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EDITORA UNICENTRO
Mário Takao Inoue, Beatriz Anselmo Olinto, Carlos de Bortoli, Hélio Sochodolak,
Ivan de Souza Dutra, Jeanette Beber de Souza, Jorge Luiz Favaro,
Luiz Gilberto Bertotti, Maria José de Paula Castanho,
Márcio Ronaldo Santos Fernandes, Maria Regiane Trincaus,
Mauricio Rigo, Raquel Dorigan de Matos, Rosanna Rita Silva,
Ruth Rieth Leonhardt, Sidnei Osmar Jadoski.
PARANÁ
www.unicentro.br
RICARDO ALEXANDRE FERREIRA
REVISÃO TEXTUAL
Vanessa Moro Kukul
EDITORA UNICENTRO
Catalogação na Publicação
Biblioteca Central – UNICENTRO
Bibliografia
CDD 981
Prefácio 07
Introdução 11
Cultura Africana? 15
Cultura Afro-brasileira? 41
Cidadania Escravizada? 85
Considerações finais 97
Bibliografia 101
Anexo I 109
Anexo II 111
8
Ricardo Alexandre Ferreira apresenta ótimos
questionamentos sem deixar de apontar caminhos para que
se possa reconstituir a Africanidade de nossa história. Seja
através da recuperação da própria África, seja a partir da
problematização das identidades afro-brasileiras, a intenção
desse livro também se efetiva no fomento à pesquisa
acadêmica sobre os assuntos discutidos. O próprio autor
segue orientando novas pesquisas nesse campo,
demonstrando como o tema está longe de se esgotar e
apresenta constante renovação.
Fabio Pontarolo
Novembro/2010
9
INTRODUÇÃO
“Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e
particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura
Afro-Brasileira.”
(Art. 26-A, Lei 10.649 de 09 de janeiro de 2003)
12
dever de trabalharmos as questões étnico-raciais como
conteúdos fundamentais do processo de formação para a
cidadania (Ver Anexos II e III, ao final do livro).
Contudo, há ainda um longo caminho a trilhar.
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (IBGE, 2000), publicados pelo Ministério da
Educação no Manual Operacional da Rede de Educação
para a Diversidade – grupo de instituições de ensino
superior dedicado à formação presencial e semipresencial
de professores, à produção de materiais didáticos e ao
desenvolvimento de centros de pesquisa na área da
educação para a diversidade –, apesar da significativa
ampliação do acesso à educação pela população brasileira
em geral no século XX, a diferença de 2,3 anos a mais, em
média, de tempo de escolaridade dos jovens brancos sobre
o tempo de escolaridade dos jovens negros é a mesma há
pelo menos três gerações.
O texto que o leitor tem em mãos pretende abordar
algumas expressões que tendem a se tornar cada vez mais
recorrentes no cotidiano das salas de aula de História do
Brasil. Ao lançar as questões: “Cultura africana?”, “Cultura
afro-brasileira?” e “Cidadania escravizada?”, o presente
livro pretende problematizar alguns pontos úteis à formação
do profissional do campo da História, no que diz respeito ao
debate acerca da construção de identidades afro-brasileiras
na vigência do escravismo moderno. Ou seja, a partir da
leitura da bibliografia especializada, apontam-se aspectos
de nossa constituição histórica, principalmente no período
compreendido entre os séculos XVI e XIX, que tocam fundo
o tema das questões étnico-raciais no Brasil contemporâneo,
mas que nem sempre estamos dispostos a debater.
Este livro não surgiu da convicção em um saber.
Antes, é o fruto da desconfiança sobre ele. Da vontade de
desnaturalizá-lo. De descrever os jogos e regras que lhe
constituem. De submetê-lo ao tempo.
13
CAPÍTULO I
Cultura africana?
16
denominador comum, “o africano”? Por motivos
semelhantes, a outra parte da expressão “história e cultura
afro-brasileira”, que se refere ao conteúdo da legislação citada
no início deste capítulo, também fica sem resposta. Existe uma
história africana? Não seriam ambos, “cultura” e “história”,
conceitos de matriz européia? Teriam eles surgido para
designar os africanos a partir de um olhar externo?
Neste capítulo, a partir das questões sumariamente
apontadas no debate acima, concentraremos nossos esforços
na investigação de algumas possibilidades de estudo do
continente africano que permitam o desenvolvimento de
atividades úteis ao professor de História na construção de
debates a respeito da diversidade cultural africana.
17
Divisão política da África (atual)
18
principalmente túmulos reais (as pirâmides) e estátuas
representativas de divindades e pinturas. Certamente, para
além do Egito, não nos esqueceríamos de mencionar a
pujança de outros grandes reinos africanos: O Reino do
Daomé, os impérios do Mali, Gana, Songai, Axante, Oió,
dentre outros.
Provavelmente chamaria a nossa atenção saber que
quase dez séculos antes dos portugueses, predominantemente
cristãos, aportarem pela primeira vez (por volta de 1430) na
Costa Africana do Atlântico já havia, no continente, povos que
seguiam os ensinamentos de Jesus Cristo. Embora desde o ano
cem houvesse cristãos em Alexandria e no Egito, no “século VI,
alguns principados da Núbia e o Reino da Etiópia eram os únicos
estados cristãos fora da área de influência do Império Romano”
(SOUZA, 2006, p. 14), pois se ligavam diretamente à região da
Palestina por meio do Egito e pelos portos do Mar Morto. A
região norte do continente, entretanto, acabou por ser mais
significativamente marcada pela religião muçulmana. Coube
aos mercadores muçulmanos – tuaregues, berberes e azenegues
– difundir a religião de Maomé e estabelecer as rotas comerciais
que, através do Saara (deserto cuja extensão chega aos nove
milhões quilômetros quadrados), ligavam o litoral do deserto,
conhecido como Sahel, ao Mar Mediterrâneo, que separa o norte
da África do sul da Europa e de parte da Ásia.
Essas rotas, responsáveis pela difusão de culturas e
produtos, também serviam para o transporte de cativos para
a Europa desde a Antiguidade e mais tarde (séculos XVI até
XIX) tiveram uma importância grande no tráfico de
africanos escravizados (hoje nomeado Diáspora Africana,
pelo conteúdo civilizador do termo, assim construído em
clara analogia com a noção de Diáspora Grega, difusora da
cultura helenística) para as Américas. Ainda no âmbito dos
caminhos que cortam o continente, sem dúvida, não
deixaríamos de destacar a importância de rios como o
Senegal, o Volta, o Gâmbia, o Níger, o Cross, o Congo, o
19
Cuanza, o Zambeze, o Limpopo e tantos outros
viabilizadores das grandes migrações internas ocorridas
durante mais de dois mil e quinhentos anos. Fundamentais à
transposição das áreas mais densas de florestas, os rios
conectavam regiões e culturas, serviam de caminhos para o
transporte produtos e pessoas, escravos e homens livres.
20
18
partilha paulatina de várias áreas do Continente Africano
por Estados europeus (Portugal, Espanha, Inglaterra,
França, Alemanha, Bélgica e Itália) a partir do final dos
oitocentos, por meio de acordos diplomáticos firmados na
Conferência de Berlim de 1885.
Ao tratarmos do século XX, contaríamos os
episódios mais significativos da lenta e penosa devolução de
grande parte do continente aos africanos, então organizados
em membros de Estados Modernos que, por força de
acordos e tratados internacionais, passaram a congregar
tragicamente em seus territórios, como concidadãos (irmãos
de pátria), inimigos de outrora. Do período de
descolonização do continente até os dias atuais seríamos
obrigados a narrar episódios protagonizados por guerras
civis, genocídios, corrupção política, racismo, fome e
epidemias que, juntos, dizimaram milhares de pessoas.
Caminharíamos, certamente, relacionando diversas
iniciativas de organismos internacionais, ligados ou não a
governos, destinadas a combater as mazelas que assolam os
africanos – tentativas de se estabelecer acertos de contas
com a consciência ocidental culpada pelas ações de
gerações anteriores no continente, então encobertas sob o
véu da evangelização e da civilização. Mencionaríamos
desastrosas intervenções armadas, oriundas da América
(principalmente dos Estados Unidos da América) e da
Europa. Ações deflagradas sob o argumento da defesa de
civis inocentes, que, em seu âmago, se atrelavam a
interesses financeiros, à projeção política internacional e ao
combate a ideologias rivais.
Falaríamos da significativa mudança de
representação da África e dos africanos em veículos de
comunicação de massa, tal como o cinema e a literatura, a
partir da virada para o século XXI, quando a África já não
era mais o lugar que o Ocidente necessariamente pretendia
civilizar. Tarzan, Jane e Chita lentamente dão lugar a
21
militantes africanos que lutaram contra a escravidão, o
colonialismo, o comércio de pedras preciosas e o genocídio,
quer a partir do próprio território africano ou de fora dele.
Terminaríamos tratando, com algum pormenor, da frágil
estabilidade social, econômica e política de diversas regiões
do continente, mas, certamente, não colocaríamos um ponto
final em nossa História da África sem comentar as
implicações políticas e econômicas da realização da
primeira Copa do Mundo de Futebol em território africano
no ano de 2010.
A pergunta que segue pode parecer estranha ao leitor,
mas não é. Por que acima escolhi, dentre tantos tempos verbais, o
futuro do pretérito (seria, mencionaríamos, falaríamos,
deteríamos, terminaríamos) para essa narrativa breve sobre
episódios um tanto esparsos e imprecisos da História da África?
Para, tanto quanto possível, dela afastarmo-nos.
Ser dotada de omissões e generalizações
intencionais não é o seu demérito mais significativo. O seu
demérito mais significativo é o perpetuar e o conseqüente
naturalizar de uma prática cara à Historiografia produzida
até, pelo menos, o fim do penúltimo quartel do século
passado (meados da década de 1970), ou seja, contar a
História de qualquer povo, pessoa ou lugar a partir de seus
contatos com a autoproclamada Cultura Ocidental.
Somente muito recentemente – e, é sempre bom
lembrar, por força de Lei – a narrativa sucessiva e linear de fatos
a respeito da história africana (Primeiras sociedades, Reinos,
Impérios, Tribos, Escravidão, Colonialismo, Descolonização...)
começou a ser problematizada nas salas de aula de Geografia,
História, Artes e Literatura no Brasil, com grande aproveito para
a denúncia de generalizações e preconceitos.
Antes disso e, infelizmente, em alguns casos ainda
em nossos dias, a História da África e dos africanos
funcionou como um espelho do Mundo Ocidental. Era como
se estivessem frente a frente o crente e o infiel, o civilizado e
22
o selvagem, o livre e o escravo, o adulto e a criança, o
moderno e o anacrônico, o evoluído e o atrasado. Projetava-
se sobre o continente, principalmente sobre a extensão de
terras localizadas abaixo do Sahel – também nomeada como
África Negra – a noção de infância do Homem. “Antigo regime: denominação
surgida durante a Revolução
O princípio do desenvolvimento dessa idéia foi Francesa para designar o
sistema político e social
possibilitado, ainda no século XVI, com a divulgação na vigente até 1789, isto é: o
Europa da cronística de viagens. Relatos minuciosos regime absolutista, baseado na
monarquia de direito divino; a
elaborados, em geral, por europeus (clérigos, colonos, sociedade de ordens ou
estamental, baseada na noção
funcionários de Estado, artistas, dentre outros) sobre os Novos de privilégio e corporativa; e o
mercantilismo” (FALCON,
Mundos, revelados ao Ocidente pelo advento da navegação de 2004, p. 89).
longa distância. Entretanto, a noção de infância do Homem
ganha respaldo e acabamento no bojo das idéias de conteúdo
radical e subversivo que mais tarde desembocaram na
Revolução Francesa de 1789. O Movimento Iluminista, em Como corolário de um
movimento (o Iluminismo)
sua cruzada contra o ideário do Antigo Regime, adotou, como comprometido com a revolução
social, com a liberdade e com a
uma das hipóteses manejadas na defesa da Liberdade e da igualdade entre os homens,
Igualdade enquanto direitos inalienáveis, a noção de que desenvolveram-se idéias que,
mais tarde, fundamentaram, por
diferente do animal o Homem possuía Razão. Não obstante, afinidade ou oposição, as
modernas teorias raciais dos
apesar de nascer dotado de Razão, o Homem teria oitocentos, as quais
desdobraram-se, por exemplo,
despendido alguns milhares de anos da sua história – das nos debates travados entre
monogenistas (que acreditavam
Tribos Nômades aos Estados Modernos – na evolução de na origem única do homem) e
sua consciência sobre a própria Razão. Esse poligenistas (que defendiam ter
havido, no princípio, diferentes
desenvolvimento – ou seja, a própria evolução da Razão – centros de aparecimento do
homem sobre o globo, fato que
não fora, segundo a mesma hipótese, simultâneo por todo o justificaria a divisão em raças).
Para a compreensão das
globo. Mantiveram-se povos estacionados em distintos correntes de pensamento que, a
partir do Iluminismo, explicam
estágios. Foi esse um dos pressupostos, talvez o mais no século XIX as diferenças e
importante, que sustentou o nascimento das Ciências desigualdades entre os homens
com base na noção de raças
Humanas e Sociais – inclusive a História (em sua versão humanas, recomendo a leitura da
obra O espetáculo das raças, de
ciência), no século XIX e em parte do XX. Lilia Moritz Schwarcz, publicada
em 1993. Um panorama bastante
Mesmo não sendo o único alvo das racionalizações amplo do tema é apresentado
pela autora no capítulo 2: “Uma
modernas sobre o passado do Homem, pois as Américas e os história de ‘diferenças e
arquipélagos do Pacífico também se tornaram objetos desigualdades’: as doutrinas
raciais no século XIX”.
privilegiados de análise, o Continente Africano acabou por
figurar como peça fundamental da principal Teoria da
23
História do Século XIX, elaborada pelo filósofo Georg
Wilhelm Friedrich Hegel. Tive a oportunidade de mencionar
esse aspecto no prefácio de um livro da coleção “História em
construção” (Escrituras da História, de Karina Anhezini):
24
qual previa punições para todos os que
ousassem tornar ao espírito natural, agindo
fora da razão, negando a condição humana
e, por isso, perdendo a liberdade – os
criminosos. O último estágio se separava
efetivamente do primeiro e suplantava a
visão contratualista do Estado. Sem a
possibilidade de retornar ao nível natural –
no qual a infância do homem o mantinha
muito próximo do desenvolvimento cíclico
das plantas e dos animais e por isso distante
da consciência da liberdade –, a história
seria o palco da “elevação dessa liberdade,
ainda particular, à sua pura universalidade, à
consciência de si e ao sentimento de sua
própria espiritualidade”. O espírito humano
chegaria, assim, ao absoluto. Ao fim da
história (Ferreira, 2009b, p. 7, grifo nosso).
25
Apesar de conferir à hipótese da inferioridade africana
lugar privilegiado em sua Teoria da História, Hegel não foi o
primeiro a fazê-lo, nem tão pouco o último. Sem dúvida, sua
posição como grande filósofo da Cultura Ocidental Moderna
conferiu credibilidade a tais afirmações, mas elas já existiam
antes dele. No início do século XIX, trinta anos antes da
publicação da mencionada obra de Hegel, outro grande
filósofo do Ocidente teceu considerações desabonadoras a
respeito dos habitantes da África Negra: “Retomando a
tradição de uma geografia voltada para a antropologia,
[Immanuel] Kant [...] se referia aos africanos do sul do Saara
como ‘homens que cheiram mal’ e têm a pele negra por
‘maldição divina’” (Hernandez, 2005, p. 21).
A História é européia não por tratar apenas do
continente europeu ou mais precisamente de sua porção
ocidental, mas por tratar de todo o mundo conhecido em
função da Europa – de seus modos de vida, de suas
concepções políticas, sociais e econômicas. O exemplo mais
elementar desse evento para nós brasileiros é a noção de
“Descobrimento do Brasil”. A situação, tanto no que se
refere ao Brasil quanto à África, contudo, vem se
modificando. Deter-nos-emos ao caso da África, pois é ela
que ocupa nossa atenção neste capítulo.
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construção dessas outras Histórias da África. A partir da
combinação de registros preservados em arquivos africanos
e europeus foi possível criticar a crença na separação
absoluta das populações que viviam acima e abaixo do
Sahel. Desta forma, a noção de que a chamada África Negra
permaneceu selvagem e “a-histórica”, por ser isolada,
começou a não mais se sustentar. Segundo Hernandez, um
dos pioneiros nesse tipo de estudo foi o historiador e
administrador colonial Maurisse Delafosse, ainda nas
primeiras décadas do século XX, que, a partir da leitura de
manuscritos antigos, identificou a capital do Mali, hoje
próxima à fronteira do atual Mali com a Guiné. Mais tarde,
houve tentativas de escrever histórias pontuais de regiões da
África, tais como a História das populações do Sudão
Central e a História de Bornú, respectivamente publicadas “Apesar do nome, o pan-
africanismo não nasceu na
em 1936 e 1949 por Y. Urvoy (Hernandez, 2005). África, não foi idealizado e
nem dirigido nos primeiros
Os esforços empreendidos para resgatar – expressão anos por africanos. O pan-
africanismo foi idealizado por
típica da luta política – o passado africano, com base em técnicas negros norte-americanos e
negros antilhanos, em 1900,
historiográficas européias, para a busca de elementos com o objetivo de expressar
seu apoio a algumas
constitutivos de uma identidade cultural africana destruída pelo comunidades africanas que
estavam sendo vítimas de
colonialismo, foram empreendidos pela Société Africaine de expropriação de suas terras.
Considerado o pai do pan-
Culture e resultaram na publicação de diversos trabalhos em sua africanismo, W. Burghardt Du
Bois, em 1903, passou a liderar
revista Présence Africaine, responsável, desde 1947, pelo os movimentos negros
americanos. Fazendo a junção
questionamento de diversos preconceitos contra o Continente da defesa cultural e da luta pela
independência política,
Africano. William Edward Burghardt Du Bois foi, dentre os conseguiu mobilizar a vontade
dos africanos e o apoio da
afro-americanos, o maior expoente do pan-africanismo, da luta opinião pública em diversos
países” (Texto de Eduardo de
pelos direitos civis, da tentativa de identificar elementos Freitas, da Equipe do sítio
Brasil Escola. Disponível em:
histórico-culturais específicos da África, da difusão da cultura <http://www.brasilescola.com/
geografia/panafricanismo.htm>
própria da raça negra (Hernandez, 2005). Entretanto, Hernandez . Acesso em: 01 ago. 2010).
enfatiza que foi apenas a partir da década 1960, sob o impacto
dos “nacionalismos independentistas” e com a necessidade de
afirmação da unidade do continente e dos então recém-criados
Estados-nação, que a busca por uma identidade africana levou à
27
sistemática procura por uma abordagem histórica diferente.
Era preciso enfatizar a riqueza e a diversidade histórica e
cultural dos povos africanos.
28
manuscritos inéditos com textos que tratam da África abaixo
do Saara; também na região do Rio Níger, eruditos
sudaneses mantiveram sob sua guarda um número
significativo de documentos úteis à escrita de novas
histórias africanas. Órgãos internacionais também têm
colaborado com esse esforço, a UNESCO (Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), por
exemplo, fundou um centro pesquisas em um dos mais
antigos entrepostos comerciais, encarregado da ligação
comercial e cultural das regiões abaixo e acima do Saara, a
cidade de Tombuctu, para facilitar aos pesquisadores o
acesso a manuscritos ainda inéditos (HERNANDEZ, 2005).
O interesse de historiadores, arqueólogos,
antropólogos e outros pesquisadores engajados com a
quebra de verdades há muito questionadas sobre o
continente africano contribuiu para a obtenção de avanços
no esforço de não só constituir-se uma nova escrita da
História da África mas de obter-se um entendimento mais
multifacetado do que é ser africano.
Embora não se possa simplesmente abrir mão da
cultura européia na tentativa de construir uma interpretação
africana da África, podemos afirmar hoje que o eurocentrismo
naturalizado foi questionado. Cultura não é, ou pelo menos
não deveria ser mais, sinônimo de cultura européia.
A divisão do continente africano em duas partes,
uma menor, a do Saara, mais desenvolvida, porque mais
próxima da Europa e marcada pela cultura letrada dos
muçulmanos; e outra, muito mais extensa, nomeada África
Negra, localizada abaixo do Saara, isolada da parte norte do
continente e, por sua vez, dividida em um sem número de
tribos sem comunicação, também é uma interpretação que
não resiste aos novos estudos, os quais combinam técnicas
da História, da Arqueologia e da Antropologia.
Um dos mais consistentes exemplos de avanço na
compreensão da História africana diz respeito exatamente a
29
esta porção centro-sul, abaixo do Saara, grande fornecedora de
escravos para o cativeiro nas Américas, onde ocorreu um
fantástico processo de migrações e interações culturais
durante mais de dois milênios. Com o auxílio de um diplomata
e grande pesquisador do continente africano, vamos saber um
pouco mais o que é, ou melhor, quem eram os Banto.
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imensa região existam entre trezentas e seiscentas falas
aparentadas. Veremos adiante que foi precisamente a partir
do entendimento dessas falas aparentadas que surgiram as
primeiras teorias a respeito da origem dessa matriz
O texto que segue abaixo,
linguística – o Banto. destacado pelo recuo à
Em todo o Continente Africano, segundo a esquerda, se constitui numa
livre adaptação, realizada com
historiadora Marina de Mello e Souza (2006), predominam fins exclusivamente didáticos,
do box explicativo: “Grupos
quatro grupos linguísticos: lingüísticos” integrante da
obra: SOUZA, Marina de
Mello e. África e Brasil
Afro-Asiático: falado pelos habitantes do africano. São Paulo: Ática,
Saara e do Sahel (Sahel, como já explicamos 2006, p. 21.
acima, era a região conhecida como Litoral
do Deserto do Saara, o seu limite territorial
sul). Este tronco lingüístico é falado por
povos oriundos da mistura entre moradores
locais e levas de migrantes do Oriente Médio
(Azenegues e parte de Tuaregues, Berberes e
Songais). Estes povos e suas línguas
espalharam-se pela costa e pelo interior do
continente, passando pelo rio Nilo e pela
Etiópia, chegando até o Marrocos ou
Magrebe (em Árabe, oeste distante).
31
Níger-Congo: Habitantes da região sul do
Sahel. Povos física e culturalmente muito
diversos dos habitantes do Saara e do Sahel.
Sua economia se adequava às regiões onde
viviam, nas quais predominavam as
savanas, as florestas e muitos rios.
O tronco lingüístico Níger-Congo, por sua
vez, se subdivide em outros cinco:
32
Representações esquemáticas das principais teorias a
respeito da região de origem e da expansão dos
falantes de línguas banto
Fonte:<http://migrationstoriesofnigerianigbo.wordpress.com/2009/1/
25/y-dna-my-dads-dna-migration-story/>. Acesso em: 06 set. 2010.
33
compreender. Um desses grupos teria se estabelecido
próximo da fronteira da Nigéria com o atual Camarões; o
outro grupo, em uma região mais ao Sul, a meio caminho
entre o Atlântico e o Pacífico.
Em razão dos recuados períodos temporais, Costa e
Silva (2006) afirma que a Arqueologia pouco tem contribuído
para a elucidação dos modos de vida desses primeiros falantes
do que seria o protobanto. Entretanto, ao reconstruirmos
teoricamente esse vocabulário, podemos avançar no
conhecimento de sua cultura, ou seja, da maneira como aqueles
primeiros desbravadores da região Centro-Sul do continente
compreendiam e interagiam com o mundo à sua volta:
34
movimento de ocupação pelos falantes de protobanto destas
regiões iniciais até a atual África do Sul, durante quase dois
milênios e meio, valem-se necessariamente da importância
dos rios. Essa hipótese é usada tanto no que se refere à
imprescindibilidade dos rios para a alimentação quanto em
sua função como estradas naturais necessárias à
transposição de imensas áreas de mata mais fechada.
Fonte:
<http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Bantu_expansion.png>.
Acesso em: 06 set. 2010.
35
Apesar de serem povos que enquanto se expandiam
geograficamente praticavam uma agricultura itinerante e o
pastoreio de alguns animais, o que marca o desenvolvimento
dos povos banto é justamente o domínio da metalurgia e da
produção de cerâmica.
36
resistência militar imposta pelos Zulus (povo inserido na
matriz banto) ao domínio inglês, na região da atual África do
Sul no século XIX. O autor, contudo, opta por uma
explicação que combina o uso eventual da força, pois é
inegável que no âmbito das migrações dos falantes de Banto
houve conflitos, com momentos de expansão para áreas
pouco habitadas do próprio continente, além de longos
contatos e mistura com povos locais.
O conjunto de teorias apresentadas por Alberto da
Costa e Silva a respeito da ocupação de povos falantes de
línguas de matriz Banto em uma região tão significativa da
África nos dá uma mostra irrefutável de que seu estudo é
fundamental à compreensão da História do continente e de
seus habitantes.
Entretanto, pela própria natureza da pesquisa,
conduzida à base de construções de estruturas linguísticas
do passado com base em dialetos contemporâneos, ficamos
sem uma imagem geral de como teria sido esse processo
migratório. Como poderia ser o cotidiano das migrações,
das lutas e amalgamações culturais?
Lembremos que nosso diplomata é também poeta e
foi presidente da Academia Brasileira de Letras entre os
anos de 2002 e 2003. Assim, ele nos propõe uma narrativa do
que pode ter sido o cotidiano das migrações dos falantes de
Banto ao ocuparem cerca de um terço de todo o Continente
Africano. Apesar de longa, permito-me transcrevê-la, na
íntegra, abaixo:
37
Faz os cercados para os animais domésticos:
ovelhas, cabras, alguma vez a vaca. Vai
pescar no rio, no riacho, no lago, na lagoa.
Com anzóis e arpões de ferro. Com
armadilhas, redes e puçás. Volta muitas
vezes da caça com grandes animais –
antílopes, búfalos, porcos selvagens – que
mata, graças à lança e à flecha com ponta de
ferro, com menor dificuldade do que os
vizinhos nômades [em geral Coissãs, nas
savanas e Pigmeus, nas florestas].
Estes vigiam os recém-chegados de longe.
Podem, desde logo, demonstrarem aberta
hostilidade contra os que invadem seu
espaço. Dá-se a guerra, na qual geralmente
os bantos impõem a qualidade de suas armas
sobre as dos rivais. Mas a atitude dos nativos
pode ser outra: o abandono do território, a
recusa a qualquer contato com o estrangeiro.
Ou ainda uma outra: aproximam-se, atraídos
pela diferença. Sem se mostrarem, colocam,
em terreno neutro, os seus presentes: mel,
ovos de avestruz, alguma caça. Recebem
outros, de volta. Depois, deixam-se ver.
Estabelecem-se os primeiros e desconfiados
contatos pessoais. Em alguns lugares não
passarão de contatos esporádicos. Noutros,
porém, se amiúdam. Torna-se rotineira a
troca de bens da floresta e da savana pelos
produtos da forja, da roça e do curral.
Formam-se alianças, muitas vezes através
de casamentos. Estabelece-se uma pactada
ou obrigatória cooperação entre os que
possuem o ferro e os que, não sabendo como
fundi-lo, dele passaram a ter necessidade.
Estrutura-se um sistema de clientela, qual o
existente, em nossos dias, entre os pigmeus
de Ituri e os agricultores dos arredores.
As duas comunidades podem permanecer
separadas e culturalmente distintas por
algum tempo. Vão-se apertando, entretanto,
os vínculos de senhorio ou de outras formas
menos precisas de sujeição. O modo de vida
dos produtores de alimentos – cujo número
aumenta muito mais rapidamente que o dos
vizinhos que apenas caçam e recolhem e que
se vêem obrigados a manter estável e
reduzido o tamanho do grupo, pela
38
contracepção, pelo aborto ou pelo
infanticídio – impõe-se na área
compartilhada. Contagia-se, porém, dos
costumes, técnicas e palavras dos locais.
Destes, em um ou outro caso, pode até sair,
como senhor da terra, o futuro chefe da nova
estrutura social que se vai formando com
autóctones e adventícios. Surgem tipos
mestiços, como tantos ao sul da grande
curva do rio Zaire, nos quais o predomínio
das características negras não oculta os
traços pigmeus. Mesmo quando a
assimilação dos grupos nômades se faz
completa, alguma coisa deles resta na
cultura dos sedentários. Assim, ficaram
fortes sinais das línguas coissãs [caçadores
nômades] nos idiomas dos angunís e dos
sotos [pertencentes aos grupos bantos].
Quando o solo começa a mostrar-se menos
fértil ou a caça se torna mais difícil nas
redondezas, o grupo segue diante. E, quando
o número dos que o formam aumenta
demasiadamente ou dentro dele surge a
cizânia, segue adiante dividido. Ao mudar
de paisagem e ao entrar em contato com
culturas diferentes daquelas com que seus
pais, avós ou bisavós haviam cruzado, altera
a alimentação, modifica hábitos, enriquece
o vocabulário e a sintaxe, troca a forma de
alguns objetos e assimila novos símbolos de
fé e de poder. Não se estabelece, porém, em
qualquer parte: deixa as zonas de terras
magras ou de poucas chuvas aos coletores,
aos que permaneceram fiéis aos micrólitos e
à pedra polida, aos que fugiram ao contato,
ao convívio e à assimilação o que explicaria
por que continuaram intocadas pelas
culturas bantas ou abantuzadas, e por muito
tempo, as vastas savanas e as extensas
estepes ressequidas do sul e do sudoeste da
África (SILVA, 2006, p. 226-227).
39
que Alberto da Costa e Silva quer nos mostrar que nada há de
tão diferente, ou exótico, no Continente Africano como
durante muito tempo se acreditou.
A temível África Negra, tida durante décadas como o
terror da civilização por autores racistas das mais variadas
origens, experimentou, segundo a narrativa que acabamos
de ler, um processo de ocupação espacial em nada
excepcional, quando pensamos nas Américas e na própria
Europa. Técnicas mais sofisticadas de manipulação da
natureza em conjunto com amalgamações culturais mais ou
menos violentas levaram alguns grupos a imporem-se sobre
outros, recebendo, uns dos outros, contribuições culturais
significativas. Houve ali uma variação significativa de
culturas capazes de se manterem, ao mesmo tempo,
múltiplas e dotadas de traços comuns. Essa característica foi
fundamental para o estabelecimento de identidades afro-
brasileiras, como estratégias de sobrevivência dos africanos
e seus descentes nos tempos da escravidão moderna. Tema
de nosso próximo capítulo.
40
CAPÍTULO II
Cultura afro-brasileira?
42
e Imunologia da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), Sérgio Pena, e A invenção das raças, escrita pelo
professor de Genética da Universidade de Ferrara (Itália),
Guido Barbujani, e publicada no Brasil em 2007. Ainda
assim, o termo raça é reivindicado por militantes da causa
negra como uma arma contra o preconceito. Testemunho
disso é o excerto que segue, extraído do Parecer 003/2004,
que regulamenta a Lei 10.639/2003.
44
visita que o pesquisador fez a universidades do Rio de
Janeiro. Vejamos a resposta do especialista na história da
escravidão africana:
45
modos de vida, crenças e estratégias de sobrevivência
dos africanos e seus descendentes no Brasil dos tempos
do cativeiro.
46
e moderna tem se tornado bastante considerada entre os
especialistas. De acordo com David Brion Davis, na obra O
problema da escravidão na Cultura Ocidental:
47
lembrar que o encontro do nascimento do capitalismo com a
exploração da mão de obra escrava de origem africana, entre
os séculos XVII e XIX, resultou, sem dúvida, num volume
de utilização do trabalho compulsório sem precedentes na
história da humanidade. Como já ressaltei em obra anterior:
48
milhares de homens e mulheres, para transformá-los em
escravos no Novo Mundo. Nada mais distante dos
resultados das pesquisas realizadas nos últimos vinte ou
trinta anos.
50
simplesmente incentivou o desenvolvimento
da produção e circulação inicial dos cativos na
África. Ali, sua realização incorporava
diversos tipos de elementos interdependentes
(econômicos, sociais, políticos e militares),
constituindo um contexto de interações sem o
qual a demanda americana jamais poderia ser
atendida. A compreensão da dinâmica da oferta
africana obrigará a tomar o tráfico atlântico
como um mecanismo que, além de reproduzir a
força de trabalho na América, também
desempenhava um papel estrutural na África. A
tal conclusão se chega quando se considera um
simples dado: a oferta africana perdurou por
mais de 350 anos, sem que, no fundamental,
fosse necessário que os traficantes europeus e
americanos produzissem diretamente o
escravo, ou seja, que o apresassem ou que o
exigissem como tributo. Aliás, o exemplo
português mostra que quando se tentou, através
de guerras, uma maior produção direta de
escravos, desestabilizaram-se as rotas que
secularmente alimentavam de braços os portos
do Atlântico (FLORENTINO, 1997, p. 100).
51
África e transformado em escravo na América. O mais
comum era o indivíduo tornar-se escravo dentro do
continente africano, em geral, como resultado de derrotas
em guerras. Estima-se que três quartos de todos os escravos
vendidos no tráfico Atlântico eram originários de guerras.
54
enriquecida de um pedaço de carne seca:
150 gamas de charque, abóbora, inhame
etc. Em algumas propriedades maiores, o
alimento era mais rico: angu, canjica, feijão
preto, toicinho ou carne seca, farinha de
mandioca e frutas: laranjas, bananas,
mamão e goiabas. Nas fazendas mais
“Bacalhau: Chicote de
pobres, reduzia-se a feijão, um pouco de
pequeno cabo de couro, a que
farinha de mandioca umedecida, laranjas e se seguia o couro retorcido,
bananas. [...] Havia senhores que terminando em cinco pontas
alimentavam os escravos unicamente com livres. Mas havia ainda
rebenques [“pequenos
feijão cozido, sem nenhum condimento e chicotes de couro, geralmente
em uma só vez por dia. Em algumas em forma de bengala, usados
fazendas, os escravos recebiam mais para tocar montaria”
(Dicionário Houaiss)] de
“bacalhau” nas costas que no ventre. [...] O todos os feitios, até de ramos
alimento era despejado em cuias. De flexíveis de árvores. Os
cócoras, os negros engoliam a comida, castigos de açoites variavam
de intensidade, conforme as
usando colher de pau ou servindo-se dos faltas cometidas e conforme
dedos, à guisa de talher. Meia hora mais as tradições de tolerância ou
tarde, recomeçava o serviço, interrompido a crueldade dos fazendeiros”
uma hora para o café com rapadura. Nos (MOURA, 2004, p. 59).
dias frios ou chuvosos a cachaça substituía
o café. [...] Às quatro horas, jantavam
refeição semelhante à das nove e o trabalho
prosseguia até o escurecer, quando
voltavam à sede da fazenda. Ao cair da
tarde, repetia-se a cena matinal. Reuniam-
se junto à varanda da residência, o
administrador conferia o número de
escravos, procedia à chamada e em algumas
fazendas fazia-se uma breve oração. Mas o
trabalho não cessava aqui. De volta do
campo, dedicavam-se às fainas no terreiro
ou nas casas de engenho, no paiol ou no
engenho de mandioca. À luz de candeeiros,
tochas de taquara, ou lamparinas de óleo de
mamona, preparavam o alimento para o dia
seguinte: a farinha de mandioca, farinha de
milho, o fubá. Debulhavam o milho,
pilavam e torravam o café, cortavam a lenha
e, às vezes, na época da colheita, escolhiam
o café apanhado. O serão durava
invariavelmente até as dez horas, o que
dava a média de trabalho de dezessete horas
por dia. [...] Esse horário era mais ou menos
o mesmo em todas as fazendas. Em alguns
casos, o escravo iniciava a faina diária as
quatro, em outros, às cinco. Aqui, o serão
55
estendia-se até as dez horas, ali prolongava-
se até as onze. Era mais longo nas épocas em
que o serviço aumentava, como por ocasião
da colheita (COSTA, 1998, p. 293-294).
56
pernambucano Gilberto Freyre. Contra a “visão adocicada”
das relações raciais praticadas no Brasil colonial,
alegadamente difundida por Casa-Grande e Senzala,
sociólogos, antropólogos e historiadores, liderados por
Florestan Fernandes, defenderam, em diversas obras, a
noção de que a escravidão no Brasil não só nunca foi
benevolente, como adotou a violência como elemento
estrutural de sua reprodução. Em outras palavras, quanto
mais cruel era o senhor menos o escravo conseguia se Para uma exposição mais
detalhada do conflito
perceber como ser humano e mais eficaz era o cativeiro. interpretativo em torno da mais
famosa obra de Freyre,
Mais tarde essa linha interpretativa seria alcunhada de recomendo a leitura do
Capítulo V de Antropologia
“teoria do escravo-coisa”, pois a coisificação do escravo era Cultural: um itinerário para
o ponto de sustentação da escravidão para estes autores das futuros professores de História,
de minha autoria, que integra a
décadas de 1960 e 1970. coleção “História em
Construção”. Sobre a
A noção de senhores onipotentes na zona rural, historiografia brasileira da
escravidão e suas polêmicas,
presente no texto de Viotti da Costa e muito difundida nos ver também FERREIRA,
Ricardo Alexandre. Senhores
bancos escolares nas últimas três décadas, foi contestada, em de poucos escravos: cativeiro e
grande medida, pelo historiador Stuart B. Schwartz na criminalidade num ambiente
rural, 1830-1888. São Paulo:
principal obra a respeito da escravidão praticada nos engenhos Editora UNESP, 2005,
especialmente a Introdução.
de açúcar do Brasil colonial, Segredos Internos, de 1988.
Segundo Schwartz, os senhores de engenho da Bahia colonial
indubitavelmente dispunham de elevado status e riqueza,
além de controle de instituições locais e extensas redes de
parentesco, constituindo-se no segmento mais poderoso
daquela sociedade, mas sua autoridade não era irrestrita.
57
A capacidade da Coroa de controlar o mundo
dos engenhos era limitada, porém, pela
distância, dificuldades e redes de parentesco e
influência que não raro incorporavam os
próprios magistrados. [...] à medida que se
desenvolveu a estrutura judiciária nas vilas do
Recôncavo, as autoridades centrais puderam
organizar e executar melhor as funções de
policiamento [...] O mundo dos engenhos não
esteve completamente fora do alcance da lei,
e não só a palavra dos senhores de engenho
imperou nessas propriedades (SCHWARTZ,
1988, p. 234).
58
caminho quando buscavam utilizar a justiça; é
certo que sua participação no mundo da ordem
foi uma experiência e um aprendizado das
diversas faces desse universo, no qual foram
também atores, ainda que como neófitos numa
organização que, em muitos aspectos, lhes era
secreta pela impenetrabilidade de suas regras e
linguagens; mas, como tal, demonstraram estar
atentos a certos aspectos e ações do poder, e
interpretaram, à sua maneira, o que era a justiça
e qual o papel do seus funcionários.
59
São Paulo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, Saint-
Hilaire colheu amostras da fauna, da flora, observou a
geografia, nomeou regiões e produziu análises quase sempre
explicitamente comparativas entre os costumes dos
“campônios franceses” e os dos moradores dos sertões
brasileiros. No final da segunda década do século XIX,
Saint-Hilaire empreendeu uma longa peregrinação pelos
sertões de Minas Gerais, Goiás e São Paulo. Esta viagem
havia principiado no Rio de Janeiro, de onde o naturalista
partiu com destino às nascentes do Rio São Francisco, na
Serra da Canastra em Minas Gerais.
Após percorrer a fase inicial do trajeto, na altura de
São João Del Rei, Saint-Hilaire notou uma mudança na
paisagem e nos costumes dos moradores em relação a outras
regiões por ele visitadas em Minas Gerais. Ao chegar à
propriedade do Capitão-Mor João Quintino de Oliveira, o
viajante observou uma grande quantidade de gado vacum,
carneiros e porcos. Soube ainda que, numa negociação de
porcos para o Rio de Janeiro no ano anterior, o proprietário
teria arrecadado uma significativa quantia em dinheiro.
Contudo, na fazenda, a casa de residência do Capitão-Mor
parecia incomodar o viajante. Assim a descreveu Saint-
Hilaire (1975, p. 75): “Ficava situada, como as senzalas, ao
fundo de um vasto terreiro e rodeada por mourões que
tinham a grossura de uma coxa e altura de um homem, tipo
de cercado muito em uso na região”. Impressão semelhante
teve Saint-Hilaire em relação a casa de Dona Tomásia, que
se localizava adiante, no caminho entre o povoado de Pium-i
e a Serra da Canastra:
60
cujo mobiliário consistia apenas numa mesa
e alguns bancos rústicos (SAINT-HILAIRE,
1975, p. 75).
61
os senhores e seus poucos escravos o mesmo cotidiano
descrito por Emília Viotti da Costa para a escravidão das
“Em concomitância com outros fazendas de café do Vale do Paraíba. Os viajantes eram
estudos, no início da década de
1980, ao apresentar novas contemporâneos, suas narrativas sempre estiveram à
evidências em relação aos disposição dos historiadores. O que mudou foi o interesse
padrões da propriedade escrava
no Brasil para o período dos historiadores, nas últimas décadas, em considerar um
compreendido entre fins do
século XVIII e início do XIX, mundo bem mais amplo do que o da clássica plantation –
Stuart Schwartz apontou a
necessidade de uma revisão da grande propriedade escravista monocultora e exportadora.
abordagem, até então
preponderante, ao afirmar que As contribuições de uma historiografia interessada
‘nem o plantador típico nem o no aproveitamento do estudo de padrões populacionais para
escravo típico viveram nas
grandes plantações do Brasil a interpretação não só de aspectos econômicos, mas também
colonial’. Embora não se
comportando como para a compreensão da formação social e cultural do país são
compartimentos estanques, por
apresentarem significativos inegáveis. No início da década de 1980 e, especialmente, no
graus de entrelaçamento com
as plantations, as regiões centenário da abolição do cativeiro (1988), as análises a
dedicadas à subsistência e ao respeito das populações de escravos que viveram em
abastecimento interno
abarcaram em seu conjunto diferentes regiões brasileiras entre fins do período colonial e
milhares de cativos e, no
entanto, foram por muito o início do século XIX mostraram-se fundamentais à
tempo consideradas de menor
importância, em razão de uma reinterpretação do que, até então, era conhecido como típico
lógica de explicação que se
baseava, sobretudo, na
pela historiografia.
economia voltada para o A grande propriedade rural exportadora, nos moldes
mercado externo”
(FERREIRA, 2005, p. 33). da sempre mencionada plantation, povoada por grandes
escravarias dominadas por um único senhor e seus
prepostos, aos poucos passou a dividir espaço, em teses e
artigos científicos, com propriedades agrícolas dotadas de
posses menores de escravos. Mesmo no que respeitava a
alguns engenhos do nordeste do país, mais precisamente da
Bahia, foi possível compreender que as grandes escravarias,
por vezes, eram resultados da conjugação de trabalhadores
cativos pertencentes ao senhor de engenho, somados aos
escravos de outros proprietários menores contratados para a
execução de serviços específicos dentro da grande
propriedade exportadora.
Outros estudos argumentaram que no início dos
oitocentos a província mineira, cuja maior parte da produção
passou a destinar-se ao abastecimento interno, contava com
62
significativo percentual de pequenas posses de escravos e,
ao mesmo tempo, com a maior população cativa do país. O
cenário da escravidão, construído pelos pesquisadores,
sofreu uma matização significativa. No ambiente rural pelo
menos dois padrões de posses de escravos passaram então a
ser considerados: o primeiro predominava nas regiões e
propriedades que produziam para o mercado externo; o
segundo vigia nas localidades que produziam para o
mercado interno de abastecimento de alimentos e consumo
de seus moradores.
Embora os relatos de viagem tenham contribuído
sobremaneira para a interpretação de uma história do
cotidiano no Brasil, durante algum tempo pesou sobre eles
a pecha de serem a narrativa do olhar europeu, que
descreve a partir de todos os conceitos do colonizador
sobre o colonizado, do desenvolvido sobre o atrasado.
Esse argumento, também presente nos estudos a respeito
do Continente Africano, hoje já não se sustenta. Todas as
fontes carregam consigo os valores dos homens e
mulheres que as produziram.
Entretanto, durante as décadas de 1980 e 1990
houve uma corrida aos cartórios em busca de outros
documentos que pudessem auxiliar em uma interpretação
de uma história crítica do cotidiano. Ao se depararem com
milhares de contratos de compra e venda, registros de
terras, batismos, casamento e óbitos, inventários post-
mortem, os historiadores conferiram grande destaque para
o estudo de crimes, por meio da análise de processo
criminais e autos judiciais.
Um desses crimes, ocorrido na cidade paulista de
Franca, localizada no extremo nordeste da então Província de
São Paulo em meados do século XIX, auxilia-nos a
compreender alguns elementos do cotidiano das propriedades
rurais onde a produção não visava a exportação e
predominavam os senhores de poucos escravos:
63
No último ano da década de cinqüenta dos
oitocentos, a casa de Francisco Marques dos
Reis era o exemplo mais recorrente das
propriedades da região [de Franca] que
possuíam escravos. A fazenda ficava no
Distrito do Chapadão, seu proprietário não
era um homem abastado, criava gado e
produzia alguns mantimentos. Principal
escravo da fazenda, Antonio era filho dos
escravos João de Nação e Delfina que
pertenciam a Antonio do Couto Parreira,
também morador em Franca. Com apenas
dois anos de idade, Antonio foi arrematado
por Francisco Marques dos Reis quando se
realizou a partilha no inventário do senhor
de seus pais (Antonio do Couto Parreira).
Após ser vendido, Antonio permaneceu
escravo de Francisco Marques dos Reis por
mais de vinte e cinco anos. Além de Antonio,
seu senhor possuía na propriedade uma
família de escravos: João Crioulo de 16
anos, Joaquim Crioulo de 15 anos, José
Crioulo de 13 anos e Manoel Crioulo de 12
anos, todos, filhos de Antonio de Nação (que
era conhecido como Pai Antonio ou Pai
Velho) e Maria de Nação. Oficial de
carpinteiro, mais velho que os cativos
jovens, mais vigoroso e altivo que os cativos
de nação, Antonio era muitas vezes
considerado pelo senhor como o responsável
pelos trabalhos executados pelos outros
escravos da propriedade. Em 1859,
Francisco Marques dos Reis determinou a
seus cativos que trabalhassem na perfuração
de um valo [um buraco largo e profundo
usado para separar pastos quando não se
podia contar ainda com cercas de arame] que
dividiria os pastos de sua propriedade com
os da fazenda vizinha. Contudo, o senhor
alertou seus escravos que antes de dirigirem-
se para o trabalho no pasto deveriam cumprir
suas obrigações do terreiro. Para se ter uma
idéia do que eram essas obrigações do
terreiro, basta lembrar que as propriedades
da região produziam o maior número
possível de gêneros necessários ao consumo
de seus moradores. Os senhores podiam
determinar diferentes trabalhos aos
64
escravos, tais como: ordenhar vacas,
descascar arroz, moer milho no pilão ou no
monjolo, bater feijão, alimentar porcos,
patos e galinhas, secar, descascar e torrar
algum café, colher algodão para os tecidos,
cuidar da horta, matar e limpar animais para
o consumo, reparar currais e outras
benfeitorias da fazenda. Entretanto, na
manhã do dia 19 de abril, Antonio pegou
suas ferramentas e, acompanhado pelos
outros escravos homens da propriedade,
seguiu bem cedo diretamente para o valo.
Furioso, o senhor chegou ao lugar e
começou vociferar e estapear Pai Antonio, o
escravo mais velho da casa. Dizia o senhor
que os cativos não cumpriam as obrigações
do terreiro e iam direto para o valo a fim de
acabarem a tarefa do dia mais cedo. Castigar
com bofetões e pancadas escravos armados
com facas e ferramentas, com quem
conviveram durante décadas, era uma
situação comum entre os senhores da região.
Vendo o “pai velho” ser castigado, Antonio
disse ao senhor que eles voltariam para fazer
o trabalho não realizado. Ouvindo isso, o
senhor quis bater em Antonio com uma das
enxadas. O cativo levantou sua enxada e
empurrou o senhor para o interior do valo.
Em seguida, saltou sobre o senhor e cravou-
lhe a faca no pescoço quatro vezes. “Já que a
perdição está feita vamos tirá-lo daqui”. O
pai velho ainda quis repreender Antonio,
mas foi por ele ameaçado com a mesma faca.
Após planejarem deixar o corpo no valo até a
noite e depois colocá-lo junto a seu cavalo na
divisa dos pastos, “onde seu senhor sempre
brigava com outros por amor do campo”,
Antonio e João Crioulo (o filho mais velho
de Pai Antonio) resolveram logo esconder o
corpo no mato antes que alguém os visse.
Pegaram um cipó e uma estaca, usados para
marcar o valo, e arrastaram o corpo
atravessando uma estrada que ficava acima
do pasto. Nesse momento, passou pelo local
um liberto campeando algumas bestas. O
homem era Bernardo Crisóstomo de
Oliveira, camarada de tropa, empregado do
proprietário da fazenda vizinha que, ao ver a
65
cena perguntou aos escravos o que era
aquilo. Eles responderam que não era nada.
Enquanto Bernardo, montado em seu
cavalo, contornou o valo para verificar o que
estava acontecendo, Antonio e João
esconderam o corpo no mato e voltaram para
a casa da senhora sem nada lhe contar. O pai
velho e os cativos menores continuaram a
trabalhar. Embora sem conseguir encontrar
o corpo, Bernardo foi à cidade dar parte do
que tinha visto. Descobertos, todos os
cativos foram inicialmente presos. Apenas
Antonio Crioulo, João Crioulo e Joaquim
Crioulo foram levados a julgamento. A
estratégia da defesa de fazer recair apenas
sobre Antonio a culpa pelo assassinato do
senhor surtiu efeito. O cativo mais jovem,
Joaquim Crioulo, foi absolvido. Seu irmão,
João Crioulo foi condenado, como cúmplice
de Antonio, a receber duzentos açoites e
carregar uma pega de ferro no pé por seis
meses. Contra Antonio Crioulo, além do
assassinato, pesavam várias acusações de ter
anteriormente convidado seus parceiros para
matarem o senhor. Segundo o primeiro
depoimento de Antonio, negado por ocasião
do julgamento, os problemas com o seu
senhor teriam começado na época da última
“planta de milho”, quando ele foi acusado
pelo roubo de uma moeda de ouro. Mesmo
apenado segundo a lei de 1835, que
inicialmente não admitia nenhum recurso,
Antonio foi beneficiado por uma mudança
na legislação realizada em 1854 que
permitiu aos cativos o recurso ao Poder
Moderador. Entretanto, a Clemência
Imperial foi negada. A última execução de
escravos em Franca tinha ocorrido vinte e
três anos antes, em 1837, quando os escravos
José Crioulo e Antonio Africano foram
enforcados pela morte de seu senhor
Caetano Barbosa Sandoval. Certamente
acreditou-se na Corte que já era tempo de se
consumar, no extremo nordeste da província
paulista, outra sentença exemplar. O escravo
Antonio Crioulo expirou na forca na noite de
vinte e seis de novembro de 1860. O caso do
cativo Antonio tem grande importância para
66
o entendimento da relação dos senhores com
seus escravos no Município de Franca. O
assassinato do proprietário durante o trabalho
é representativo do tipo de conflito mais
comum entre os cativos e seus proprietários
na região. A fazenda onde Antonio e seus
companheiros trabalhavam e a origem de
cada um deles é também exemplar em relação
às propriedades que possuíam escravos no
município. A presença do liberto Bernardo,
camarada que trabalhava para o dono da
fazenda vizinha, completa o cenário, onde
muitos escravos também trabalhavam em
companhia de libertos e livres (FERREIRA,
2006, p. 107-110).
67
Essa escravidão rural de pequena monta acabava por
apresentar mais semelhanças com o cotidiano do cativeiro
das cidades do que propriamente com o das plantations. Em
cidades como Rio de Janeiro, Recife e Salvador, os escravos
ocupavam as mais variadas funções. Havia grande destaque
para escravos oficiais: barbeiros, sangradores, músicos,
pintores, pedreiros, ferreiros, alfaiates, dentre outros que
passavam o dia pelas ruas “ao ganho” (vendendo seus
serviços) ou trabalhando alugados para terceiros.
68
Brasil foi urbana e ocorreu em Salvador em 1835. A revolta
– analisada por João José Reis no livro Rebelião Escrava no
Brasil: a história do levante dos Malês em 1835 – foi
planejada por escravos africanos que se identificaram como
grupo, no Brasil, por meio da prática da religião
muçulmana. Embora tivessem inúmeras vantagens sobre
seus senhores e sobre a polícia (saber ler e escrever já seria
uma vantagem significativa, muitos dos revoltosos
dominavam o árabe), esses cativos acabaram por ver seus
planos fracassados ao serem delatados e obrigados a
antecipar o motim. Um dos pontos fundamentais do
infortúnio dos Malês teria principiado com uma série de
comentários de que, em caso de vitória da revolta, os
cativos nascidos no Brasil, chamados crioulos, seriam
mantidos como escravos.
Em ambos os casos (Rio de Janeiro e Salvador),
bem como no cotidiano rural das pequenas posses de
escravos, não havia feitores. Logo, todo o controle sobre os
cativos ficava a cargo dos proprietários e de um sofisticado
sistema de autovigilância levado a cabo pelos próprios
moradores, com alguma ajuda de forças policiais. Como,
em geral, as pessoas se conheciam, mantinham relações de
amizade e desafeto, um único indivíduo fora do lugar e da
hora de seu costume colocava os mais curiosos, vigilantes e
alcoviteiros em estado de alerta. O simples aparecimento de
um forasteiro poderia ser motivo para acionar as forças
privadas e as guardas policiais.
Para continuarmos nossa descrição das condições
de vida dos africanos e de seus descendentes no Brasil,
voltemos uma vez mais ao padrão geral da historiografia
que ainda predomina, com raras exceções, nas salas de aula,
produzido em meio aos embates políticos do Brasil dos
anos 1960. Após descrever o dia de trabalho dos cativos na
lavoura, Emília Viotti da Costa relata as condições de
alojamento dos escravos no interior das senzalas:
69
Os edifícios, na grande maioria, eram
a l o n g a d o s , d e f o r m a r e t a n g u l a r,
construídos de pau-a-pique e cobertos de
sapé, sem janelas, tinham uma porta única,
e aberturas de trinta a quarenta centímetros
na parte superior, junto à coberta. Quando
sucedia de haver janelas, eram fechadas por
grades, o que refletia a preocupação de
impedir fugas. As senzalas localizavam-se,
em geral, nas proximidades da residência
do fazendeiro, dada a necessidade de
fiscalizar melhor a escravaria. Homens e
mulheres dormiam em casas separadas. As
crianças tinham suas camas, junto às mães.
As divisões internas formavam pequenos
cubículos, onde o mobiliário era escasso.
Apenas uma tarimba e um jirau. Aquelas
feitas de madeira, dois e meio a três pés de
largura, encimadas de esteiras ou
cobertores, e um pequeno travesseiro de
palha. No jirau, o escravo guardava seus
pertences. Às vezes a tarimba era mais
alongada, de forma a permitir que se
colocasse um baú na extremidade. Em
algumas fazendas, encontravam-se, ao lado
das senzalas, pequenas cabanas de pau-a-
pique, cobertas de sapé ou folha de
bananeira sem aberturas. Esses casebres
destinavam-se aos casais. [...] No longo
corredor das senzalas, eram construídos
fogões primitivos, onde os negros
preparavam, uma vez ou outra, algum prato
simples: peixe, caças do mato,
principalmente tatus, iguanas, pacas, cutias
ou capivaras. À noite, terminado o serão,
quando fazia frio, amontoavam-se de
cócoras em redor do fogo, fumando e
conversando em grande algazarra. Atrás
das senzalas, ficavam as privadas, às vezes,
substituídas por barricas com água até o
meio e colocadas no corredor, onde eram,
diariamente, esvaziadas e limpas. As
senzalas ficavam abertas até às dez ou onze
horas da noite, quando, a um sinal do feitor,
recolhiam-se os escravos a suas habitações
(COSTA, 1998, p. 294-295).
70
O modelo descrito pela autora, em geral, é
conhecido como senzala pavilhão. Ele, sem dúvida, é típico
das regiões de café onde predominavam grandes e médias
escravarias. Na região do Vale do Paraíba carioca ainda há
senzalas como as descritas por Viotti da Costa. Nas cidades
e nas pequenas propriedades rurais, contudo, senzala era
sinônimo de habitação de escravos. Ela podia variar de um
simples quarto no interior da casa dos senhores,
acomodações nos porões das residências urbanas ou, mais
comumente, moradias, muito simples, dotadas de paredes
construídas de pau-a-pique ou de taipa de pilão, cobertas
com sapê. Nos núcleos urbanos, embora as leis municipais
proibissem, era comum escravos alugarem quartos para
morarem longe de seus senhores. Os cativos retornavam à
casa dos senhores em períodos previamente combinados
para acertar os lucros obtidos no trabalho “ao ganho”
praticado nas ruas. Era esta, por exemplo, a situação da
escrava Bertoleza, que teve um fim trágico, iludida por João
Romão em O Cortiço de Aluísio Azevedo.
A lógica interpretativa de que a crueldade e a
violência senhorial eram proporcionais à necessidade de
dobrar o espírito de revolta dos cativos fez com que, até
meados da década de 1980, a família escrava fosse tida por
historiadores, sociólogos e economistas como uma
excepcionalidade no Brasil dos períodos colonial e
imperial. Guiando-se por relatos de viajantes europeus dos
oitocentos que acreditavam ser a senzala um lugar
esterilizado pela dor e pelo sofrimento, os pesquisadores
sustentavam a noção de que a família era uma dádiva
senhorial quase nunca concedida.
No Brasil, diferente de algumas regiões dos Estados
Unidos da América, a família escrava não era concebida
nem mesmo como possibilidade de aumento do número de
escravos da fazenda. Mais rentável, segundo o mesmo
ponto de vista, pelo menos até o fim do tráfico
71
transatlântico em 1850, era extrair o máximo de trabalho do
escravo no auge de sua idade produtiva e depois vendê-lo
para proprietários de menores recursos. Para substituí-lo,
novos escravos eram encomendados diretamente nos
mercados do litoral ou no próprio continente africano.
Entretanto, como tenho tentando demonstrar ao
longo deste texto, o interesse de historiadores da chamada
“geração do centenário da abolição” – comemorado em 13
de maio de 1988 – em conceber os escravos como “agentes
da sua própria história”, homens e mulheres capazes de
negociar com os senhores entre os extremos da rebeldia e da
passividade, mudou mais uma vez a interpretação
predominante até então. A combinação das análises da
demografia e da criminalidade escrava conferiu novo vigor
à interpretação do cotidiano dos escravos em suas vivências
familiares. O sudeste do país foi especialmente privilegiado
por historiadores empenhados em compreender a relação
da família escrava com as condições de existência e destino
do próprio escravismo.
Contra a acusação de que essa então recente
historiografia estaria novamente adocicando os horrores do
cativeiro ao admitir que a família escrava não só existiu em
larga escala como foi fundamental para a reprodução do
sistema, Robert W. Slenes respondeu em Na Senzala uma Flor:
72
escravismo, praticamente inexistente na
maioria das obras da Escola Paulista –
como também, estranhamente, em alguns
trabalhos mais recentes, de cunho marxista.
Nesse sentido, e como nos Estados Unidos,
os estudos sobre a família cativa brasileira
estão em sintonia com outros trabalhos
desenvolvidos nos últimos anos,
preocupados em resgatar aspectos da
cultura e da experiência dos cativos, em
desvendar suas relações com senhores, e
em refletir sobre o impacto de embates e
negociações cotidianos na reprodução ou
transformação do sistema escravista
(SLENES, 1999, p. 45).
73
Eram eles Florêncio (o réu), Julião Cabra e Ana crioula (as
vítimas). Antonio João de Oliveira, que servia como carcereiro
na cadeia da Vila Franca na noite do crime, foi despertado por
Florêncio que livremente foi se entregar à prisão:
74
Após cometer o crime, Damião fugiu, porém,
posteriormente se entregou e questionado a respeito do
motivo pelo qual voltou e se apresentou à Justiça respondeu
que “julgando ser cativo, como é, temia ser preso e depois
maltratado”. Inquirido pelo delegado a respeito do motivo
pelo qual teria cometido os assassinatos:
75
materializava-se em direitos e deveres. Às mulheres
destinavam-se as obrigações domésticas, cuidados com a
casa e a prole, preparo de alimentos, lavagens de roupas,
costuras e bordados [...]”. Embora a autora, neste excerto,
refira-se ao modelo ideal vigente na sociedade colonial de
São Paulo, pode-se observar que justamente um dos deveres
por ela mencionados foi apontado como estopim do duplo
homicídio praticado pelo cativo Damião.
A maioria dos depoentes confirmou, durante os
interrogatórios, que a esposa de Damião era adúltera e,
ainda, que nenhum de seus três filhos tinham Damião como
pai. As testemunhas disseram também que o bebê (Águida)
havia sido morto pelo cativo em razão de Adriana ter
aparado um dos golpes do machado com o corpo da filha.
Damião foi condenado a doze anos de prisão, comutados em
quatrocentos açoites, e a carregar um ferro no pescoço pelo
período de dois anos.
Grande parte dos escravos africanos do sudeste
cafeeiro, área especificamente estudada por Robert Slenes,
era oriunda de regiões africanas ocupadas por povos falantes
de línguas derivadas do tronco banto. Assim, mesmo
separados de suas relações pessoais anteriores, a
compreensão da língua permitia a esses cativos forjar novas
identidades. Slenes defende o argumento de que os cativos
inventaram no Brasil uma “proto-nação banto”. No âmbito
dessas novas identidades, a constituição de famílias ocupava
um papel preponderante. De acordo com o pesquisador,
entretanto, a maioria das uniões conjugais, legitimadas pela
Igreja no sudeste brasileiro no século XIX, estaria em
médias e grandes posses. Os escravos em posses maiores
poderiam escolher seus parceiros na mesma propriedade,
diminuindo assim as chances de serem separados, pelo
menos enquanto o senhor estivesse vivo.
Devemos lembrar que, até a metade do século XIX,
os cativos representavam os bens mais valiosos da
76
propriedade de seus senhores. Em caso de partilha de bens por
morte do senhor ou mesmo de falência do proprietário, os
escravos eram inevitavelmente vendidos. Dificilmente seria
possível manter pais, mães e filhos juntos após uma
negociação comercial, fato que obrigava muitos escravos a
sustentarem uniões de fato, mas não de direito. A proibição da
venda de cativos legalmente casados foi efetivada no Brasil,
sob o ponto de vista jurídico, com a Lei do Elemento Servil de
1871. Contudo, a reprovação a essa prática remontava ao
período colonial; era uma falta ligada ao mundo divino, um
pecado para o qual a punição era o Inferno.
77
Sois imitadores de Cristo crucificado [...],
porque padeceis em um mundo muito
semelhante [a]o que o mesmo Senhor padeceu
na sua cruz, e em toda a sua paixão [...] Cristo
despido e vós despidos: Cristo sem comer e vós
famintos; Cristo em tudo maltratado, e vós
maltratados em tudo. Os ferros, as prisões, os
açoites, as chagas, os nomes afrontosos, de tudo
isto se compõe a vossa imitação, que se for
acompanhada de paciência, também terá
merecimento de martírio (CIDADE, p. 30-31
apud VAINFAS, 1996, p. 71).
78
senhores deveriam inicialmente governar seus próprios atos
de acordo com a luz dos preceitos do catolicismo para serem
dignos da condição senhorial. Ser senhor era ser um senhor
cristão. Já André João Antonil (pseudônimo de João Antonio
Andreoni) simplificou a fórmula proposta por Benci, na obra
Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas,
publicada em 1711. Antonil empreendeu a tradução do latim
para uma linguagem mais próxima dos senhores, criando a
regra dos três P – “PPP, a saber: pão, pau e pano”. Divergindo
de Benci, Antonil em sua pregação permitia que os escravos
tivessem seus folguedos e reinados, em alguns dias do ano,
desde que praticados inocentemente e depois de terem feito
suas festas em homenagem a Nossa Senhora do Rosário.
O medo do Inferno não impediu milhares de
escravos de serem torturados. A noção de necessidade da
prática de castigos e privações físicas de caráter moderado
estava ligada, pelo menos até o Iluminismo, à idéia de que o
corpo frente à imortalidade da alma deveria ser o veículo
para a salvação eterna, cabendo corrigi-lo para que não
pusesse tudo a perder. Essa concepção ia muito além do
cativeiro, funcionando como um pressuposto pedagógico
válido para todos os grupos que compunham o mundo do
Antigo Regime. Ainda assim, a religião cumpriu um duplo
papel – oferecendo esperança aos cativos e tentando limitar
a violência senhorial – definitivo para a manutenção do
sistema escravista por mais de três séculos no Brasil.
Embora não fossem parte da Igreja como instituição, a
Igreja Católica coordenou em todo o Brasil a criação e
composição de irmandades laicas. De acordo com Marina de
Mello e Souza, em Reis negros no Brasil escravista, em geral
consagradas a Nossa Senhora do Rosário, as irmandades de
homens pretos conseguiam, com o apoio de senhores vaidosos
e esmolas oferecidas pelas comunidades de fiéis, reunir
fundos para ações de ajuda mútua, tais como comprar alforrias
e atender escravos abandonados por seus proprietários.
79
Aos escravos que não conseguiam negociar com os
senhores melhores condições de vida no interior da instituição
escravista restava a arriscada tentativa de uma fuga. Vários
eram os impeditivos desta empreitada. A família era
certamente o primeiro obstáculo para uma fuga de caráter
definitivo. O fugitivo sozinho enfrentaria grandes desafios em
uma fuga, acompanhado de cônjuge e filhos seria bem mais
difícil. Feitores e capitães do mato – homens especializados
em caçar e capturar escravos fugitivos – eram prestadores de
serviço caros para os padrões da maior parte dos senhores
proprietários de pequenas escravarias. Ainda assim, tanto nos
núcleos urbanos quanto na zona rural, cada indivíduo
desconhecido era logo objeto de atenção dos moradores.
A historiografia especializada está repleta de
narrativas de escravos fugitivos denunciados tanto por
trabalhadores livres e libertos, quanto por parceiros de
cativeiro. Não havia uma identidade automática na condição
de cativo ou negro. Ela precisava ser construída ativamente no
cotidiano com base na partilha de interesses e problemas
comuns. Os homens e mulheres tornados coisas ao serem
transformados em escravos também reafirmavam sua
humanidade ao demonstrarem comportamentos oscilantes,
contraditórios e, muitas vezes, mesquinhos e individualistas.
Como afirmaram João José Reis e Eduardo Silva no livro
Negociação e Conflito:
80
comum afirmar, os quilombos se apresentavam como
alternativas viáveis a alguns fugitivos. Em outro livro, ao falar
das possibilidades de estudo combinadas entre antropólogos,
arqueólogos e historiadores, tive a oportunidade de tratar das
evidências mais recentes a respeito do quilombo mais
conhecido do Brasil, o de Palmares.
81
É notável o avanço dos estudos a respeito das
comunidades quilombolas no Brasil dos períodos colonial e
imperial. Além dos mais conhecidos como Palmares e
Ambrósio, havia, espalhados por todo o país, milhares de
pequenos quilombos. De maneira geral, os estudos apontam
para o fim da noção do quilombo como uma comunidade
isolada. Além de comporem as mesmas comunidades,
indivíduos oriundos de diferentes matizes étnico-raciais e
condições sociais estabeleciam, como foi muito comum na
Província de Minas Gerais, laços de dependência mútua
entre alguns quilombos e núcleos urbanos. O historiador
Donald Ramos – no texto “O quilombo e o sistema
escravista em Minas Gerais do século XVIII”, que integra,
ao lado dos trabalhos de Flávio dos Santos Gomes, a mais
completa coletânea de estudos sobre o tema no Brasil –
Liberdade por um fio – fala em relações simbióticas entre
quilombolas e moradores das regiões próximas aos
quilombos. Tão significativas eram tais relações que, no
século XVIII, representavam um impeditivo concreto à ação
coercitiva das autoridades metropolitanas no combate aos
quilombos e mocambos.
Mais recentemente, o livro As Camélias do Leblon,
de Eduardo Silva, acrescentou ao debate sobre o nível de
relações entre os quilombos e mundo que lhes era externo
uma nova partição: o quilombo-rompimento e o quilombo
abolicionista. O primeiro estava mais vinculado ao período
colonial, à guerra e ao segredo. Mesmo estabelecendo
variados níveis de contato com o mundo exterior, sua
prioridade era defender suas lideranças de possíveis
inimigos. O outro modelo de resistência, o quilombo
abolicionista, funcionava como uma instância de
comunicação entre os fugitivos e o mundo que os cercava.
Localizavam-se em áreas modernas do Império, tais como o
Quilombo do Jabaquara em Santos e o Quilombo do Leblon
no Rio de Janeiro. Suas lideranças eram compostas por
empreendedores, ativistas políticos e membros de
organizações institucionais do Império.
82
De alguma maneira, aos poucos, a historiografia dos
quilombos no Brasil aproximou suas interpretações do
conceito contemporâneo de quilombo. O lugar isolado para
onde fugiam escravos heróicos foi cedendo lugar à noção de
comunidade que partilha não só uma ancestralidade comum,
mas também que luta ao lado de outros excluídos pela defesa
de sua terra, de suas crenças e do direito de viver e trabalhar
com dignidade. Comunidade que atrai para si o respeito, a
simpatia e o comprometimento de pessoas que representam
os mais variados setores da sociedade.
A condição legal dos escravos africanos e seus
descendentes no dia do nascimento do Brasil como um país
independente não foi uma contradição. No entanto, gerou
consequências muito significativas para o entendimento dos
caminhos por ele adotados no enfrentamento de seus
principais desafios políticos e sociais – temas que
trataremos a seguir.
83
CAPÍTULO III
Cidadania escravizada?
“[...] amalgamação muito difícil será a liga de tanto metal
heterogêneo, como brancos, mulatos, pretos livres e escravos, índios
etc. em um corpo sólido e político”.
[José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838)]
86
Norteado pelo artigo 179 da Constituição de 1824, o
Código Criminal não adotou a punição com a marca de ferro
quente. O crime não passava da pessoa do delinquente
estendendo-se a seus descendentes. Crime e delito,
entendidos como sinônimos, não tinham efeito retroativo,
pois nenhum delito poderia existir sem uma lei anterior que
o qualificasse. A pena de morte foi sustentada, mas sem a
distinção entre a forca e o machado (antes privilégio de
condenados nobres), prevalecendo a primeira.
No entanto, apesar de elogiada e tida como
inspiração para o Código Penal Espanhol de 1848, bem
como para outros códigos de países da América, a
legislação, que em 1832 foi complementada pelo Código do Luiz Felipe de Alencastro
afirma que para a continuação
Processo Penal, guardava ainda quanto à escravidão a do sistema escravista no
Império foi decisivo “o
questão de ser um texto fundado nos ideais iluministas de enquadramento legal”. O
Direito assumiu “um caráter
Liberdade, Igualdade e Fraternidade, ao mesmo tempo em quase constitutivo do
que considerava válida a instituição da escravidão. escravismo. [...] o escravismo
não se apresenta como uma
No berço de um país que proclamava nascer sob o herança colonial, como um
vínculo com o passado que o
signo da liberdade, o tema da criminalidade escrava, tão presente oitocentista se
encarregaria de dissolver.
presente no cotidiano dos cidadãos do Brasil Imperial, não Apresenta-se, isto sim, como
um compromisso para o futuro:
permitia a ninguém o luxo de esquecer que havia uma parte o Império retoma e reconstrói a
significativa de homens e de mulheres, de africanos e de afro- escravidão no quadro do direito
moderno, dentro de um país
brasileiros, que, em alguns casos, mesmo parecendo a olhos independente, projetando-a
sobre a contemporaneidade”
desavisados, não eram cidadãos, nem iguais e nem livres. (ALENCASTRO, Luiz Felipe
de. A vida privada e a ordem
Alguns, como os escritores oitocentistas Joaquim Manoel de privada no império. In:
NOVAIS, Fernando Antonio;
Macedo e José de Alencar, professavam um abolicionismo em ALENCASTRO, Luis Felipe de
nada parecido com Castro Alves, no qual os cativos eram (orgs.). História da vida privada
no Brasil: Império: a corte e a
entendidos como inimigos internos, disseminadores de vícios, modernidade nacional. São
Paulo: Companhia das Letras,
ceifadores potenciais da vida de seus senhores. 1997, p. 17).
O ano era 1868. Tomás fugiu da casa de sua senhora
armado com um bacamarte. Enfurecido, o escravo
vasculhou as ruas de Olinda em busca da autoridade policial
que mandou castigarem-no publicamente. Tão logo
encontrou o homem de quem suspeitava, Tomás fulminou-o
com um tiro à queima-roupa. Preso e julgado, o cativo foi
87
sentenciado à morte. Existia, entretanto, a possibilidade de
apelação da sentença e Tomás foi encarcerado na Detenção
do Recife, à espera de uma decisão. Num dia, porém, que
poderia ser como qualquer outro na vida de quem aguarda
por um destino certamente fatídico, do interior da enxovia,
Tomás vislumbrou em uma porta esquecida aberta, a
oportunidade de escapar da morte. A um passo da rua foi
interceptado pela sentinela, que do cativo recebeu em revide
uma pancada fatal.
Já condenado à morte pelo primeiro assassinato,
Tomás postou-se pela segunda vez no banco dos réus, de
onde ouviu o promotor público solicitar ao conselho de
jurados, novamente, sua condenação à pena última. Após
intermináveis debates jurídicos, Tomás foi finalmente
considerado culpado e condenado à pena de galés perpétuas
– trabalharia em obras públicas arrastando correntes pelo
resto da vida. A essa altura seria possível argumentar que a
pena pouco diferia de sua vida de cativo. Entretanto,
enquanto esse novo drama se desenrolava no Recife,
confirmou-se em Olinda, como resultado definitivo do
primeiro julgamento ao qual Tomás fora submetido pelo
assassinato anterior, que seu fim seria dado pelas mãos do
carrasco na forca.
Como alguém submetido à escravidão, um crime
contra a humanidade, poderia ser condenado à morte como
criminoso? Como poderia Tomás ser culpado por infringir
regras de uma sociedade da qual não era sócio? Como o
escravo, considerado como coisa, podia ter descumprido o
contrato social pactuado por pessoas assim definidas por
terem nascido iguais e livres?
Essas questões fundamentaram uma das teses
defendidas pelo jovem rábula, que no tribunal do Recife
atuou como advogado de defesa do escravo Tomás. Conta-
nos o então aluno do quinto ano da Faculdade de Direito do
Recife que Tomás foi criado em Olinda, por sua senhora,
88
como se fosse homem livre, embora permanecesse legalmente
cativo. Trabalhava para si mesmo e para sua proprietária, era
tido por todos que o conheciam como humilde, brioso e bem
reputado. Tanto assim era, asseverava o defensor, que por
vezes lhe rendiam na cidade o tratamento de Senhor Tomás.
Contudo, em um dia, sem que se soubesse ao certo o motivo, a
proteção da senhora desapareceu. Com vinte e cinco anos de
idade, Tomás foi preso em uma das ruas de Olinda, amarrado e
surrado a mando de uma autoridade policial, ante os olhos de
seus amigos e desafetos. Uma vida quase livre se convertia em
tormento e o cativeiro se apresentava ao escravo com uma de
suas faces mais perversas.
A propósito, o advogado de defesa de Tomás era
Joaquim Nabuco (1849-1910), um dos mais citados
abolicionistas brasileiros. Nabuco evocou a história do
cativo Tomás em seu livro incompleto A Escravidão, escrito
em 1870, mas publicado pela primeira vez apenas em 1924
no periódico do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
precisamente na primeira das três partes que originalmente
integrariam a obra, intitulada “O Crime”. Sob o olhar do
jovem e já atuante Nabuco, Tomás não cometeria nenhum
assassinato caso não fosse compelido por dois outros crimes
sustentados pela sociedade brasileira imperial – a
escravidão e a pena de morte. Nabuco atuou em três
julgamentos de escravos. Em suas palavras, “eram todos
crimes de escravos ou, antes, atribuídos a escravos [...]
alcancei três galés perpétuas” (NABUCO, 2004, p. 47).
Escolher o drama do cativo Tomás para a elaboração
do seu primeiro libelo contra o cativeiro parece não ter sido
um ato fortuito de Joaquim Nabuco. Impressionou muito ao
então incipiente abolicionista brasileiro a leitura de Uncle
Tom's cabin, or Life among the lowl, da abolicionista
americana Harriet Beecher Stowe – originalmente
publicado nos Estados Unidos, na forma de livro em 1852 –,
que narra o suplício do velho, humilde e religioso escravo
89
Tomás. O evento teria causado consequências importantes
aos desdobramentos sofridos pela instituição do cativeiro
nos Estados Unidos. Conta-se mesmo que o livro atuou
como um dos estopins da Guerra Civil Norte-Americana – a
Guerra de Secessão (1861-1865) – que culminou com a
derrota do Sul escravocrata e com a abolição definitiva do
cativeiro no país.
É possível supor que na mente do jovem estudante de
Direito, filho de um dos maiores estadistas do Império (José
Tomás Nabuco de Araujo), um cativo chamado Tomás
demonstraria à opinião pública, nos Estados Unidos e no
Brasil, que a imagem do bom senhor vinculada a um
cativeiro menos cruel era um equívoco. Seu trabalho mais
conhecido, O Abolicionismo, publicado originalmente em
Londres em 1883, foi uma obra mais madura, pois carregava
consigo muitas das idéias presentes no manuscrito
inconcluso de A Escravidão, então já amalgamadas à
experiência de deputado provincial, jurista e experimentado
militante da causa abolicionista.
Entretanto, não foi apenas pela via abolicionista de
Nabuco – oposta a outras, como a defendida por Joaquim
Manoel de Macedo, no conjunto de três novelas intitulado
As vítimas algozes: quadros da escravidão, de 1869, que
também articulava os conceitos de crime e escravidão – que
o binômio que nomeia este texto passou a interessar à
historiografia brasileira, especialmente a uma miríade de
jovens pesquisadores espalhados pelos quatro cantos do
país, herdeiros da chamada geração do centenário da
abolição, comemorado em 1988, de quem tanto falamos no
capítulo anterior.
Sabia-se, a partir das pesquisas realizadas e
publicadas até então, que era possível avançar na
compreensão do cotidiano do cativeiro, da resistência
escrava e da relação entre o poder privado dos senhores e
90
ação punitiva do Estado. Era preciso, fundamentalmente,
para se interpretar o binômio crime e escravidão, considerar
os diferentes olhares sobre ele lançado pelos envolvidos.
Uma das mais recorrentes fontes analisadas nesses
estudos foi redigida pelo controverso e também
abolicionista Agostinho Marques Perdigão Malheiro (1824-
1881), um dos mais destacados juristas, dedicado ao estudo
das relações entre Direito e Escravidão no Brasil dos
oitocentos. Em sua obra A escravidão no Brasil, publicada
entre os anos 1866 e 1867, o jurista demonstra que desde o
período colonial os escravos eram vistos pelo direito
português a partir de duas perspectivas, ao mesmo tempo,
contrárias e simultâneas, como coisas e como pessoas.
Tal tradição foi mantida após a independência até a
abolição. Como coisas os cativos podiam ser legalmente
comprados, vendidos, trocados, emprestados, legados,
herdados, alugados e emprestados como quaisquer outros
bens de seus proprietários. No entanto, quando um escravo
assassinava, feria, roubava ou transgredia quaisquer leis
penais ele se tornava juridicamente pessoa, ou seja, sentava-
se no mesmo banco dos réus livres e era julgado segundo o
mesmo código penal destinado aos ex-escravos e aos
homens livres (MALHEIRO, 1976).
Sob o olhar do senhor, contudo, para quem o cativo
representava, pelo menos em primeira análise, parte
significativa de seu patrimônio, o escravo que cometia um
crime transformava-se em prejuízo. Os roubos, os furtos, as
brigas com outros escravos e com a população livre eram,
tanto quanto possível, resolvidos reservadamente. Ossos
fraturados, facadas e tiros eram preferivelmente
compensados com promessas de castigos ou indenizações
em dinheiro pagas às vítimas. A tendência lógica era a do
prevalecimento de um mundo privado que procurava
sistematicamente anular a ação normativa do Estado
91
reafirmando, até mesmo por meio da ação de membros da
polícia e da justiça, a vigência de um conjunto de regras
silencioso, mas por todos conhecido, que aqui poderia ser
ilustrado com a noção de “Código do Sertão”, imortalizada
pela interpretação de Maria Sylvia de Carvalho Franco.
Mas nem sempre foi assim. À medida que se
desenvolvia, o Estado brasileiro passava à condição de
espaço de conflitos potencialmente aberto às demandas de
interesses de diferentes setores da sociedade. A ação
vigilante da “voz pública”, do “sei por ouvir dizer sem saber
ao certo a quem”, passado adiante por mero costume ou
planejada vingança, contribuía para que crimes bem
acobertados fossem parar nas mãos de delegados, juízes e
promotores. Testemunha desta possibilidade foi o desfecho
do conflito ocorrido entre dois escravos que viveram no
município de Franca, localizado no extremo nordeste da
então Província de São Paulo, do qual já falamos, por ser
uma localidade representativa de grande parte do cativeiro
de africanos e descendentes praticado no Brasil.
O ano era 1861. Em uma casinha de capim morava
Maria, uma ex-escrava que lavava roupas para diferentes
pessoas, inclusive para alguns escravos. Manoel, um
escravo de nação africana, solteiro, com trinta e cinco anos
de idade, foi até a casa de Maria pegar algumas roupas
deixadas com ela para serem lavadas, pois no dia seguinte
faria uma viagem com seu senhor moço. Manoel chegou a
casa, viu algumas pessoas, pediu licença, entrou e foi ao
encontro de Maria que ao vê-lo rapidamente retirou-se, sem
nada dizer. Subitamente, apagou-se uma candeia que existia
em um dos cômodos da casa. Manoel recebeu um golpe que
lhe feriu a cabeça e um dos braços. Vendo-se todo
ensangüentado, o cativo fugiu primeiro para o mato e
depois, sob a proteção da escuridão da noite, para a chácara
de onde havia saído.
92
Uma vez instaurado o inquérito policial para a
apuração do ocorrido, Manoel acusou como seu agressor
outro escravo de nome Geraldo, dez anos mais novo,
pertencente ao dono da fazenda onde se situava a casa da
liberta Maria. Ao juiz, o escravo Geraldo, já na condição de
réu, disse que quando chegou à casinha de capim o cativo
Manoel estava espancando Maria e que, por isso, com a
intenção de defendê-la, lançou mão de um pedaço de pau
sem se dar conta de que era na verdade o cabo de uma
pequena foice. Como resultado do julgamento a versão da
vítima foi mais convincente aos ouvidos dos jurados.
Geraldo foi condenado e recebeu, como pena, cem açoites e
carregou um ferro no pescoço durante um mês.
A disputa jurídica não foi a primeira solução tentada
pelos proprietários dos escravos. Durante os interrogatórios
de testemunhas, José Ferreira Lopes disse que após saber do
conflito entre os escravos fez uma visita à casa do senhor do
cativo Geraldo. Lá chegando, presenciou a preparação de
um acordo lavrado em duas vias e assinado pelos
proprietários de Geraldo e Manoel. Caso Manoel morresse,
seu senhor seria indenizado em um conto e oitocentos mil
réis; se perdesse um braço receberia um conto e
quatrocentos mil réis e se perdesse apenas um dedo
receberia setecentos mil réis. Ficaria assim resolvido o
conflito não fosse o caso delatado ao judiciário e
transformado em um crime (FERREIRA, 2005).
O jogo de forças estabelecido entre alguns
legisladores e representantes do executivo e da justiça
criminal de um lado e os interesses financeiros dos
proprietários de escravos de outro deixou os cativos
condenados como criminosos que viveram no Brasil
imperial em uma situação de exceção na legislação penal.
De modo geral, fossem os réus livres ou escravos, os
inquéritos policiais e processos criminais seguiam as
mesmas fases e eram regulamentados pelas mesmas leis
93
gerando reclamações de alguns juristas que, aos moldes da
legislação desenvolvida para as Antilhas francesas, queriam
para o Brasil um Código Negro.
Nas suas Anotações Teóricas e Práticas ao Código
Criminal do Império, de 1864, o jurista oitocentista Thomas
Alves Júnior encontrava no crime de insurreição uma das
maiores falhas da obra. Segundo ele, a escravidão gerava
uma população diversa em direitos e deveres do restante dos
membros da sociedade, logo, esses direitos e deveres
distintos não podiam “ser classificados e definidos por um
código comum” (ALVES JÚNIOR, 1864, p. 312). Ele ia
mais longe, argumentava que os crimes cometidos por
escravos revestiam-se de “caráter e gravidade especiais”
(ALVES JÚNIOR, 1864, p. 312) e necessitavam de leis,
procedimentos processuais e julgamentos especiais.
Quando condenados, tanto livres quanto escravos
ainda podiam recorrer das sentenças e, em alguns casos, até
mesmo recorrer à Clemência Imperial. No entanto, a
primeira exceção entrava em cena quando um escravo era
condenado a penas que não fossem a de morte ou a de galés
perpétuas, os dias de prisão ou multas previstos nas
sentenças eram convertidos em açoites. Para a aplicação dos
açoites, os escravos eram levados ao pelourinho, uma coluna
de pedra ou madeira situada no lugar mais público das vilas,
onde um carrasco aplicava cinqüenta chibatadas por dia até
que o número total previsto se completasse. Em alguns
casos, penas que podiam chegar a oitocentos açoites
transformavam-se num terrível espetáculo de tortura e morte
(FERREIRA, 2005).
Com o avançar do século XIX, a legislação sofreu
alterações e os açoites passaram a ser infligidos aos escravos
dentro das cadeias em duas sessões de vinte e cinco
chibatadas por dia. Outra exceção que atingia os escravos
julgados como criminosos ocorria em relação ao status da
vítima. Situação que representava, para muitos juristas, um
94
retrocesso ao direito colonial, ao livro das mil mortes, como era
nomeado pelos críticos, o Livro V das Ordenações Filipinas, no
Brasil, vigente como código de leis penais até 1830.
Esta nova exceção foi gerada pela lei excepcional,
criada em 1835, a qual determinava que os assassinatos,
consumados ou não, cometidos por escravos contra seus
senhores e feitores fossem julgados imediatamente após o
crime e os réus, em caso de condenação no grau máximo,
enforcados imediatamente, sem direito a nenhum recurso.
Após muitos debates políticos e jurídicos, o recurso ao poder
de perdoar conferido ao Imperador passou a ser admitido e,
nas décadas finais de vigência do cativeiro, as penas de
morte tanto contra livres quanto contra escravos passaram a
ser convertidas sistematicamente em prisão perpétua com
ou sem trabalhos forçados (FERREIRA, 2006).
Sob o ponto de vista do governo central,
simbolizado principalmente na pessoa do Imperador, de
seus conselheiros e ministros, a criminalidade escrava
tomava quase sempre a forma da Insurreição. De acordo
com as prescrições legais, para se configurar este crime
deveriam reunir-se pelo menos vinte cativos com a
finalidade de tornarem-se livres por meio da força. Nos
relatórios anualmente apresentados pelos Ministros da
Justiça do Império e pelos Presidentes das Províncias
existem muitas menções à ameaça representada pela ação
violenta e conjunta de muitos escravos com o fim de verem-
se livres do cativeiro. Durante todo o século XIX, mas
principalmente nas décadas que antecederam a abolição, os
atentados planejados por escravos contra senhores e
feitores, repetidos à exaustão nos relatórios emitidos pelos
chefes de polícia das províncias de São Paulo e Rio de
Janeiro, figuraram como uma das contribuições dos
próprios cativos para a abolição da escravidão no Brasil
(FERREIRA, 2006).
95
Na época em que foi praticada, a criminalidade
escrava recebeu diferentes olhares conforme afetava o
cotidiano de seus observadores. Sob os olhos abolicionistas
de Nabuco, os crimes cometidos pelos cativos não deveriam
ficar impunes, mas se afiguravam menores à medida que
eram comparados com o grande crime representado pela
escravidão. Aos olhos do Direito e, sobretudo, do Direito
moderno no qual o Brasil se inseriu com um Código
Criminal elogiado por juristas europeus e considerado como
inspiração para códigos de outros países, a escravidão se
apresentava como a incontornável exceção. De forma geral,
os senhores associavam o escravo criminoso antes à imagem
do prejuízo do que propriamente à de ameaça. Aos olhos do
Estado, a criminalidade escrava podia, em casos extremos,
representar o fim do país. A sucessão de notícias a respeito
de revoltas de escravos trazia aos debates o exemplo do Haiti
de 1791, quando escravos insurretos acabaram com o
cativeiro e declararam a independência da antiga colônia
francesa. Uma conclusão semelhante vale para os
historiadores. Seu interesse pelos registros de crimes que
envolveram escravos, bem como por todos os temas da
história, é norteado por questões produzidas no presente.
Não havia, como algumas vezes repetiu-se na
historiografia especializada, um descompasso ou um atraso
nas leis penais brasileiras do período imperial em relação a
outros países que também abandonaram legislações
baseadas nos fundamentos do Antigo Regime para reger-se
por leis de base iluminista. O que existia era a manutenção
do cativeiro e com ele a perpetuação de uma situação de
exceção que se acomodou à sociedade, até que a própria
sociedade, inclusive os escravos, movida por interesses,
pressões, ideais e aspirações, derrubou o escravismo,
passando a escrever uma nova página da história da
cidadania no Brasil. Uma cidadania que nasceu escravizada
e ainda precisa avançar muito para cumprir o seu propósito
maior que é de transformar todos os seus signatários em
Homens e Mulheres Livres.
96
CONSIDERAÇÕES FINAIS
98
em um futuro não muito distante as questões sobre a cultura
afro-brasileira, colocadas aqui, obterão respostas mais
satisfatórias e convincentes. Creio que a missão a qual me
propus finalmente estará cumprida.
99
BIBLIOGRAFIA
102
______. A escravidão – O crime: Abolicionistas, historiadores
e o debate racial na construção do Estado brasileiro. In:
SCHLEUMER, Fabiana; OLIVEIRA, Oséias (orgs.).
Estudos Étnico-Raciais. Bauru: Canal 6, 2009, p. 35-44.
103
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e
senhores na Capitania do Rio de Janeiro 1750-1808. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988.
105
______. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e
questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia
das Letras, 1993.
106
THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária
inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 3v.
107
ANEXO I
Senado Federal
Subsecretaria de Informações
Art. 2º (Vetado).
Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos
§ 3º (VETADO)
Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.
htm>. Acesso em: 13 jul. 2010.
112
ANEXO III
Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos
Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2008/Lei/L11645.htm>.
Acesso em: 13 jul. 2010.
114