamento de trapo como giz num quadro-negro queixoso que ela fazia seu, ele
olha para Alice e fala e pergunta. São dois cafés e — Você quer comer alguma coisa? Ela
responde num tom baixo encantadoramente respeitoso. Não estava com fome. Até estava um
pouquinho mas acaba ficando enjoada ao comer entre as refeições.

— Aqui também servem jantar, prefere?

O olhar da garçonete começou a demonstrar irritação. As refeições são self-service —


disse ela. Alice se sentia estranha, muito à vontade. Um café está ótimo — sorriu. Olharam-se
nos olhos pela primeira vez. As mãos dela são bonitas: as unhas cortadas rente, sem esmalte. Na
mesa também a cestinha dos saches sobre a qual confiantes as vozes passavam. As mãos dele são
grandes, os dedos crispados junto à borda. Falam de recordações que podem ser esperanças. Para
o pessoal das mesas vizinhas são neta e avô. Talvez colegas de aula, não é mais incomum como
noutros tempos — pensa a senhora grisalha duas mesas além, junto do galho da buganvília rosa.
O tempo entre os nascimentos não impede a partilha de crepúsculos. Parques. Praças. Mesas de
biblioteca. Música clássica e contemporânea. Desejo de alegria que aceita o sofrimento e viagem
que implica em viajantes e não destino. Moça muitíssimo simpática e sensível e linda, e que
inteligência. Com Beatrice essa ordem estava denegrida e havia um vínculo hoje indesejado. As
moças ao lado não incluem a possibilidade de serem professor e aluna. Savone teria gostado de
saber. Precisa ainda acreditar que é um homem bom embora condenado.

Ele foi à janela e viu a rua molhada. Um transeunte olha para cima e se assusta. Pensava
ninguém morasse ali. Mas o telefone toca e ele atende e se esquece do homem à janela. Com a
rapidez de raciciocínio e sagacidade necessárias para se ganhar o sustento num mundo
tecnológico e competitivo em que nem a privacidade dos presidentes está preservada, ao ouvir a
voz do outro lado sugerindo a compra do dispositivo, disse que seria melhor esperar pois pelo
tempo que foi lançado decerto está próximo da obsolência. Você sabe — diz ele caminhando
mais rápido e já fora do campo de audição de Savone — que essas coisas nascem para morrer.

Savone lembra como Alice o abraçou ao se despedirem. Algo inusitado e comovente. E


viu os lixeiros preparando sacos para a passagem do caminhão que ele sempre associou a um
minotauro bondoso. Numa janela do prédio em frente pichada duma sabedoria noturna e crua, a
moça que sempre está ali, sempre está ali, parece não estar olhando para ele embora ele saiba
que em alguma medida, com algum grau da visão periférica, ela está sim (e o que achará?). O
vento sopra, as copas respondem e ele se lembra dos sons da madrugada que horrorizaram a
esposa. Descargas de caixa e latidos intermináveis do cachorro do vizinho e sobretudo as
mulheres pouco e mal vestidas falando alto na rua assuntos obscenos com palavras e gestos
obscenos. Ele ainda tentou explicar a ela que era em grande parte culpa das associações de
moradores da vizinhança nobre que para ali empurrou o albergue donde se originou a
licenciosidade. Pessoas que não tinham como voltar para as casas distantes, na periferia, a tempo
de entrar no trabalho no dia seguinte. Logo moradores de rua. E afinal o serviço público que
atendia inclusive homens de bem do bairro. Dentre essas mulheres, algumas com quem Savone
eventualmente se unia para se certificar dos valores enraizados na carne da qual a esposa
prescindia — lembrou ele, pensando no calor do abraço de Alice e em como ela deve ter se
sentido constrangida quando veio.

Após a espera interminável a ponto de não mais se lembrar de onde estava e a quem
esperava ela está enfim ao lado dele. Seguirão juntos pisando a pedra confiável que leva à rua.
Ela entendia mais até do que ele poderia supor, por intuição ou desespero. Era a época de sua
vida em que descobriu que um teto à noite não é tudo que se deva desejar, graças ao malogro do
casamento com Pabloe à saudade de Pedro. Conservou a aspiração do poema perfeito e o desejo
da inspiração que levasse ao poema perfeito. Algo de que se orgulhe momentos derradeiros.
Entende portanto o que ele fala — diz. Está lisonjeada que ele a tenha notado. Sente-se rica e até
feliz. Quando mais tarde lembrar disso ele Savone se lembrará do som da persiana respondendo
ao vento. Ele não crê que tenha conhecido qualquer coisa parecida com felicidade e repete isso
para Alice. Ela responde que antes de hoje tampouco. Nenhum dos dois pensou em romance ou
sexo casual ou qualquer clichê que poderia se seguir. A moça à vontade era a mesma Alice e o
homem rejuvenescido e tranquilo era o mesmo professor. Acreditando um no outro no momento
em que a luz liquefizera-se em cacos à beira da cerca, gelada, embora o inverno tivesse passado e
estivessem no meio do dia. Quando veio, ela não veio para que aquele roçar casual explodisse em
intimidades. Não é tampouco no que ele estava pensando quando ela chegou mas à janela,
lembrando, ele pensará a respeito.

Estão desejosos de saber do que se trata exatamente aquele encontro. Vi você. Li o que
escreve. O que acredito com a razão necessita da liberdade de querer o querer e eu me sinto
cansado e não saberia mais escrever aquilo em que acredito. Decerto nem tempo mais terei. É
possível retomar um êxtase de onde foi interrompido? Isso se oporá a qualquer coisa ligada a
bem ou mal-estar. Um outro sofrimento que é quase ausência de sofrimento. Alice entenderá. Em
sua poesia apesar de trágica há vida e arbítrio. Da possibilidade de ser bom segue-se a bondade.
Da vontade o fazer. Na calçada manchada pela sombra das árvores alargam imperceptivelmente
os passos como se tivessem pressa junto às varandas e vitrines. Mesinhas fora da sorveteria. Uma
bicicleta alaranjada. O vermelho do semáforo. O sol no espelho do automóvel. Toldos. Letreiros.
Na calçada em que todos os tipos de passos se misturam e harmonizam com a trepidação dos
veículos, a percussão sobe e neles se embrenha até encontrar as batidas de um mesmo coração.

Sob um raio de luar incisivo prateando a divisão grisalha de seus cabelos, que
possivelmente faria grisalhos mesmo os cabelos mais negros de um adolescente, ele pensa que o
ser humano miserável diz respeito a não querer verdadeiramente querer e contempla o mesmo
raio escurecendo a borda não-visível do meio-fio sentindo jovem como esse adolescente, viril,
generoso, amigo e sedutor. É preciso silêncio e solidão. Não um livro mas levantar-se após a
leitura. Ela não se sente coagida ou vítima de encantamento. As narinas delicadas mostram a
excitação da novidade. Se encantamento houvesse seria o mesmo que a ligava às galáxias e às
estrelas. O que ele guardava ela poderia dispor.

Deitado relembra a visita sagrada nesses que são os únicos momentos sagrados que se
permite. Doces frágeis madrugadas insones. Quando ela entrou as mãos dele suavam muito e a
cabeça estava envolta na névoa da enxaqueca. Os passos são amenos e mesmo um soalho tão
sonoro reduz o som a flocos de uma neve imaginada. Brilho andino na sala lúgubre. O cheiro
dela é agora o cheiro da casa. Ela diz que adora os kanjis. Ele hesita em dizer que não sabe o que
são kanjis.

— São esses ideogramas usados na escrita japonesa.

Ah. Os do biombo. Ele se recorda do homem que trouxe o móvel, as peças articuladas de
um branco laqueado mais luminoso que o dia agora escurecidas e cheirando a mofo, lembrando o
quanto o entregador era simpático enquanto o homem pensava que esse ele tem cara de quem vai
esconder uma mulher aí atrás algum dia. Alice lhe dá a mão esquerda que morna na sua o leva
pela luz de outrora. O vizinho está tomando água na cozinha e escuta o murmúrio. Imagina só o
velhote com uma menina. Eles não ouvem e sobem a colina íngreme como se fosse a coisa mais
plana do mundo. Ele não deveria fazer esforço tal. Quem está dizendo isso? Não é esforço
algum. Estava feliz depois de muito tempo. Talvez pela primeira vez na vida. Sobem e descem e
correm e riem. Ela fala. O senhor tem uma linda casa. Ele desperta. Senta-se na cama. Levanta.
Só podia mesmo ser um sonho. Ou está vivendo um sonho. Onde estará ela agora? O professor a
havia deixado onde as ruas são longas e estreitas como um rio e todas as formas ao redor figuras
amanteigadas como os bonecos que o pai de Savone costumava lhe dar antes de subterfugir em
momentos os mais inadequados. Acordo tácito. Ficasse quietinho. Não diga à mamãe que eu
subterfugi. Foi esse tipo de exemplo que teve e olha o homem generoso que se tornou. Na calma
das madrugadas ele voltava aos lugares excelentes que teve de abandonar.

Ao evitar olhar para ela mais ele a imagina, a pele fria e macia luzindo, e com esses
outros olhos a vê com a expressão improdutiva que caracteriza a dúvida que não será dirimida.
Ambos escapavam. Ele não mais ela sabia de que. Ficava confuso ao pensar que afinal foi melhor
assim tanto em relação à mulher como em relação a Beatrice, foi melhor a separação precoce
que uma decepção depois que a expectativa crescesse em demasia e se frustrasse como se
frustraria decerto e ter sido expulso lhe possibilitou outros caminhos que um dia dariam fruto.
Como melhor se uma vida inteira estava desperdiçada? Sem uma renda regular justo nessa fase
da vida em que logo estaria descartado inclusive dos trabalhos eventuais com que subsistia.
Quanto a ela, sabia a quem amava e com quem se casou e isso era praticamente tudo. Mas na vida
dele amor e casamento não eram palavras adequadas. Todavia amainou a febre de Alice, coisa
que nem Pedro em seus melhores momentos conseguiu. Vultos à sua volta.Ela no vidro da janela
e no espelho e no bule sob a lâmpada e na própria superfície do biombo. Anjos de sonho
protegendo sua nova existência quase missionária.

Em algum momento ela sentiu que ele estava chorando. Que ele estava chorando por
dentro. Pode ter sido quando ele abriu a porta e eu vi a sala e a janela no lado oposto. É. Foi
exatamente naquele momento. Mais tarde ela saberia que era ali que ele costumava ficar horas e
horas. A casa de um homem. A porta fechada e nenhuma implicação. Cheiro de homem, de
coisas de homem, de casa de homem. Agradeço por você ter vindo, gostaria de saber o que dizer
agora, mas não sei. Chegara a ensaiar. Alice, eu... Sabe, queria... Quando vi você pela primeira
vez... Mas há algo a dizer. Leu livros e livros e ainda no sábado passou a tarde e um pedaço da
noite na biblioteca e não descobriu. Ela respondeu que sabia ser algo assim. Que ele estava
chorando por dentro por ainda não saber, ela sabia mas não disse. Apenas sorriu e se sentou. Ele
pegou um copo de água e colocou na frente dela. Estarei por perto quando você descobrir.
Quando realmente souber. Estarei aqui quando precisar. Ele tocou a mão dela quando soltou o
copo. Olhou nos seus olhos. Vem aqui na janela um pouco —pediu. Debruçaram-se. O sol na
vermelhidão do céu. Próximos a ponto de sentirem a presença um do outro sem se tocarem. Ela
nunca esquecerá esse momento. Será a primeira coisa que dirá à senhora na praça. Uma vez um
professor pediu para que eu fosse em sua casa e ficamos debruçados na janela até a noite descer
dos céus. A mulher olhará para ela sem mover um músculo dos que denotariam sua
incredulidade. A casa em que ela viu uma lareira e um biombo. Como se fosse ontem — disse
ela. A mulher sorriu e disse que era uma bela história.

Conforme a voz estão aterrissando em meio à calma teatral do ambiente temperado ao


som das turbinas. Diferente e igual entre os demais passageiros ela procura fazer as coisas de
acordo com os demais. Permita-me que eu te ajude — diz a aeromoça. Ela sorri. Afinal não está
só. Uma amiga de infância vela por ela todo o tempo das nove horas ao longo da viagem. Quanto
a ele, chegara à cidade no dia anterior. Não fala o idioma local portanto pode se dar ao luxo de
enfim parar de estudar e trabalhar como sempre sonhou. Ajudaria o pai. Sobre a bicicleta sente
grande alegria entre as árvores do parque. A humanidade não poderia ser assim feliz? Ela estava
inquieta. Um amigo lhe disse que tranquilidade contém felicidade. Ao telefone manuseia ansiosa
sua agenda. Uma amiga recente. No começo do inverno, nas longas noites de sua procura lá está
ele ao gélido luar perguntando e correndo ao pensar tê-la visto.
Quem está entre um lugar e outro sem ciência de como as coisas se constroem e
cristalizam, sozinho e sem esse amparo falso que são os outros, de onde menos espera aparece a
paz. Ele coloca a camisa limpa alisando-a junto ao corpo. Estou engordando — pensa. Está enfim
realmente engordando. Pensando em como se sente aliviado por ter deixado para trás aquele
relacionamento em que juntar-se a uma moça era se juntar a toda a família dela. Está livre dessa
obrigação insensata que é não amar apenas a pessoa amada, o seu sonho, amar e ser amado e os
dois se bastarem refugiados do mundo. E trabalhará. Trabalhará duro e saberão do que é capaz.
Precisa agora comer alguma coisa. Sanduíche com refrigerante bastará. O silêncio das noites
esquecidas retomadas na nova casa foi quebrado quando sua expressão de curiosidade se fez
primeiro espanto e logo assombro com aquele franzir de cenho e olhos arregalados típicos de uma
estirpe não acostumada a lidar com as coisas só porque as coisas são assim porque também se
pode chamar tranqüilidade o não estar pronto para o inesperado e recebe-lo assim apaticamente.
A bagagem deixa de ser desfeita e esse outro olhar, o olhar vago com que se tenta entender a
alguma coisa insólita repentinamente acontecendo ao redor, assume-o e assume a sombra que
passou inquieta a seguir seu andar pela parede oposta.

Murros na porta. O namorado violento. Por favor, ele não deve saber que estou em casa.
A progressão das batidas repercutindo no coração dela. Esconda-se — diz a amiga, atrás do
horror de testemunha.

O rapaz está deslumbrado com a casa do tio. Da vidraça do andar dá para ver toda a
cidade ou quase. Gosta dessa hora da tarde em que a vida se amplia em torno abrigando o tempo e
o lugar como se nos pertencessem. Um anoitecer iluminado e oriental, de calçadas limpas,
diálogos chiados e prédios baixos não distantes das praças do shopping. Que céu! Não há nada
semelhante em sua vila. Acho que a tal sala onde guardam as bicicletas é por aqui — pensa ele
enquanto imagina quanto o tio pagará de aluguel. Nesses passos torna a escutar os mesmos gritos.
Se outros no prédio estavam ouvindo, fingiram que não.
A atmosfera pacífica que o envolvia estremeceu e rígido sob as pernas doloridas sentiu-se
dobrar ao peso inevitável do hábito que é o medo, ao qual nunca nos julgamos ligados. Seu tio o
alertara para a violência da cidade grande, o que num julgamento infeliz ele pensou que fosse
uma desculpa para que não viesse. Agora presencia e quando compreende por alto ele sabe que
precisa tomar uma decisão. O percurso pareceu eterno até perceber de onde vinham os gritos.
Gritos são rasgos na alma e talvez a protejam como o balanço de uma palmeira impede que se
parta ao vento inevitável.

Quando ele se aproximou em passos firmes e lentos o casal estava saindo. O namorado
leva a jovem para o carro arroxeando o braço alvo e entre ameaças e juras de amor eles chegam à
joalheria. Chocado e sem ação ele percebe que ainda há alguém no apartamento e que ela está
chorando. Ele devia ter feito algo quando viu a jovem visivelmente oprimida arrastada para o
elevador. Agora tem outra chance. A professora escuta as batidas e instintivamente ativa esse às
vezes eficiente mecanismo de defesa que é o medo mas logo entende que é outra pessoa.
Desculpe — ele diz quando ela abre. É que pareceu haver alguém ali chorando. Disse isso
percebendo que era ela mesma. Um longo suspiro após o qual se fez um pesado silêncio. O que
aconteceu? Ao longo dos perenes minutos seguintes passados numa temperatura terna e amena
que de alguma forma os escondia do frio que efetivamente fazia e se eles mesmos não sentiam
seus corpos registravam em arrepios embora muito pudesse também ser colocado na conta de
conhecidos efeitos físicos atribuídos ao estar se apaixonando, ele usufruiu de cada detalhe da
dicção dela em entonações que lhe evocavam anjos mas não anjos quaisquer nem
paradisiacamente assexuados e sim as primeiras aparições na vida de um jovem apenas saído da
fase dos infindáveis preparativos para a inauguração tesa do que segundo ouviram dizer estava a
serviço da multiplicação dos habitantes terrestres sem qualquer tipo de critério para o que quer
que seja em relação a esses seres.

Ela acabara de chegar. Veio de avião. Para ficar na casa da amiga. Faz treinamento numa
empresa de aviação. Mal chegara e o namorado da outra apareceu, sabe, justamente quando ela
estava me contando que precisava descobrir um meio de se livrar dele para voltar a viver. Disse
isso sem perceber que falava de si mesma. Que precisava encontrar alguém com quem partilhar a
vida. Sentia-se insuportavelmente sozinha mas lamentava ter magoado Sonja saindo com o
marido dela, um homem tão bom. Depois dele ninguém. Chegou a pensar que poderia
perfeitamente ter incluído essas confissões no que contava para o rapaz havia minutos um
estranho e agora e agora o que exatamente, se pergunta, decerto tem a ver com sua carência
pensar assim, pensa sem naturalmente ter a menor ideia que era mais ou menos o que ele estava
pensando, ou seja, como podia ouvir de uma desconhecida esse tipo de palavras que nem das
namoradas escutou.

O que eles farão agora? O elevador pára no andar de cima. Um toque de campainha.
Alguém fala alto lá em cima. Amor, esqueci a chave! Não: soaram dois e três toques não
estrepitosos mas até agradáveis porque não a companhia tradicional mas o atenuador dingdong
como que embrulhado para um presente indesejado dum declarado inimigo. No segundo toque
porém eles já não escutam.

No dia em que chegou à cidade ela estava muito abatida pensando o quanto de forças
havia gasto sobrevivendo em meio a homens e mulheres e em como dizem que isso é o normal, o
que no fundo era dizer que ela era anormal. Naquele dia devia morrer sozinha como sempre
viveu. Uma mulher ainda bela que alguns dirão ainda jovem mas com um passado e cujo futuro
não compartilhará com os contemporâneos. Caminhando com a criança pela avenida principal da
pequena cidade, irradia placidez numa outra manhã a prolongar o inverno sobre a primavera que
apenas os pássaros cedinho reconheciam mas as plantas tímidas viravam os olhos e protelavam a
eflorescência negando até mesmo um broto como consolo à passante. Olha tudo como se nunca
nada tivesse visto. Carros. Casas. Pessoas. O céu e o sol. As árvores. Uma igreja. A velha
senhora fala sobre o quão agradável é o ar matinal no início da primavera. Estavam sentadas no
mesmo banco e a menina brincava na areia da praça. Alice conta a história da sua vida. Pela
primeira vez o fazia. As omissões que enriqueciam a trama não eram propositais: algumas coisas
esquecera; outras não julgava relevantes. Não disse por exemplo que Bianca não era sua filha. É
uma bela história, minha filha — disse a mulher. Alice sorriu. Sempre desejou ouvir que sua vida
dava uma bela história, muito mais que escrever um poema sobre ela.

Ao atravessar a rua, ela se deteve. Olhando-a de longe a mulher pensou o quanto era uma
linda moça. Pena que um tantinho mentirosa. Talvez nem regule direito. Mas a beleza é inegável
e até a simpatia e a sagacidade. Alice atravessou com a mão bem pegada à mãozinha. Passará na
loja e comprará o presente pelos sete anos da menina. Sente-se estranha, quase normal. A senhora
deve ter pensado que ela não batia muito bem e decerto inventara a maior parte daquelas coisas.
Capaz. Estar na casa de um homem e dormir sob o mesmo teto e nada acontecer. Um carro
assoviou e ela riu ao pensar não ter mais idade mas a insistência do assovio repetiu que sim e
mais talvez do que quando muito jovem. A menina perguntou Tia, por que ele está assoviando.
Alice a olhou e viu Sonja e o ônibus e a paisagem correndo à janela. Meu Deus, como o tempo
passa.

Chegou ao apartamento de Pedro e era essencialmente alívio o que a entorpecia ali


parada se vendo no espelho branca como um fantasma e logo não mais se vendo mas a ele, sólido
na frente dela, ocultando-a de si mesma e começando a se revelar. Mais que alívio. Para sempre.
Sacudiu a cabeça imperceptivelmente ao tomar consciência da respiração de Bianca a seu lado. É
tarde — pensa. Vou perder a hora. Nunca foi santa e não é o que pediu a Deus mas leal sim ela é.
Vamos, Bianca. O metrô sempre cheio e cheio de rostos amargos. Vida é trabalho. A rua florida
supõe o sol pleno da manhã. O porteiro lhe dirige os olhares de sempre e não abre o portão.
Senhora Martha? Sou eu — disse ao interfone. A porta se abriu. Mais que alívio — pensa, ao
esperar o elevador. Faz tanto tempo. Como o tempo passa — ainda pensava quando abriu a porta
no andar da senhora Martha Pöbel.

O senhor Pöbel entrou no prédio pois esquecera as chaves e ainda ouvia o gemido
enferrujado da dobradiça quando se deparou com a nova empregada e as lembranças de ambos se
fundiram numa mesma memória a princípio abrasada mas logo serena. Tudo se esvazia com o
tempo. Ainda assim houve instantes em que comungaram as mesmas imagens. Uma mulher
vivida agora pensando se ele tinha sido mesmo um homem atraente e ele pensando na tentação
que foi a adolescente para o homem maduro. Ecos distantes da carne hoje nos dois amortecida.
Sangue em mornos labirintos.

Quando a viu, meu Deus — pensou — não posso mais viver assim. A segurança material
alimenta esses conflitos embora se julgue maduro e seja tido como um exemplo de maturidade. A
jovem anterior estava certa quando o alertou vendo a situação de fora. Você é um homem bom e
acabará arruinando sua vida. Porque é o que as pessoas fazem: usufruem de sua bondade, mas
estarão a postos para acusá-lo e mulheres como eu estarão na linha de frente. Não haverá
misericórdia. Estava certa e não estava. A presença da empregada o declarava. Alice era toda
bondade e talvez estivesse até grata por ter sido Darken e não um cafajeste que à época não
saberia discernir.

O despertador tocou. A cidade azul apareceu com pontos amarelos na janela. Parou a
campainha com a mão direita azul como o quarto. Silêncio abriga a respiração e as pombas e as
mãos pousam no rosto e os dedos nos olhos em meio a um bocejo. Movimentos pelos quais
Darken pela primeira vez acordando a seu lado se apaixonou. Como a seduzira facilmente. Ele
que nunca foi bom nesse tipo de coisa apesar das tentações, graças a Deus. Ela aproximou a face
da janela como um cãozinho temeroso de trovões cheira a chuva. À porta do apartamento
olhando a empregada ele percebe o quanto envelheceu. Mais do que ele. Quanto deve ter sofrido.
Se é que a dor envelhece. Está pensativa agora sentada na cama. Cedera tão facilmente. Faz tanto
tempo. Castidade não há mais mas sim o sangue.

Cedeu fácil demais. Como era ingênua. Um dia mais cedo ou mais tarde todos pensamos
assim. Os maus e os bons. Todos atribuem à passagem do tempo essa duvidosa virtude de nos
tornar realistas. Entreolham-se e retornam à mesma lembrança. Com poucas modificações foi a
cena do amanhecer de hoje. A cidade azul. O quarto azul. Alice esfregando os olhos. O que até
ali era um vício se cristalizou como virtude no fundo dessa xícara, a alma.

Depois, naquela manhã, Alice saiu de casa e entrou no azul mais claro cada vez e de
pontos amarelos menos brilhantes cada vez. Levava Bianca meio adormecida nos braços e os
passos ecoavam na calçada como um reloginho ignorado. A cidade não é grande, mas é famosa
pela qualidade de vida. Uma das primeiras da região a ter uma creche. A tia deixa a menina com
a outra tia. Deixa, com o coração apertado. Nesse momento ela é a mãe, com todos os direitos e
todas as dores. Bianca despertou e está chorando mas Alice aprendeu que é melhor que Gracile a
acalme.
— Não, não, não chore. Mamãe virá te buscar de tardinha. Você sabe. Hoje tem aquele
papá que você gosta. Hoje a gente vai brincar de...

Uma vez Gracile imaginou uma criança dela. Esqueceu. Do jeito que era desastrada com
as próprias coisas. Um bebê: medo só de imaginar. O namorado também deixou claro que não
queria. As crianças dos outros passaram a bastar. Encarou com valentia o último tabu. Uma
mulher bonita que ama crianças mas não quer ser mãe. Ainda jovem e nem tão desastrada, nunca
mais gostou de alguém a esse ponto. Depois soube que ele havia morrido e desistiu de formar
família. Sua família estava ali na creche.

Alice aperta o botão do interfone outra vez. Agora Martha atende e ela entra. Depois o
senhor Pöbel. Ela acha ao vê-lo que está envelhecida pois ele não mudou nada. O que foi
querido, você voltou? Esquecera as chaves do escritório. O carro amassado. A mulher grávida. A
jovem mãe. É de você que Martha fala. De como é uma mulher virtuosa. Mãe extremada. De
você, imagine. Se ela soubesse. Mas aí está você em silêncio, virtuosa sem dúvida. Porque tenho
condições perfeitas para ser vítima de chantagem. E aqui estou em silêncio te dizendo que sei
que não fará. Está em seus olhos. O olhar de Alice está mudado. Com ela, ele aprendeu. Quanto
economizou em comprimidos e poupou em saúde.

Pela aparência fogosa de Martha e pelas revistas femininas espalhadas ensinando a como
obter mais prazer, ele se curou. Daquela vez tenham tomado muito vinho. Meu Deus, há quanto
tempo!... Estava com a mesma roupa. Abaixou a cabeça a cabeça no sorriso tímido. Pediu licença
e foi para os fundos do apartamento. O tempo passou e sua passagem está escrita na gola puída
da blusa de Alice e nas cores desbotadas de sua saia.

Na sexta-feira ao voltar para casa teria ao passar pela locadora reavivado o desejo de
filmes nos quais se encontra menos exigência da concentração perdida. Passou a manhã cheia de
devaneios de reencontro não por qualquer significado maior que o homem representasse mas
simplesmente pela visão do passado nos traços de seu rosto, como um mapa. Sem pretender que
tais reflexões a levassem a algum tipo de revelação mas apenas lembrando foi aqui nesse dia eu e
depois nunca mais. A mesa da copa evoca um lago. O sol na torneira do tanque transforma a
lágrima numa gota de orvalho. De passagem pôs água para ferver. Faltavam cheiros àquele
mundo. Casa linda e asséptica como a patroa. Abre o pote de café e aos poucos é sua casa e a sua
vida. Escapara do mundo e deixara de ser porque havia brilho nas águas desde a velha cidade no
interior e agora nessa torneira e agora nesse lago em que poderia molhar os pés num dia de calor
no qual há peixes e talvez um monstro no mais fundo que não poderá ignorar ainda que
preferisse o devaneio e não evitar ainda que necessite mais do calor da palavra do que dessa
luzente água gelada em que talvez mais exista a sina trágica e ainda assim no desenrolar em que
aparecerá na porta do prédio exuberante perante o porteiro e quando trocaram duas ou três frases
se calaram como se tudo tivesse sido dito e restasse apenas ver para tentar entender os motivos do
que depois sucederá, a saber, o dia de amanhã quando decidiu se dar folga e contemplar as
pessoas na rua e no metrô lotado e ouvir as conversas com uma vaga e morna expressão no rosto
onde os olhos passearão pelas mesinhas postas na rua (porque é sexta feira), o vestido com os
dois botões abertos no decote seduzindo talvez para que os homens seduzidos lhe expliquem o
porquê de tudo aquilo — se está para sentença mais do que prazer e em alguns dias será
irrelevante onde estava ou como se sentia.

Não sabe onde e quando começou. Sabe naturalmente que não começou num lugar ou
tempo determinado mas dentro de si havia feito isso e compactado a vida pregressa — assim,
como se fosse uma criminosa — a partir de um vago evento que mesmo imaginário não
conseguia ser claro sequer para sua mente bem como o futuro que não começa tinha seu dia
marcado na esperança sem fundamento. Subitamente de algum ponto de si mesma e de sua
trajetória houve a destruição e dos entulhos renasceu ora pássaro ora fogo ora mulher das ruas
em que andou e das casas em que entrou para zelar. O brilho da mesa de café na cozinha. Um
espelho em forma de L. Os armários luzentes guardam irrepreensíveis louças e talheres. Com
grandes olhos atentos escuta as recomendações da senhora Martha. Não sabe mais quem foi um
dia — um rosto que se esquece ao deixar o espelho — ela própria uma casa com paredes
espelhadas. Não sabe mais exceto por eventuais referências: o primeiro amor; o beijo abissal; o
homem; o pai; a filha (que é sobrinha). O que não foi destruído pelas tormentas é forte o bastante
para servir de apoio no tempo que restar entre o gozo e a agonia.
A porta ecoa pela casa. O casal saiu. O homem não é sequer um espectro dos antigos
anseios de conforto e posses e status e garantia de futuro com bônus de algumas horas no
presente em alguma cama ou sofá ou mais provavelmente no banco do carona passando para o do
motorista. Sequer mantém a diferença de idade. Os tais vinte anos que na verdade nem
significam tanto assim pelo menos não enquanto, embora muito mais velho, o homem no que
interessa ainda é suficientemente ou talvez plenamente jovem mais até que um jovem literal.
Desde que solteiro mas não era mais o caso e não havia mais caso algum. Na luz que entra há um
prenúncio de tempestade que se repete em feições no semblante de Bianca, que tem pavor delas.
Um coração confrangido e logo um choro levam Alice sobressaltada ao quarto de uma criança.
Filha de Darken, imagine. Terá saído um bom pai? Levantar-se-á à noite para dar uma
mamadeira ou ver a razão de um choro como outrora fantasiara? Caminha pelo corredor
ressonante e abre a porta e entra mas não se demora muito nada mais que o tempo do choro parar.
Deixará o jantar pronto. Deverá ser reaquecido se vierem almoçar — diz no bilhete. Amanhã
precisará faltar.

Sentada à escrivaninha com o coque de cabelos negros luzidios contra as fotos


iluminadas no mural ela via registros inelutáveis dos momentos com Pedro nos passeios de
bicicleta pelo parque e pelas ruas planas ao redor de onde era possível sentir a refulgência de
miríades de pontos nas águas do lago em meio a bilhetes e contas e canhotos de entradas de
cinema que ela fixava com a paciência do novo ser herdado após os tempos maus enquanto a
porta se abria e em seguida novamente se ouvia o ruído acompanhado de um leve tremor nos
papéis pelo qual ela soube que ele trazia mais uma caixa de livros para o apartamento batido pelo
sol da manhã segurando-a com as duas mãos e se equilibrando em um pé para amortecer a batida
e juntando ao som seu próprio gemido numa manobra que aos ouvidos de Alice soava altamente
erótica. As fotos eram vivificadas e renovadas por câmera mental muito mais confiável e
infalível como o próprio sorriso de Alice ao agradecer. Acho que são todos — disse ele,
referindo-se aos livros — só não sei onde poderemos colocar. Prevendo que no dia seguinte uma
loja de móveis bateria à porta para entregar estantes novas — exatamente o que ele pensava ao se
postar diante do ventilador (o suor gelado lembrando seus mal-estares porém assim era
agradável entendendo além do testemunho da nova vida que eles deveriam começar a partir
daquela noite que o abismo e o paraíso estão muito mais próximos do que se imagina) — o que
será confirmado quando ela se afastar do mural e levantar e se aproximar para se sentar ao lado
dele na cama dizendo o quanto ele cheira bem ao que naturalmente envaidecido ele projetará nas
palavras o óbvio. Estava todo suado. As mãos dela dentro da camiseta sentindo a afirmação e
melando-se e insistindo que não precisa quando ele diz que vai tomar um banho antes, não
precisa, repete, fechando a cara de brincadeira num ar teimoso que se tornava feliz ao alcançar
alguma coisa sob o moletom — ele também levara a própria mão à paisagem anoitecida, terra a
ser preparada para a época do plantio sob os intermináveis temporais da juventude que parecem
se alongar quando a velhice se aproxima. Agora. Amanhã poderá ser tarde. Certeza com a qual
aprenderam a conviver. Um dedo ameaçando algo mais licencioso mas se mantendo romântico
em meio às risadas eu sempre achei rir nessas horas um anticlímax e é evidente que eu não sabia
nada de nada sobre essas coisas. Sonja era a casa e Alice a tempestade não pelos fortes alicerces
mas porque era ela a flagrância da liberdade. Quem saberá amanhã se esses foram os dias da
plenitude deles atestada atestado por vizinhos como as risadas e os gritos e os gemidos que desde
a batida da porta haviam se transportado para uma outra e imensurável e romântica (ou obscena)
dimensão.

A caminho da creche Alice se deteve numa esquina esperando a passagem de um


caminhão. Nunca vira aquela casa. Nem aquela igreja. Como se multiplicavam! A verdade que
liberta não é religiosa. Soube-o por meio do professor porque sempre o soubera. O caminho é
como ruas assim dobrando nas esquinas mais improváveis por obra da mão do trânsito ou da
hora do compromisso. De súbito eis o momento crucial até ali clandestino rebentando como a
onda que cresce demais e assim tarda para quebrar tempo proporcional à sua grandeza ocultando
o horizonte para devolvê-lo mais belo e imponderável. O instante vivo que nasce magnífico
porque indispensável ainda que por tanto tempo sua ausência não tenha sido sentida. Faminto e
primitivo e brando. Pacificador. A revelação se dá junto ao vigor e à inocência e ao espanto —
como dizia o professor a quem o ator na capa desse DVD tanto lembra. Gostaria mas não pode
alugar o filme. Devia comprar um aparelho. Sempre sobra um tempinho em seu dia cheio. Quem
sabe um filme assim dê sentido à morte adormecida antes que ela se alastre até o ponto em que
tudo se encontre embebido da noção mais nítida de transitoriedade. Prisão adornada — pensava,
quando o olhar do atendente da loja a fez seguir e sem perceber apressar o passo na típica
resposta inconsciente que o corpo dá a uma sensação ainda vaga. Desejo anterior à vontade. É
melhor pôr Bianca para dormir e descansar.

6. Ali onde respiram os cravos

Pedro a vê dormir naquela outra manhã. A primeira. Passou os dedos na mecha dos
cabelos de Alice tirando-os da testa sem o mais remoto sinal de franzido como quem sonha os
mais doces sonhos porque são doces os sonhos em que não é neste mundo que se vive e num
arrebatamento se trocou de domínio. Ele a amava. Não imaginava ser possível. Descobriu nessa
segunda noite (na verdade a primeira) que precederá a mudança o que foi abandonado na outra
quando a abordou e impediu que buscasse a guarida de Sonja, impraticável depois daquele beijo.
Mas quem descobriu? Talvez o professor Savone com o discernimento que nem seria preciso ao
ouvir de um ou de outro o episódio. Então o crepúsculo à janela se tornou agonizante e febril, o
mesmo do sonho de Alice cheirando a húmus e menina no solo fértil do desejo apaziguado. Luz
morna traceja o rosto sereno e guarda o gozo e a morte. Lábios vaporosos e frase ininteligível.
Ela começa a se espreguiçar. Ele à janela se exercitava. Aproxima-se. Alice? Das profundezas de
um mar improvável chegaram as vozes. Ela se assusta num primeiro momento mas depois escuta
um som familiar e sorri aliviada.

Nos dias que se seguiram as vozes voltam e permanecem. Em cada crepúsculo devolvem
o sonho em extraordinária imprecisão. Acreditarei um dia que vivi esse momento? que ouvi essas
vozes? que estas lágrimas fazem sentido? Isso ela pensou ao sair da casa de Darken e Martha. A
paz encontrada tinha a ver com o sonho e as vozes. Com Pedro e Savone. Com os gritos do
passado que acusavam o mundo e com a benignidade com que o perdoou .
Naquele dia. Quando saía da casa de Darken e Martha. Sem imaginar que haverá uma
outra noite. A caminho da creche. Em frente da locadora. Lembrando. Com a mesma risada
infantil após algum gracejo nervoso quando ele sentia a pele da coxa e a trama muscular e ainda
assim era menos óbvio e menos rude do que ela. A marca da meia escura junto ao elástico na
lateral ainda intacta parece adquirir alguma misteriosa importância. Quando a mímica se esgotou
no silêncio a voz dela soou em meio ao pano entre as palavras, havia ainda os risinhos carentes e
contíguos, o revirar que poderia passar por desconfiado dos olhos quando apenas pensava o que
não dizia. Ela havia permitido por conta talvez da natureza de presa e atributo de caça mas havia
permitido talvez até provocado a menos que se controlasse como nunca antes. Pedro estava
ouvindo tudo como se fosse um relatório imprescindível a que se obrigasse. Ela nem imaginava.
Quando as vozes se cruzavam cuidava sim que também os pensamentos o fizessem, apenas isso,
se cruzassem sem qualquer relação uns com os outros, como os carros na esquina lá embaixo.
Não se olhavam mais mas ele guardara a expressão tímida e voluntariosa como quem guarda um
tesouro ainda que buscasse um thesaurus outro que justificasse palavras e pensamentos em
tamanha desconexão na velocidade das mãos agora conhecendo a contextura da calcinha
iluminada exceto pelo sulco logo magnetizando e distribuindo tracejados negros no algodão.
Correspondiam às dobras forjadas nas meias pelo vergar rígido dos dedos dela após a curva das
próprias solas e às marcas causadas pelo morder dos próprios lábios comprimidos. Não era
necessário que houvesse nada além disso. Cumpriam suas incumbências de acordo com os
serviços informativos. Absurdo despontar do nada qualquer coisa próxima da culpa mesmo em se
tratando de uma menina e ainda que alguém um dia pudesse dizer que ela só estava atrás do
dinheiro dele e embora ela tenha jeito de menina e ele aparente estar estabelecido na vida.
Despertaram com o movimento do tráfego e se olharam de novo depois de horas. Um horário
familiar aos dois. Uma luz familiar. Familiar um ao outro não por qualquer relação com o
passado. Ele apanhou o celular na mesinha. Olhou a hora mas embora estivesse atrasado
permaneceu quieto e respirando com cuidado como se caso contrário a pudesse incomodar. Não
havia mais nada porém que a pudesse incomodar e caso ainda houvesse ela não mais se
importaria.

Vive nesse apartamento há dois anos e meio. Privilegiada. Escapou da sorte infame das
pessoas que trabalham muito e moram mal. Hora do dia que anseia. Recostar a cabeça no
travesseiro e relaxar. Nem sempre dormir. Ao longo de uma noite inteira de chuva intensa em
outubro como os temporais de verão e de um frio digno do inverno, após ter dormido um sono
tão leve que não permitiu se alhear de todo do mundo lá fora e acreditar que a bátega na janela
eram sons de um sonho talvez um pesadelo que não teve tempo de se cristalizar, acordou a
primavera por ser estação de transição entre a anterior e a seguinte as traz em si com intensidade
anárquica como a do adolescente que não sabe ser feliz por não ter as responsabilidades de um
adulto ainda informe ou infeliz por tentar manter a criança que já não existe. A respiração da
menina a seu lado acompanha os pensamentos ondulados pelo colchão. O mundo e seu mundo se
tornaram uma coisa só. A vida e a morte. A senhora Martha ao revelar a doença de Darken e seu
sofrimento permitiu uma reflexão até então interdita. Não há culpados ainda que eu desejasse e
que quisesse alguém para responsabilizar por ter saído de casa e ter ido tão longe à procura de
trabalho e de independência mas não, não precisava desse tipo de estresse ainda tão nova e esse
tempo não volta e nem sei se gostaria que voltasse mas sei que ninguém tem culpa por eu ter
vindo e pelo tempo não voltar. A gravidade do estado da mãe. O tanto de preocupação que
causava a seu pai. Sol numa casa de praia em que as janelas imensas estão todas abertas. O
vizinho grita. A mulher devolve com uma justificativa perfeita para agir como agiu. O vento
levanta as cortinas e na janela nasce o céu noturno. Alguém canta na rua. Depois de muito tempo
entre tantos homens a companhia de um único permitiu que ficasse enfim a sós consigo mesma.

Ananda saiu do hospital faz sete dias e Öffner ainda não passa de uma criança assustada.
Que alívio ter ela sobrevivido. Dizem que foi um milagre. Não sabem o que a levou àquele ato.
Levantou-se. É quase de manhã mas não há indício exceto talvez pelo eco do copo na pia e
indecisos passos no corredor. Terá ela voltado ao trabalho — imagina. Öffner? Sai e a escuridão
torna-se mais vívida e tolerável embora não menos densa. As flores lentamente tornam-se
visíveis e o aroma delas a atmosfera respirada e são as flores que ladeavam o caminho pelo qual
passaram naquele primeiro dia. Ela pergunta e ele responde com um sorriso indulgente. Demorei?
A mão toca-lhe no ombro suave e fria e branca a não ser pelas veiazinhas azuis.

Imerso no mesmo silêncio em que sonhara, continua ali a filha do sonho e parte mais
pulsante da vigília. A divisão entre os apartamentos perde a razão de ser quando voltam da
caminhada quase ao meio-dia. Brilham os corpos sob as camisas finas. Há uma nova
suscetibilidade na ponta de sua língua. Não esperar que a luz seja estável em seu movimento pois
num momento você vai a seu encontro e noutro se retira no sentido inverso. O mesmo movimento
e a mesma luz que não dependem dessa sucção ou desse polimento.

Um olho mágico. Posso por isso decifrar o mistério desse muro erguido do nada pois
sei o segredo e está aqui na magia de nosso contato mas estou inquieto com a forma como seu
contorno se torna fosco e a aura das flores imerge em denso nevoeiro e se evade e eu não consigo
pensar o que devo nem dizer a palavra. Ananda, não pode partir assim e me deixar órfão outra
vez. Ananda, Ananda. Espaço e tempo se expandem. É a fuga da noite que se transformará em
realidade no apartamento vizinho. De joelhos. Ananda. Santa, inocente. Esses dedos deveriam ser
os meus a retirar santidade do ícone e essa boca deveria ser a minha a buscar as gotas entre os
bancos do templo espargidas e tragar o poder eterno desse desvio para o azul. Um olho mágico
cruel. Os pais estão chegando. Continuam naturalmente arrasados. Soube que havia muitos
amigos na igreja mas nunca onde foram jogadas as cinzas. Não faria a menor diferença.

Mal pisa e sim flutua sobre o tapete escurecido quando os dedos gordinhos são
guiados aos sapatos desertos brancos de fivelas prateadas. Que recebessem com cerimônia os pés
pelo sono enlanguescidos. Ao ajustarem a meia elástica as mãos acarinham a panturrilha sob a
luz que reconhece o forro multicolorido da poltrona. Sem hesitação pisaram esses pés pela
primeira vez naquela casa. Mais tarde porém quão receosos. Dedos no velho aparelho. Unhas que
não mais se pintam. Música clássica calma envolve a criança deitada sobre a cama. Contorno
dos móveis. Silhueta dourada e cheia no espelho. O último e casto botão sela o pacto com o dia
exceto pela alça íntima que insiste antes que chame a menina. Bianca, está na hora. Bianca,
filhinha, vou fazer o café. Alonga o pescoço. Em meio ao amanhecer do bairro onde Pedro não
mais habita. A anágua retrata uma época e lisas ondulações brilhantes acarinham as pernas.
Bolinhas multicores e linhas de pesca. Não poderia jamais — jamais! — reclamar da sorte. Viveu
por alguns meses um amor verdadeiro. Lícito! Não poderia se queixar. E não bastasse, o
professor, com quem não sabia o que tiveram.

Pedro preferia que ela não tivesse vindo mas o que poderia fazer? Cerca de um ano
depois antes a encontrou vagando na cidade à procura da amiga que mal conhecia. Sem ter para
onde ir. Agora tem. Ao menos acreditou que sim e ali estava. Está escrito nas paredes chispadas
de sombras.

Está viúva há não muito tempo e se sentia de certo modo culpada. Há não muito tempo
Pedro soube do caso da mulher mas impediu-se de qualquer palavra de acusação e se ela mesma
não tivesse pedido o divórcio ainda estariam juntos. O homem com quem se envolveu (culpa que
o próprio Pedro se atribuía) na consumação de um sentimento antigo — seu próprio irmão —
estava morto. De resto, se alegrava em dar à ex-companheira uma vida digna. Um sentimento
verdadeiro um dia os uniu. Um dia. Hoje a porta do elevador se abre espelhada mostrando a
jovem que ao reflexo dele se uniu. Metálico som profético. Em um ano quanta coisa aconteceu.
Realmente preferia que ela não tivesse vindo mas a beija em desespero. Alfazema não mais
gardênia e um olhar cuja experiência não se acresce de mediocridade.Como me achou aqui ou
perguntas tais são irrelevantes pois esperava teu olhar e aqui está. Não devia ter vindo mas veio e
se alegrará por ela ter vindo e pelo tempo em que ele ainda viver estarão juntos.

Um olhar sobre ela atento. Continuou. Falou então sobre Ernesto Savone. Ele espera que
eu escreva com o corpo todo e com toda a alma. Do jeito que segundo ele eu vivo sobre coisas em
que acredita embora seu corpo não o confirme. Não há mais tempo. Arqueou as sobrancelhas e
inclinou a cabeça. Pediu-me. Seu olhar é doce e parece saber mais de mim do que seria possível.
Digo-lhe que um dia também acreditei em algo assim. Não mais? — ele pergunta. Não sei o que
responder. Estávamos jantando. Ele acabara de pôr a panela na mesa e se sentar. Ainda hoje ando
em busca da resposta. Disse-lhe de uma outra forma. Disse que esperava algo mais do que
escrevia e vivia. Como se ao escrever vivesse e não pudesse viver se não escrevesse mas vida no
caso seria mais que vida e do que a própria escrita. Como se ao escrever estivesse morta. O
olhar dele era atento como se eu fosse proclamar o sentido do silêncio infinito dos universos.
Mais tarde me diria que era isso mesmo. O sentido que se procura na beleza e na arte ou dele se
foge pela distração ou trabalho. O mundo não existe. O mundo consiste das pessoas e de como
elas o vêem. Naquela noite ele chegou a ensaiar esse argumento. Naquela noite seus filhos ainda
viviam. Mencionou-os uma ou duas vezes de passagem. Mas por que procura essas coisas em
mim? Na minha sombra. No meu olhar. Ela sabe porque assim passou a também a vê-lo e ouvi-
lo. Não: nunca houve outra intenção entre nós. Digo com isso que não havia um desejo? Havia
sim um desejo, mas não tinha relação com a atração. Com um fim definido e pelo qual em tudo
nos enganamos dizendo coisas que não visam exceto a satisfação desse desejo. O desejo que
havia, para permanecer, não devia ser satisfeito.

— Mãe, eu não entendo.

Então apesar de todo o amor ela percebeu que as diferenças precisam ser absolutamente
respeitadas e não é questão de sentimento. O amor pelo pai dela era autêntico. Diferia em que,
exatamente? Também amava sua sombra precedida por passos igualmente amados. E o som de
sua voz e os nós de seus dedos. Mas esse amor era o amor cujo desejo para se renovar precisa
morrer ao ser satisfeito.

Os sons da manhã próxima envolvem a madrugada deitada no escuro e não é possível


divisar as estrelas mas realizará muitas coisas se não hesitar e partir logo. Contudo o beijo na avó
é indispensável. Que ela diga Vá com Deus, sol da minha velhice. O emprego parece
gratificante. Um cotidiano estimado. Tudo vívido como uma pintura. Devem ser umas cinco e
meia. Com sorte chegará com sol ameno. Não gosta de calor. É mais incapacitante do que sua
enxaqueca. Estrada rósea ladeada de reflexos dourados, velocidade boa para viajar e um alívio
dirigir sozinha. Por isso parece tão independente: está sempre partindo para que alguém possa
fazer algum outro juízo. Não demorou nada. O hotel parece adequado para a primeira noite. Só
não esperava que o tempo fosse virar assim. Uma trovoada. Outra. Precisa correr.

Um prédio antigo de boa aparência. Um hotel. Posso ficar a primeira noite — pensa.
Amanhã consigo uma casa. Não mais que um minuto na chuva e ela entrou encharcada. Hum
Énigme falava com o porteiro e ela chegou por trás fazendo com que ele sentisse a umidade junto
à abotoadura. Nas costas o vestido de Beatrice está salpicado e ele vê que é por causa da
sandália como quando se anda de bicicleta numa poça. Está fazendo perguntas ao porteiro e acha
que uma pessoa educada deveria ao menos ter pedido licença. Talvez ela o tenha feito. Ele estava
distraído com a história da moça que chegaria para trabalhar no escritório. Mais tarde quando ele
via o noticiário na sala de estar ela falou. Boa noite. Perguntou se ali costuma chover assim de
repente e ele respondeu que sim é uma característica da região. Então calaram-se. Resolveram
subir para os quartos. Os lábios dela são convincentes no silêncio quebrado apenas pelos cabos
do elevador.

Ele se encaminha para ver se realmente a chuva parou. Ela ainda não sabia que seria seu
chefe e que assim que estivesse se estabelecido sua mulher viria também. Tudo o que sabia dele
se resumia no dorso cujos músculos eram visíveis sob a camisa e a pele queimada com que a luz
da janela se chocava. Vira-se. O beijo até então contido. Há uma fronteira que os iniciados em
Beatrice nunca passaram. Já esteve até com as pernas para cima como um bebê e assim tocada ali
perto de onde a vermelhidão arada de coçar mordidas de mosquito na pele das coxas aparecem
mais. Onde o dedo arranca sons ignotos e farpados e provoca o transbordamento desmaiado com
inaudíveis palavras de repúdio seguidas de aperto nos olhos e mãos nos joelhos. Daí os iniciados
em Beatrice nunca passaram. Mas ela está disposta a que afinal aconteça. O que esse homem tem
de tão especial para tanto? E o que ela tem de especial? Não sabem. Ele diz a si mesmo que
prefere não saber. Que seu casamento é sólido. Que é a primeira vez. O que não impede que o
sentimento transborde limites determinados. Apesar de insistir que ela é vulgar por ter se
entregado tão facilmente. Não foi tão facilmente. É como se houvesse camadas de entrega e
resisti o tanto legítimo em cada uma delas. Beatrice imagina a lua lá fora enquanto ele dorme.
Um dia inteiro. 24 horas. O tempo em que está ali. Parece uma eternidade. Amor e trabalho:
estrutura da vida. Um mandamento divino partilhado por toda a terra. Coisa sagrada. Durante o
café na mesa da cozinha quase caseira ela pensará no quanto havia de luz naquela proximidade
de manhã. Uma luz avassaladora permeando sua insônia num momento em que deveria estar
entorpecida e satisfeita mas não — estava desperta e ansiosa como se em si mesma houvesse um
pouco daquela escuridão prestes a ser dissipada.

Alice digitou a senha no caixa eletrônico pensando que devia ser mais cuidadosa ao
manusear documentos na bolsa aberta. As preocupações mudam apenas mudam nunca terminam.
Uma vez sonhou que ele ressuscitara. Ainda sóbria sua aparência era mais jovial do que nunca e
a elegância aureolada pelo cheiro de sempre. Banho tomado e hálito aromático. Lenta sublime
respiração. O tempo cura tudo e transforma o que não pode curar.

Aura luminosa contra a vidraça do banco. Busca sem saber o que a não ser que tem a ver
com vozes que se recusam a calar mesmo não sabendo o que dizer e ainda amando o silêncio.
Mulher única. Ele não percebeu logo. Aquela por quem sempre procurou. Melhor estar só. Agora
ali de novo recebe seu novo beijo. Deveriam viver juntos, por que não? Não seria tanto tempo e
a susteria nas épocas más do futuro. Seria transformada — ou curada? — pela lembrança do filho
e pela sabedoria do pai. Ele estenderá a mão no leito de morte. Não fale — ela dirá. Não se
esforce. Mas sabe que chegou a hora. Savone vê a cena da porta do quarto. Olha para eles e para
ela. De quem precisa para sobreviver seus últimos meses.

Pedro e Alice se reencontram. Ele divorciado; ela viúva. Beijam-se. Não se põe mais a
questão se ela devia ou não estar ali. Está e estará por quase três anos. Durante esse tempo pouco
escreverá. Vez por outra ele entrará e ela estará diante do computador traduzindo alguma coisa
para enviar antes da noite. Ela lhe pedirá apenas mais uns minutinhos com um sorriso irresistível.
Ele responderá. Não se preocupe. Que faça de conta que ele não chegou ainda. Contemplando o
ar sério e sexy que o cabelo preso e o coque e a concentração lhe davam. Não se esquecendo do
avanço das negociações para a venda. A visão dela ali sem preocupações materiais e portanto
com tempo para a saudade que de algum modo o eternizaria enquanto ela vivesse.

A lágrima da primeira chuva de outono no rosto da estátua. Não vou mais chorar —
pensa. Não tenho por que chorar. O homem andava ligeiramente adiante da menina. Tiraram
juntos os casacos e num baile de tecidos esvoaçando deram um beijo. Ele colocará o agasalho na
mochila e ela enrolará as mangas compridas na cintura e tornarão a se beijar com a ousadia das
mãos livres. O trânsito está em seus pés. Um ônibus. Um caminhão. Um veículo mais leve
desses que costumava amar. O casal retomou a caminhada de mãos dadas agora seguindo na
direção do metrô. Um olha para o outro e ri e o outro devolve o sorriso. Jamais Pabloe eu rimos
na rua. Ela ergue a cabeça e deixa com o homem à janela as luzes da cidade e as estrelas através
da vidraça.

Tempos atrás queria tirar uma foto com o celular e postar na rede para criar um
significado mas agora estar ali transcende essa outra presença hirta como o viaduto. A sombra se
derrama na calçada e tinge as pedras do tênue acinzentado que faz a curva dos seios no tremor da
blusa. Movimento de pintor. Morena como nunca foi. Deliciosa, segundo o pedestre que passa
por trás. A rua se alonga ante seus passos na descida iluminada. Depois de pegar Bianca irá para
onde, agora que os três estão mortos?

Ali. Sobre a ponte. Vi o mundo que deixava e o por vir em pouco mais de meia-hora
como quem passa fotografias de uma mão para outra. Pesquisei para saber os passos que deveria
dar para encontrar Pedro e o que diria. Caminhamos juntos pela noite deserta. Estávamos de
braços dados e eu me sentia totalmente feliz sem sombra de tristeza pela morte de Pablo. Um
homem bom a quem seria sempre devedora. Mas eu não estava triste. Pedro pouco falava e
quando o fazia dizia coisas engraçadas, pelo menos me davam vontade de rir, e eu estava
adorando rir, rir tanto, rir com tamanho prazer. Ele estava com a barba por fazer. Um detalhe
muito para mim. Era outro homem. O mesmo mas agora o meu amor. Também ele ria e também
o riso eu não conhecia em sua face. Tomamos refrigerantes e conversamos até cerca de meia-
noite. Foi quando ele me falou de você, Bianca. Você estava com uns dois anos. Não fique com
raiva de sua mãe. Por que uma mulher seria necessariamente perversa por deixar a filha com o
pai? Sei que ela voltaria pra você se não tivesse sido assassinada.

Naquela manhã tomei um susto. Ouvi um barulho e não vi teu pai a meu lado. Ele tinha
caído da cama. Rimos muito de novo. Ele ficou algum tempo estendido no assoalho e eu com a
cabeça reclinada. Perguntei sobre como descobriu meu endereço para mandar aquele tablet. Disse
que não descobriu. Que deixou com o rapaz da lan-house para que me entregasse. Tinham meu
endereço mas ele não queria que lhe dissessem. Você precisa deixar isso de lan-house — disse
um dia. Era verdade. Cansei de internet. Pelo menos da internet como um substituto da vida.
Quem sou eu para que me sigam e saibam de meus pensamentos? se há algum que mereça não
será usufruível em meio a uma avalanche de entretenimentos obscuros e em meio a tamanha
dispersão. Eu e você caminhando agora em silêncio após a cerimônia em que nos despedimos de
Pedro. Você tem nove anos e é uma menina saudável mas logo te perderei para as mesmas
tentações que na adolescência me tragaram. A moça escuta e sente medo da mulher que a criou.
Prefere assim. O medo à apatia da sua geração. Esse terror que impulsiona do que simplesmente
estagnar.
Foi como se naquele dia tivesse sido retomado o dia em que procurava minha
companheira de viagem para me hospedar por uns dias. Meu sorriso restaurado. Porque eu
desaprendera de sorrir quando esbarrei com teu tio na saída da biblioteca e notei que estávamos
com um mesmo título nas mãos. Hoje acho que aprendi que afinidades não levam a grande coisa
nos relacionamentos. Acontece é claro como o contrário acontece também. Cheguei a temer que
se tratasse de um tarado ou coisa assim quando ele se encostou em mim no metrô. Olhei uma ou
duas vezes e lá estava atrás de mim quando eu ia para a lan. Meu Deus, era o que faltava... Mas
não. Ele foi muito gentil. Ofereceu-se para me acompanhar embora não quisesse subir quando
sua mãe nos convidou.

Entre essa noite e o dia em que jantamos passei uma noite com um homem que dizia me
conhecer. De onde? Era um empresário que me vira entrar na lan-house quando ele saía. Um
homem charmoso calado porque quando falava só falava em como a Grécia era apenas a ponta
do iceberg e tudo iria ruir cedo ou tarde, sobre o perigo dos crescimento econômicos
acompanhados de perspectivas desmedidas mas ninguém deixa de jogar na Bolsa por causa disso
nem de gerar a euforia dos mercados por meios artificiais ou apostar no dinheiro como em
tulipas. Que o mundo como o conhecemos podia mesmo ruir, pensava e que bom o mais cedo
possível, assim cada um se vê diante de si mesmo e o pecado deixa de ter essa conotação
despersonalizada de hoje quando há humor de mercado e as pessoas parecem que o perderam.
Bianca pergunta se ela tornou a vê-lo, ao tal executivo, com olhos dum interesse que Alice podia
imaginar.

Albert tornou a ver Alice. Como o mundo é pequeno — pensou ao vê-la esperar para
atravessar a rua principal daquela cidade na praça em que conversara com a mulher. Albert? —
disse sua esposa. Tenha respeito diante das crianças. É mesmo uma bela femeazinha mas olhe
pra frente ou além de me humilhar ainda pode bater num poste. Então Nastácia se arrependeu
amargamente de ter renunciado a seus princípios e feito da aventura sensual uma brincadeira de
casinha. O cotidiano tornara o atraente empresário que a fizera perder noites e noites imaginando
como o abordar intoleravelmente enfadonho assim como ela é execrável em comparação com a
mulher deslumbrante que ele conhecera e com que se casou. E por causa da energia gasta para tê-
la — pensava ele ao escutar a voz que cortava seu olhar terno direcionado à moça vinda da praça
— estagnara na vida profissional. Olhou para Nastácia e reconheceu o quanto ela ainda era
atraente. Ela entendeu e abaixou a cabeça ao certificar-se que no banco de trás as crianças
dormiam.

Sentou-se no parapeito largo. Onde? Talvez no hospital. Lembranças da época fugiam.


Sim, no hospital. Ali ficou sabendo a verdade. Que não há uma verdade. Não existe o ser
humano fixo sobre o qual nos debruçamos — pensou. Não sabe quanto tempo ficou ao lado de
Pedro. Um relógio no corredor branco que não leva a nenhum lugar porque as pessoas fixas não
se completam mas andam em círculos por corredores brancos agora acinzentados quase negros
pela luz apagada apenas paredes guardando o cheiro de coisas que não apodrecem como talvez
devessem mas se mantém preservadas como a dor que um analgésico falseia. Ele perdera a
virilidade mas a seu lado esteve satisfeita e de nada sentiu falta. Claro que não é verdade. O
corpo se ressentia e algo a seu corpo faltava. Mas não a mim. E o que me faltava não era algo que
pudesse receber de outro homem. Ao se reclinar sobre ele, percebeu que o professor havia
entrado. Tudo cheira a formol. Que fim para um homem que ansiou o aroma másculo de um
amor verdadeiro escorrendo de seus dedos! É o fim dele e também o dela cujo sangue ainda corre
quente sabe Deus por que misericórdia talvez para que discorra dessa condição num delirante
poema sobre um mar inexistente exceto pela paixão que recusa a normalidade e o costume e a
conformação ao século. O cobertor quadriculado evoca a saia que uma vez cumpriu um papel na
história deles. Ela aproxima o copo. Não há de ser nada grave. Ele é um homem forte. Mas a
desesperança a toma de assalto. O copo nos lábios. O que será da menina? Embora determinada a
crer que ele se salvaria, ela imaginava categórica a possibilidade diante de seus olhos que
conforme ia fazer uma e outra coisa captavam os fragmentos do filme na TV. Tanto sono mas
como dormir? Marcel ligou para perguntar sobre o patrão. Um pai para ele. Ela olhou para ele e
repetiu a pergunta. Como você está, amor? Onde você está? A enfermeira havia entrado e
trocava o soro. Quando desligou, devolveu o seu sorriso.

— Obrigado, Eña.

Não tinha mais vergonha. Nem mesmo evitou a declaração de amor no final como na
adolescência fazia com os meninos. Não pensou se havia ou não alguma coisa em risco. Desliga
o celular. Dá uma piscadela. Óculos embaçados de sono. Mas e quanto à outra, pensou, tão casta
e insegura? Uma aragem sinuosa a sua voz. A tranquilidade esperada ao longo de uma vida. Uma
donzela para servir de amor. Fechou os olhos e não precisou esperar muito. Foi assim — disse. O
mar rumoreja em sinuosos movimentos. A voz amada. Mas e o sonho? De repente se deram
conta por que estavam ali e se fez dia. Silêncio exceto pelo mar rumorejando. A respiração de
uma pela outra. O braço a rodeava quase atingindo o outro lado. A mão acolhedora. Uma carícia
dos dedos no ombro. Tudo o sonho contemplara. Uma mudança de atitude reflete imediatamente
no mundo. Um dia enquanto esse mesmo sol iluminar a outra sentirá na própria pele a angulação
de seus raios encentrando um chamado irrevogável. Ela se levanta e respira fundo o ar salino e
sente uma tontura que atribui aos olhos ofuscados pelo sol. A trilha sai da areia numa vegetação
rala subindo pela falda em meio às dunas luminosas. Vai chover. Ela olha para o dedo que
apontava e concorda. Não tenho coragem de dizer tudo — pensa. Talvez não saiba o que é tudo e
se há um tudo e se tem a ver com tudo esse encontro na praia combinado ao acordarem num
sábado cheio de presságios. Nem é preciso contar o sonho. Ou porque estão vivas no mesmo
sentimento ou só porque estão vivas. Suas versaletes ainda fazem sentido num mundo conectado.
Tudo é memória. O significado de uma flor.

Assim que chegaram ao ponto mais alto deram com o horizonte aceso do outro lado. Não
conversavam propriamente: alternavam murmúrios. Tudo ia ficar bem apesar da lama que se
pegava nos pés delas. Não imaginavam que ainda pudesse existir um lugar assim deserto em
pleno sábado. Podiam ficar mais um pouquinho. Então sentaram sobre um se tronco sentindo
vivas e amadas. Eña e Maria sentadas num azul que não existe. Uma ao lado da outra e abraçada
à outra partilhando o sonho. Quem as visse do mar (a sereia do sonho por exemplo) veria que a
outra olhou mais além quando Eña disse como agir em relação à opinião das pessoas. Seu
vestido se quebrou à altura das coxas. Passos na areia. Linha das ondas. Com os pés molhados
elas se olham e entendem que precisam voltar. Os perfis se sobrepõem. O olhar de Maria busca
mais longe e Eña segura sua mão e a aperta e a traz para junto do seio. Dois céus, como no
princípio. Dois mares. Uma coisa só.

O pai da menina gostava de cantar e Alice o acompanhava no violão. Um dia estavam


assim. Ela olhava os próprios dedos no braço do instrumento. Sabia que ele estava preocupado
com as contas e não a queria desassossegar mais. Quer partilhar essa inquietação. Interrompeu a
música para lhe dizer isso mas não disse. Acabaram falando de outras coisas e rindo. Travessuras
que ele e o irmão aprontavam na infância. O quanto enlouqueciam seus avós. Seus avós: era
como se estivesse falando de um casal que tivesse sido muito feliz ou como se a infância fizesse
parte de uma outra vida e o que quer que tivesse vindo depois não contasse mais. Mandaram vir
pizza e refrigerante. Na manhã do dia seguinte ela foi procurar a senhora Martha. Precisava
ajudar Pedro de alguma forma. Na época Martha era a diretora da escola.

Com o material de limpeza transbordando dos braços Alice caminha sobre os tacos
estalantes. O que é isso? Uma sapatilha de balé. Estranho. Olhar lento e sereno nos óculos que
deslizam para a ponta do nariz para ver por cima o que não necessita de grau. Aconchego é o que
lhe ocorre ao ver o tapete do escritório. Um aconchego morno. Uma vida morna. Bom dia. Bom
dia. Quando ela passa ainda provoca excitação e inveja. Não está tão acabada.

Prefere chegar quando não há ainda ninguém. Dispersa-se facilmente quando o


expediente começa. Vozes. Passos. Basta. Como suportam? Sorriu novamente ao responder outra
saudação. Prepara então seu melhor semblante. Assim. É preciso. Por algum tempo ao ouvir esse
arfar molhado das folhas, aquela sapatilha na entrada representou o apelo de outra vida. Nessa
memória ela o guarda. A chuva pergunta como é possível aos mortos incomodarem a serenidade
dos vivos e como o que passou não passa mas se desenvolve em todas as direções. Um toque são
todos os toques e todas as carícias e todo repouso após o amor e antes fosse apenas isso, a tortura
da carne, mas há o enigma do mundo. Não pode compreender seus colegas e os interesses e
euforias das pessoas decerto por isso. Estão vivos.

Imagina que o tempo irá firmar à noite mas prefere não pensar na noite. Uma manhã
assim se parece com a hora temida da volta para casa. Não pode se dar ao luxo de uma crise
noturna pois esse trabalho precisa ser entregue no dia seguinte. Por quê? Se pudesse responder a
sapatilha de balé não guardaria aquela paixão furiosa e o carro semelhante não atrairia seu olhar.
Dever nos pingos que escorrem na janela. Não mais prazer, apenas dever.
Olhem ali a jovem mulher branca e triste a se destacar dos demais passageiros que não a
percebem. Passou a roleta ainda agora. Pela janela do ônibus desdobram-se partes da cidade em
que nunca pisou. O olhar e a imaginação atrás daquele muro. Bichinhos na grama e gotículas nas
folhas da madrugada. Nessa praça um namoro ao entardecer. Homem vivo algum se deleitará
mais sob esse vestido e o que morreu permanecerá morto. Ainda persistia o beijo no acamado e
um pouco mais que isso à guisa de maior conforto. Derramou muitas lágrimas depois, é bem
verdade, na perseguição do rastro de um sonho. Levaram aquele ocaso pelos anos seguintes.
Significa alguma coisa agora o lençol branco da enfermidade cujo desdobramento bem poderia
ter sido outro pelo avanço da medicina ou quem sabe pela fé. Entre os muros e domingos na
grama sob a árvore. Envelhecendo juntos. Ela encosta o nariz no vidro e contempla a cena.

O homem entra na parada brusca. Capuz e gorro tornam todos iguais. Tanto assim? O
bilhete da passagem está na mão conhecida que a guia. Lembranças nos dedos que apóiam o
queixo à janela. Afasta a fazenda. Zunir dos automóveis na via expressa. Não parecia
deslumbrado mas estava, perante a perícia que trazia o alívio essencial. Três amparos e o
mindinho numa importante função de fetiche. Esse mindinho. Depois do fracasso do casamento e
da morte dos adúlteros a quem amava, o crescimento impensável da empresa que nem se podia
dizer mais pequena. É você? Nem sabe se chegou a articular as palavras. Também a morte tem
um fim? O sol se derrama pelos prédios que ladeiam o percurso. Gumes de luz sim, luzes
cortantes. Um raio se alonga a partir do final visível da avenida e os tetos dos carros tornados
ouro.

Em algum momento Alice teria de tomar a frente de tudo. Cuidar dele e da menina e do
negócio. Foi o que efetivamente aconteceu num dia em que ela olhava para o céu de outono
abrigando o vôo de pardais e nuvens brancas e no horizonte uma linha de poluição e esticou a
mão para o táxi enquanto a outra segurava Bianca e quando dentro do veiculo ela deu um jeito de
ver que ligação era aquela e viu e ouviu a voz do gerente do banco. Foi assim. Por isso — diz ela
a Aleksándra, não acredito em coincidência. Tudo está determinado. Digamos que não existe um
destino assim, sei lá, absoluto, mas tem de existir esse outro, tipo um destino básico, ao que
contingências podem ser acrescentadas ou retiradas dependendo de nós ou dos fatos ao redor ou
de como reagimos às coisas. Pode ser — pensa a amiga, olhando para Alice com uma admiração
que só faz crescer.

Nada mais foi como antes desde o dia em que Raphael a conheceu. Todas as coisas
renasceram após a presença dela em sua vida emprestando luz de seu olhar a cada nuance do que
o cercava. Era musicista. Ele o soube-o quando voltavam da primeira aula de dublagem. Ela o
convidou a entrar na casa de seus pais após um pequeno contato por um motivo qualquer durante
o percurso do estúdio ao bairro em que viviam. Estão sentados longe durante a explanação do
professor. Comentando a aula falam de cinema e de arte em geral. O que realmente o levou ao
curso foi o desemprego e a falta de profissionais naquele ramo mas esqueceu isso. Contempla-a
recortada pelos cenários à janela.

O rosto dela se destaca como flor num terreno baldio. As mãos muito alvas contrastam
com o sol e os pés nas sandálias são suaves cordilheiras enevoadas. Ele que estar em seu quarto
e descobrir seus segredos. Não sei o que é vida ou o que desejo mas sei é o sol de um sonho
antigo. A fachada do prédio é amarela. Essas linhas são os raios oblíquos. A luz viajou desde
muito longe até se chocar com o cimento. Jardim limítrofe.

Não que seja novidade mas nada é como antes pois jamais viu uma tarde sob essa luz
rósea fulgindo do arvoredo ou essas frestas atravessadas que pulsam e erguem a imensa barra de
ouro. A umidade da grama fala alguma coisa que diz respeito a mudança e beleza. Deixa de
separar e passa a ser referência de união. Entrando os passos ecoam no vestíbulo espelhado.
Renascimento. Tantas as partes dele morrendo em Aleksándra. Ela pergunta o que ele faz e ele
diz. Trabalho em uma gráfica. Como o patrão em depressão pelo recente divórcio disse que
procurasse um outro emprego na verdade não está trabalhando.

Ele a abraça com seus olhos com tal intensidade que a sente estremecer. Está de costas à
janela e ali bate o seu coração ligado à realidade apenas por meio daquele corpo. Vozes. De
onde? Se indagar de si mesmo dirá que os pais dela não estão em casa. Que são empregados na
cozinha. Quarto diáfano azulado pelo filtro de cetim. Ao lado da janela esperando alguém
cansado como ele, uma cadeira de balanço de madeira nobre; na mesinha de tripé duas xícaras de
chá e um bule sobre a toalha branca de crochê. Um vaso de flores multicoloridas. Caminhando
próxima ela marca o tapete com suaves círculos. Adianta-se até o peitoril onde findam os taques
revestidos e os músculos das pernas se colocam em descanso.

Um templo. Outro mundo. Seu perfume impregna a contemplação. Ela apalpa o viola o
sobre a cama, encostado à parede. Viração vespertina. Tremula o cetim. Será feliz? As maiores
questões da vida e do universo estão contidas nessa resposta. Ela pega o violão e experimenta as
cordas. Sou feliz quando toco. Quer ajoelhar-se diante dela e abraçar seus joelhos remido na
passagem de mundos. Beijar-lhe os pés. Lenta língua ao longo das pernas. Beijá-la toda: no meio
dos seios, no meio do ventre, em todos os lugares. Ele vê o infinito. Escuta o além. Ela geme no
oficium de Preisner.

Distraída pelos sons que executa ela permite que ele a contemple. Um colo tão branco.
Disse que era uma família de artistas. Um pintor e um escritor e a mãe pianista. Saberão algo?
Não encontrará o essencial em uma biblioteca. Nem em Mozart. Mas aqui há alguma coisa além.
Seios cuja engenhosa redondeza o próprio Deus será incapaz de recriar. Tremores de vestido à
aragem nas cortinas. Limite do tecido na coxa levemente pressionada onde repousa o
instrumento. Virginal melodia de apetência. Quando ela se inclina sua sombra alcança os pés de
Raphael. Subindo ao ponto.

Do lado de lá da cortina o que se vê é ainda Aleksándra distraída com a música.


Concentrada na música. De perfil inclinada para o lado. A seus pés alguém a venera com língua
e dedos. Solfejos no íngreme roseiral. A proximidade sugerida é a divina. Ele não lembra se
falou sobre amor. Decerto não. O som da voz enche o quarto multiplicando-se pelas paredes.
Permeando os objetos em que os olhos pousavam. O som da rua invadiu o quarto violentamente
quando ele acabara de descer uma das alças. Havia chegado à janela.

Do parapeito dava para ver a rua e Aleksándra. Olhares se cruzam em região de


silenciosos pactos e desejos sublimados. Ele desvia o olhar para a azáfama lá embaixo. Ela sorri
e inspira e instila e capta e acolhe o sentimento. Mulheres aproveitam a temperatura para sair às
compras, matizando as ruas de creme e cinza e azul-escuro. As que voltam, de braços cruzados e
ombros encolhidos, lamentam não terem previsto o frio, em pensamentos de lã e saias de
gabardine e blusas de elegância espessa. Na galeria, frutas expostas convidam ao suco.
Aleksándra diante dele deliciosa e desejável como no ônibus. Últimas nuvens brancas dum céu
róseo caminham negras no jardim sobre a grama úmida.

Ao lado da loja de roupas, bares e farmácias; diante da livraria, seringas descartáveis;


parado à porta do cinema o amante cujo nome a mulher lá dentro se esqueceu. Na loja de discos
cheia de rostos célebres, Aleksándra ainda cantava a seu lado. Está decidido a declarar a
sinceridade de seus sentimentos. Antes que possa começar, ela pergunta se quer tomar um
lanche. É claro. Dirige-se à porta do quarto e pede que ele espere. Irá à cozinha um minuto.

Instantes sozinho no santuário sentado à beira da cama onde ela estava sentada. O
perfume exala promessas. Movimentos do tempo e sorriso agradecido. Formas ainda ocultas.
Quando volta e de novo fixa os olhos nos olhos dela ele percebe que ela havia chorado enquanto
ela pede que ele vá, por favor, buscar café e pão. É logo ali em frente, se pudesse fazer essa
gentileza.

Do que está falando? O que não faria por ela?

Deixou-o na porta. O elevador atendeu o movimento do dedo como um animal


doméstico se ergue a um chamado. A respiração e os cabos se misturam às indagações e o
desejo flutua serenamente nas pausas. Obscuridade do corredor. A rua. Novos caminhos. A
música convertida nos sons do trânsito e nos gritos dos camelôs. Despertar de sonho. Mesmo
triste ele se mantém em paz e pensa que talvez o amor seja a harmonia e o estar ao lado em
silêncio e o sexo o horário de almoço: mais que objetivos carnais; menos que ideais românticos.

Junto ao balcão a flama atravessa mundos que refletem nos olhos temível encanto e fere
com um sentido preciso que ignora a calma inútil do cotidiano sem perigos. Jovem adorável!
Mesmo escravo de insegurança mórbida ainda assim ele aprende porque o medo é matéria prima
de uma longa e doce canção. A balconista surge e com ela uma sofreada emoção. Quase uma
menina. De tranças. Evidente a saudade: almoço de domingo com família reunida. Viveu isso
também. Os prédios em chama dourada espelham a rua em que a noite se avizinha. A fraqueza
dá idéia de desmaio.

— Deseja alguma coisa?

Pede os pães e o queijo. Trabalhadeira. Admira moças assim. Mas Aleksándra — o que
faz além de estudar e tocar? Quando perguntar saberá que ela tem faz um trabalho voluntário
com cegos e quando ele responder a mesma pergunta ela saberá que trabalha com Pedro. Sério?
O irmão de Pabloe cunhado de Alice? Por enquanto olha para a janela e quase chora. Devo me
recompor porque se continuar um adolescente apaixonado terei o que está reservado aos
adolescentes apaixonados. Devem se perder as questões sem solução e as coincidências no
aroma de pão quente à luz do total da despesa.

De volta nas vitrines molhadas de crepúsculo e nos cartazes de filmes e nos livros e nas
flores da praça. Impregna-se em seu caminhar a primeira estrela cuja majestade solitária povoa
uma folha caída na calçada. Na sala a mesa está posta e Aleksándra sentada em sua tristeza em
meio à beleza de que não pode fugir. A respiração suave no decote. Olha para ele ao entrar como
o combinado, sem bater. Como se, mais que um pequenino acordo, fosse um hábito. Com ele
pelo resto da vida o juízo desse olhar. Razão para levantar todos os dias. O sinal. Não tem
motivos para chorar.

O sofá junto à janela será um local propício. Servidos pela governanta. Pernas se tocam
casualmente. Ela fala algo sobre o mercado de dublagem. Deve ser algo perspicaz mas ele não
ouve porque há dedos vitoriosos. Limites e divisas. Sombras e coxas e cabelos. Calor. Os dedos
que nele se cravavam aparecem num gesto amplo na nuvem do café. Unhas inocentes. A nuvem
se dissipa e Aleksándra aparece.

A dublagem exige mais do artista. Só a voz com para se expressar. Respondeu ele que
infelizmente, como ela mesma testemunhara, o professor não parecia insatisfeito com seu não-
reconhecimento muito bem pago. Afinal não é o que nós próprios buscamos? Mal acabou de
falar, pensou que tinha sido grosseiro. Nunca sei o que fazer nessas horas. Tentar consertar pode
ser sempre pior. É verdade — diz ela. Tantos seriados e tantos canais de filmes na TV paga
tornaram a dublagem antes de tudo o dinheiro que move a mídia. Dinheiro. Não há arte na mídia,
não mais — é o que ela está dizendo. Estalar crocante na boca. Queijo com gosto de infância.
Inocência resgatada. Em que ela estará pensando? Com certeza me superestima e não sei se isso
é bom mas sei que me leva longe ao meu prazer idealizado como as bandeiras falam das virtudes
que os países não têm e todavia esse status das bandeiras são a representação dos países. Talvez
eu tenha um pouco dessa que ele pensa que sou e poderei assim continuar sonhando em ser
confortada e mimada e depois disso não o rejeitarei como é o costume mas usufruirei também do
amor quando nossos dedos se entrelaçarem no primeiro beijo. É que não existem mais arte nos
dias que correm. Apenas o negócio da arte. Bem, não é uma questão nova. De fato — ratificou
após passar o guardanapo — não existia mais o valor subjetivo do exercício artístico. O
mobiliário marrom brilhante próximo do infinito. Quanto pode render a concepção. Veja Van
Gogh. A tecnologia mudou o tipo de reconhecimento hoje. Talvez seja uma coisa boa. Viver da
arte é mais ou menos a mesma deturpação porque a arte deve ser motivação de subsistência em
si, de sobrevivência, à parte da questão financeira. É uma pena — responde ela — gostaria que
não fosse uma regra sem exceção. Eu lhe mostrarei o meu amor. A cama casta e fecunda. À
vontade enfim em aromas de colcha. Ela reapareceu trazendo na mão direita algo parecido com
uma coleira que colocou sobre a cômoda.

Mais tarde Raphael saberá que ela havia chorado por causa do filhote de pastor belga
que ganhara em seu aniversário — era o tema da conversa dos empregados quando entraram,
como iria ela reagir — e ele ficará sem saber da reação de Aleksándra diante da sua declaração
de seu amor. Duas semanas mais tarde ela conseguirá uma bolsa para estudar música em Milão e
ele não mais a verá. Quando soube da noticia nos estúdios fulminado saiu da sala e tomou o
mesmo ônibus onde seu amor encontrou campo para se desenvolver ao saírem e passarem aquele
tempo juntos no primeiro dia.

Chegou ao edifício. Silêncio também quando ela o beijou no elevador. Adeus — disse ao
sair. Atrás dela os empregados levavam as malas. Eu te amo — ele disse enfim. Silêncio. Então
me espere. Ele sentiu de novo os seus lábios e dessa vez a trouxe para junto da altivez de sua
paixão. Tema para orações futuras na ausência dela.

Alguém a chamou do lado de fora do prédio. Tenho de ir — disse ela. Você vai me
esperar?

Duas lágrimas rondam os olhos dele nos momentos em que olha o homem que ousara
pronunciar com tal desembaraço o nome com que somente ele devia privar de intimidade. Era o
pai dela. Raphael responde sua pergunta com um beijo ambíguo entre o azul de seus olhos
também prestes a se molharem. Um pastor belga está ganindo de dor.

Ele se voltou e deu com a luz forte do dia se irradiando por tudo. A opressão natural ante
tanta luminosidade deu lugar a um elemento de paz. Desejo de vida restituído a seu mundo desde
que ela emprestou a luz de seu olhar a cada nuança que o cercava. Todas as coisas renascem. O
desemprego passa a ser um problema que pede solução rápida não mais motivo de depressão. Os
conhecidos acharão sua mudança inacreditável. Seguiria em seu caminho. Haverá um abrigo da
noite fria. Haverá trabalho e ele será a pessoa indicada. Uma luz no jardim bruxuleava após a
partida de Aleksándra e dali se vislumbravam os aposentos da casa que iria comprar no bairro
preferido de Aleksándra onde a névoa envolvia o prédio do estúdio de dublagem quando saíam
da aula mais tarde. Tudo fora pensado. Inclusive a localização próxima aos melhores cinemas da
cidade — caótica megalópole a que não seria permitido englobar o destino deles num outro,
coletivo, próprio dos novos tempos. Se uniriam e se desconectariam. Porque ele a amava e ela
haveria de o amar tanto também. Sim. Eu te esperarei.

Pedro pede que Raphael abra a gráfica. Precisa fazer um pagamento. Caminhar. Estar
entre as pessoas. Tentar se adaptar. Como essa sombra se adapta ao sol e disserta sobre a hora. À
sua esquerda mistura-se ao trânsito. Some entre as árvores da praça. Um banco envelhecido. Ele
senta. Olha a foto no celular. Que chance havia de salvar seu casamento? Se Sonja quisesse. A
cada dia fica mais evidente que não quer. Ao olhar o rosto de medo e sofrimento vê que a jovem
não percebe sua imponente beleza mais que bela porque não apenas bela. Terá sido por isso que
junto dela fracassou? Que vergonha! Mais por sua canalhice do que pelo fracasso. Agora está tão
só e ela decerto terá encontrado alguém. Que seja. Que não tenha acontecido a ela nada de mau.
Quisera encontrá-la. Ser o amigo de que ela precisava. Por que me transtornei àquele ponto por
causa do olhar de um desconhecido que ela provavelmente não correspondeu? Ela não precisava
do carro nem da vida que poderia lhe oferecer e não ofereceria mas de uma amizade que
tampouco ofereceu. Eu só preciso de você — pensaria Alice ainda por muito tempo e mais ainda
ao ser apresentada por Savone ao filho no velório de Pablo.

A mulher do balcão onde ficavam as chaves dos armários vê o casal perfeito quando
eles saem do café. Agora já não tem certeza. É o mesmo rapaz? É o mesmo tipo. Mas não tem
certeza. Esse de hoje tem um olhar mais franco. Um dia ela viu a menina com Alice e seu pai e
pensou que era a mãe dela, como todos pensam. Formavam mesmo um casal muito lindo — diz
Elisuki. Ele vivia repetindo isso desde pequeno quando ia brincar na casa da amiga. Agora pelo
jeito vão brincar ainda no apartamento que ela herdou da avó, onde mora com Alice. Ela gostava
de pensar nisso realmente como brincar. Não queria como suas amigas queimar antigas etapas
que passam pelo primeiro olhar e as mãos dadas. Rumores e visões que de súbito se descortinam
fazem parte de um caminho inocente iniciado quando ouviu os pais do outro lado da porta e não
fazia idéia do que estavam fazendo. Que ingenuidade! que paz! que agradável agitação! Um
achocolatado direto da caixinha. Quando passam pelo mercado, a mulher no caixa olha e sussurra
algo para o marido.

As aves cujo canto lembra um mantra são as de que Bianca mais gosta. Evocam
concentração e disciplina e paciência — virtudes que tão dispersa persegue. Essa que chilreia
agora ela não conhece. Assim que ouviu não gostou. Sofisticada sonoridade sinuosa em busca de
novas oitavas procura seu máximo e não usufrui do mínimo alcançado.

Ela está com Elisuki —está sempre com ele. O mundo é outro quando estão juntos, há
uma aspiração de vida melhor e mais árdua. O sol se põe no céu próximo e no remoto trovão há
um presságio adicional. Elisuki está calado. Não quer mais falar sobre o assunto. É desgastante.
Arfam e os pés agora suados estavam enfim aquecidos dentro dos tênis. Aí estão eles por toda a
parte, os normais, fazendo planos e se dando bem. Está esfriando. Você vai para casa? Um
sorriso em resposta. Quando voltar ali Bianca lembrará. São o lar um do outro. Suplica. Não me
abandone. No canto dos pássaros também o presságio. Ser amada tem um preço. Não irá decidir
agora mas apenas manter esse contato com o verde até a saída. Pensará em alguma coisa. De um
modo ou de outro todas as coisas passarão. Não tem certeza de nada mas vale a pena seguir o
caminho. Está escrito no dia vacilante entre os prédios. Chegaram. Ele prossegue.

Deitada de lado Alice ressonava e agora escuta. Pedro chegou andando devagar tocando
sua própria foto emoldurada na parede cuja cor é incomum e produz um som igualmente raro e
contínuo como se devolvesse ao apartamento o que ouvia do resto do prédio. Por instantes ela
cochilou. Passos. Respiração. Toques. Correspondências fugidias de acordo com os movimentos
no quarto reduzidas ao sono tênue. Num dos intervalos Alice acordará. Talvez acordasse
espontaneamente mas decerto o sino ajudou. Seis horas. Demorei menos de vinte minutos —
pensou ele. Um raio enviesado perpassou morno o tecido entre a abertura das cortinas. Violáceo
agora o quarto. Você veio — ela disse.

— Como poderia não vir?

— Obrigado.

— Você está doente?

— Pareço doente?

Outra vez o sino tocou. Vibrava em sua cabeça projetando a enxaqueca para o dia. Nada.
Não é nada. Um pouco de dor de cabeça. Não está tomando analgésico? Deixara desde que teve
umas crises estranhas. Um suor gelado gerando insuportável calor. Antes que piore precisa falar.
Pedro... Chegou a escrever uma carta. Não enviou.

Ele diz que sabia. Que a conhecia e ela não seria capaz. Mas ele teria merecido. Parece
um sonho. Com a morte do irmão e da mulher, ainda que não estivessem felizes (antes culpados),
respiravam juntos. Eram livres. Se abraçaram e se olharam nos olhos. Vamos resistir. Vamos
começar uma vida em comum. Vamos ao centro ver se aquele apartamento ainda não foi
alugado.

Estava propondo que vivessem no apartamento do primeiro encontro?

A praia pareceu mais brilhante mesmo sem sol. Dançaram molhando os pés e se beijaram
ao som das ondas. Teriam uma vida. Seria curta mas restariam as lembranças. Alice não fará
porém de uma menininha a sua vida, filha de quem fosse. Não iria de um a outro extremo. Olhou
para a menina. Não estou te passando essa carga, meu amor. Vive tua vida.

O que acontece na imaginação tem que relação com a vida real? Criar é quase recriar a
vida. É a própria vida essa criação. Quando aos 18 anos eu queria casar com uma menina legal a
quem fosse fiel e leal, por exemplo, o quanto havia de sonho? Muito decerto, pois jamais
encontrei tal menina e a bem da verdade nunca fui um menino assim. O tempo passou e talvez eu
tenha me aproximado daquele ideal. Bem, então ficamos assim, pensei. Atingi um objetivo que
não faz o menor sentido. Nem era totalmente isso. Uma das coisas era a partilha desses mundos
neste mundo. Não era idealizada a emoção que senti ao ler sua primeira mensagem, nem tinha
qualquer relação por mais vaga que fosse com isso a que chamam amor, mas tocou algum nervo
desse outro ser, desse tal que não vive no mundo e portanto em tese não deveria ser atingido pelo
que nele acontece. Então por que me afetou tanto? Não sei. Posso dizer de coração aberto e com
toda sinceridade que jamais tive — nem tenho — porque não posso, nem devo — de que mundo
são esses verbos? — jamais tive nenhum pensamento inadequado.

Tudo ficaria por aí caso não acontecessem imprevistos — isso de que nem um mundo
nem outro estão livres. Quando houve signos visíveis de uma atração, a própria realidade se
encarregou de conceder um sintoma semelhante, como se harmonizasse desejos inconciliáveis. O
que é isso? Um terceiro mundo de que a dialética é reflexo — da tese e antítese nasce a nova
situação que deveria substituir, superando, as anteriores? Estou velho na vida real. Acabou o
tempo de tecer sonhos e está começando o de consumar projetos começados. Mas quando
procurava fincar o pé nessa realidade estável, voltaram sonhos dos vinte anos, sem qualquer
relação de minha vida hoje, sem sequer um embasamento por vago na vida real, que merece toda
minha honestidade — mas que honestidade pode ser se não me reconheço em mim mesmo, nesse
eu estabilizado e certinho, mas naquele outro dos sonhos, naquele do terceiro mundo que nasceu
da explosão entre os dois primeiros?

É muita dor. Um impasse. Como se houvesse realmente dois em mim e não seja isso
apenas uma maneira de falar. A vista da casa real, do trabalho real, do livro real (que é feito de
não-realidades mas ainda baseadas nessa realidade), consiste de novo dum sofrimento suportável
porque baseado apenas nessa vida que, por mais banal que seja, ainda é que tenho e decerto em
alguma medida também amo; porque distante desses sonhos que não me contentava em ter mas
queria trazer para minha pobre realidade. Não há consolo possível porque não há razão de dor.
Ou a razão está numa outra dimensão a quem não tenho mais acesso. Não há nada contra nesta
dimensão e a outra, a terceira, só existiria da negação da realidade que não há mais. Uma vez
você falou de um alívio por meio de reavivar uma lembrança mas que só durará um certo tempo
(citando como exemplo a passagem da Liberdade é azul quando ele diz que a viu portanto agora
pode suportar mais um tempo de sua ausência. Espero fazer melhor. Espero lembrar duma vez
por todas com um prazer auto-renovável mesmo na ausência jamais presença. Preciso aceitar isso
antes de qualquer outra coisa: não havendo presença haverá aquele mundo sem acesso pelos
meios de sempre. Haverá sonho e liberdade para viver a única vida. Tem uma passagem de que
gosto muito na Insustentável leveza de ser (não sei se está no romance): sobre ficar com Juliete
Binoche ou Lena Olin, Daniel Day-lewis responde: Se eu tivesse duas vidas, poderia tomar uma
decisão em cada uma delas e depois comparar. Como não tenho, completo eu, tomou uma
decisão e consumou-a. Porque no fundo é isso: seja lá o que a gente decida, decidir mesmo, ir
adiante, as últimas conseqüências.

Pensarei na decisão que não tomei porque a outra vida que tinha não era vida. E claro
que pensarei na pele e nos olhos, nos lábios e na voz, nas conversas e nos silêncios, e sobretudo
no que, nesse caso, não precisaria ser aliviado uma vez a cada determinado período de tempo,
porque o tempo em comum não é dividido ou pelo menos não deveria ser ou pelo menos nos
sonhos daquele menino de vinte anos que naturalmente não podem ser os meus. Quem sabe para
isso eu tenha existido em sua vida - a irreal, porque na normal amanhã você será uma escritora
(ou o que seja) de sucesso, realizada, e provavelmente lembrando com certo sentimento de
menosprezo ter se permitido uma vida que não a única. Quem sabe não. E então me
compreenderá ao viver a mesma circunstância.

Lá fora a chuva murmurava. Mal tocava o vidro, como alguém se constrange em


conhecer segredos alheios. O senhor Pöbel não rebate as acusações de que assediava a
empregada. Pacientemente esperava que a mulher se acalmasse e então ele pudesse explicar. O
problema é que ela não se acalmava. Emendando uma acusação na outra e a maioria nada tinha a
ver com assédio. Ninguém ousaria apostar naquele relacionamento porém todos foram à
cerimônia cheios de palavras boas. O casamento é importante mesmo no novo milênio. Tenho de
casar — pensava Martha antes de conhecer Darken e se apaixonar de fato. Donde — pensava ele
— não fazia o menor sentido as suas reclamações. Inclusive quanto a ser mulherengo pois o
conheceu. Em que queria converter aquele por quem um dia se apaixonou? Ele esperou
pacientemente a oportunidade de falar de Alice. Talvez não tenha sido boa idéia a franqueza.
Numa conta simples a mulher constatou a diferença de idade entre eles e portanto na época ela
era menor e ele um homem feito. Isso é crime, meu Deus, não poderia jamais imaginar que tenho
dormido toda a minha vida do lado de um pedófilo nojento! Darken respondeu que amava Alice
sinceramente na época. Amava-a de verdade. Eu sei exatamente o que você amava nela! —
retrucou a mulher. Por alguns instantes ele se calou e hesitou em seguir contando a história de
Alice e vá saber por que se manteve na disposição de contar. O fato é que contou. O rosto de
Martha se transformava a cada frase como várias máscaras caindo conforme as novas revelações
até chegar à última, uma máscara cinzenta, imponderável — camada original de uma
perplexidade desiludida, a desilusão em estado puro — um estado em que se transita do que se
espera ao que essa esperança refuta e de repente sequer se sabe dizer qual era a esperança. Ali
está ele agora olhando pela janela sem nada ver o coração disparado desalentado porque tudo o
que queria era ter paz com a mulher e não conseguia não importava o que fizesse não conseguia
e a chuva ali ainda como cúmplice de sua decepção num murmúrio, se tanto, rabiscando o vidro
da janela.

Cheiro de armários e de livros e agasalhos e jovens de banho tomado e jovens suados de


fim de tarde. Nesse cenário. Pesquisas e provas, trimestres e descompromisso com a realidade. O
vulto de Alice na voz da atendente. O que ouvia batia com o que a colega de trabalho um dia lhe
contara. Então ela soube ou talvez tenha imaginado tão intensamente que tudo assumiu ares de
verdade. Alice era a moça que chegara do interior para procurar trabalho e logo no primeiro dia
encontrou o rapaz casado e por ele se apaixonou apesar do sexo não consumado, por sabedoria
inerente a certas mulheres: um instinto de futuro que adiante terá sua recompensa.

Mas ela não sabia — ninguém sabia exceto a enfermeira que deveria acompanhar Pedro
ao estrangeiro. Rasgo de generosidade ciente de que estava condenado e a filha estaria melhor
com Alice. Que Alice estaria salva de todos os seus males materiais e que poderia a partir daí ser
enfim ela mesma. A partir do momento em que fosse a responsável por Bianca, o que Sonja a
cada dia deixava transparecer que não seria. O que nem ele próprio em seu delírio poderia supor
é que aquele vôo teria seu nome na lista de passageiros mas não sua presença na poltrona do
avião.
Como o descobrira ali?

Ele mesmo dissera que esse seria o lugar deles.

Mas se passaram dois anos e para todos efeitos estava morto.

Por que fez isso?

Para ela ter um lugar como sempre sonhou. Para que pudesse escrever e não precisasse se
submeter a humilhações.

Mas não podia saber que o avião ia cair.

Não sabia. Apropriou-se do momento. De qualquer modo estava praticamente morto


mesmo. Nunca quisera fazer tratamento no exterior. O único tratamento que precisava era interior
e esse Alice providenciara para ele.

— É uma história absolutamente absurda — disse o rapaz para Bianca. — Então você
fez o caminho inverso. Primeiro foi órfã de pai e depois teve um...

Pensei que jamais seguraria sua mão novamente — pensou Alice na cadeira do café. É
como se eu estivesse redescobrindo reinventando você. Foi cruel — pensou ele — conhecer Alice
naquelas condições. Ela menor de idade e ele casado. O tapa deveria arrefecer e não exaltar o
amor que ela começava a sentir. Ela não se comoveu ao escutar. Pela primeira vez na vida teve
raiva de Pedro. Ali dois anos depois de sua morte diante dele ressuscitado, sentiu muita raiva.

Epílogo

A rua submergiu na névoa. Despertar assustado. Um latido. Um cão dormindo. Passou.


Tudo passa rápido. 14 de junho de 2013. Cheiro de chuva. O olhar que se ergue encontra a
abertura. Um pingo. Roupas que se pegam à pele. Dores na região lombar. Um homem sem
sombra. Falta pouco. Uma vez quando criança. Lembra dessa fábrica. Precisa arrumar as coisas:
o terminal fica perto. Hei. A outra se assusta imperceptivelmente com o cutucão. Estamos
chegando. Não diria que é uma amiga. Uma conhecida. Companheira de viagem. O trânsito
carregado como sempre. Cartazes de um lado e do outro. Do fundo espelhado da armação feita de
luz ela se dá conta do prisma das coisas pelo qual a outra via. Nuvens vivas. Calor de braços
encostados como um sol particular. Ela quente se solta e não cai apenas porque se apega com não
mais que um toque dos lábios grossos entre olhos que ela não podia ver o quão perdidos e
penitentes. As maçãs duras e rosadas de seu rosto pálido se destacando na tarde e em seguida seu
nariz largo ligeiramente se achatando contra a maça apergaminhada do rosto dele e confundindo a
troca com a atmosfera e as reações metabólicas. Os lábios tocando depois os olhos que agora em
mínimos relances vê e se compadece pensando como são no fundo tristes, como são tristes. Os
sons dos lábios se aproximam o atual do próximo como uma menina guiando seu pônei e ela
aperta a gola levantada da jaqueta dele como quem se agarra numa prancha no mar em que se
sentia afogar e os lábios chegam ao pescoço dele e retornam pelo mesmo caminho e se unem
novamente aos dele e os pássaros se misturam agora com a respiração ofegante primeiro e depois
aliviada num suspiro. Demorou em distinguir o desenho movente dos lábios da outra mal
entendendo que o movimento das pessoas e bagagens atrás delas confirmava o som que a tirara
de um mundo díspar. Alguém abre a divisória e fala com o motorista. Aos sacolejos o ônibus
encosta e o mundo pára no cheiro do outro corpo. Está feliz e cansada. Ansiosa. Outro cachorro
está latindo mas mal dá pra ouvir por causa do motor. O azul desce um pouco e confronta os
telhados. O meio-dia a deixava deprimida. Tanta luz. Agora não. A vida não a deixará e talvez
algo mais que resistência.

- Você vai?

- Sim preciso claro.

- Posso esperar?

— Se não for incômodo.

Longe disso.

As casas passam lentamente. Marcha para a última curva. Dor antecipada pelo
afastamento inevitável da mornura do outro corpo. Fique. Venha comigo. Alice não pode. Então
o muro quase roçou na lataria. A pichação flutuava e em cada uma lia as próprias emoções.

- Você é tão bonita — disse Sonja. Um ardil para não ser esquecida.

Abraçaram-se no ecoar dos passos pelo corredor em direção à porta aberta.


As luzes do começo da tarde misturadas aos movimentos do terminal assumiram formas
oníricas como aquelas de onde Alice vinha. Tinha chegado. Não desceu logo por causa do medo
maior que o desejo mas havia o prazer e o tentar prolongá-lo. Algo no ar a preenche de intensa
agitação apesar de ainda sonolenta. A vigília e o sono. Não havia culpados — pensou, esperando
que houvesse. Alguém a quem pudesse responsabilizar pela decisão de deixar a casa à procura de
trabalho noutra cidade. Não precisava desse tipo de estresse tão cedo na vida. Mas não havia
culpados. Sua existência era única e ela era responsável por tudo. Súbito sentiu o peso
insuportável da liberdade.

FIM

©2001,2006 Ricardo de Almeida Rocha

ricardrbrsp@gmail.com

Copyright by Ricardo Rocha

Texto protegido pela Lei de Propriedade Intelectual

No. 9.610 de 19 de fevereiro de 1998

Versão para eBook

Scribd.com

Issuui.com

Bookness.com

__________________

Junho 2001

eBooksBrasil

Versões para pdf e eBookLibris abril 2006

eBookLibris
© 2006 eBooksBrasil.org

@ 2010 Ricardo de Almeida Rocha

You might also like