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Schopenhauer Os PensadoréS Schopenhauer “O homem comum, este produto industrial da netureza, tal come esta o apresenta dianiamenie aos milhares, & incapaz, ao menos de mode persisten- Je, de uma observagie em todo senti- do inteiramente desinteressada: ele po- de dirigir sua atencaa 3s coisas somen- fe enguanio estas apresentam uma rela 30 qualquer, mesmo que apenas mui mediatizada, com sua vontade.’” SCHOPENHAUER: O Mundo. come Vontade » Ropresentagio. “Se 0 munds todo, como represen- 7a¢30, 6 apenas a visibilidade da vonta- de, a arte € 0 exclarecimento dessa yisi- bilidate, a Camara obscure a mostrar objets com mais pweza ¢ permitr uma melhor visio de conjunto.e combi- nagdo das mesmus, o teatre no teatra, 2 palca sobre o paleo no Hamlet.” SCHOPENHAUER: © Munda como Vontade © Representagt0 “C estilo de Kant traz sempre @ marca de um espirite superior, de ums genvina © sha onginalidade e de uma fora de pensamento inteiramen- te fora do comum; pode-se talver de- signar 9 caréter desse estilo; bem a p70- Pésito, como de uma Balhae secura, que the permite langar mio dos con- ‘ceitos com firmeza e¢ escothétos com grande sequrancs, para depois poder joné-las de [4 para c4, com a maior li- berdade, para assombro do leitor.” SCHOPENHALER: Critica da Hiosafia Rantiana Os Pensadoré3 5394, Zod. 84-1634 CIP. Brasil. Catalogagao-na-Publicagao ‘Cimara Brusileira do Livro, SP Schopenhauer, Arthur, 1788-1860, © mando como vontade ¢ representayao, LIN pt, ; Critiea da filosatia antianat ; Parerga e puraligomena, cup, V, VIlI, XIL, XIV / Artur Schope- hauer ; traduyées de Wolfrang Leo Maar ¢ Maria Liicia Mello e Oliveira Cacciola, — 2, ed. — Sio Paulo : Abell Cultural, 1985, (Os pensadores) Inclui vida e obra de Schopenhauer, Bibliografia. 1. Conhecimento - Teoria 2, Filvsofis alemé 3. Kant, Immanuel, 1724-1804 ~ Ontologia 4. Pessimism 5, Vontade 1, Maar. Wolfgang Leo. IL, Cacciola, Maria Melo ¢ Oliveira. I11. Titulo, TV. Titulo: Critica da filosofia kantiana, V. Titulo: Parerga ¢ paralipamena, VI. Série, DD-193 fndices para catélogo sistematico: 1. Conhgcinmento : Teoria : Filosofia 121 2. Filosofia ulemé 193 3. Kantismo ; Filosofia eritica 142.3 4. Pessimismn : Filosofia 149.6 5. Teoria do conhecimento : Filosofia 121 6. Vontade ; Motafisica : Filosofia 123 ARTHUR SCHOPENHAUER O MUNDO COMO. _- VONTADE E REPRESENTACAO (II PARTE) CRITICA DA FILOSOFIA KANTIANA PARERGA E PARALIPOMENA (CAPITULOS V, VIII, XII, XIV) pees iene Velfgang Leo Maar © Maria Liicia Mello ¢ Oliveira Cacciola ‘de Rubens Rodeigues Torres Flo icricee de any of Karan) 1985 EDITOR: VICTOR CIVITA ig ee Die Sete ale Wille und Vorstefieiy Prurerge: net Poratipesmena © Copyright desta edigio, Abril $.A. Cultural, ‘Sou Paulo, 180 2.*edicun, 14S. Direitos exclisivs subre as tradugdes deste volume, Abril S.A. Culm, $30 Paul Ditcitos exclusiva sobre “*Schopenfiauer — Vida ¢ Obra”, Abril 8.4. Cultural, Sin Paste, SCHOPENHAUER VIDA E OBRA ‘Consultoria: Rubens Rodrigues Torres Fitho " Fite de Heinrich Floris Schopenhauer, comerciante da cidade de Dantzig, na Prussia, 0 filésofo Arthur Schopenhauer estava destina- do a seguir a profissso de seu pai. Por isso, a familia nunca se preocu- pou muito com sua educagao intelectual e, quando contava apenas doze anos de idade, em 1800, induziu-o a empreender uma série de- viagens importantes para um futuro comerciante, Schopenhauer per Correu a Alemanha, a Franca, a Inglaterra, a Holanda, a Suica, a Silé- sia’ © a Austria, Mas seu interesse nao foi desperiado por aquila que seu pai mais desejava: @ que fez de mais importante, durante ¢ssas viagens, foi redigit uma série de considleragdes metancdlicas e pessi- mistas sobre a miséria da condigo humana, Em 1805, a familia fi- xou-se om Hamburgo e 0 obrigou a cursar ume escola comercial. A morte do pai (possivelmente voluntiria) permitiudhe, contudo, aban- donar para sempre os estudos comerciais ¢ voltar-se para uma carrei- ra universitéria, como era seu desejo. Assim, Schopenhauer passou a dedicarse aos estudos humanisticos, ingressando no Liceu de Wei- mar em 1807; dois anos depois, encontrava-se na faculdade de medi- cina de Gottingen, onde adquiriu vastos conhecimentos cientificos, Em 1811, na Universidade de Berlim, assistiu aos cursos dos filésofos Schleiermachor (1768-1834) e Fichte (1762-1814). Este dltimo seria, mais tarde, acusado por Schopenhauer de ter deliberadamente carica- turado a filosofia de Kant (1724-1804), tentando “envalver o peva ale- mio com a neblina filosdfica’. Em 1813, Schopenhauer doutourou- se pela Universidade de Berlim com a tese Sobre a Quddrupla Raiz do Principio de Razdo Suficiente. Nessa poca, sua mie, Johanna Schopenhauer, estabeleceu-se em Weimar, onde comegou a obter progressivo sucesso como novelista e passou a freqientar os circulas mundanos que Schapenhauer detesta- va_e se esforgava por ridicularizar ao maximo. As relagdes entre os dois deterioraram-se a ponto de Johanna deciarar publicamente que a tese de seu filha nado passava de um tratado de farmacia; em contra partida, Schopenhauer afirmava ser incerto © futuro de sua me como romancista © que ela sumente seria lembrada no futuro pelo fato de ser sua progenitora Apesar dessas brigas, Schopenhauer freqentou durante alum tempo o saldo de sua mée. Ali tornau-se amigo de Goethe (1749-1832), quo reconhecia seu génio filosdfico @ sugeriu-lhe que tra- balhasse numa teoria antinewtoniana da visio. A partir dessa sugestéc, Schopenhauer escreveu Sobre a Visdo e as Cores, publicado em 1816, will SCHOPENHAUER Um filésefo sem publico Em 1814, Schopenhauer rompeu definitivamente com a familia & quatro anos depois concluiu sua principal obra, O Murdo canta Von- tade ¢ Representagdo. Em 1819, 9 livra foi publicade, mas um ana e meio apés haviam sido vendidos apenas cerca de 100 exemplares, A critica também nao foi favoravel § obra. Durante os anos de 1818 € 1819, Schopenhauer passou uma tem porada na Itdlia: 20 voltar, sua situacao ecanémica nao era das me- thores, Solicitou entio um posto. de monitor na Universidade de Ber- lim, valendo-se de seu titulo de doutor © passande por uma prova gqie sores umn conferéncia. Admitido em 1820. encarregou-se um curso intitulada A Filesofia Inteira, ev O Ensino do Mundo ¢ do Espirita Humana. © titulo do curso deviassc,, provavelmente, a He- gel (1770-1831), que na época era um dos mais reputados professo- tes da Universidade de Berlim, Tentando competir com Hegel, Scho- penhauer escolheu © mesmo hordrio utilizado pelo rival, mas a tenta- liva redundau em fracasso completo: apenas quatro ouvintes assis- tiam a suas aulas. Ao fim de um semestre, renunciou 3 universidad fm 1821, envolveu-se em um acidente que teve desagradayeis nsequéncias econdmicas e, sobretudo, viria causar-lhe periddica de depressio psicolégica, Nessa-Gpoca, o filésafo residia numa pensao, Cujas principais locatérios, em sua grande maioria, eram se- nhoritas de idade avancada. Essas pensionistas tinham © desagradavel habito de espionar a chegada de supostas amantes, recebidas por Schopenhauer em seus aposentas, Certa noite, quando urna costuret- ra chamada Catoline-Louise Marquet dedicava-se a esse mister, Scho- penbauer, perdende a paciéncia, atirouea cscada abaixe, Como resul- lado, foi processada e acabou senda condenado a pagar trezentos tha- Jers de despesas médicas, Além disso, ficava obrigade a pagar sessen- ta thalers anuais, até a morte de Caroline, que somente veia a falecer vinte anos depois. Durante todo esse tempo, Schopenhauer entrava em depressao nervosa, uma vex por avo, todas as vezes que era obri- gado @ pagar a pensdo. Sua revolta dizia respeita menos a quantia de~ sembolsada do que aquilo que sentia como injustica cometida pelas autoridades. Entre 1826 © 1833, Schopenhauer empreendeu freqdentes via- Bens, adoeceu por diversas vezes e tentau uma segunda expe i como professor da Universidade de Berlim, Foi mais uma tentaliva fra- cassada, somente contrabalancada pela critica elogiosa a seu O Mun- 9 como Vontade e Representag.io, publicada no periddico Kleine Bi- chersehau, A solidao ea gloria Em 1633, depois de muitas hesitaydes, 0 filésofe resolveu fixar- se em Frankfurl-sobre-o-Meno, onde permaneceria até sua marte em 1860. Durante os vinie © sete anos gue passou em Frankfurt, levou uma vida solitéria, acompanhado por seu cio. Sua predileeao por ani- mals era filosoficamente justificada; segundo Schopenhauer, entre os cSes, contrariamento a6 que ocorre entre os homens, a voniade nao 6 dissimulada pela mascara do pensamento. VIDA E OBRA x Dedicado exclusivamente 4 reflexao filoséfica, Schopenhauer tre- balhou intensamente em Frankfurt, redigindo e publicande diversas li- vros. Em 1836, vein a lume o ensaio Sobre a Vantade na Natureza, que deveria completar o segundo livro de © Mundo como Voniade & Representacdo. Na mesma Gpoca, redigiu também dois ensaios sobre moral. O primeiro, escrito para concorrer a um concurso da Acade- mia de Ciéncias de Drontheim (Norucgal, intitulase Sobre a Liberda- de da Voniade. O segundo, O Fundamenta da Moral, concorret. ao concurso da Academia de Copenhague @ continha verdadeiros insul- tos a Hegel © a Fichte, que provacaram uscndalo; embora fosse 0 nico conrorrente, o livra nao fai premiado. Posteriormente, os dois ‘ensaiog seriam teunidos cob 0 titule de Os Dais Problemas Fundamen- lats da Flica © publicades em 1841, Trés anos depois, surgiv a segut da edigao de O Munde como Vontade e Representacao, enriquec com alguns suplementos. Apesar disso, nao teve sucesso. O mesmo nao ocorreu com a tltima obra escrita ¢ publicada por Schopenhauer, Intitulava-se Parerg2 e Paralipomena e continha pe- saios sobre os mais diversos temas: politica, moral, literatu- estilo e metafisica, entre outros, A abra alcangou inespe- rado sucesso, logo depois de ser publicada em 1851. A partir dai, a notariedade do autor espalhousse pela Alemanha e depois pela Euro- pa. Um artigo de |. Oxenford, publicado na Inglaterra, deu inicio a grande difusio de sua filosofia. Na Franga, muitos filésofos ¢ escrito Fes Viajaram até Frankfurt para visiti-lo, Na Alemanha, 2 filosofia de Hegel entrou em dectinin ¢ Schopenhauer surgiu como idolo das no- vas geragies. Assim, 05 dltimos anos da vida de Schopenhauer proporciona- ram-lhe um reconbecimento que ele sempre buscou, Artigos ceiticos surgiram em grande quantidade nos principais periddicos da época. A Universidade de Breslau dedicou cursos 4 andlise de sua obra ¢ 0 Academia Real de Ciencias de Berlim propas-the o titulo de membro, om 1858, que ele recusou: Dois anos depois, a 21 de setembro de 1860, Arthur Scho nhauer, que Nietzsche (1844-1900) chamaria “o cavaleiro. solitario’ faleceu, vitima de pneumonia. Contava, entao, 72 anos de idade. O mundo cego ¢ irracional O ponto de partida do pensamento de Schopenhauer encontra: se na filosofia kantiana. Immanuel Kam (1724-1804) estabelecera dis- tingdo entre os fendmenas e a coisa-emesi (que chamou noumenon), isto €, entre 0 Gue nos aparece € O que existiria em si mesmo. A coi- sa-em-si (noumenan) na poderia, segundo Kant, ser abjeto de conhe- cimenta cientifics, como até enti pretendera a metafisica classica. A ciéncia restringir-se-la, assim, aa mundo dos fendmenos, e seria constituida pelas formas a priori da sensibilidade (espago ¢ tempo) © pelas categorias do entendimento, Dessas distingdcs, Schopenhauer concluiu que o mundo nao seria mais do que representacdes, entendi- das por ele, num primeiro mamento, camo sintese entre 0 subjetivo e 9 objetiva, entre @ realidade exterior ¢ a consciéncia humana, Como afirma em O Mundo coma Vontade e Representacdo, "par mais maci- G0 © imenso que seja este mundo; sua existéncia depende, om qual- % SCHOPENHAUER quer momento, apenas de um fio Gnico ¢ delgadissimo: a conscién- cia em que aparece”. Em outra passapem de sua principal obra, Scho. penhauer deixa mais clara essa idéia; “O mundo como representa- §40, isto & unicamente do ponte de vista de que 0 consideramos aqui, tem duas metades essenciais, necassarias e insepardveis, Uma & © objet; suas formas sd0 0 espaco eo tempo, donde @ pluralidade. A outra metade € O sujeto; n4o se encontra colocada no tempo © no es Pago, porque existe inleira c indivisa em todo ser que percebe: dai re- sulla que um 36 desses seres junto a0 abjeto completa © mundo como representacdo, tao perleitamente quanto todas as milhoes de seres so melhantes que existem: mas, também, se esse ser desaparece, 0 mun- do come representagao nao mais existe” Nac se pode dizer que essas idéias expressem exalamente o pen- Samento Kantiano, mas. seja como for, Schopenhauer chagou a esas sonclusées, partindo da mestre que tanto admirava. Schopenhauer, contudo, separa-se, explicitamente, de Kant em um ponto essencial © a partir dai, constréi uma filosofia original. Para Kant, a coisa-em- $1 € inacessivel ao conhecimento humano, pois encontra-se aléin dos limites das estruturas do proprio ato cognitivo, entendide coma sinte- se dos dados da intuicio sensivel, sintose essa realizada polas catego- rias @ priori do entendimento. Schopenhauer, ao contrario, pretendeu abordar a propria coisa-em-si. Essa coisa-em-si, raiz metafisica de to- da a realidade, seria a Vontade, Segundo 0 autor de O Mundo como Vantacle e Representacso, a experiéncia interna do individuo assegura-lhe mais do que o simples fato de ele ser “um objeto entre outros”. A experiéncia interna tam- bém tevela ao individuo que ele é um ser que se move a si mesmo, um ser ative Cujo Comporlamento manifesta expressa diretamente sua vontade. Essa consciéneia interior que cada um possui de si mesmo como vontade seria primitiva e iredutivel; A vontade revelar-se-ia imediatamente a todas as pessoas como 9 em-si ea Percepgao que as pessoas tém de si mesmas como vontades seria distinta da percepgao que as mesmas ttm como corpo. Mas isso nao significa que Schope- nhauer tenha esposado a tese de que as agdes corporais © as agdes da vontade constituem duas séries de fatos, entendidas as primeitas co mo causadoras das segundas. Para Schopenhauer. © corpo humano & apenas objetivagao da vontade, tal como aparece sob as condigoes da percepcdo externa, Em outros termos, 0 que se quer e © que se faz io. uma ea mesma Coiba, vistos, porém, de perspectivas diferentes, Da mesma forma como nos homens, a vontade seria o principi fundamental da natureza. Para Schopenhauer, na queda de uma pe- dra, no crescimento de uma planta ou no puro comportamenta instin- tive deur animal afirmam-se tendénctas, em cuja abjetivacan se cons: tituem o> corpos. Essas diversas tendéncias nao passariam de disfar- es sob os quais se oculta uma vontade Unica, superior, de cardtor metalisico © presente igualmente na planta que nasce © cresce, @ nas complexas ages humanas. Fssa vontade, para Schopenhauer, @ inde- pendente da ‘epresentacao e, portanto, nao se submete a5 leis da ra- Z40_ Ao contrério de Hegel, para quem 0 real € racional, a filosofia de Schopenhauer sustenta que o real 6 em si mesmo cego © irracio: nal, enquanto vontade. As formas racianais-da consciéncia nao passa- riam de ilusérias aparéncias © a esséncia de todas as coisas seria VIDA E OBRA xl alheia 3 razdo: “A conseigncia é a mera superficie de nessa mente, da qual, como da terra, nao conhecemos 0 interior, mas apenas a crosta”. O inconsciente representa, assim, papel fundamental na filo- sofia de Schopenhauer. Sob esse aspecto, o autor de O Mundo como Vontade e Representacdo antecipou-se a alguns dos conceitos mais importantes da psicandlise fundada por Sigmund Freud (1856-1939). © préprio Freud reconheceu a importdncia das idéias de Schope- nhauer, em um de seus escritos afirma que certas consideracdes so- bre a foucura, encontradas no Mundo como Ventade e Represe Gao, poderiam “rigorosamente, sobrepor-se 2 dautrina da repressdo’ Viver é sofrer No sistema de Schopenhauer, a vontade 6 a raiz_metafisica do mundo e da conduta humana; ao mesmo tempo, ¢ a fonte de todas 05 sofrimentos, Sua filosofia 6, assim, profundamente pessimista, pois a vontade é concebida em seu sistema como algo sem nenhuma meta ou finalidade, um querer frracional e inconsciente. Sendo um mal ine- rente 4 existéncia do homem, ela gera a dor, necessdria e inevitavel- mente, aquilo que se conhece como felicidade seria apenas a inter- rupee temporaria de um processo de infelicidade e somente a lem- branca de um softimento passado criarta a ilusao de um bem presen- te, Para Schopenhauer, 0 prazer é momento fugaz de auséncia de dor © ndo existe satisfacdo durdvel. Todo prazer ¢ ponto de partida de no- vas aspiracées, sempre cbstadas @ sempre em |uta por sua realizacao: *Viver é safrer”’. Mas, apesar de todo seu profundo pessimismo, a filosofia de Schopenhauer aponta aigumas vias para a suspensio da dor. Num pri- meiro momento, @ caminhe para a supressio da dor encontra-se na contemplagao artistica. A contemplagao desinteressada das idéias se- ria um ato de intuicdo artistica @ permitiria a contemplacio da vonta- de em si mesma, o que, por sua vez, conduziria ae daminio da pré- Pria vontade. Na arte, a relacdo entre a vontade e a representacdo in- verte-se, a inteligéncia passa a uma posigdo superior e assiste a hist6- tla de sua prépria vontade; em outros termas, a inteligéncia deixa de ser atriz para ser espectadiora, A atividade anistica revelaria as idéias eternas através de diversos graus, passando sucessivamente pie tetra, escultura, pintura, poesia lirica, poesia trdgica, «; final pela musica, Em Schopenhauer, pela primeira vez na historia da “filo. sofia, a mésica ocupa o primeiro lugar entre todas as artes. Liberta de toda referéncia especttica aos diversos objetos da vontade, a mUsica poderia exprimir a Vontade em sua esséncia geral e indiferenciada, constituindo um meio capaz de propor a libertag3o do hemem, em fa- ce dos diferentes aspects assumidos pela Vontade. No Nada, a salvagao A libertagio propercionada pela arte, segundo Schopenhauer, nao 6, contudo, total e completa. A arte significa apenas um distancia- mento relativamente passageiro e nao a supressao da Vontade. Para Xt SCHOPENMAUER Crenologia que atinja a libertacde, é necessdrie que o homem ascenda ao nivel da conduta ética, a qual representa uma etapa superior no processo: de superacao das “doses do mundo”. A ética de Schopenhauer nao esta, contuda, presa a nogac de “dever'; Schopenhauer rejeita as tor- mas imperativas de filosofia que sao. para ele, formas de coercao. Sua ética nado se apdia em mandamentos, antes na nogao de que a contemplacao da verdade € © caminho de acesso ao bem. Para Scho- penhauer, 0 egoismo, que faz do hamem o inimiga do homem, ad- vém da ilusio de vontades indopendentes que afirmam seus /mpetes individuais. A superagdo do egoismo somente seria possivel mediante: © conhecimento da natureza Unica universal da Vontade. Como con- segléncia moral do desaparecimento de sua individualidade, o ho- mem pode tornar-se hom; ao espitito de lula conta os semelbantes se- gue-se 6 espirito de Simpatia. Libertade, pela etapa ética, 0 homem atinge © princigio que ¢ o fundamento de toda verdade moral: “Nao Prejudiques pessoa alguma, s¢ bom com todos’. Essa ética da piedade e da comiseragio, segundo Schopenhauer, encontrau sua mais acabada expressao nos evangelhos, onde “ama a feu proximo como a ti mesma’ constitui 9 principio fundamental da cpnduta. Mas nem mesmo a ética da piedade possibilitaria ao ho- mem atingir a felicidade altima. Para Schopenhauer, a mais completa forma de salvacan para a homem somente pode ser encontrada na re- ndncia quictista a0 mundo ¢. todas as suas solicitagdes, na mortificae ga0 dos instintos, na auto-anulacae da vontade © na fuga para 0 Na- di .desviemos um instante os olhos de nossa prdpria indigéncia & de nosso limitado horizonte; leverno-lo sobre esses homens que ven- cetam © mundo nos quais a yontade, atingindo a perfeita consciencia de si, se reconheceu em tudo que existe ¢ livremente renunciou a si mesma... entio, em vez dese tumulto de aspiragdes sem fim, em vez dessas passagens constantes do desejo ao medo, da alegria ac safri- mento, em vez dessas esperancas sempre inalcancadas e sempre fe- nascentes, que fazem da vida humana, enquanto animada pela vonta- de, um sonho interrompido, nao perceberemos mais do que esta paz, mais preciosa que todos os tesouros da razdo, a calma absoluta da es- pitito, esta serenidade impenurbavel, tal coma Rafael ¢ Coregio a pintaram nas figuras de seus santos e cujo brilho deve ser para nds a mais completa ¢ veridica anunciagao da boa nova: a vontade desapa- receu; subsiste apenas 9 conhecimento”. a 22 de feversiro, nasce Arthur Schapenhauer, 1789 — A 14 de julho, eclode Revolucao Francesa 1794 — Fichet publica Os Principios Fundamentais da Dautrina da Cidncia, 1807 — Schopenhauer ingressa no Liceu de Weimar. Publicagia da Feno- menotogia do Eapirito, de Hegel, 1813 — Schopenhauer doutora-se pela Universidade de Bevlim com a tese Sobre a Quidrupla Raiz do Principio de Razio Suficiente, Nasco Séren Rieckegaard, MIDAEOBRA XIII 1816 — Schopenhauer publica Sobre a Visiu € as Cores. 4813 — Nasce Karl Marx. 1819 — Publicacdo de U Mundo como Vontade © Representagao, de Scho- penhiauer. 1831 — Comte inicia a publicagse de seu Curso de Filosofia Positive. Morre Hegel. 1832 — Morre Goethe, 1835 — Nasce Johannes Brahms, Tocqueville publica a primeira parte de A Democracts na Aniérica. 1840 — Proudhon publica O que éa Propricdade? , 1341 — Editam-se Os Dois Problemas Fundamenteis da fica, de Schope- nhauer. 1844 — Narco Frindtich Wilhelm Nietzsche 1851 — Schopenhauer publica Parerga e Paralipomena. 1860 — More a 21 de setembro, em Frankiurt-salare-o-Menro, Bibliogratia Buiwe E> L’Unique Pensée de Schopenhauer, in Revue de Métaphysique et de Morale, 1938. Conuston, F.C: Schopenhauer, Philosopher af Pessimism, Londres, 1946, Gatinvis, P.: Schopenhauer, Penguin Books, Harmondsworth, 1936, Gann Pe: Schopenhauer, in The Encyclopedia af Philosophy, & vols,, The ‘MacMillan Company & Free Press, Nova York, 196; Reser. C.: Schopenhauer, Philasopire de I'Absurde, Prosses Universitaires, de France, Patis, 1967. Rost, C.; Schopenhauer, Presse’s Universitaires de fronee, Paris, 1968, Taviwr, R.: Schopeniauer, in A Critical History of Western Philosophy, edita- do por 0... O'Connor, The Free Press of Glencoe, Nova York, 1964. Zowvsien, Hi.” Arthur Schopeniauer: tvs Life and Philosaphy, Londres, 1932, O MUNDO COMO _._ VONTADE E REPRESENTACAO* (IIL PARTE) Ob nicht Natur zitletst Sich doch ergrinde?** Goethe Selegio ¢ tradugio de Wolfgang Lea Maar * ‘Traduzido co original alemdo Arthur Schopenfiauer — Sdmutiohe Werke. 2." edigio, Eberhard Brock: haus Verlag. Wiesbaden, 1949, vol. I, livre TIT, pp. 199 — 316. #F Nio-se havert de comperender por fim 4 natnroza em sev Amaga? (N, daT:) LIVRO III O MUNDO COMO REPRESENTACAO CONSIDERACAO SEGUNDA. “A representagio independente do principio de razBo: A idéia platdnica: 0 objeto da arte.” Ti td mén aei, génesin dé ouk ékhon; kat tt 16 gigndmenon mén kai apolivmenon, dnias de oudépote Gn:* Platdo + Oqued sempre, sen possuir origem? Queeo que serie o que ln, mas reximente nunea 2? (No T.) a a $30 Apresentado no primeire livro como pura representacdo, objeto para um sujeito, consideramos mundo no segundo livro por sua outra face e verificamos como esta é voniade, que unicamente se mestrou como o que aquele mundo é além da representag%o; em conformidade, denominayamos o mundo como repre- sentagdio, no todo ou em suas partes, a ohjettvidade da vontade, quer dizer: a von- tade tornada objeto, i. ¢., representagaio. Recordamos também que tal objetivagiio da vontade possuia graus numerosos, porém determinados, em que, com clareza e perfeigao gradualmente crescente, a vontade surgia na representacao, i. 2., se apre- sentava como abjeto. Reconheciamos as idéias de Platio em tais graduagdes. na medida em que estas so as espécies determinadas. ou as formas e propriedades invariaveis ofiginarias de todos os corpos naturais, orgdnicos ou inorganicos, como também as forgas genéricas se manifestando conforme leis naturais, Tais idéies. portanto, se manifestam em individuos e particularidades inumeraveit comportando se como modelo para estas suas imagens. A multiplicidade de tais individuos & concebivel unicamente mediante 0 tempo e o espago, seu surgir © desaparecer unicarhente mediante a causalidade, em cujas formas reconhecemos somente as diversas modalidndes do principio de razdo, principio dltimo de toda finitude, toda individuagio, forma geral da representagao, tal como esta se da na consciéncia do individuo como tal. A idéia, porém, nao se submete dquele princi pio: por isto nao experimenta pluralidade nem mudanga. Enquanto os individuos ¢m que sc manifesta sao inumeraveis ¢ nascem © perecem incessantemente, cla permanece invariavelmente a mesma, ¢ pars ela o principio de razio nfo possui significado algum. Mas como este ¢ a forma sob a qual se cacontra todo conheci- mento do sujeito, enquanto este conhece come individuo, assim as idélas se local. zardo totalmente fora da esfera do conhecimento do sujcita camo tal. Portanto, se as idéias devem se tornar objeto de conhecimento, a condigao é a supressio da individualidade no sujeito, cognoscente. Esclarecimentos mais acurados ¢ porme- norizados sobre este assunto nos ocuparao a seguir. 831 Antes de iniciar, seja a seguinte observagiio essencial, Espero ter sido bem sucedido no livro precedente no formar a convicgiio de que aquila que é denami- nado coisa em si na filosofia de Kant, apresentado em doutrina sobremodo importante, porém obscura ¢ paradoxa, sobretudo devido & mancira pela qual 6 SCHOPENHAUER Kant a introduziu, concluindo do efcito para a causa, era encarado como ponto vonflitante, ¢ até mesmo como o lado débil de sua filosefia, que isto, assim pre- tendo, quando atingido pelo caminho bem diverso por nés percorrido, mada mais € do que a ventade, na esfera deste conceito amplinda © determinada do modo indieado. Espero, além disto, que nao se hesite em reconhecer. feita a expasicao precedente, nos graus determinados da objetivagao desta vontade, que ¢ 0 em-si co mundo, aquilo que Plato denominou as idétas eternas, ou as formas imutaveis (2idé) que, reconhecidamente 0 dogma principal, mas simultaneamente mais obs- curo ¢ paradoxo de sa doutrina, constituiu-se em objeto de meditagao, de diseus- so. de escirnio ¢ de admiracao por parte de espiritos numerasos © diversos durante séculos. Sendo a vontade a coisa em si, ¢ a idéia a objetividade imediata desta vonta- de em um grau determinado, atinamos com a coisa em si de Kant e a idéia de Pla- tao, Unica que Ihe é dnids Gn, estes dois grandes abscuras paradoxos dos dois maiores filisofos do Ocidente, nio como idénticas porém estreitamente afins, distintas apenas por uma iinica determinagdo. Ambos estes grandes paradoxos formam mesmo, justamente por se enunciarem de moda tio diverso, dadas as individualidudes extraordinariamente diferentes de scus autores, ¢ malgrado toda sua concordancia ¢ afinidade internas, 0 melhor comentario um-em relagio ao outro, ao se assemelharem a dois caminhos bem distintos conduzindo a objetivo nico. Isto permite esclarecimente em poucas palavras. Com efeito, o que Kant diz ¢ essencialmente o seguinte: “Tempo. espago e causalidade nfo sio determi- nages da coisa em si, mas pertencem unicamente a seu fendmeno, na medida em que nio passam de formas de nosso conhecimente. Mas como toda maultipli- cidade ¢ todo surgir ¢ fenecer sio possiveis unicamente mediante tempo. espaco © causalidade, também aquelas pertencem apenas ao fendmeno. e de modo algum @ coisa em si. Contudo como todo nossa conhecimento & condicionado por aque- las formas, toda a experiéncia é apenas conhecimento do fendmeno, nio da coisa em si: por isto suas leis no podem ser aplicadas & coisa em si. Isto é valido inclu. sive para nosso proprio eu, que nds conhecemos unicamente como fendmeno, ¢ niio pelo que possa ser em si”. Fix, com respeito ae ponto importante conside- rado, © seatido ¢ conteido da doutrina de Kant. Por seu lado, Plato afirma: "As coisas deste mundo, percebidas por nossos sentidos, niio possuem ser verdadeiro; elas sempre vém a ser, mas nunca sao: possuem apenas um ser relativo, so em conjunto apenas em ¢ mediante sua relagdo recfproca: assim é possivel denomi- nar todo seu set-ai um nfio-ser. Fm conseqiéncia também nao sio objetos de unt conhecimento propriamente dito (epistéme), pois este & Ppossivel quanto ao que é em ¢ para sie de um modo sempre idéntico: elas porém so apenas 0 objeto de uma suposicao sugerida pela sensagao (déxa met" aisthéseos aldgou). Enquanto limitados & pereepsao dts coisas, pareéemos homens em uma caverna escura, atados de maneira tal que impassibilite mesmo os movimentos da cabeca, ¢ que nada vissem além das silhuetas de coisas reais Projetadas em uma parede & sua frente pela luz de uni fogo aceso por tris de suas costas, inelusive uns em relagaia 408 Oulros € mesmo cada um quanto a si prdprio: somente as sombras naquela O MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTAGAO. % parede. Sua sabedoria, porém, constituir-se-ia na previstio da seqiiéneia daquelas sombras, aprendida por experiéncia. Por outro lado. que pede ser denominado nica ¢ verdadeiramente existente (6ntds dn) porque sempre é mas nunca ver a ser. nem deixa de ser, sdo os modelos de tais imagens: as idéias eternas. as formas originais de todas as caisas. Nao thes cabe a murttiplicidade: pois cada uma ¢. con- forme sua esséncia, unicamente enquanto é 0 proprio modelo, cujas reprodugdes ou sombras sic todas as coisas da mesma espécie, de igual nome, indivi- duais ¢ transitérias. Também nao possuem comego e nem fim, pois sio verdadei ramente existentes, nunca porém 0 que comega. nem o que termina, como suas cOpias pereciveis. (Estas duas deierminagdes negativas contém necessariamente 0 pressuposto, porem, de que tempo, espago ¢ causalidade niio possuem significado nent validade para as idéias, que nao existem nestes.) Assim. apenas delas pode- mos ter um conhecimento propriamente dito, uma vez que pode ser objeto deste unicamente o que existe sempre e sob qualquer consideragio (portanto em si), e n&o ¢ que existe. mas também nio existe, confarme seja enfocado™. Esta é a dou- trina de Plato. E evidente, e nao requer qualquer comprovagiio adicional, que o sentido interno de ambas as doutrinas é totalmente o mesmo, que ambas explicam o mundo visivel como um fendmeno, sem existéncia em si, e que somente mediante o que nele se manifesta (para um, a coisa em si, para outro, a idéia) pos- sui significado ¢ realidade emprestada: realidade esta porém, verdadeiramente existente, a que, conforme anibas as doutrinas, todas as formas daquele fenéme- no, mesmo as mais gerais e essenciais, so inteiramente estranhas, Para negar estas formas, Kant as ¢ncerrou em expressdes abstratas ¢ por assim dizer negou 4 coisa em si o tempo, a espaco ¢ a causalidade como meras formas do fendmeno. Plato, por outro lado. niio atingiu a expressiio mais elevad: recusou aquelas formas somente de modo med! camente é possivel mediante aquelas. ou seja. a multiplicidade do analogo. o sur- gir € o desaparecer. Por redundancia, contundo, descjo ressaltar ainda com um exemplo aquela peculiar ¢ importante concordancia, Esteja frente a nds um ani- mal em sua vitalidade plena. Platdo dira: “Este animal nao tem uma existéncia verdadeira. mas somente uma aparente, um devir constante, um ser-ai relative, que pode ser chamado tanto n&o-ser quanto um ser. Verdadeiramente existente & apenas a idéia que se reproduz naquele animal, ou 0 animal em si mesmo (atid 16 thérion), de tudo independente, mas existindo em e para si (kath’ eantd, aet hosau- 285), sem comego, sem fim. porém sempre do mesmo modo (uel én, kar medépote ouite gigndmenon, oute apollimenon). Portanto, enquanto reconhe- vemos neste animal a sua idéia, ¢ totalmente indiferente e sem significado 0 ter- mos frente a nds agora este animal, ou seu ancestral de um milénio, que o local Seja este Ou num pais distante, que se apresente desta ou daquela mancira, posi gdo ou agao, que finalmente scja este ow aquele individuo de sua espécie: isto tudo nao existe ¢ refere-se somente ac fenémeno: unicamente a idéia do animal possui existéncia verdadeira ¢ é objeto de conhecimento real”. Assim Plato. Kant diria por exemplo; “Este animal é um fenémeno no tempo, no espaco € na causalidade que todos sio as condigées a priori da possibilidade da experiéneia que se encon- izado, dis suas idéias, a0 negar a estas 0 que uni- s SCHOPENHAVER tram em nossa capacidade cognitiva, ¢ nao determinagdes da coisa em si. Por isto este animal, tal como o pereebemns neste instante determinado, neste dado local, em conexiio com a experiéncia, i. ¢.. a cadeia de causas ¢ efeitos, como um indivi duo que teve inicio ¢ do mesmo modo negessariamente tera fim, nao é um ser em si, Mas um fendmeno valido apenas em relagdo ao nosso conhecimento. Para se conhecé-lo no que possa ser em si, conseqgiientemente independente de todas as determinages sittadas no tempa. no cspaco ¢ na causalidade, seria necessario um modo de conhecimento outro do que o tinico que nos é possivel, através dos seatidos e do entendimento”. Aproximando ainda mais © enunciado kantiano do plat6nico. diriamos: tempo, espago e causalidade sao aqueles dispusitives de nosso intelecto gragas a que 0 ser tinico de qualquer espécie. propriamente existente, s¢ nos aprexenta como uma multiplicidade de seres de mesma espécie, num nascer e perecer inces- santemente rcnovade, num sucessio infinita. Tomar as coisas mediante ¢ con- forme dito dispositive é a apercepgao imaneare: mas fazé-lo com consciéncia do proceso empregado constitui a apercepgao transcendental, Esta Ultima atingi- mos in absiracto pela critica da razdo pura, contuda excepcionalmente ela pode se yerificar também de modo intuitivo. Este adendo final meu, que me esforgo por aclarar com este tereeire liveo. ‘Tivesse jamais a doutrina kantiana, tivesse, a partir de Kant, a doutrina pla- tGnica side cfetivamente compreendida ¢ interpretada, houvesse sido meditado com fidelidade @ seriedade sobre © sentido ¢ contetido interno das doutrinas de ambos os grandes mestres, em vez de empregar a torto € 4 direito os termos de um ¢ parodiar o estilo de outro; nio se subtrairia o reconhecimento de quanto ambos os grandes sAbios concordam, ¢ 0 significado estrita, o objetivo de ambas as dou- trinas, é estritamente o mesmo, Naw somente ndo se teria comparudo constante- mente Plato e Leibniz, quem de modo algum seu espirite inspira, ou atécom um conhecido senhor' ainda vivo, come a zombar dos manes do grande pensador da antiguidade; mas ter-se-ia de um modo geral muito além do que o feito, ow mether, no se teria retrocedido de modo tio ignominioso como nestes derra- deiroy quarenta anos; nose ceria sido logratlo, hoje por um, amanhii por outro cabega de vento, ¢ niio se teria inaugurado na Alemanha o século XIX, to promissoramente significativo, com farsas filosficas apresentadas sobre o tamu: Jo de Kant (como ocasionalmente os antigos durante os funerais dos seus), sob 0 justo escirnio de outras nagées, visto ser o alemao, sério ¢ mesmo cerimonioso, © menos indicado para tanto. Porém tao restrito ¢ 0 piblico efetivo de filésofos verdadeiros, que, mesmo os discipulos que compreendem, lhes sia conduzidas mui parcamente através dos séculos. Fist dé narthekopharoi mén pollai, békkhoi dé ge paurdi. (Thyrsigeri quidem mutt, Bacchi vero patci,)* He atimia philosophia did wita prospéptoken, héti ow kath’, axian autés hapténiai ou gar néthous edei dptesthai, allé gnésious. (Eam ob rem philosophia ' BH Jacobi (N, do A.) * 114 muitos vondutorcs de Tirso, mas somente poucos Bacuntes, (N.doT.) © MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTAGAO. ” in infamiam incidit, quod non pro dignitate ipsam attingunt: neque enim a spuriis, sed a legitimis erat attrectanda. (Platav.) Estribavam-se nas palavras, as palavras: “representagdes @ prior?, formas conscientes do intuir ¢ do pensar independente da experiencia, conceites primiti vos do entendimento puro”, etc., e perguntava-se entao seas idéias de Platao, que também pretendem ser conccitos primitivos ¢ além diste também reminiscéncias de uma intuigdo das coisas verdadeiramente existentes, anterior 4 vida, nio seriam fénticas com a3 formas kantianas do intuir ¢ do pensar. que se encontram a priori em nossa consciéncia: estas duas doutrinas inteiramente heterogéneas, 2 kantiana das formas, que restringem o conhecimento do individuo ao fendmena, e a plats nica das idéias, cujo conhecimento nega explicitamente aquelas formas — estas doutrinas, nesta medida diametralmente opostas. pois que se assemelhavam um pouco em suas expresses. eram comparadas com atengdo, discutidas quanto & suia identidade, concluindo-se por fim que nao eram mesmo iguais, ¢ inferindo que a doutrina das idéias de Platio e a critica da razfio de Kant nada possuem em comum., * Mas isto é 0 suficiente sobre este assunto. §32 Em conseqiléneia de nossas consideragdes anteriores, com toda a cainei Géncia interna entre Kant ¢ Platiio, ¢ a identidade do objetive que ambos tinkam em mente, ou a concepgio de mundo, que os estimulava ¢ conduzia ao filosofar. idéia e coisa em si ndo sao simplesmente uma e a mesma: mas a idéia & para nds somente # abjetividade imediata, ¢ por isto adequada, da coisa em $i, que porém ela propria é a vemade, a vontade enquanto ainda ndo objeti- vada, ainda ndo tornada repreventagée. Pois a coisa em si deve, conforme Kant, ser livre de todas as formas press ao conkecimento como tal: e é apenas um erro de Kant (como sera mostrado no suplemento), * que cle ndo incluisse entre estas formas, antes de todas a8 outras, o ser-objeto-para-um-sujeito, por ser justamente esta a forma primeira ¢ mais geral de todo fendmeno, isto &, representagao; eis porque ele deveria ter recusado cxpressamente a sua coisa em si o ser objeto, o que o teria preservado daquela grande inconseaiiéneia, que niio se tardou em des- cobrir. A idéia platonica, por outro lado, é necessariamente objeto, algo reconhe- cido, uma representagio, ¢ justamente devide a isto, e somente devido a isto, dis~ tinta da coisa em si. Ela se despojou apenas das formas subordinadas do fendmeno, todas por nés compreendidas sab o principio de razao, ou melhor, ainda néo as adotou; contudo manteve a forma primeira e mats geral, a da repre- iy hi del * Por iso a filosafia caw na inftimia, pois que a el su suficiense: porguc ni sleveria ser seupasan de charlaties, muy de profissionais. (Na 0 ) + Vija-se por exeaiplo: dmimanwel Kant, iow Monumento de Fr, Buuterweck, p. £5, Histéria da Filosofia, de Buble, tomo 6, p, B02 ate BLS e 25.(N, A) © Trata-ee'do adonda ao 1," vol, de Q Mando Coma Fontade « Represertagdo, que se denoming Cridiew de Filosofia kamiana, ¢ que ports 9 seguinte epigrafe: “Civ te privilage dr vrai gémie, ot swrtawe abt gs qul vonvce tne caeriére, de faire tmpuniement de grandes foures (Voltaire) (2a privilégio do verdadciro genio, snbreruda dagjucle que abre novos ramos, de fazer inpunemente grandes erscs.J (N, do T.) 10 SCHOPENHAUER sentagao em geral, do ser objeto para um sujeito. As formas a esta subordinadas (cuja expresso geral ¢ 0 principio de raziio) multiplicam a idéia em individuos singulares € transitérios cujo namero é inteiramente indiferente a idéia. O princi- pio de razio é portanto novamente a forma adotada pela idéia, ao cair no conhe- cimento do sujeito enquanto individuo. A coisa individual que aparece em confor- midade com o principio de razdo ¢ portanto somente uma objetivagado mediata da coisa em si (que é @ vontade), entre as quais se encontra a idéia, como a dnica objetividade imediata da vontade, ao nao adotar forma alguma propria ao conhe- cer como tal, seno a da representagio em geral, i. ¢., do ser objeto para um sujei- to. Por isto também unicamente ela é a objerivagdo mais adequada da vontade ou coisa em si, é ela mesma toda a coisa em si, apenas sob a forma da representagio: € nisto reside o motivo da grande concordancia entre Plato ¢ Kant, embora, a rigor extremo, o dito por ambos nae s¢ja idéntico. As coisas individuais porém nao so uma objetividade da vontade inteiramente adequada, mas aqui esta ja se encontra abscurecida por aquelas formas, cuja expressao comum € 0 principio de Fazio, que constituem, contudo, condigées do conhecimento, tal como esta é pos- sivel ao individuo enquanto tal. De fato, se fosse permitido coneluir a partir de um pressuposto impossivel, nds no mais conheceriamos coisas individuais, nem acontecimentos, nem mudancas, nem multiplicidade, mas somente idéias, somen te Os graus da objetivagéo daquela vontade dnica, da verdadeira coisa em si, se- riam captados com conhecimento distinto, ¢ em conseqiiéncia nosse mundo seria um Nune sta se ndo fossemos, como sujeito do conhecimento, simultanca- mente individuos, i, ¢., nossa intuigéo néio fosse mediatizada por um corpo, de cujas afecgbes ela parte, e cle proprio apenas vontade concreta, objetividade do desejo, portanto objeto entre objetos. ¢ como tal, na medida em que penetra na consciéneia conhecedora, pode fazé-lo apenas nas formas do prineipio de razdo, © conseqiientemente pressupée e assim introduz © tempo ¢ todas as outras formas expressas por aquele principio. O tempo é somente # visio dispersa ¢ dividida possuida por um ser individual das idéias que esto fora do tempo, © portunto sao eférnas: por isto Platao afirma que o tempo é a imagem mével da eternidade: aid- nos etkon kinerd he karénos,” Uma vez que, como individuos, nao temos. conhecimento algum fora do subordinado ao principio de raziio, porém esta forma exclui o conhecimento das idéias, é certo que, se for possivel nos elevarmos do conhecimento das coisas indi- viduais ao das idéias, isto somente pode se verificar pela ocorréncia de uma trans- formag&o no sujeito, correspondente ¢ andloga aquela grande mudanea de todo o modo do objeto, ¢ mediante o qual o sujeito, enquanto conhecends uma idéia, nico é mais individuo, $33 ® Secuo prosiate, (N, do.) ? O tempo ¢ o.quadro em movimento da etertiinde, (N.doT) Veja 69 cap, 29 do 2. val. [ds © Mundo. 1 iN do Ad) O MUNDO COMO VONTADE F REPRESENTACAO MN Sabemos pelo livro precedente, que o conhecimento em geral pertence ele proprio & objetivagdo da vontade em seus graus mais elevados, ¢ que a sensibili- dade, os nervos, o cérebro, como outras partes do ser organico, constituem ape- hag expresso da vontade nesie grau de sua objetividade, ¢ portanto a represen- tagdo por ela produzida est igualmente destinada aa serviga daquela como um meio (mekhané) para atingir scus agora complexos (polyteléstera) objetivos, para A manutengao de um ser provide de miltiplas necessidades. Originalmente, por- tanto, e conforme sua esséncia, 0 conhecimento é itil 2 vontade, €, assim como o ‘objeto imediato que, com a aplicagdo da lei da causalidude se torna seu ponto de partida, & somente vontade objetivada, assim também todo conhecimento resul- tante do principio de razdo se mantém numa relagde mais ow menos estreita com a yontade, Pois 0 individue encontra seu corpo como um objeto entre objetos, ‘com todos eles mantendo variadas relacdes ¢ proporcées conforme o principio de taxdio, cuja observagio, porlanto, por vias mais ou menos extensas, sempre recon” duz ao-seu corpo, logo A sua vontade. Coma & o principio de razao que situa os objetos nesta relago com o corpo, ¢ por isto com a vontade, o conhecimento ser- vidor desta também s¢ empenharé unicaments em conhecer dos objetos justa, mente as proporgdes estabelecidas pelo principio de raza, portanto em seguir * suas diversas relagdes no espaco, tempo ¢ causalidade. Pois é somente gragas a estas que o objeto & interessante ao individuo, i, e., possui uma relagdo com a vontade, Pot isto 0 conhecimento a servigo da vontade conhece dos objetos prati- camente nada além de suas relagSes, conhece os objetos somente enquanto exis- tem neste momento, neste local, sob tais circunstancias, por tais causas, com estes efeitos, em uma palavra, como coisas individuais: ¢ supriminde todas estas relagSes, também os objetos desapareceriam ao conhecimento. que deles nada mais conheveria. Nao devemos também dissimular que o que as ciéncias consi: derum nas coisas de igual modo constitui essencialmente nada além daquile, ou seja, suas relagdes, as relagdes de tempo € éspago, as causas de transformagies naturais, a comparagiio das configuragdes, os motives dos acontecimentos, por- tanto nada senio relagdes. O que as distingue do conhecimento comum € apenas sua forma, 0 sistematico, a facilitagdo do conhecimento pela reunido de todo 0 individual no gera!, mediante a subordinagio dos conceitos, ¢ pela completeza dlestes assim adquitida. ‘Toda relagio possui ela mesma somente uma existencia relativa: por exemplo, todo ser no tempo & também um ndo-ser: pois o tempo € apenas aquilo mediante 0 que podem corresponder & mesma coisa determinagoes ‘fopestas: por isto todo fenémeno no tempo também no é: pois o que separa seu comeco de seu fim é justamente apenas o tempo, algo essencialmente passageiro, desprovido de substancia e relativo, aqui denominado duragio, O tempo, porém, é a forma mais geral de todos os objetos do conhecimento a servigo da vontade © 0 prototipo das demais formas de mesmo. Regra geral, o conhecimento permanece sempre sujeito ao servigo da vonta~ de, dado que se formou para este servigo, ¢ mesmo emergiu da vontade assim como a cabega emerge do tronco. Nos animais, esta servigalidade do conheci- mento sob a vontade nunca pode ser suprimida. Nos homens, esta supressiie iz SCHOPENHAUER ‘ovorre somente como exceedo, come a seguir veremos mais de perto. Esta distin- ao entre homem « animal @ expressa externamente pela diferenca da relacdo da cabera com 0 tronco. Nos animais inferiores ambas as partes se acham ainda sol dadas homogencamente: em todos, a cabega esta orientuda para a terra, onde se cacontram os objetos da vontade; mesmo nos superiores, a cabega ¢ 0 tronco per- Manecem unos de modo mais acentuado do que no homem, cuja cabeca parece livremente assente sobre o corpo, apenas portada por este, sem servi-lo, Este privilégio humano, © apresenta em seu mais alto grau o Apolo de Belvedere: a ca- bega contempladora do deus das musas de tal modo se ergue livre nos ombros, que parece liberta inteiramente do corpo. c desobrigada de cuidados com cle. § 34 io. possivel, porém, sempre excepeional, do conheeimento comum de coisas individuais, ao conhecimento da idéia, ocorre de modo repenti- NO, a0 arrancar-se o conhecimento ao servigo da vontade. por cessar precisa- mente @ sujeito de ser meramente individual, tornando-se agora sujeito puro da conhecimento, destituido de vontade, nlio mais se ecupando, conforme o prinei- pio de razdo, das Felagdes; mas repousando e sendo absorvido na contemplagio firme do objeto oferecido fora de quaisqucr conexdes com outros. Isto requer, para se tornar claro, necessariamente um exame pormenorizado, ¢m cujas estranhezas nilo ha que se deter. pois desapareceria por si. concatenado © canjunto do pensamento a ser exposto nesia obra, Quando, erguidos pela forga do espirito, abandonamos @ modo comum de examinar as coisas, cessando de acompanhar somente suas relagSes entre si, cujo objetivo Ultimo é sempre a relagio com a propri vontade, pelo fio condutar das configuragées do principio de raze, sem mais considerar nas coisas o onde, quando, por que ¢ para que, mas tinica ¢ exclusivamente o gute; niio permitindo também que se alojé na consciéncia o pensamento abstrato, os conecitos da raziio: entregando porém todo peder de nosso espirito a contemplagao, submer- aindo nesta inteiramente, permitindo o preenchimento pleno da consciéncia pela trangtiila conicmplagao do objeto natural ocasionalmente presente, soja uma pai- sagem, uma arvore, um rochedo, uma construgao, ou o que for: ao nos perdermos intciramente neste objeto (sich gaenzlich in diesen Gegenstand verliert), num significativo modo de expressiio alemao, ou seja, esquecendo nosso individu, hossa vontade, continuando a subsistir somente como sujeito puro, limpido espe- tho do objet; de tal modo que tudo se passasse, como se existisse unicamente o objeto, sem alguém que © pereebesse, nao se podendo mais distinguir portanto a intui¢ao do seu sujeito, mas ambos se tornaram um, ao ser a conseiéncia plena- mente preenchida e ocupada por uma tnica imagem intuitiva; quando, Portanto, @ objeto abandanou toda relagae com algo externo a ele, ¢ 0 sujeito toda relagio com a vontade; eto o que é conhecido nae é mais a coisa individual como tal; mas é a idéia, a forma eterna, a objetividade imediata da yontade neste grau; € precisamente por isto © referide nesta intuicao ja no ¢ individuo, pois 0 indi _O MUNDO COMO VONTADEE REPRESENTACAO a duo se perdeu numa tal intuigdo; mas ele € sujeita puro do conhecimento, desti- tuida de vontade, de dor, de temporalidade. Esta afirmagao tao surpreendente por ora (de que nao ignaro confirmar a expresso proveniente de Thomas Paine, lit sublime au ridicule il a’ a qt” un pas).” tornar-se-a pelo que segue gradativa- mente mais clara a menos estranha, Também nela pensava Espinosa. ao escrever: mens aeterna est, quatenus res sub aeternitatis specie eoncipit® (Etica V, prop. 31, schol)? Numa tal contemplag’o, de um 6 golpe # coisa individual se torna & idéia de sua cspécie, e 0 individuo que intui, 0 sujelto puro do conkecimenta. O individuo como tal conhece apenas coisas individuais; o sujeito puro do conheci- mento, somente idéias, Pois 0 individuo é o sujeito do conhecimento em sua rela- edo com um fendmeno individual determinade da vontade, de quem é servidor. Este fendmeno individual da vontade, como tal € subordinado ao principio de razio em lodas as configuragdes: todo conhesimento que se refere ao mesmo pro- cede por isto também do principio de raze, ea propésito da vontade também ne- nhum se presta 2 ndo ser este, que mantém sempre somente relagdes com 0 abje- to. © individuo que conhece, como tal, ¢ a coisa individual por ele conhecida, sempre esto ¢m algum lugar, um momento, ¢ si membros da cadeia de causas e efeitos. O sujcito puro do conhecimento, ¢ seu correlato, a idéia, se formaram a partir de todas aquelas formas do principio de razao: 0 tempo, 0 local, 0 indivi- duo que conhece, ¢ 0 individuo que é conhecido, nlio possuem significado para eles. primeciramente na medida em que um individuo conhecedor eleva-se a si proprio, do modo deserito, a sujeito puro do conhecimenta, ¢ com isto também 0 objeto observado, a idéia, que aparece puro ¢ por inteiro 0 mundo como repre- sentagdo, ¢ ocorre a objetivagao perfeita da vontade, j4 que unicamente a idéia é sua objetividade adequada. Esta encerta em si sujeito ¢ objeto por igual, uma vez que estes siio sua iinica forma: nela contudo ambos mantém estritamente o equili- brio: ¢ como também aqui o objeto nada é além da representagio do sujeito, assim também 9 sujeito, dissolvendo-se por inteiro no objeto observado, se toma ele proprio este objeto, na medida em que toda a consciéncia nada mais ¢ além da imagem limpida deste. & justamente esta consciéncia, cancebida como traspas- sada pela totalidade ordenada das idéias, ou graus da objetividade da vontade, que constitui propriamente todo o mundo como representapdo. As coisas indi viduais de todas as épocas ¢ lugares. nada mais sio do que as idéias, multipli- cadas pelo principio de raze (a forma do conhecimento dos individuos como tais), e por isso turvada em sua objetividade pura, Assim como, ao surgir a idéia, nao sio mais distinguiveis nela sujeito e objeto, porque é somente quando estes se complementam e se interpenetram completamente, que s¢ forma a idéia, a abjet- vidade adequada da vontade, 0 mundo como representagdo propriamente; do mesmo modo também o individuo que aqui conhece, e © qué é conhecido ja nao * Do sublime ao ridioulo no ha mais do que um passe. (N. do T.) + Qespirito ¢ ctemo enquame apreende 4s coisus do ponte de vista da eternidade,(N. do T.) 7* Recomendo tambdm o que afirma cm L. I. prop, 40, schot. 2, ¢ ainda L. V, prop. 25 « 38, sobre o cogne- to tert generis, ive innuitiva™ pars elucidar 0 raodo de conhscmento aqui referido, « particwlarmente Prop, 29, schol: prop. 36, sehol. ¢ prop. 38 demonstr. e schol, (No A) "© conbecimenso da terceira especie, i. ¢, © intuitive, (N.doT.) 14 SCHOPENHAUER so diferenciaveis. Pais se abstrairmos inteiramente daquele mundo camo repre- sentagdo propriamente dito, nada resta além do mnndo como vonrade. A vontade 0 em-si da idéia, esta objetivando perfeitamente aquela; ela também é 0 em-si da coisa individual ¢ do individuo que conhece esta: estes objetivando imperfcita- mente aquela. Como vontade, fora da representagao ¢ de todas as suas formas, cla € uma e a mesma, no objeto contemplado, ¢ no individuo que, elevando-se por esta contemplagao, se torna consciente de si como puro sujeito: estes dois por islo nao sao em si diferenciaveis, pois em si so a vontade que sé conhece a si mesma, © € somente do modo pelo gual este conhecimento se the constitui. i. ¢.. somente no fendmeno, gragas & sua forma, o principio de razao, multiplicidade ¢ diversi dade. Tampouco cu, sem 0 objeto, sem a representagao, sau suieito que conhece. mas tio-somente simples vontade cega: tampouco sem mim, como sujeito de conhecimento, a coisa conhecida ¢ objeto, mas tao-somente simples vontade, im- peto cego. Esta vontade é em si, i. e., fora da representagao, idéntica com a minha propria; somente no mundo como representacao, cuja forma é sempre pelo menos sujeito e objeto. nos separamos camo individu conhecide ¢ conhecedor. Supri- mido © conhecedor, 0 mundo como representago, nada resta além de simples vantade, impeto cego, Que ele adquira objetividade, se torne em representagao, instaura de um golpe, tanto sujeito como objeto: porém que esta objetividade soja objetividade pura, perfeita, adequada da vontade, instaura 0 obieio como idéia, livre das formas do principio de razio.¢ 0 sujeito como puro sujeito do conheci- mento, livre de indivicualidade c servidao para a vontade. Quem do mado deserito se aprofundou e perdeu na intuigio da natureza a tal ponto de nada ser além de puro sujcite cognoscente sentird de imediato que, como tal, se constitui na condigiio, portanto o suporte, da mundo ¢ de toda cx téncia objetiva, uma vez que esta se apresenta sigora como dependente da sua. Ele recolhe portanto a natureza em si mesmo, a senti-la somente ainda como um acidente de seu proprio ser. Neste sentido Byron diz: Are not the mountains, waves and skies, part Ofme and of my soul, as I of them?" Mas como pederia quem isto sentisse, considerar-se a si mesmo, em contraste com a imperecivel natureza, como absolutamente perecivel? Serd muito mais arrebatada pela consciéncia do proferide pelo Upanichade dos Vedas: Hae omnes creatirae in tozum ego sum, et praeter me aliud ens non est. (Oupnek’hat, 1, 122.)'2 $45 Para um exame mais profundo da esstncia do mundo, torna-se indispensivel aprender a distinguir a vontade como coisa em si, de sua objetividade adequada, 1" Nao sao. as montanhas, ondas ¢ mavens, como wine parte/De mim ¢ de minh alma, camo eu (N.do 7) 1 Sou todas estas crinturas ein conjunto, ¢ fora de mim 80 hi nenhum outro see: (N:do 7.) Wer camihem exp. 30do 2! vol. [de O Mundo, ..|.(N.do Ad ira elas? O MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTAGAO 15 os diversos graus em que esta aparece dé modo mais distinto ¢ peifeito, i. eas priprias idéias, do simples fenomeno das idéias na configuragao do principio de razdo, o modo limitado do conhecimento dos individuos. Assim concordaremos com Platiio, ao conceder esta existéncia propriamente dita somente ds idéias, recanhecendo, por outro lado, as coisas no espago ¢ no tempo, este mundo rea pera o individuo. apenas uma cxisténcia aparente, ilusdria, Entio nos daremos conta como uma e mesma idéia se revela em tantos fendmenos. apresentando sua csséncia aos individuos cognoscentes sé fragmentariamente, um lado aps 0 outro. Distinguiremos entio também entre « idéia mesma, e 0 modo pelo qual seu fendmeno se insere na observacao do individuo, reconhecendo aquela como essencial, esta como inessencial. Examinaremos isto por exemplos, primciro numa abordagem mais restrita, depois duma maneira mais ampla. Quando pas- Sim a8 nuvens, no lhes so essenclais as figuras que ¢las formam, lhes sio indi- ferentes: mas sim que como néven elastica, silo comprimidas pelo impacto do vento, levadas adiante, dispersas ¢ rompidas: esta é sua natureza, a esséncia das forgas que nelas se objetivam, é a idéia: as figuras ocasionais sio sorente para o observador individual, Ao cérrego rolando sabre pedras, os remoinhos. as ondas, as formagdes de espuma que cle mostra, so indiferentes e inessenciais; que obe- dogs ao peso, s¢ comporte como liquide inelastico, completamente sem rigidez, sem forma € transparente; esta é sua esséncia, esta ¢, quando intuitivamente conhecida, a idéia; apenas para nds, enquante conhecendo como individuos, ha aquelas configuragées. © gelo na janela se assenta conforme as leis da eristaliza- do, que revelam a esséncia da forga natural aqui aparente, representando a idéia: mas as figuras de arvores e flores assim formadas sao inessenciais, e existem ape- nas para nds. O que aparece nas nuvens, no cérrego e nos cristais, ¢ 0 mais débil eco daquela vontade, que se mostra de modo mais perfeito no vegetal, mais per- feito ainda no animal, do modo mais perfeito no homem. Porém somente o essen- cial de todos aqueles graus de sua objetivagao constitui a idéta: mas @ desdabra- mento desta, a0 ser estendido em fendmenos diversos ¢ miltiplos nas configuragoes do principio da razao; isto é inessencial a idéia. repousa apenas no modo de conhecimento do individuo ¢ unicamente para este possui realidade. O mesmo vale necessariamente também para o desdobramento daquela idéia que é @ objetividade mais perfeita da vontade; em conseqiiéncia a historia da humani- dade, a agitagaa dos acontecimentos. a mudanga dos tempos, as formas variadas da vida humana em paises e épocas diferentes, tudo isto é apenas a forma aciden- tal do fendmeno da idgia, no pertence a esta mesma, em que se encontra unica- mente a objetividade adequada da vontade, mas apenas ao fendmeno, que cai no conhecimento do individuo, ¢ € tao esjranho, inessencial ¢ indiferente 4 idéia ela mesma, como so as figuras as nuvens, a forma dos remoinhos ¢ das espumas para 0 cérrego, as arvores ¢ as flores para o gelo. Quem entendeu bem tudo isto, ¢ sabe distinguir a vontade da idéia, c esta de seu fendmenc, a este os acontecimentos do mundo terio significado somente enquanto sdo as letras em que é possivel ler a idéia do homem, mas ngo em e para si, No acreditard com a opinifio comum, que o tempo possa produzir algo verda 16 SCHOPENHAUER deiramente novo ¢ importante, que nele ou por meio dele algo efetivamente real adquira existéncia, ou mesmo que ele proprio, como um todo, possua comego € fim, plano ¢ desenvolvimento, ¢ porventura como objetivo ulkimo a perfeigio suprema (de acorda com seus conceitos) da tiltima geragdo de trinta anos. Por isto cle ndo compord, como fez Homero, todo um Olimpo com deuses para a diregZo daqueles acontecimentos temporais, nem considerara, como Ossian, as figuras das nuvens como seres individuais, visto que ambas as coisas tém igual importancia em relugdo a idéia nelas contida, Nas varladas forages da vida. humana ¢ nf incessante transformagao dos acontecimentos, ele considerard como o durdvel ¢ essencial somente a idéia, em que o querer-viver*® possui sua mai: perfeita objetividude, ¢ que mostra suas diversas faces nas propricdades, paixdes, enganos ¢ preferéncia da espécie humana. no egoismo, Adio, amor, temor, audé- cia, leviandade, estupidez, csperteza, humor, génio, etc., que, se reunindo e combi- nando em configuragées mil (individuos), apresentam continuamente a grande ¢ a pequena comédia da historia do mundo, sendo indiferente se seu mével é consti- wwido por nozes ou coroas. Por fim, perceberd que tudo sucede ne mundo como nos dramas de Gozzi, em todos as quais se apresentam sempre as mesmas pes soas, como igual propdsite e igual destino; é certo que os motives ¢ aconteci- mentos siio diferentes em cada pega: mas o espirito des acontecimentos é 0 mesmo: as pessoas de uma pega também nada sabem dos acontecimentos duma outra, em que porém clas mesmas atuavam: por isto, apos todas as experiéncias das pegs anteriores, Pantaledo nao se tornou mais agil ou gencroxo, ‘Tartaglia, mais eserupuloso, Briguela, mais corajose, ¢ Colombina, mais virtuosa. Suponhamos que nos fosse dado obter uma viséo distinta no teino das possi- bilidades ¢ sobre todas as cadeias de causas ¢ efeitos, que o espirita do mundo se apresentasse € nos mostrasse em um Unico quadro o4 mais excelentes individuos, sdbios ¢ herdis, destruidos pelo acaso antes do momento de sua eficdcia — e entio os grandes eventos, que teriam Lransformado a histéria do mundo ¢ trazido periodos da mais alta cultura e esclarecimento, impedidos em seu surgimento pela mais ezya casualidade, o mais insignificante imprevisto — finalmente as maravi- Ihosas forcas de grandes individuos, capazes de fertilizar eras inteiras, que estes porém, por engano ou paixio, ou premidos pela necessidade, desperdigaram inutilmente em objetos indignos ¢ infecundos, ou mesmo as esbanjaram por gdu- dio; vissemos tudo isto, nos horrorizariamos ¢ lastimariamas os tesouros perdi- dos de épocus inteiras. Mas o espirito do mundo se tomaria de um sorriso e diria: “A fonte de que jorram os individuos e suas forgas ¢ inesgotivel ¢ infinita como © tempo e © espace; pois aqueles so, justamente como estas formas de todo fend- meno, também somente fendmen, visibilidade da vontade. Medida finita alguma pode esgotar aquela fonte infinita; ¢ por isto a todo evento, ou obra, sufocada em germe, ainda se apresenta em aberto para o retormo a infinidade intata. Neste mundo do fendmeno ha tio pouco prejuizo verdadcito possivel, quanto verda- deiro lucro. Unicamente a vontade é: ela, a coisa em si, ela, a fonte daqueles fend- "3 ‘Tradueimos Witke aum Leben por querer viver, coufurme a verso frances vouluir- vivre, (N. det.) O MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTAGAO 7 menos, Seu autoconhecimento, ¢'a afirmagdo ou negagio decidida a partir deste, £0 tinieo acontecimento em si”.* * 536 Seguir 0 fio dos acontecimentos & ocupagdo da histéria: ela & pragmitica ‘ao deduzi-ls pela lei da motivacdo. lei que determina a vontade fenoménica ali onde esta ¢ iluminada pelo conhecimento, Nos graus inferiores de sua objetivi dade, em que ainda age sem conhecimento, a lei das transformagdes de seus fend- menos & examinada pelas ciéncias naturais, como etiologia, e o que neles é permanente, como morfologia, que torna mais facil sua tarefa quase infinita com 9 auxilio dos conceitos, reunindo o geral. para dele deduzir o particular. Final- mente. as formas puras, em que. para o conhecimento do sujeito como individuo, as idéias aparecem multiplicadas, portanto ¢ tempo ¢ 0 ¢spago, so examinadas pela matematica. Tudo isto, que em comum recebe 0 nome de ciéncia, obedece portanto ao principio de razdio em suas diversas configuragdes. © seu tema perma- nee o fendmeno. suas leis, sun conexde ¢ as relagdes assim originadas. Mas que espécie de conhecimento examinaré entiio o que existe exterior e independente de toda relagio. tinico propriamente essencial do mundo, 0 verdadeire contetido de seus fendmenos, submetide a mudanca alguma e por isto conhecida com igual verdade a qualquer momento, em uma palavra, as idéfas, que constituem a objeti- vidade imediata ¢ adequada da coisa em si, da vontade? Ea arte, a obra do génio. Ela reproduz as idéias cternas, apreendidas mediante pura cantemplagdo, o essen- cial ¢ permanente de todos os fendmenos do mundo, ¢ conforme a matéria em que ela reproduz. se constitui em artes plasticas, poesia ou musica. Sua dnica origem € © conhecimento das idéias: seu tinico objetivo, a comunicagae deste conheei- mento, Enquanto a ciéncia, perseguindo a torrente incessante e instivel das cau- sas ¢ dos efeitos, em suas quatro formas, em cada meta atingida é continuamente forgada adiunte, sem poder atingir um objetivo dltimo, uma satisfagac plena, assim como nio podemos correndo atingir 6 ponto onde as nuvens tocam o hori- gonte; ao contrario, a arte sempre est em seu objetivo. Pois cla arranca do curso dos acontecimentos do mundo o objeto de sua contemplag4o. isolando-o frente a Si: ¢ este algo individual, que era uma parte imensamente pequena naquela torren- te, torna-s¢ seu representante do todo, um equivalente do infinitamente numeroso: no espaco ¢ no tempo: ela permanece portanto neste individual, detém a roda do tempo, as relagdies desaparecem para ela, somente o essencial, a idéia, & seu obje- to, Assim podemas mesmo designa-la como o mado de encarar as coisas indepen- dentemente do principio de razdo, em aposigao Aquele que a este obedece, que & a via da experiéneia ¢ da ciéneia. Este dltimo modo é comparavel a uma linha infinita, horizontal; o primeizo, contudo, 4 vertical que a corta em qualquer ponto desejado. O que se dé canforme o principia de razao, & 0 procedimento racional, © Becta dltima eiticio niko pode ser eniendida sem a liveo sezuiene, (IV, O Mando...) (N.doA.) ‘Ver para (auto us cap. 12 14 du 2" vol, Ue Murergu © Paratipomena, msta mesmacdigdo. (N. do'T.) 18 SCHOPENHAUER tinico valido ¢ iti! na vida-pratica, bem como na-ciéneia: o que abstrai do con- teade daquele principio, € 0 procedimento genial, inico valido e dtil na arte. O primeiro é © procedimento de Aristteles; o segundo é, em seu canjunto, o de Pla- tio. O primeiro é igual & tempestade, propagando-se sem origem nem meta, tudo arqueando, agitando ¢ arrastando; 0 segundo, ao sereno raio de sal, cortando o caminho desta tempestade, sem ser por esta afetado. O primeiro é igual as gotas inumerdveis ¢ agitadas da cachocira, que, em permanente renovagao, nao repou- sam um s6 instante:'o segundo, so trangiiilo arco-iris em reppuso sabre esta firia tumultuosa. Somente mediante a contemplagdo pura acima descrita, inteiramente absorvida no objeto, as idéias podem ser captadas, ¢ a esséncia do génio consiste justamente na capacidade predominante para tal contemplagao: como esta requer um esquecimento completo da propria pessoa ¢ de suas relagSes; assim a geniali- dade nada mais é do que a mais perfeita objetividade, i. e., orientagdo objetiva do espirilo, contraposta a subjetiva, dirigida 4 propria pessoa, i. e., 4 vontade. Desta forma, a genialidade é a capacidade de se comportar apenas intuitivamente, se perder na intuigao ¢ arrcbatar 0 conhecimento, existente originalmente somente para tal fim, ao servigo da vontade. i, ¢., abstrait por completo de seu interesse, seu querer, scus abjetivos, despojar-se por um tempo inteiramente de sua persona- lidade, para permanecer como sujeito pure do conheeimento, \impida vista do mundo: ¢ isto no por instantes, mas durante o tempo necessdrio, ¢ com tal circunspeccio, para reproduzir o apreendido mediante uma arte estudada, e assim “o que paira cm imagens oscilantes, ser firmado em pensamentos perma- nentes”. Tudo se passa como se, para o génio se mostrar num individuo, a este deve ter correspondide uma medida de forga intelectual bem superior a necessaria aa servigo de uma vontade individual; exeedente livre de conhecimento, consti- tuindo agora um sujeito isento de vontade, espelho luminoso da esséncia do mundo. Isto explica a vivacidade intrangiiila em individuos geniais, ao lhes ser rarimente suficiente o presente por n&o preencher sua consciéneia; o que lhes con- fere sua dedicagao incansavel, sua permanente procura de objetos novos e dignos de consideragdo, ¢ também sua quase nunca satisfeita busca de seres scmelhantes, A sua altura, com quem se comunicar: enquanto o mortal comum, completamente preenchido ¢ satisfeito pelo presente ordinario, nele ¢ absorvido, ¢ encontrande Por toda parte seus semelhantes possui no din a dia aquele conforto, que & recu- sado ao génio, A fantasia foi reconhecida como um integrante substancial da genialidade, tendo mesmo com ela por vezes sido identificuda: aquilo com raziio, isto n&o. Os objetos do génio como tal sendo as idéias eternas, as formas essen- ciais permanentes da mundo ¢ de todos seus fendmenos, o conhecimento da idéia sendo contudo necessariamente intuitivo, e nao abstrato; 0 conhecimento do génio seria limitado as idéias dos objetos verdadeiramente presentes a sua pessoa, ¢ dependente do encadeamento das circunstancias que estes Ihe apresentassem, no ampliasse a fantasia o seu horizante bem acima da realidade de sua expe- riéacia pessoal, situando-o numa posicdo tal a construir, a partir do pouco intro. duzido em sua verdadeira apercepsiio, todo o restante, desfilando por si assim quase todos os quadros possiveis da vida. Além disto, os objetas verdadeiras O MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTACAO 19 quase sempre siio apenus exemplares bem lecunosos da idéia que neles se apre- senta: por isto 0 génio necessita da fantasia, para enxergar nas coisas nao somen- te aquilo que a natureza realmente formou, porém o que pretendia formar, mas sem sucesso, dua n luta de suas formas entre si, mencionada no livro precedente. Retomaremos isto mais adiante, ao tratar da escultura, A fantasia, portanto, am- plia a visio do génio sobre as coisas apresentadas na realidade a sua pessoa, tanto com respeito & qualidade, coma a quantidade, Par isto farca excepcional da fantasia € companheira, e mesmo condigio, da genialidade. Porém, inversamente, aquela nao comprova esta; pois mesmo pessoas nao geniais em alto grau, podem Bossuir bastante fantasia. Porque como ¢ possivel considerar um objeto real de duas maneiras opostas: de medo puramente objetivo. genial, assimilando a sua idéia: ou de modo ordindrio, somente em suas relagSes conferme o principio de faz&o com outros objetos ¢ com a propria vontade; assim também é possivel con- templar uma imagem iluséria segundo estes modos: pelo primeiro, constitui um meio para 0 cenhecimento da idéia, cuja comunicagio é a obra de arte; no segun- do caso, a imagem iluséria é utilizada para construir castelos no ar, que agradem 30 egoismo ou ao capricho préprio, iludem momentaneamente e deliciam; enquanto das imagens ilusdrias assim combinadas propriamente apenas as rela- gdes siio conhecidas. Quem se diverte num tal jogo, & um fantasista: facilmente mesclara as imagens, com que se delicia solitariamente, cam a realidade, tornan- do-sc assim imprestvel para esta: talvez Ihe ocorra relatar as fraudes de sua fan- tasia, que se constituirda comumente em romances de todos os tipas, a entreter scus semelhantes ¢ 0 grande piblico, ao se imaginarem os leitores no lugar do herdi, encontrando assim a representagao bem “agradavel”, O homem comum, este produto industrial da natureza, tal como esta @ apre- senta diariamente aos milhares, & incapaz, ao menos de mada persistente, de uma abservagiio em todo sentido inteiramente desinteressada: ele pode dirigic sua aten cdo as coisas somente enquanto estas apresentam uma relagio qualquer, mesmo. que apenas moi mediatizada, com sua vontade. Como a este respeito. que solicita sempre apenas o conhecimento das relagdes, o conceito abstrato da coisa é sufi- ciente ¢ em geral mesmo mais itil, 0 homem comum nao permanece muito tempo com a pura intuigdo, nao fixando por muito tempo sua visio num objeto, mas pro- cura em tudo que se |he apresenta, apenas rapidamente o conceito sob o qual 0 alojar, assim como o indolente procura a cadeira, apos o que isto ja no the inte- ressa. Por isto ele esgota tudo com rapidez, obras de arte, abjetos belos da nature- za, € a visdo propriamente sempre significativa da vida em todos os seus atos. Ele, porém, nao se demora: procura apenas seu caminho na vida, quande muito 0 que ainda poderia vir a sé-lo, portanto, noticias topogrificas em seu sentido mais amplo: nfo perce tempo com a contemplagio da vida como tal. O génio, contudo, cuja Faculdade de conhecimento, dado seu sobrepeso, se subtrai por uma parte do seu tempo, ao servigo de sua vontade, perseverando na contemplagao da propria vida, ambicionando apreender a idéia de todas as coisas, ¢ nae suas relagdes com ‘outras coisas: destarte descuidando freqiientemente da observagao de seu proprio vaminho na vida, que percorre na maioria dos casos com suficiente inabilidade. * SCHOPENHAUER Enguanto para o homem comum sua faculdade de conhecer é a Junterna que itu mina seu caminho, para o homem de génio é o sol que revela o mundo. Esta maneira tao diferente de encarar a vida rapidamente torna-se visivel mesmo em seu exterior. O olhar do homem, em que reside ¢ atua o génio, o distingue com facilidade, 20 portar. viva ¢ firmemente, 0 cardter contemporizador da contempla: Ho: que podemos ver nos retratos das poucas cabogas geniais, produzidas entre os inumeriveis milhdes aqui ¢ ali pela natureza; em contraste, no olhar dos Outros, quando este ndo &, como weralmente acdrre, destituido de expiritag cleva Ga0, discernimos, com facilidade, o verdadeiro oposto da contemplagdo, ¢espiar, Assim a “expresso genial” de uma cabega consiste em tornar visivel uma deei siva preponderdncia do conhecer em relagdo ao querer, ¢ em conseqiiéncia tam- bém um conhecer destituide de qualquer relagao com um querer, i. ¢., xm conhe- cer puro. Ao céntrario, em cabegas regulares, a expressiio do querer é dominante, € torna-se claro que 0 conhecer sempre é movide pelo querer, assim dirigindo-s somente a motivos. Sendo o conhecimento genial, ou conhecimento da idéia, o que nfo obedece ao Principio de razao, e por outro lado, aquele que the obedece, outorga esperteza ¢ sagacidade na vida e origina as ciéncias; os individuos geniais serda afetados com as caréncias provocadas pela negligéncia do altima modo de conhecimento. Con- tudo hd que fazer a restric de que tudo 0 abordado aqui neste sentido, somente thes dir respeito enquanto cstiverem efetivamente no exercicio do modo de conhecimento genial, o que de modo algum ocorre em todos os momentos de sua vida, j4 que a grande tensa, por mais espontinea, requerida para a percepgac das idéias isenta de vontade, necessariamente sofre um félaxamento, portando grandes intervalos em que. tanto no que se refere as vantagens quanto as deficién- Cias, sua situagao se assemelha bastante a dos homens comuns. F por isto que i agiio do génio desde sempre foi encarada como uma inspiragio, e como o pr prio nome indica, como a atividade de um ser sobre-humano, distinto do indivi- duo ele mesmo, ¢ que apenas periodicamente dele se apropria. A aversio dos indi- viduos de génio, em dedicar atengao 20 contetido do prinetpio de razio, se upre- Sentara em primeiro lugar em relagdo- ao principio do ser,’ * como aversao pela matemitica, cujas consideragdes dizem respeito as formas mais gerais do fendme- No, do espago e do tempo, elas proprias somente configuragdes do principio de razao, sendo ‘assim precisamente o posto daquela consideragiio que procura jus- lamente apenas o conteddo do fendmeno, a idéia que nele se manifesta, abs- traindo de todas ax relagSes. Além disto o tratamento Iégico dado & matematica repugnaré ao génio, j4 que este, impedindo a compreensao propriamente dita, nao Satisfaz, mas oferecendo um simples encadeamento de conclusées conforme o principio de razdo de conhecimento, solicita de todas as faculdades do espirito, sobretudo a memoria, para estarem Presentes sempre todas as proposigdes ante- riores, as quais hd que se reportar. Também a experiéncia confirmou que grandes ‘* Come para nis Saiz wom Grund se torna principio dé ra2é0, 0 termo aqui cferdto,originalmente Gran ede des Soins. poderia ser também tarda do ser: pote dev Saus vom Crate sles Soins £ © principia de rus do ser. (N, dot) © MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTAGAO 2 génios da arte mio possuem capacidade para a matemAatica: jamais houve homem notavel em ambas simultaneamente. Alfieri narra nao ter mesmo nunca entendida sequer 0 quarto teorema de Euclides, A Cioethe se reprovou muito a caréncia de conhecimento matematico, por parte de adversdrios inéptos de sua teoria das cores: justamente aqui, onde nao se tratava de calcular ¢ medir sobre dados hipo- téticos, mas de intelecgdo imediata da causa e do efeito, aquela reprovacdo cra a tal ponto injusta c indevida, que por ¢la os criticos revelaram sua total auséncia de capacidade de juizo, camo o fizeram com todas suas outras expressdes dignas de Midas. Que mesmo hoje, quase meio século apds.o surgimento da teoria das cores de Goethe, inclusive na Alemanha, os ilusionistas newtonianos se mantém tranquiles de posse das catedras ¢ se prossegue. com inteira seriedade, a falar das sete cores homogéneas ¢ de sua diferente refragiio — isto seré inclufdo algum dia entre 0§ grandes tragos intelectuais do carater da humanidade em geral, ¢ da germanidade em particular. Pela mesma razao acima exposta se esclarece 0 fato igualmente conhecido de que, pelo contrario, excelentes matematicos possuem pouca receptividade para as obras das belas artes, o que transparece de maneira particularmente ingénua na conhecida anedota daquele matemiatico francés que apds a leitura da Iigénia de Racine perguntava encolhendo os ombros: Qu’est-ce- que cela prouve?'* Como além disto uma comprecnsdo aguda das relagdes con- forme o principio da causalidade ¢ motivagao constitui propriamente a esperteza, o conhecimento genial porém nao se orienta para as relagdes; um homem esperto, enquanto:o for, nao sera genial, e um homem genial, cnquanto o for, nao seri “esperto. Por fim, 6 conhecimento intuitivo. em cuja area se localiza sobretudo a idéia, & diretamente oposto ao conhecimento racional. ou abstrato. orientado pelo principio de razio do conhecimento. Também raramente se encontra grande genialidade aliada ao predominio de racionalidade. pelo contrario, individuos geniais sa0 dominados freqientemente por. afecgdes violentas ¢ paixdes irracio- nais. O motivo disto contuda’ nao é fraqueza da razio, mas em parte a energia descomunal do fendmeno da yontade em conjunto, que é 0 individua de génio, a qual se manifesta pela violéncia de todas as agSes da vontade, em parte o predo- minio do conhecimento intuitivo pelos sentidos ¢ pelo entendimento, sobre 0 abs- trato, donde uma orientacao decisiva para o intuitivo, cuja impressdo enérgica em altissimo grau ultrapassa neles os conceitos incolores, a tal ponto que nao mais sio estes, mas aguela a dirigir a agdo, a tornar-se justamente assim irracional: assim a impressio do presente sobre os génios ¢ muito poderosa, arrastando-os ao irrefletido, & afecgiio, i paixio. Por isto também, @ sobretudo porque seu conhecimento se subtraiu em parte a0 servigo da vontade, durante a conversagio pensardio mencs na pessoa a quem, e mais na coisa de que falam, vivamente pre sentes em séu espirito; julgando e narrando assim de maneira excessivamente objetiva para scu interessc, sem calar o que mais sabiamente scria calado, otc. E Finalmente por ist que mostram tendéncia an mondloga, podendo inclusive mos- war varias fraguezas ¢ aproxima-los realmente da loucura. Que a genialidade ¢ a 1 O gue isso demonstra? (N. de T.) a2 SCHOPENHAUEFR loucura possuem um lado pelo qual se encontram, ¢ até se confundem, ja foi ‘observado com freqiiéncia, © mesmo o’entusiasmo artistico ja foi denominado uma espécie de loucura: amabilis insania the chamou Horacio (Odisséia, UIT, 4) ¢ holder Wahnsinn (adordvel toucura), Wieland na introdugae ao Oberon. Con- forme Séneca (De Tranquilitate Animi, 15, 16), mesmo Aristételes alirmou: Nul- Jum magnum ingenium sine mixtura dementiae fuit.’? Platao o exprimiu, no mito da caverna abordado mais acima (De Republica, 7), dizendo: Aqueles que, no exterior da caverna enxergaram a verdadeira luz do sol e og objetos verdadeira- mente existentes (as idéias), nao conseguem mais enxergar na caverna, pois seus olhos sc desacostumaram da escuridao, no conseguem mais reconhecer bem as silhuctas, ¢ por seus enganas sio motives de zombaria por parte dos outros, que Tunca se afastaram desta caverna ¢ destas silhuctas. Também no Fedro ele afirma que sem uma certa Joucura io existiria nenhum legitimo poeta, que qualquer um que conhece as idéias eternas nas coisas transitérias apareceria como louco. Tam: bém Cicero declara: Negat enim, sine furore, Democritus, quemquam poétam magnum esse passe; quod idem dicit Plato (De Divinatione. 1, 37).'° E finalmente diz Pope: Great wits to madness sure are near allied, And thin partitions do their bounds divide.'* Particularmente instrutivo a este respeito ¢ © “Torquato Tasso” de Goethe, em que situa a nossos olhos nao somente o sofrimento, o martitio essencial do génio como tal, mas também sua constante transi¢ao a loucura. Por fim, o paren- tesco estreito entre genialidade e loucura é confirmado pelas biografias de alguns homens geniais, como Rousseau, Byron, Alfieri, e por anedotas da vida de alguns outros; devo por outro lado aereseentar ter encontrado, em fieqdentes visitas acs hospicios, sujeitos isolados, de talento indiscutivelmente grande, cuja genialidade transpirava nitidamente através da loucura. que contudo se mantinha totalmente dominante. Isto nao pode ser atribuido ao acaso, porque de um lado o nimero dos loucos ¢ relativamente bem pequeno, por outro Lada porém porque um indivi- duo genial £ um fenémeno raro, para além de qualquer avaliagao normal, ¢ que aparece na natureza somente como a maior das exceges: para nos convencermos deste fator, basta tomar 03 génios verdadeiramente grandes produzidos pela tota~ lidade da Europa culta durante toda a época antiga e moderna, incluindo porém unicamente os que produziram obras de valor permanente para a humanidade — conta-los ¢ compar4-los em miimero aos 250 milhdes gue habitam a Europa, reno- vando-se a cada 30 anos. Nao quero deixar de mencionar que conheci algumas Pessoas de superioridade intelectual decisiva, mesmo que nao significativa, que 1 Menhum grange espirito existin sem mesela de lowoute. (N-doT,) 1 Demécrita nes que tivesse havide qualquor grende posta inents de lousuru; o mesmo aif Plaud, ('N, dot) \ O grande esprito 4 loueult! por certo & bert aliado, 1 catsitan divisics mantGiu suas dress em Separado, (N, 0) © MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTACAO aa apresentavam ao mesmo tempo leves tragos de doidice. Assim pode parecer que iodo aeréscimo de inteligéncia acima dos padrées normais pradispde, como ano- malia, & loucura, Entrementes desejo expor do modo menos extenso possivel minha opinido acerca da razao estritamente intelectual daquele parentesco entre a genialidade ¢ a loucura, esta exposig&o contribuindo para a explicagio da esséncia propriamente dita da genialidade, i, ¢., daquela qualidade intelectual uni- camente capaz de criar obras de arte legitimas. O que porém torna necessaria uma pequema expasigaio da loucura ela mesma.?° Uma visio clara e completa da esséncia da loucura, um conceito preciso nitide do que diferencia propriamente 0 louce do homem sao, a meu saber ainda no se cncontrou. Nem razio, nem entendimento podem ser negados aos loucos, pois cles fulam ¢entendem, com freatiéncia raciocinam com justeza: tambem, via de regra, encaram o presente corretamente e reconhecem a conexdo entre causa © efeito. Visdes, assim como os delirios febris, nio sio.um sintoma usual da loucd- ra. O delirio falsifica a intuigao: a loucura, os pensamentos. Na maior parte das vezes 0§ loucos nao erram no conhecimento do presente imediato, mas suas diva- gagdes referem-se sempre ao ausente © passado, © somente por este intermédio com o presente. Por isto sua doenga me parece atingir em especial a memoria: nao de um modo tal que esta thes seja inteiramente ausente, pois muites deles sabem muitas coisas de meméria e por vezes reconhecem pessoas, que nfo viam de h4 muito; mas de forma ta! que o fio da meméria esté rompido, 0 continuo encadeamento da mesma est4 ausente, sendo impossivel qualquer recordagio uniformemente conexa, Cenas isoladas do passado s¢ situam de modo correto, assim como o presente individual; porém em sua recordagao hi lacunas, que entio preenchem com ficges, que ou sid sempre as mesmas, tornando-se idéias fixas (trata-se entao de fantasias fixas, melancolia), ou so scmpre idéias diferen- tes, momenténeas (seu nome entéo é deméncia, fatuitas). Por este motivo é tao dificil inquiriro curso da vida precedente de um louco, a sua entrada no hospicio, Entdo sempre mais se confude em sua meméria o verdadciro com o falso. Embo- rm a realidade imediata seja percebida com exatidao, ela é falsificada pela cone- xo simulada com um passado imaginado: consideram entdo a si proprios € a ou- {ros como idénticos com pessoas, localizadas unicamente em seu passado Ficticio, ndo reconhecem mais muitas pessoas de seu relacionamento, possuindo, em uma Tepresentagao correta do presente individual, apenas relagdes falsas do mesmo _com 9 passado. Atingindo a loucura um grau clevado, se produz uma total ausén cia de meméria, sendo entio ¢ louco ineapaz de qualquer considerago com algo ausente ou passado, sendo determinado unicamente pela disposi¢do momentanea, em conexdo com as fiegdes, preencher o passado em sua cabega: a menos que se demonstre constante superioridade, no se esta a seguro de maltrato ¢ assassinato de sua parte. O conhecimento do louco possui em comum com o do animal o serem ambos limitados ao presente: contudo o que os distingue é o seguinte: 0 79 Yer cap. 31 do22 vol. [de Mundo...) (N.doA.) x» SCHOPENHAUER animal nao tem propriamente uma representagao do passado como tal, embora este atus sobre 0 animal por meio do habito, assim por exemplo, o cdo reconhece, mesmo apés anos, 0 seu antigo dono, j. ¢., obtém a partir de sua visio a impres- séo costumeira: mas do tempo decorrido ele no possui recordagao: 0 loueo, pelo contrario, conserva em sua raza sempre um passado in abstracta, porém falso, existindo somente para ele, ¢ isto sempre, ou apenas agora. A influéncia deste falso passado prejudica, assim, mesmo a utilizagio do presente corretamente reconhecido, feita com justeza pelo animal. Que o padecimento espiritual intenso, acontecimentos terriveis imprevistas, freqiientemente provocam loucura, eu expli- co da mancira seguinte: todo sofrimento deste tipo sempre esta limitado, como acontecimento real, ao presente, portante € somente passageiro ¢ nesta medida suportivel; torna-se grande em excesso apenas como dor permanente, mas, como tal, é novamente apenas um pensamente situando-se na preméria; quando entio uma tal magoa, um saber ou lembranga, tio doloroso, é 4 tal ponto penoso que se torna insuportivel, ameagando o individuo de destruigao, entZio a natureza a tal ponto aterrorizada recorre 4 fowcura como ao iltimo meio de salvagao da vida; o espirico to atormentado rompe 0 fio de sua memoria, preenche as lacunas com ficgdes e se refugia do espiritual que ultrapassa suas forgas na loucura, assim como se amputa um membro grangrenado, substituindo-o por um artificial. Considere-s¢ como exemplo Ajax em fuiria, o rei Lear e Ofélia: pois as eriaturas do verdadeiro génio, a que unicamente podemos nos referir aqui, como ¢ do conhecimnento geral, so igualaveis em verdade a pessoas reais: além disto, a fre- qGente experiéncia real demonstra o mesmo. Constitui uma analogia fraca deste tipo de transigfio da dor A loucura, o tentarmos todos nds afastar uma lembranga desagradivel, vinda repentinamente 4 mente, como que de modo mecinico, mediante qualquer movimento ou exclamagao em vor alta, tentando desviar a atengiio, por forga nos distrair, Vendo im © louco reconhecer o presente individual, tamhém muito do passada individual, de modo correto, sem fazé-lo contude com a conexao, as rela- gGes, agindo ¢ falando entio de mancira adoidada; percebemos neste o seu ponte de contato com © individuo genial: pois também este, abandonando o conheci- mento das relagdes, que é conforme ao principio de razdo, para ver nas coisas apenas suas idéias, e procurar apreender sua esséncia apresentada intuitivamente, 4 cujo respeito uita coisa representa © conjunto da sua espécie, fazendo, nas pala- vras de Goethe, um caso valer mil, também o homem de génio negligescia o canhecimento das rclagdes das coisas: o objeto individual de sua contemplacao ‘ou. © presente por ele apreendido com demasiada vivacidade se revelam numa luminosidade tal, que as outras articulapdes da cadeia a que pertencem sao ‘Obscurecidas, no que resultam fendmenos que possuem semelhanga de ha muito reconhecida chm as da loucura. O que no objeto individual existe apenas em esta- do imperfeito ¢ debilitado por modificagdes, © modo de consideracao do genio realga a idéia, a perfeigdo: vendo extremos por toda parte, sua conduta também Se Wraduz em extremos, nao consegue atingir a justa medida, falta-lhe moderagao, O MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTAGAO Be © 0 resultado é 0 deserito. Ele reconhece perfeitamente as idéias, mas nao os indi- ¥éduos. Por isto, como jé assinalamos, um poeta pode conheeer profunda meticulosamente 0 homem, porém muito imperfeitamente os homens: é enganado cam facilidade, e um joguete naé maos dos astutos.?" §37 Muito embors, de acordo com nossa exposigiio. 9 génio consista na capaci- dade de conhecer de modo independente do principio de razao, e assim nao as coisas individuais, que possuem sua existéncia somente na relgciio, mas sim suas idéias. contracenando com estas como o correlate da idéia, ja nao sendo mais individuo, porém sujeito puro do conhecimento; esta faculdade, em grau diverso ¢ mais reduzido, deve ser inerente a tades os homens, pois caso contrario nao se- riam capazes de apreciar as obras de arte, como no o sao de cria-las, ndo tendo receptividade alguma para o belo ¢ sublime, palavras que inclusive no teriam sentido para cles. Ha que admitir como presente em todos os homens, a menos que haja algunas totalmente incapazes de qualquer prazer estético, esta capacidade de conhecer as idéias nas coisas, exteriorizando-se assim momentaneamente de sua personalidade. O ginio possui frente a cles somente o grat muito superior € A pezsisténcia maior deste modo de conhecimento, vantagem que'lhe garante a reflexfio requerida para reproduzir, numa obra arbitraria. @ assim conhecido, reprodugiio que € a obra de arte. Através dela, cle comunica ads outros a idéia apreendida. Esta permancco inalterada: por isto o prazer cstético é essencial- mente iinico, seja originado por uma obra de arte, ou de forma imediata pela intuigdo da natureaa ¢ da vida. A obra de arte é somente um meio de facilitar este conhecimento em que consiste aquele prazer. Se perecbemos com mais facilidade" a idéia na obra de arte, do que imediatamente na natureza ¢ na realidade. isto é devido a que o artista que conheceu apenas a idéia ¢ nao mais a realidade tam- bem reproduz em sua obra unicamente a idéia, isolande-a da realidade, supri mindo todas as contingéncias perturbadoras. O artista nos permite contemplar 0 mundo por seus olhos. Que possua tais olhos, que cle conhega o essencial das coi- sas, destituido de todas as relagdes, constitui a dom do génia, o inato; mas que seja capaz de nos ceder este dom, nos emprestar seus olhos, esta & a parcela adquirida, o tecnico, da arte. Por este motive, apés haver expasto, no precedente, em suas linhas mais gerais, a natureza interna do modo de conhecimento estético, 4 consideragao filosdfica de um angulo mais proximo, a seguir, acerca do belo e do sublime, examinara ambos simultancamente na natureza e na arte, sem conti- quar persistindo em sua distingda, Examinaremos antes de tudo 0.que ocorre no homem, quando afetado pelo belo, pelo sublime: que esta afetagio procede de modo imediato da natureza, ou somente pela mediagio da arte, fundamenta ape- nag uma distingao exterior, inessencial. "Ver cap. 32 do 2" vol, [de O Mundo, {N. do A) 26 SCHOPENHAUER § 38 Encontramos na contemplagao esiéticn dais elementos insepuncivel conhecimento do objeto. n3o como coisa individual, mas idéia platonic: ey, forma permanente deste conjunto de coisas: ¢ a consciencia de si do sujeito cognoscente, nfio como individuo, mas como sujeito puro, independente da vonta- de, do conkecimento. A condigio sob a qual ambas as partes aparecem sempre reunidas era o abandono do modo de conhecimento preso ao principio de tazao, que por sua vez é a tinica que se presta ao servigo da vontade e & ciéncia. Tam- bém o prazer estabelecido na contemplagao do belo ser praveniente destes dois ¢lementos, contribuindo, ora um, ora outro, conforme seja 0 objeto da contempla- Gio estética. Todo querer se origina da necessidade, portanto, da caréncia. do sofrimento, A satisfac Ihe pe um termo; mas para cada desejo satisfeito, dex permanecem itrealizados. Além disto, o desejo é duradouro, as exigéncias se prolongam ao infinit satisfagao é curta ¢ de medida escassa. O contemtamento finito, inclusi- ve, é somente aparente: © desejo satisfeito. imediatamente da lugar a um outro; aquele ja ¢ uma ilusio conhecida, este ainda nao, Satisfagdo duradoura ¢ perma- nente objeto algum do querer pode fornecer; é como uma caridade oferecida a um mendigo, a Ihe garantir a vida hoje prolongar sua miséria 20 amanha. Por isto, enquanto nossa conseiéneia & preenchida pela nossa vontade, enquanto submeti- dos a pressio dos desejos, com suas esperangas ¢ temores, enquanto somos sujei- tos do querer, nao possuiremos bem-estar nem repouso permanente. Cacar ou fugir, temer desgracas ou perseguir o prazer, é essencialmente a mesma coisa; a preocupacao quanto 4 vontade sempre exigente, seja qual for a forma em que o faz, preenche ¢ impulsiona constantemente a consciéncia; sem repouso porém nilo € possivel qualquer bem-estar. Destarte, 0 Sujeito da vontade estd constante- mente preso a roda de Ixion, colhe continuamente pelas peneiras das Danaides, constitui o eternamente supliciado Tantalo. Contudo, quando um cstimulo exterior, ou uma disposigao interior, nos arranca da torrente infinita do querer, libertando © conhecimento do servigo da vontade, @ atengdo nao € mais dirigida para os motives do querer, compreen- dendo as coisas livres de sua relagdo com a vontade, ¢xaminando-as sem interes; se, sem subjetividade, de modo estritamente objetivo, abandonando-se a elas ehquanto representagSes © nfo enquanto motivos: entao se apresenta de um golpe aquele reponso, que tanta se buscow por aquela primeira via, instituindo um bem-estar total. E o estado sem sofrimento, estimado por Epicure como o mais. clevado dos bens € como o estado dos deuses, Pols estamos a todo momento li- vres do impertinente jugo da vontade, festejamos 0 sébado do trabalho forgado do querer, a roda de Ixion esta em repouso, Este estado 6 precisamente o descrito acima como exigéncia para o conheci mento da idéia, como contemplacio pura, dissolugao na intuigio, perda no obje to, esquecimento de toda individualidade, supressiio do modo de conhecimento submetido ao principio de razao e que apreende apenas relagGes,¢ cm que, simul- O MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTACAO a7 tnea © inseparavelmente, a coisa individual observada se eleva a a de sua espécie, 0 individuo cognoscente ao sujeito puro do conhecer liherto da vontade, ambos como tais nao sc situam mais no curso do tempo e de todas as outras relagSes. Entio torna-se indiferente contemplar o poente do interior de uma pri- ‘ou de um palacio. Dispasigao interior, predomindneia do conhecer sobre 0 querer, pode sob quaisquer circunstancias provocar este estado. Isto provam estes admiraveis fa- mengos, que dirigiam uma tal intuigéo estritamente objetiva sobre os objectos mais insignificantes, crigindo um menumento permanente de sua objetividade e paz de espirito na natureze morta, que © observador estético nfo contempla com indiferenga, jé que Ihe proporciona a disposigaio liberta da vontade prdpria do artista, indispensavel para contemplar abjctivamente coisas tao insignificantes. & reproduzir esta intuigde com um tal juizo; ¢ ao solicitar também o quadro a sua participagao num tal estado, sua emogao sera multiplicada pelo contraste da disposicao prépria, inquieta, turvada por intenso querer, em gue se encontra no momento. No mesmo espirito, com freqiéncia, paisagistas. particularmente Ruis- dacl, pintaram objetos paisagisticos altamente insignificantes, produzindo igual efeita de um modo ainda mais agradivel. 86 a forga interior de uma disposigao artistica realiza tudo isto; porém, esta disposigio estritamente objetiva € facilitada © favorevida do exterior por objetos que lhe vém ao encontro, pela opuléncia da bein natureza convidando a sua intui- Gio, se imponde mesmo. Ela quase sempre é bem sucedida ao se revelar de modo sébito, em nos arrancar, mesmo que si por instuntes, a subjetividade, & servidio da vontade. ¢ nos trasladar ao estado de conhecimente puro, & justamente por isto que 9 atormentado pela puixdo, ou pela neeessidade e preocupagao, é tio subitamente aliviado, reconfortado ¢ alegrado por uma tinica visio livre da natu- reza: a tormenta das paixdes, o impulso do desejo € do temor. € todo sofrimento do querer sio imediatamente apaziguados de um medo maravilhoso. Pois no momento mesma em que, arraneados do querer, nos abandanamos ao conheci- mento puro independente da vontade, penciramos em um outro mundo, em que tudo que movimenta nossa vontade, e por isto nos abala com tal intensidade, nao mais existe. Esta libertagao do conhecimento nos subtrai a tudo isto de maneira andloga ad sono ¢ ao sonho: felicidade ¢ infelicidade desapareeem; ndo somos mais 0 individuo, que esta esquecido, mas apenas sujeito puro do conheciment continuamos existinde somente como a vista unica do munda, a mirar do alto de todos os seres que conhecem, mas que unicamente no homem pode se tornar completamente livre do serviga da vontade, mediante o que desaparece toda diversidade da individualidade tao inteiramente, que se torna indiferente o perten- cer a vista observadora a um poderoso monarea ou a um atormentade mendigo. Pois nem felicidade nem miséria acompanham a ultrapassagem deste limiar. To proxima de nés se localiza uma regidio em que nos livramos de toda nossa mi: ria; mas quem é dotado da forga para alise manter? Logo que uma relagao qual- quer do objeto da contemplagao pura com nossa yontade, nossa pessoa, retorne @ conseiéncia, o encanto chega ao fim. Recaimos no conhecimento dominado 28 SCHOPENHAUER pelo principio de razfio, jé nfo conhecemos mais a id¢ia, mas a coisa individual, © anel de uma cadeia, a que também nos pertencemos, e estamas novamente 4 mercé de toda nossa miséria, — A maior parte dos homens, porque privados inteiramente de objetividade, j. ¢.. de genialidade, se encontra quase sempre nesta situaglo. Assim nao thes agrada o ficarem a s6s com a natureza: necessitam com- panhia, a0 menos um livre. Pois seu conhecimento permanece servil & vontade: buseam nos objetos somente a possivel relagdo com a voritade, e em presenca de tudo que no possui ums tal relado, ressoa em seu interior, qual baixo funda- mental, a voz: “isto em nada me ajuda”; na solidaa, mesmo o mais belo ambiente adquire desta forma para cles um aspecto seco, sinistro, estranho e hostil. Este contentamento da intuigio independente da vontade é também respon- sdvel por espalhar sobre o passado € a distancia um tao maravilhosa encanta mento, apsesentando-no-los em tio belo esplendor, por meio de uma auto-ilusao. Ao tornarmos presentes dias ja transcorridos, vividos em lugar distante, unica- mente os objetos sdo evoeados por nossa fantasia, no 0 sujeito da vontade, que Portava, entéo como agora, o peso de seus males incuriveis; porém aqueles ja sstho esquecidos, substituidos muitas vezes por outros, Mas a intuigao objetiva age na meméria de modo idéntico ao pelo qual agiria no presente, se fossemos eapazes de nos eniregar a ela independente da vontade. Por isto, especialmente quando atormentados por alguma necessidade acima do normal, a lembranga si- bita de cenas passadas distantes passa em nossa visdo qual paraiso perdido. A fantasia evoca somente o objetivo, nado o subjetivo-individual, ¢ imaginamos que aquele objetivo se tenha apresentado a nés de modo igualmente puro, sem ser obscurecido por relagiio alguma com a vontade, como o faz agora sua imagem na fantasia; porém a relaydo dus objevos a0 nosso querer produzia sofrimenta. entao como agora, Podemos nos subtrair ¢ todas as amurguras, seja por meio dex obje- tos presentes, scja por meio dos distantes. no momento em que nos elevamos & contemplagio puramente objetiva dos mesmos, criande assim a ilusdo de que apenas estes Objetos estio presentes, ¢ nfio nds: despojados do eu sofredor, nos tornamos, camo sujeito puro do conhecimento, completamente unos com Aqueles objetos, ¢ assim como nossa miséria thes é esteanha, do mesmo moda sera estra nha, por estes momentos, a nds mesmos. Somente o mundo da representacao per- dura, a mundo como vontade désapareceu, Mediante todas estas consideragdes, pretendo ter tornado claro, de que espé- cic ¢ dimensac é a participacao que possui a condi¢ao subjetiva do prazer estético fo mesmo, ou sea, w libertagde do conhecimento do servigo da vontade, @ esque- cimento do si mesmo como individuo ¢ a elevagao da consciéncia a sujeito do conhecimento, puro, independente da vontade, atemporal, liberto de todas as rela- Goes. Juntamente com este lado subjetivo da observagdo estética, ocorre como correlato necessaria seu lado objetivo, a compreensiio da idé platnica. Antes porém de dirigirmos nossa atengdo mais pormenorizada a este ditimo e 4s teali- zagdes da arte com o mesmo, é conveniente deter-se ainda no lado subjetive do prazer estético, completando sua exposigao pelo exame da sensagao do sublime, dependente unicamente ¢ originada por uma modificagao desta. Em seguida, O MUNDO COMO VONTADE EF REPRESENTACAO ” nossa investigagao do prazer cstético se completard pelo exame do lado objetivo do mesma. ‘Ao precedente contudo ha que acrescentar as observagGes seguintes. A luz & a mais contentadora das coisas: constitui-sc cm simbolo de tudo que é bom ¢ consalador. Em todas as religides designa a salvagdo eterna, ¢ as trevas, a conde- nagao. Ormuzd habita a luz mais resplandecente, Abriman, a noite eterna. o paraiso de Dante se parece mais ou menos & Vauxhall em Londres, em que todos ‘gs espiritos bem-aventurados se revelam como pontes luminosos se combinando em figuras regulares. A auséncid de luz nos torna imediatamente tristes: seu retor- no alegra! as cores suscitam um encantamento vivo. atingindo seu grau mais ele- vado, se $0 Lranspareates, Isto tudo provém unicamente do ser a luz o correlate © a condigao do modo de conhecimente intuitive mais completo, tinico a afetar em nada a vontade. Pois a visio ndo &, como afecgao dos outros sentidos, em si, imediatamente, ¢ por meio de seu efeito sensorial, capaz de um bem ou mal-estar da Seasagao no Orgao, i. e.. nao possui relacao imediata com a vontade: mas ape- nas a intuigdo originada no cntendimento € capaz de possui-la, localizando-se entio na relagao do objeto com a vontade, JA com a audigao, a situngiio & diferen te: sons podem causar dor de modo imediato, ¢ ser agradiveis aos sentidos de modo imediato, sem referéncia 4 harmonia ou melodia. O tato, uno com o sentir de todo o corpo, esta subordinado ainda mais a esta influéncia imediata sobre a yontade: contudo, existe ainda um tatear privado de dor ¢ de prazer. Odores, porém, sio sempre agradaveis ou desagradaveis; sabores ainda mais. Os dois tlt. mos sentidos partanto siio 0s mais inquinados pela vontade: so os menos nobres, ¢ denominados por Kant de sentidos subjetivos, O contentamento quanto & luz é de fato somente o contentamento sobre a possibilidade objetiva do modo de conhecimento intuitive mais puro c perfeito.e como tal deve ser deduzido, ou seja que © conhecimento puro, liberta ¢ independente de toda vontade, é agradavel no mais alto grau, ¢ 36 por isto ja concorre em grande parte para o prazer estélico, Desta concepgiio da luz ha que deduzir por gua vex a exprimivel beleza que asse guramos 4 reflexdio dos objetos na agua, O mais leve, rapide ¢ sutil modo de inte- ragho de corpos, a que também nés devemos a mais perfeita e pura de nossas percepgdes; a interferéncia mediante raios de luz refletidos, esta aqui se torna inteiramente clara, perfeita ¢ compreensivel a nossos olhos, em causa t efvito por uma abordagem ampla: dai nosso contentamento estético a seu respeito, que, no principal, s¢ radica inteiramente na base subjetiva do prazer estético, ¢ é alegria quanto ac conhecimento pura e seus caminhos.?® §39 A todas estas consideragdes que pretendem ressaltar a parte subjetiva de prazer estético, enquanto contentamenté quanto ac conhecimento puro, intuitivo, como tal, em oposigao a vontade, se une, em associagio imediata, o seguinte esclarecimento acerca da disposigdo denominada o sentimenta do sublime, # Yer cap, 33 do 22 Vol, [de O Mando...) (N.do AD 30 SCHOPENHAUER Ja foi observado acima que a transferéncia av estado de intuigdo pura ocorre da maneira mais facil, quando os objetos the vér ao encantro, i. e, tornam-se, pela figura diversa ¢ ao mesmo tempo determinada e distinta, em representantes de suas idéias.-no que consiste justamente a beleza, em sentido objetivo. Sobre- tudo a bela natureza possui esta propriedade, furtando assim mesmo aos menos sensiveis um ligeiro prazer estética; ¢ to surpreendente come particularmente as plantas estimulam a contemplagao estética, inclusive foreando-a, que poderiames dizer que esta aproximagao é devida a que estes seres orgiinicos nae sao eles pro- prios, como 65 corpos animais, objeto imediato do conhecimenta,?? requerendo assim © compreensivo individuo estranho para penetrar, do mundo“do querer 0g, na representagio, ansiando por esta entrada, para atingir, a0 menos por mediagdo, 0 que thes é negado imediatamente. Nao insisio mais neste audacioso pensamento, talvez extravagante, pois somente uma consideragdo muito intima ¢ despojada da natureza pode produzi-lo ou justificd-lo.?* Enquanto este vir a0 encontro da naturexa, a significacdo ¢ a clareza de suas formas, donde as idéias individualizadas nos atingem, ¢ aquilo que nos transfere do conhocimento, depen- dente da vontade, de simples relagdes, na contemplagao estética, elevando-nos destarte a sujeito independente da yontade; é somente o belo, que age sobre nds, € 0 sentimento de beleza,o suscitado, Mas quando estes objetos, cujas significa: tivas figuras convidam 4 sua contemplacdo pura. possuem uma relagic hestil 4 vontade humana, como esta s¢ apresenta em sua objelividade, o corpo humano, opondo-se a ela, ameagando-a com uma superioridade que mina qualquer resis- téncia, ou reduzindo-a ao mada por sua grandeza descomunal; 0 observador porém, mesmo assim, nao dirige sua atengio a esta impositiva relagdo hostil & sua vontade; mas, apesar de percebé-la ¢ reconhecé-la, dela se afasta consciente- Mente, arrancando-se viclentamente & sua vontade e suas relagdes ¢, abandonado unicamente a0 conhecimento, calmamente contempia estes objetos terriveis para 4 vontade como puro sujeito do conhecimento, independente da vontade, assimi- Jando apenas sua idéia estranha a qualquer relagao, assim permanecendo prazei- rosamente em sua observagao, ¢ em conseqiiéncia elevado acima de si mesmo, de Sua pessoa, seu querer ¢ todo querer: entao é preenchido pelo sentimento do sublt- me, grandioso. encontra-se em estado dé éxaltag’o, engrandecimento, motivo Porque também este estado ¢ denominado sublime, grandioso.?® Portanto 0 que distingue 0 sentimento do sublime do sentimento do belo & que no belo o predo- minio do conhecimento puro se exerce sem luta, a beleza do objeto, i. e., sua constituigaa, facilitando o conhecimento de sua idéia, afastando a vontade © 0 conhecimento das relagdes que coraam seus servigas sem oposigdo, e portanto, 2 “Objeto imedinto do conhecimemo™, bid pelo indviduo, (N..doT.) F4 Quarenca amos apés expwimir este pemsamonto ile mado Go timid © vacitanee, tanto miaior & a alégrine Sumpresa wo descobrir que jé Sunto Agostinho « havis expresso: Arbwsta Jareas swas varias, qulluc: mundi iyias visibilis seructura formosa ext, xensiendas Senvibus peackent; wt pro 80 awad nosse mun penssunt, quasd lanoreseere velle videantur. (De Civitare Del, XI, 27.) (M. de A.) *% Nossa idioma niio permite a aproximncio eatre o “estado de exultagiio” (Erhebung) 60 “sublime”* ella ben). (NW. du.) conforms. os livros precadenios, €0 corpo humane tal come parte © MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTAGAO 31 imperveptivelmente, da consciéncia, que persiste come puro sujeito de conheei- mento, destituido inclusive de toda recordagao da vontade; em contraposig¢ao, em face do sublime, este estado de conhecimento puro ¢ conquistado primeiramente por meio de uma libertagiio violenta das relagdes do objeto com a vontade reco- nhecidas como desfavoraveis, por meio de uma elevagao livre e consciente acima da vontade ¢ do conhecimento a ela referido, Esta elevagao nao deve somenic consciestemente ser conquistada, mas também mantida, sendo assim acompa- nhada de uma constante recordagdo da Vontade, ndo de um querer isolado, indivi- dual, como o temor ou o desejo, mas do querer humano em geral, enquanto expresso de um modo geral par sua objetividade. 0 corpo humano. Ocorresse na consciéneia um ato real, isolado, da vontade, mediante opressio, perigo real, pes soal por parte do objeto, a vontade individual, realmente agitada, em breve se tor- naria dominante, a trangiilidade da contemplagao seria impossivel, a sensagdo do sublime desapareceria, para abrir lugar ao medo, cm quea dnsia do individuo em se salvar expulsou aquele outro pensamento. Alguns exemplos contribuirao bastante no tomar clara esta teoria do sublime-estético. climinando suas dividas; simultaneamente revelario a diversidade dos graus deste sentimento do sublime. Pois, coma é idéntico © sentimento do sublime com o do belo, em sua determina- Jo principal, o conhecer puro e independente da vontade, ¢ 0 assim instaurado conhecimento das idéias exteriores @ toda relagao determinada pele principio de razio, distinguindo-se apenas por um acréscima, a elevagdo acima do relaciona- mento hostil conhecide do objeto contemplado com a yontade propriamente; constituem-se vitrios graus do sublime, & mesmo transigées do belo ao sublime, conforme este acréscimo é forte, incisivo, premente, ou fraco, distante, impercep- tivel. Creio ser mais convenicnte 4 exposigao apresentar em primeira lugar estas iransigoes, inclusive 0s graus mais débeis da impressdo do sublime, embora aque- lcs, cuja receptividade estética nao ¢ muito grande, ¢ sua fantasia ndo muito viva, compréenderaa somente os exemplos posteriores dos graus mais elevados ¢ distin- tos daquela impressio, a que deverdie se ater unicamente, sem considerar os pi meiros exemplos dos graus muita fracas daquela xensagao. Do mesmo modo que o homem € simultaneamente impulso impetuoso e sinistro da vontade (designado pele pélo dos degos genitais como seu foco) ¢ sujeito eterno, livre e sereno do conhecimento puro (designado pelo polo do cére- bro), também, em correspondéncia a esta oposicao, o sal é ao mesmo tempo fonte da Juz, a condigo para o conhecimento perfeito, e portanto da mais agradivel das coisas. ¢ fonte do calor, a primeira condigdo da vida, i. ¢., de todo fendmeno da Vontade cm seus graus mais clevados. Assim, o que é para a vontade o calor, & para o conhecimento a luz. A luz é precisamente o maior brilhante na coroa da beleza © possui a mais decisiva influtncia sobre o conhecimento de qualquer obje- to belo: sua presenga mesmo ¢ condigio indispensavel; sua posigio privilegiada engrandece mesmo a beleza de mais belo. Sobretude o belo da arquitetura se real- a por sua grag, pela qual, coatudo, © mais insignificante se torna no mais belo abjeto. Observemos durante 0 rigoroso inverno, com o estarrecimento geral da matureza, os rains do sol ndo mi acima do horizonte, refletidos por massas 32 SCHOPENHAUER rochosas, onde iluminam, sem aquecer, favorecendo portanto somente o modo mais puro do conhecimento, ¢ nao a vontade; esta contemplagao do belo efeito da luz sobre estas massas, nos sittia, como toda beleza, no estado do conhecimento puro, exiginda porém aqui, pela leve recordagSo da auséneia de aquecimento por estes raids. portanto do principio vivificador, ja um certo elevar-se acima do inte- resse da vontace, um ligeiro convite 4 permanéncia no conhecimento puro, com climinagao de tode querer, mas contendo destarte uma transigao do sentimento do belo a0 do sublime. E 0 mais leve trago do sublime no belo, que este proprio aparece aqui apenas em grau restrito. Um exemplo quase igualmente débil & 0 seguinte. ‘Transportemo-nos a uma regia erma, com horizonte ilimitade, sob um céu inteiramente sem nuvens, arvores ¢ plantas numa atmosfera sem agitacado, ne- nhum animal, nenhum homem, nenhuma agua em movimento, 0 mais profundo silencio; um tal ambiente € um convite seriedade, 4 contemplagao, com a liber- tagda de todo querer ¢ suas necessidades: mas apenas isto também ja confere a um tal ambiente, crmo ¢ pacifico, um trago de sublimidade. Pois como nao apre- senta objetos d vontade, sempre avida de esforcos e conquistas, nem favordveis, nem desfavoraveis, s6 resta o estado da contemplagio pura, ¢ quem dela nao é capaz se expde ao vazio da vontade desocupada. ao tormento do tédio, numa degradagio vergonhosa. Nesta medida, permite uma avaliugaio de nosso valor intelectual proprio, para o qual, de um modo geral, o grau de nossa capacidade em suportar ou amar a soliddio é uma boa referéncia, O ambiente descrito fornece portanto um exemplo do sublime num grau inferior, ao nela ser mesclado 0 esta: do da contemplagdo pura, cm sua trangililidade e suficiéncia, para cantraste, com uma recordagio da pobreza ¢ dependéncia de uma yontade sempre carente de esforgos. Este é 0 género do sublime atribuido a visio das pradarias infinitas do interior da América do Norte. Despejemos porém uma tal regio também das plantas, deixando-Ihe somen- te rochedos descalvados; assim, pela auséncia total de todo organico necessiirio a Nossa subsisténcia, a vontade praticamente se atemoriza, a aridex adquire um carater terrivel; nossa disposigao se torna mais tragica, a elevagdo ao conheci- Mento puro s¢ efetua mediante uma libertagao mais resoluta do interesse da von- tade, e, com a permanéncia no estado de conhecimento puro, é ressaltado nitida- mente © sentimento do sublime. Num grau ainda maior é produzido pelo ambiente seguinte, A natureza em tempeyiuosa agitacdo; penumbra deitada por nepras ¢ ameagadaras nuvens; ro- chas pendentes monstruosas, descalvadas, impedindo a visao: torrentes espuman- tes ¢ estrondosas; aridez total: suspiros provocades pelo ar fustigado pelos abis- mos. Nossa dependéncia, nossa luta com a natureza hostil, nossa vontade por ela domada, tudo isto aparece agora clara, intuitivamente a nossos olhos; mas enquanto a afligio pessoal nao se torna dominante, e nds perseveramos em obser. vagiio estética, transparece naquela luta da natureza, naquele quadro da vontade dominada, 0 sujeito puro do conhecimento, compreendende as idéias justamente O MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTACAO es nos objetos ameagadores e terriveis para a vontade, de um modo quase calmo, inabalavel, sem participagdo (unconcerned). Precisamente neste contraste se encontra o sentimento da sublime. Mais poderosa ainda se torna a impressio, quando se descerra a nossos olhos a luta das forgas naturais contrariadas em toda sua magnitude. quando naquele ambiente uma torrente se precipitando nos priva da possibilidade de ouvir nossa propria voz; ou quando nos encontramos frente 20 mar revolvido pela borrasca: vagalhdes das dimensdes de uma casa se erguem e afundam, preci- pitados com violén?ia contra recifes abruptos, arremessando ao alto a ¢spuma; 0s uivos da tempestade, os rugidos do mar so superados pelos trovées dos raios de nuvens negras. Entio a duplicidade da consciéncia do espectador impassivel desta apresentagao atinge sua maior clareza: ele se senie simultaneamente como individuo, fragil fendmeno da vontade, passivel de destruigao pelo mais débil daqueles golpes, impotente frente 4 poderosa natureza, dependente, abandonado ao acaso, um nada incomensuravelmente pequeno, frente a poderes calossais; ¢ ‘a9 mesmo tempo como eterno e serena sujeito de conhecimento, que, como con- digo do objeto. ¢ precisamente o portador de todo este mundo, ¢ a terrivel luta da natureza somente sua representagio, ele proprio na percepgio tranquila das idéias. livre ¢ alheio a todo querer ¢ a todas necessidades. E a sensagdo total do sublime. Aqui produziéo pela visio de um poder que ameaga de destruigio 0 individuo, incomparavelmente superior que lhe é. Por um modo inteiramente diferente, esta impressdo pode ainda se originar na ptesenga de uma grendeza pura no espago © no tempo, cuja incomensurabi- lidade reduz 0 individuo ao nada. Podemos denominar o primeito tipo de sublime-dinamico, o segundo de sublime-matematico, mantendo a nomenclatura kantiana ¢ sua acertada divisdo, apesar de discardarmos inteiramente da explica- gio da natureza interior desta impressiio, nao reconhecendo nela seja reflexdes morais, seja hipostasias da filosofia escoldstica. Quando nos perdemos na contemplagio da grandeza infinita do mundo no espago © no tempo, reftetindo sobre os milénios passados ¢ futuros — ou também quando a noite o céu traz realmente a nossos olhos mundos sem numero, agindo assim sobre a consciéncia a incomensurabilidade do mundo —, nos sentimos reduzidos & insignificancia, sentimo-nos coma individuc, come corpo animado, como fenémeno transitério da vontade, como gota no oceano, sumindo e se perdendo no nada, Mas ao mesmo tempo sé ergue contra um tal fantasma de nossa propria nadidade, contra tal impossibilidade enganosa, a consciéncia ime- diata, de qué todos estes mundos existem somente em nossa representacao, ape- nas como modificagdes do sujcito eterno do conhecimento puro, pelo qual nos tomamos logo que esquecemos a individualidade, que & 0 portador neces! condicionante de todos os mundos € tedos os tempos. A grandeza do mundo, que antes nos inquictava, agora repousa em nds: nossa dependéncia em relagao a cla é suprimida pela sua dependéncia de nds. Contudo tudo isto nfo se apresenta 34 SCHOPENHAUER imediatamente na reflexiio, mas se revela como uma consciéncia apenas sentida de que, num certo sentido (esclarecido unicamente pela filosofia) somos uma yni- dade com o mundo, sua incomensurabilidade nao nos oprime, mas nos eleva, Ea consciéncia sentida do que & repetidamente expresso em versdes tio variadas pelos Upanichades dos Vedas, de preferencia na expresso ja citada acima: Hee omnes creaturae in totum ego sum, ef praeter me aliud ens non est (Oupnek hat, 1, 122), E exaltaciio, engrandecimento acima do proprie individuo, sentimento de sublime. De um modo bem imediato. abtemos esta impression do sublime-matematico por meio de um espago, que apesar de infimo comparado ao edificio do mundo, por ser inteiramente perceptivel a nés de mado imediato, age sobre nds segundo todas as trés dimensdes em toda sua magnitude, suficiente para tornar quase infi nitamente pequena a medida de nosso proprio corpo. Isto no pode jamais ser realizado por um espage vazio A percepgdo, portant nunca um espage aberto, mas samente o perceptivel em todas as dimensées de modo imediato pela sua delimitagao, assim uma abdbada alta ¢ imensa, tal a catedral de Sao Pedro em Roma, ou a catedral de So Paulo em Londres. © sentimento do sublime se origi- na aqui pela interiorizagao da insignificdincia de nosso proprio corpo frente a uma. gtandeza que por outro lado apenas reside cm nossa representagdo e cujo porta- dor somos enquanto sujeito cognoscente, ¢ portanto aqui como em toda parte pelo contraste da insignificancia e dependancia de nosso cu como individuo, como fenémeno da vontade, frente 4 consciéncia de nds mesmos coma sujeito puro do conhecimento, Mesmo a abdbudu celeste age apenas quando contem- plada sem_reflexdo, tal qual aquela abébada de pedra, ¢ somente com sua gran- deza aparente, ¢ niio a verdadeira. Alguns objetos de nossa intuigado preduzem sentimente do sublime pelo fato de, gragas a sua dimensio espacial, como & sua idade avangada, portanto sua duragao temporal, nos sentirmos fi sua frente redu zidos a nada, © mesmo assim nos regalarmos na wpreciagdo de sua visio: deste tipo so as montanhas mui elevadas, as pirdmides do Egito, as rufnas colossais de grande antiguidade. Nossa explicagiio do sublime permite inclusive sua transposigao aa ético, ou seja, dquilo que se designa por eardter sublime. Também este se origina por a vontade niio ser estimulada por objetos, que alids scriam apropriadas a fazé lo; mas por © conhecimento manter @ predominio. Um cardter tal considerara por tanto os homens de modo puramente objetivo, ¢ nile conforme as relagiies que eventualmente possuam para com sua vontade: por exemplo, perceberd sous erros, mesmo seu édio ¢ sun injustiga em relagao a si proprio, sem por isto ser conduzido cle praprio ao édio; observard sua felicidade, sem sentir inveja; reco- nhecera suas boas qualidades, sem contudo almejar ligagso mais intima com eles; apreciaraé 4 beleza das mulheres, sem cobig4-las. Sua felicidade ou infelicidade pessoal nio o afttarao fortemente, ao contrério, se aproximara do Horacio des- crito por Hamil O MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTACAO, 5 » Sor thou has been As one, in suffering all. that suffers nothing; A man, that fortune 's buffets and rewards Hast ta'en with equal thanks, etc. (A. 3, sc. 2.)° * Pois em sua propria existéncia e em seus reveses perceberd menos sua sorte individual, do que a sorte da humanidads em geral, ¢ scu comportamento sera orientado mais para o conhecimento, de que para o sofrimenta. §40 Porque os opostos se elucidam, é oportuno assinalar aqui que o propria mente oposto © sublime é algo que & primeira vista no é reconhecido como tal: ‘© provecante. Entendo aqui por isto o que excita a vontade. ao lhe apresentar de modo imediato a sulisfagio, o consentimento. Originava se o-sentimenty do subli me por tornar-se objeto da contemplagio pura uma coisa desfavoravel a vontade, contemplagao mantida apenas pelo afastamento da vontade e pela elevagao acima de seu interesse, o que perfaz justamente o engrandecimento, a exaltagao da dispo sigdo: assim, ao contrario, © provocante arrasta o observador da sua contempla- cao pura, requerida para qualquer compreensiio do belo, para baixo, provocando necessariamente sua vontade, mediante objetos que Ihe agradem de mado imedia to, Oobservador tornando-se, de sujeita puro da conhecimento, em sujeito carente © dependente da vontade. O denominarmos comumente tudo c que é bele Ue um modo ageadavel de provoeante é um coneeito demasiado amplo, metivade por auséncia de correta distingiio, que afasto e desaprovo inteiramente. Porém no sen ido indicado e explicitado, encontro no ambito da arte somente dois tipos de pro- vocante e ambos indignos, O primeiro, bem inferior, na natureza morta dos Ma mengos, quando estes s¢ encaminham a representar objetos comestiveis, que em sua imitagdo perfeila necessariamente excitam apetite, que é-uma excitagdio da vontade ¢ que pdem um fim a toda contemplagic estética do objeta. Ainda que se permita a pintura de frutas, pois se apresentam como desenvolvimento posterior da flor ¢, pela forma ¢ pela cor, como um belo produto da natureza, sem que haja Preméncia de se pensar em sua comestibilidade; contude infelizmente encon tramos com fregiiéncia. em enganosa naturalidade, refeigdes preparadas ¢ servi das, ostras, arenques, caranguejos, paes com manteiga, cerveja, vinho, etc., 0 que & totalmente condendvel. Na pintura histérica ¢ aa escultura o provocante con siste em figuras despidas, cuja posigfio, seminudez, modo de apresentagao se dis- poem a provocar no observador a lascivia, com que imediatamente se suprime a pura observagao estética, contrapondo-se ao objetivo da arte, Este erro corres ponde inteiramente ao atribuido h4 pouco aos flamengos, Os antigos, apesar de ©, pois tu sempre fostc / Como quem, Sofrcaco cudo. aada sofie; Um homem, que as goles e peémios dda sorte / Com igual gratudin aveitaste, ete (Nala) 3h SCHOPENHAUER toda beleza e nudez total de suas figuras, quase sempre estiio livres disto, porque © artista as criou com finalidade puramente objetiva, plena da heleza ideal, e nao no espirito de desejo subjective ¢ indigno. Q provecante portant hé que ser evita do sempre na arte. Ha também um negativamente-provocante, ainda mais condenavel do que © positivamente-provocante acima elucidado: ¢ este é repugnante. Do mesmo modo que © propriamente provocante, estimula a vontade do abservadar des- truindo assim a contemplagdo estética pura. Mas € um violento nao-querer, uma repulsa que, por meio dela, é estimulada; desperta a vontade, apresentando-The objetos de sua aversao. Por isto desde sempre se reconheceu ser inadmissivel na arte, onde pode ser tolerade mesmo © feig, enquanto ndo for repugnante, como veremos mais adiante. gar A marcha de nosso exame tornou necessario interromper a explicagdo do sublime aqui, onde a do belo se encontrava apenas pela metnde, completado que estava somente de um de seus lados, o subjetivo. Pois unicamente uma particular modificagao deste lado subjetivo diferenciava o sublime do belo. Se 0 estado do conhecimento puro independente da vontade, pressuposto por toda contemplagac estética ¢ por ela exigido, ocorre sem resistencia, por convite inferéncia da obje- fo, pela simples desaparecimento da yontade do interior da consciéncia; ou se este estado foi atingido apenas pela elevacie livre consciente acima da vontade, “com que 9 priprio objeto contemplado possui uma relagio desfavordvel, hostil, que perseguida climinaria a contemplagio; esta é a diferenca entre 9 belo eo sublime, No objeto, ambos nao sao essencialmente distintos, pois em qualquer caso 0 objeto da observacio estética nao é a coisa individual, mas a idéin que nele Pretende a revelagio, isto é, a objetivagdo adequada da vontade em um determi- nado grau, seu correlate necessrio, tal como cla liberta do principio de razao, © sujeito puro do conhecimento, assim come a correlato da coisa individual ¢ 9 individue cognoscente, ambos situadas no Ambito do principio de razio, Ao designarmos uma coisa de bela, exprimimos assim ser ela objeto de nossa observagaio estética, o que encerra duas explicagdes: em primeiro lugar, de que sua visio nos torna objetivos, i. ¢., que nds em sua observagado ndo mais somos Conscientes de nos mesmos como individuas mas como sujeitos puros do conhecimento independentes da ventade; em segundo lugar, que reconhecemos no objeto no a coisa individual, mas uma idéia, o que se verifica apenas enquanto nossa observagiio do objeto nao se submete xo principio de raza, sem Perseguir uma relacio sua com algo que Ihe é exterior (que em dltima instancia sempre esti ligada a sclagdes coma nossa vontade), repousanda sobre o objeto cle proprio, Pois a idéia e © sujeito puro do conhecimento, como correlativos necessrios, sempre s¢ apresentam simultaneamente A conseiéncia, com que se alia de imediato o desaparecimento de toda di ferenga temporal, ja que ambos siio inteiramente estranhos ao principio de razdo em todas as suas formagées, encon- trando-se exteriormente as relagdes por ele determinadas, de todo comparavel ao O MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTACAO, a arco-iris © ao sol, que nao participam da queda ¢ sucessao continua das gotas Wagua. Por isto, ao contemplar, p. ex., uma arvore esteticamente, isto ¢, duma vista artistica, conhecendo nao a ela, mas a sua idéia, nao possufa menor impor- (ancia © se tratar desta arvore ou sua antecessora de hé mil anos, ¢ também 0 ser © observador este individuo, ou um outro existida num lugar qualquer, numa época qualquer; com a climinagao do principio de razao, desaparece também a coisa individual ¢ 0 individuo cognoscente, nada restando além da idéia ¢ 0 sujei. to puro do conhecimento, a constituir em conjunto a objetividade adequada da vontade neste grau. E nao sd ao tempo, mas também ao espago se furta a idéia: aio é a configuragao espacial aos meus olhos, mas a expresso, o significado puro da mesma, sua esséncia mais intima, que se revela ¢ me provoca, constitul propriamente a idéia, podendo permanccer idéntica apesar da grande diversidade das condigdes espaciais de sua conformagao. Como duma parte toda coisa existente pode ser contemplada de modo pura- mente objetivo ¢ exterior a todas as relagdes; ¢ doutra parte também em toda coisa se apresenta a vontade. em um grau qualquer de sua objetividade, tornan- do-se expressio de uma idéia; assim toda coisa é bela. Que também a coisa mais insignificante permite a consideragao objetiva e independente da vontade, consti- tuindo-se assim como bela, jé 0 comprova a natureza morta flamenga aventada acima (§ 38), Porém, uma coisa € mais bela do que outra, por facilitar esta pura abservagio objetiva, the vir ao encontro, forgando-a mesmo, quando entio a denominaremos muito bela. Isto se verifica em parte por exprimir de modo puro, como coisa individual, pela relagiio muito nitida, claramente determinada, intei ramente significativa, a idéia de seu género, e, gragas a nela reunida completeza de todas as exteriorizagdes possiveis a scu género, destes a idéia revelando completamente, facilitando ao observador a transicao da coisa individual idéia” ¢ desta forma também o estado da contemplagao pura; em parte aquela prefe- réncia de beleza especial dum objeto reside no possuir a propria idéia que dele se nos presenta, um alto grau de objetividade da vontade, conferindo-Ihe impor- tancia ampla ¢ decisiva. Por isto ¢o homem a mais bela das coisas, ¢ a revelagao da sua natureza o mais alto objetivo da arte. A figura ¢ a expresso humanas sito © objeto mais importante das artes plasticas, assim como a atividade humana o mais importante objeto da poesia. Contudo, toda coisa possui sua beleza especi- fica: nao apenas tudo o que & organico ¢ se apresenta na unidade de uma indivi- dualidade, mas também tudo que ¢ inorganico, disforme, inclusive tado artefato. Pois tuda isto revola ag idéing, pelas quais a vontade se objetiva nos graus mais inferiores, constituindy a afinagao pelos contrabaixos mais retumbantes da natu- reza, Gravidade, rigidez, Muidez, luz. etc., 830 as idéias que se exprimem em rochas, edificins, correntes de agua. A arquitetura de parques ¢ prédios nada pode além de auxilid-las a desdobrar aquelas suas qualidades de mode claro, milltiplo e completo, oferecendo-thes oportunidade de expressiio pura, com o que provo- cam ¢ facilitam a contemplagao estética, Ambientagdes ¢ edificagdes mas contu- do, relegadas pela natureza ou arruinadas pela arte, realizam-no pouco ou nuda. Porém, mesmo aqui aquelas idéias gerais basieas da natureza nao sio totalmente ausentes, Também clas estimulam o observador que as procura, ¢ mesmo cdifica- 38 SCHOPENHAUER gSes mas, etc.. ainda sio aptas a uma contemplagao estética; as idéias das Propriedades mais gerais de sua matéria permanecem reconheciveis nelas. apenas a forma artificial que lhes ¢ atribuida no constitui meio que facilitc, mas obsta- culo a dificultar a contemplagdo estética. Conseqientemente também artefatos se prestam & expressio de idéias: mas nao ¢ a idéia do artefato que neles se manifes- ta, mas a idéia da matéria a que se conferiu esta forma artificial. Na linguagem dos escolasticos, isto perinite expresso mui cémoda em duas palavras: no arte- fato se exprime a idéia de sua forma substantialis no de sua forma accidentalis, conduzindo esta dltima naoa uma idéia, mas a um concelto humano de que pro- cedeu. £ claro aqui expressamente que com artefate niio se designa obra das artes plasticas. De resto, os escolasticos compreendiam sob forma substantialis o que eu denomino grau de objetivagao da vontade numa coisa. Em breve, ao conside- Farmos a arquitetura, retornaremos a expresso da idéia do material, De acordo com nossa visio, nao podemos concordar com Platio (De Rep., X, ¢ Parméni- des), ao aficmar que mesa ¢ cadeira exprimem a idéia mesa e cadeira: a nosso ver exprimem as idéias ji expressas por seu material puro, come tal, Contudo, segun- do Aristétcks (Metafisica, X1, cap. 3), Platio teria estatuido idéias unicamente dos seres naturais: ke Pliton éphe, hati eide estin hdposa pinisei (Plato dixit, quod ideae sorum sunt, quae natura sunt),*? © no capitulo 5 se afirma que, conforme os Platénicos, ndo ha idéias de casa ¢ anel. Seguramente os discipulos mais proximes a Platio, come relataco por Alquine (Introductio in Platonicam Philosophiam, cap. 9), negaram a existéncia de idéias de artefatos, Declara este: Horixontai dé tn idéan, parédeigma tn katd phy'sin alénion. Ouiie gér (ois pletstais 1dn apd Plé- tanos aréskei, ton tekhnik6n einai idéas, hoion aspidos he Wras, otite mén én pard physin, holon pyretén kai kholéras, otite tn kara méros, hoton Socrdtous kai Plé~ tonos, all oiite 16n eutelin tinos, haton nipou kal kérphous, otite ton prés ti, héion meixonos kai Ayperékhontos einai gar tas idéas noéseis theed aionfous te kai auto- teleis. (Definiunt autem ideam exemplar aeternum eorum, quae secundum natu- ram existunt. Nam piurimis ex iis, qui Platonem secuti sunt, minime placuit, arte Sectorum ideas esse, ut clypel atque Lyrae; neque rursus eorum, quae praeter natu- ram, ut febris et cholerae; neque particularium, ceu Socratis et Platonis; neque etiam rerum vilium, veluti sordium et festucae: neque relationum, majoris et excedentis: esse namque ideas inteileetiones dei aeternas, ac seipsis perfec- fas.)?* Seja mencionado ainda nesta oportunidade um outro ponto, ¢m que nossa s diverge da de Platao: Ensina este (De Rep., X., p. 288) que o ‘objeto que a arte pretende produzir, constitui o modelo da pintura ¢ da poesia, nao a idéia, mas a coisa individual. Tedo o nosso exame anterior afirma precisamente © contririo, © a opiniio de Platio tanto menos nos iludiré, quanto 27 Plate diz gach tantas dias avant coisas. (NM. d0T.) 28 Mas defineat x idéia come modelo eterno do que existe na natureea; pois para a maioria des sepuidores tle Platio nao. parece haver idéias de produtos aetistivos, como as do escudo Ou da lira, riem de eoras que so conwariny & nature como a febwe 0 colera, nem de pessoas individunis, coma Sierates ou Plato, ner, finalmente, de coisas secundirias, como a sujcira ¢-08 tastes, nem também de relagiies, comma ace maior cm exoerlente. As idééat eo a6 elemnns intclecqies de Down, © proprloncmie pertsicas,(N. de 7.) O MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTACAO 9 ¢a origem de um dos maiores e reconhecidos enganos deste grande homem, ou sea, seu menosprezo © sua condenagio da arte, particularmente da poesia: seu falso juizo acerca desta se prende imediatamente aquela passagzem, 42 Retornemos agora ao nosso exame do sentimento estético. O conhecimento do belo sempre situa simultiinea e inseparavelmente sujeito cognoscente puro e idéia conhecida como objeto. Porém 2 fonte do prazer estético se localizara, ora mais na concepgio das idéias conhecidas, ora mais na tranqiiilidade ¢ paz de espirito do conhecer puro, liberto de todo querer ¢ assim de toda individualidade € de todq sofrimento dai decorrentes: ¢ este predominio de uma ou de outra parte do prazer estético dependera de ser a idéia intuitivamente apreendida um grau mais ou menos ¢levado da objetividade da vontade. Assim, na contemplacao esté- tica (real ou por meio da arte) da bela natureza no inorganico ¢ no vegetal ¢ nas obras arquitéténicas, a prazer do conhecimento pura independente da vontade sera predominante, porque as idéias aqui compreendidas siio somente grays infe- riores da objetividade da vontade, e portanto ndo fenémencs de significagae pro- funda e conteido amplo, Por outro lado, quando animais homens sao objetos da contemplagao ¢ apresentac&o estética. 0 prazer consistira mais na concepgiio objetiva destas idéias, que so a revelacao nitida da vontade; porque estas repre- sentam a maior diversidade das figuras, riqueza e significagdo profunda dos fené- menos, revelando-nos do mado mais perfcito a esséncia da vontade, seja na sua violéncia, horripilancia, satisfagdo, ou em seu rompimento (este dltimo nas repre- sentagdes Uragicas), por fim mesmo em sua alteragao ou auto-climinagao, que & particularmente o tema da pintura cristd; como de um modo geral a pintura his rica e o drama possuem como objeto a idéia iluminada pela vontade como conhe- cimento total. Em seguida examinaremos as urtes individualmente, com que a teoria do belo estabelecida adquirird perfeigdo e clareza. 943 A matéria como tal nfio pode ser a apresentagdo de uma idéia. Pois cla ¢ como vimos no primeiro livro, inteiramente causalidade: seu ser é agir, A causal dade contudo é uma configurago do principio de razo: 0 conhecimento da idéi porém exclui essenciaimente 0 contetido desta proposigio. No segundo livro vimos também que a matéria é 0 substrato comum de todos os fen6menos indivi- duais das idéias, em conseqiiéacia o clo de ligagio entre © 0 fendmeno ou ‘a coisa individual. Portanto, por um ou outro motivo. a matéria por si niio pade apresentar uma idéia, Mas isto se confirma @ posterior! por nao ser possivel da matéria como tal representagao intuitiva alguma, mas somente um conceito abs- rato; nela se apresentam apenas as formas e as qualidades, cuja portadora ¢ a matéria, ¢ em cujo interior s¢ revelam as idéias. E também possui correspon- déncia com o nio permitir por si a causalidade (o conjunto da esséncia da maté- 40 SCHOPENHAUER ria) apresentagao intuitiva, mas apenas uma conexdo causal determinada. Contrariamente, por outro lado, todo fenémeno de uma idéia, J que como tal é assumida na forma do principio de raze, ou do principium individuationis, deve-se apresentar na matéria como qualidade da mesma, Nesta medida, portan- to, a matéria ¢ o elo de ligaco entre a idéia © 0 principivm individuationis, que €a forma do conhecimento do individuo, ou 0 principio de razao. E por ista com toda justeza que Piatao alinha ao lado da idéia ¢ de seu fendmen, a coisa indivi- dual, que em conjunto compreendem todas as coisas do mundo, unicamente a matéria como um terceiro, distinto dos outros dois. (Timeu) Q individuo, como fendmeno da idéia, é sompre matéria, E também toda qualidade da matéria é sem- pre fendmeno de uma idéia, ¢ como tal também apto a uma contemplagao estéti- ¢a, i. &., conhecimento da idéia nela apresentada, Isto tem validade mesmo para as qualidades mais gerais da matéria, sem as quais n&o existe. ¢ cujas idéias sfc 2 abjetividade mais débi] da vontade. Tais sito: gravidade, cocsio, rigider. liqui- dez, reacdo contra a luz, ete. Se considerarmos em seguida a arguiterura, somente como arte, abstraindo Ge sua destinagdo a finalidades iiteis, em que serve A vontade e nao a0 conheci mento puro, portanto néo sendo mais arte no nosso sentido. nao podemos the atribuir outro propésito senda 0 de tornar aptos de uma intuigdo clara algumas daquelas idéias, que constituem og graus mais inferiores da objetividade da vonta- de: gravidade, cocsdo, rigidez. dureza. estas propriedades gerais da pedra, estas Primeiras, mais simples ¢ apaticas visibilidades da vontade, tons baixos de afina- do da natureza; c emtao ao seu lado a luz. que em muitas partes se configura em ‘oposigido a clas. Mesmo neste grau inferior da objetivagao da vontade, vemos gua esséncia se revelar em ambigiiidade, pois em verdade a luta entre a gravidade ¢ a rigidez ¢ a Unica matéria estética da arquitetura, Fazer com que ressalte com inteira clareza de mancira diversificada é sua tarefa. Ela a resolve, privando estas forcas indestrutiveis do caminho mais curto de sua satisfago, retendo-as por meio dum desvio, pelo qual a lula 6 prolongada ¢ o esforgo inesgotavel de ambas a8 forgas se torna visivel de manciras yariadas. O conjunto da massa do edificio, abandonado as suas disposi¢ées origindrias, apresentaria um simples montio, li- gado tao firmemente quanto possivel 20 corpo terresure, em diregdo ao qual a gra- vidade, como aparece aqui a vontade, atua continuamente, enquanto a rigidez, igualmente objetividade da yontade, resiste. Justamente esta disposigio, esta tendéncia, é contrariada em sua satisfagdo imediata pela arquitetura, que lhe per mite uma satisfagio mediatizada, através de desvios, Assim por exemplo, o viga: mento pode pressionar a terra apenas mediante a colunas a abébada deve st sus- tentar a si mesma, podendo satisfazer sua tendéncia em diregfo a terra somente pela mediagio do pilar, etc. Mas precisamente por estes desvios forgados. por estes impedimentos, se desdebram do modo mais claro ¢ diversificado aquelas forgas inerentes 4 crua massa rochosa, e mais além nao pode conduzir o fim pura- menté estético da arquitetura, Em conseqiiéncia a beleca de uma edificagdc con- siste na finalidade visivel de toda parte, ndo em relagdo ao fim exterior casual do homem (nesta medida a obra pertence a arquitetura utilitéria): porém de modo © MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTACAO 4 imediato 4 constituigao do todo, em relagdo 2 que a posigdo, dimensae ¢ forma de toda parte deve manter uma relagdo tao necessaria, que, no possivel. retirada uma. parte, ruiria o todo. Pois apenas enquanto cada parte sustenta tanto quanto pode, ¢ cada parte é escorada num lugar ¢ dum modo tal, como € necessirio, se desdo- bra aquele antagonismo, aquela luta, entre a rigider ea gravidade, que perlazem a vida, as exteriorizagdes da vontade da pedra. para sua completa visibilidade, ¢ se revelam com clareza estes graus mais inferiores da objetividade da vontade. Iguaimente a conformagio de toda parte deve ser determinada por seu fim e sua relagdo com o todo, ¢ no por acaso. A coluna é a forma mais simples de susten- taculo, determinada unicamente por seu fim; a coluna tomeada é de mau gosto; 9 pilur quadrado de fata € menos simples, como por acaso de feitura mais facil, do que a coluna redonda. Igualmente as formas de frisos, vigas, arcos, clipulas sdo inteiramente determinadas por seu fim imediato ¢ destarte esclarecem a si mesmas, Os ornamentos dos capitéis, ete., pertencem 4 escultura ¢ nao 4 arq tura, que somente as admite como ornamentagao suplementar, podendo ser supri- midos, Conforme o que foi dito é indispensavel a campreensao e ao prazér esté- tico de uma obra da arquitetura, possuir um conhecimento intuitive, imediato de sua matéria, quanto a peso, tigidez € cocsao, ¢ nosso prazer em uma tal obra seria repentinamente mui reduzido pelo esclarecimento de que o material de constru- gio é pedra-pones, pois nos pareceria entdo uma edificagao imaginaria. O efeito seria quase & mesma, provocado pela informagao de ser de madeira, enquanto a pedra é pressuposta; precisamente por isto, alterar e transferir a relagiio entre rigi- dez e gravidade, ¢ assim a importancia ¢ necessidade de todas as partes, uma vez que aquelas forgas naturais se revelam muito mais debijmente na edificagao de madeira. Por isso também nao é passivel realizar uma obra de arte propriamente de madeira, por mais que esta aceite todas as formas. Isto se explica unicamente por nossa teoria. Mas se fossemos informados que o edificio cuja vista nos apraz. consiste de materiais inteiramente distintos, de peso ¢ consisténcia completa~ mente diferemes, porém indistinguiveis a olho nu, a edifieagdo inteira se tornaria to insuportivel como uma poesia numa lingua desconhecida. Isto tudo com prova que a arquitetura nao age somente de modo matemitico, mas dinamico, ¢ ‘© que delas se nos apresenta, nao sao simples forma ¢ simetria, mas aquelas for- gas bistcas da natureza, aquelas primeiras idéias, aqueles graus mais baixos da objetividade da vontade. A regularidade do edificio ¢ de suas partes ¢ conduzida pareialmemte pela utilidade imediata de toda parcela em relagio & existéncia do lodo, parcialmente para facilitar a visio e a compreensio do todo, por fim em parte as figuras regulares, revelando a conformidade do espago as leis, contri buem para a beleza. Isto tudo porém é de valor e necessidade reduzida e de modo algum ¢ principal, ja que mesmo a simetria nao é indispensdvel, pois alé as ruinas ainda so belas. Uma relagdo muito particular possuem as obras de arte arquitetOnica para com a luz: adguirem belecs dupla sob sol plenv, 0 éu azul como fundo, mos- trando um efeito inteiramente diferente sob o luar. Por isto durante a edificagao de uma obra de arquitetura. s¢ toma particular cuidado com os efeitos da luz ¢ a SCHOPENHAUER com as regides celestes. O motivo principal disto é que a iluminacSo clara e forte torna verdadciramente visiveis todas as partes ¢ suas relagdes; contude, sou da opiniao de que além disto a arquitetura, como o faz com a gravidade ¢ a rigidez, também € determinada a revelar simultaneamente a esséncia da luz inteiramente contraria dquelas, Av ser a luz interceptada, interrompida e reflctida pelas gran- des, opacas, nitidas ¢ multiformes massas, desdobra sua natureza ¢ propriedades do modo mais claro e distinto, para péudio do observador, sendo a luz a mais agradavel das coisas, como a condigao ¢ o correlato objetivo do modo de conhe- cimento intuitivo mais perfeito. Como as idéias trazidas a intuigdo nitida pela arquitetura sito os graus mais inferiores da objetividade da vontade, ¢ conseqiientemente a importancia objetiva do revelade pela arquitetura é relativamente reduzida, o prazer estético com a visio de um edificio belo ¢ favoravelmente iluminado nao se situara tanto na con cepeao da idéia, camo no correlato subjetive determinado com esta concep¢io, sonsistinde preponderantemente em nesta visio o observador ser arraneado do modo de conhecimento do individuo. que serve a vontade ¢ obedece ao principio de razio, sendo erguido ao modo do sujeito puro do conhecimento, independente da yontade; portanto, & contemplagac pura, livre de todo sofrimento do querer ¢ da individualidade. A este respeito constitui o oposto da arquiletura, e o outro extremo na série das belas artes, o drama, a conduzir ao conhecimento das idéing mais importantes, seado assim predominante no prazer estético do mesmo.o lado ‘objetivo, A arquitetura possui em relagiio as artes plasticas ¢ a poesia o distintive de no formar uma CSpia, mas a coisa mesma; niio reproduz, como aquelas, 1 idéia conhecida, com o que o artista empresta seus alhos ao observador. mas aqui o artista apenas apresenta 0 objeto ao observador, facilitando-lhe 4 apreensio da idéia, ao tomar o objeto individual real na expressio clara ¢ perfeita de sua esséncia, As obras de arquitetura mui raramente, assim como as outras obras de arte, so apresentadas para fins puramente estéticos, sendo ao contrario subordinados a outros fins utilitarios, estranhos a arte, ¢ © grande mérito do arquiteto consiste precisamente em impor e atingir os fins puramente estéticos apesar de sua subor dinagao a fins estranhos, adaptando-os de variada maneira ao momentineo fim ccasional, julgando com precisio qual beleza estético-arquiteténica suporta ¢ se alia a um templo, um palacio, um almoxarifado. Quanto mais um clima severo multiplica aquelas exigéncias da necessidade, da utilidade, com determinagao mais firme e prescrigfo mais inexorave!. menos campo de agio cabe ao helo na arquitetura. No clima ameno da india, do Egito, da Grécia ¢ dé Roma, onde as exigéncias da necessidade eram determinadas menos intensamente ¢ com mais brandura, a arquitetura péde perseguir do modo mais livre seus fins estéticas: sob © céu nérdico, estes the eram contrariados: aqui, onde se exigiam caixdes, torres © telhados pontiagudos, 2 arquitetura, conseguindo desdobrar sua propria beleza somente dentro de limites estreitos, compensava sua decoragdo com ornamentos emprestados @ escultura, tal come o vemos na arte gitica,

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