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Revista Brasileira de Inteligência

Número 12, dezembro 2017, ISSN 1809 - 2632


PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
GABINETE DE SEGURANÇA INSTITUCIONAL
AGÊNCIA BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA

Revista Brasileira de Inteligência

ISSN 1809-2632
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
Presidente Michel Miguel Elias Temer Lulia
GABINETE DE SEGURANÇA INSTITUCIONAL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
Ministro Sérgio Westphalen Etchegoyen
AGÊNCIA BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA
Diretor-Geral Janér Tesch Hosken Alvarenga
SECRETARIA DE PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO
Secretário Antonio Augusto Muniz de Carvalho
ESCOLA DE INTELIGÊNCIA
Diretor Luiz Alberto Santos Sallaberry
Editora-Chefe
Ana Maria Bezerra Pina
Comissão Editorial da Revista Brasileira de Inteligência
Ana Maria Bezerra Pina, Delanne Novaes de Souza, Fábio Nogueira de Miranda Filho, Joanisval Brito
Gonçalves, Marcos Rosas Degaut Pontes, Roniere Ribeiro do Amaral, Uver Oliveira Cabral.
Pareceristas
Ana Maria Bezerra Pina, César Luiz Bernardo, Daniel Almeida de Macedo, Delanne Novaes de Souza,
Edson de Moura Lima, Fábio Nogueira de Miranda Filho, Joanisval Brito Gonçalves, José Renato de
Oliveira, Marcos Rosas Degaut Pontes, Olívia Leite Vieira, Paulo Roberto Moreira, Pedro Jorge Sucena
Silva, Pedro Nogueira Gonçalves Diogo, Roniere Ribeiro do Amaral, Ryan de Sousa Oliveira, Tarcísio
Franco, Thiago Lourenço Carvalho, Uver Oliveira Cabral.
Capa
Carlos Pereira de Sousa
Editoração Gráfica
Giovani Pereira de Sousa
Revisão
Caio Márcio Pereira Lyrio, Geraldo Adelano de Faria, Thiago Lourenço Carvalho.
Catalogação bibliográfica internacional, normalização e editoração
Coordenação de Biblioteca e Museu da Inteligência - COBIM/CGPCA/ESINT
Disponível em: http://www.abin.gov.br
Contatos:
SPO Área 5, quadra 1, bloco D
CEP: 70610-905 – Brasília/DF
E-mail: revista@abin.gov.br
Tiragem desta edição: 300 exemplares
Impressão
Gráfica – Abin
Os artigos desta publicação são de inteira responsabilidade de seus autores. As opiniões emitidas não
exprimem, necessariamente, o ponto de vista da Abin.
É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desta revista, desde que citada a fonte.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Revista Brasileira de Inteligência / Agência Brasileira de Inteligência.
– n. 12 (dez. 2017) – Brasília : Abin, 2005 –
124 p.
Anual
ISSN 1809-2632
1. Atividade de Inteligência – Periódicos 1. Agência Brasileira
de Inteligência.
CDU: 355.40(81)(051)
Sumário
5 Editorial
7 O PROCESSO DE RADICALIZAÇÃO E A AMEAÇA TERRORISTA NO
CONTEXTO BRASILEIRO A PARTIR DA OPERAÇÃO HASHTAG
Thiago A. - Augusto O. - Allan S.

21 ESTUDO DOS SERVIÇOS DE INTELIGÊNCIA:


UMA ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA COMPARADA
Roberto Numeriano

35 QUANDO O SEGREDO É A REGRA:


ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA E ACESSO À INFORMAÇÃO NO BRASIL
Gills Vilar-Lopes

51 A IMPORTÂNCIA DA INTELIGÊNCIA COMO OBJETO DE ESTUDO


PARA O CAMPO DA DEFESA NO BRASIL
Arthur Macdowell Cardoso

65 REFERENCIAIS BÁSICOS PARA A CAPACITAÇÃO DE PROFISSIONAIS


DE INTELIGÊNCIA DE SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL
Hélio Hiroshi Hamada - Renato Pires Moreira

77 A MODERNIZAÇÃO DA INTELIGÊNCIA ESTRATÉGICA NA


PERSPECTIVA DA SEGURANÇA HUMANA
Danilo Coelho

91 INDICADORES ECONÔMICOS NA ANÁLISE DE INTELIGÊNCIA –


ESTUDO SOBRE OS ÍNDICES DE RISCO SOBERANO
Eduardo Castello

107 PERSPECTIVAS E DESAFIOS DA ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA A


PARTIR DA POLÍTICA NACIONAL DE INTELIGÊNCIA
Pablo Duarte Cardoso

117 ABSTRACTS

Editorial

A demanda por Inteligência vem crescendo substancialmente por parte dos mais diver-
sos segmentos do Estado brasileiro, o que inclui das Forças Armadas e polícias a órgãos
do Judiciário e áreas específicas, a exemplo da penitenciária. Nota-se que, pouco a
pouco, o sistema universitário brasileiro vem adotando a Inteligência como disciplina
ou objeto de estudo, algo já consolidado em várias partes do mundo.

Assim como cresce o interesse pela Inteligência, também aumenta a necessidade de


integração entre órgãos do aparato estatal e da sociedade civil nessa matéria. Esse
desafio de maior e efetiva cooperação se refletiu, neste ano, no trabalho conjunto do
Sistema Brasileiro de Inteligência para elaboração da Estratégia Nacional de Inteligência
e do Plano Nacional de Inteligência.

Nesse contexto, a 12ª edição da Revista Brasileira de Inteligência traz novas e estimu-
lantes contribuições para o estudo e o debate dessa atividade e para o reconhecimento
do papel da Atividade de Inteligência em prol do bem-estar da sociedade e dos inte-
resses nacionais. Este periódico existe para contribuir no desenvolvimento dessa per-
cepção da Inteligência como ferramenta imprescindível para o país. Os textos reunidos
neste número retratam essa intenção.

O presente número é inaugurado por um texto que representa uma visão analítica da
Operação Hashtag, que, sob a nova lei de antiterrorismo no Brasil, atuou sobre os cha-
mados atos preparatórios de terrorismo, no contexto das Olimpíadas Rio 2016. Já para
o fechamento desta edição, selecionamos um ensaio que contempla, sob a perspectiva
da diplomacia brasileira, avanços e desafios institucionais da Atividade de Inteligência,
a partir da recente Política Nacional de Inteligência.

Dois outros textos abordam a relação da Atividade de Inteligência com o regime de-
mocrático brasileiro. Um deles trata da compatibilização do sigilo, característico da
Atividade, com o direito de acesso à informação presente na democracia. O outro de-
monstra as possibilidades que a análise em ciência política tem para tornar as agências
de Inteligência conhecidas e compreendidas pela sociedade.

A perspectiva de Inteligência como elemento de capacitação é contemplada de duas


formas: num texto, como objeto de estudo em programas acadêmicos de ensino; nou-
tro, como conteúdo necessário à formação de servidores no setor de segurança pública.

Ratificando a percepção do crescente papel da Atividade de Inteligência na sociedade,


um dos artigos demonstra como os limites na utilização desse recurso têm sido esten-

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 5


didos do campo típico das ameaças à segurança do Estado para um paradigma rela-
cionado às múltiplas ameaças à população. Por fim, outro artigo atrela a Inteligência à
Economia, apontando indicadores para a avaliação da situação econômica de um país.

Para além de informar e esclarecer, desejamos que este número contribua para a am-
pliação de um profícuo debate sobre Inteligência.

Que a leitura seja instigante!

Comissão Editorial

6 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


O PROCESSO DE RADICALIZAÇÃO
E A AMEAÇA TERRORISTA NO CONTEXTO BRASILEIRO
A PARTIR DA OPERAÇÃO HASHTAG
Thiago A.*
Augusto O.**
Allan S.***

Resumo
Este artigo busca identificar aspectos da evolução do fenômeno do terrorismo no Brasil a partir
da análise da radicalização de jovens brasileiros convertidos em curto período. Esses indiví-
duos, motivados pelos ataques perpetrados pelo Estado Islâmico (EI) na Europa Ocidental,
valeram-se da facilidade de comunicação em mídias sociais para formar uma rede fechada de
apoio às ações do EI no Brasil, fosse para emigrar para a Síria, fosse para uma ação violenta em
solo pátrio. A rede de jovens radicalizados foi desmobilizada pela ação do Departamento de
Polícia Federal (DPF), em julho de 2016, sob a nova lei antiterrorismo, na Operação Hashtag. É
possível analisar o processo de radicalização observado no Brasil sob a ótica de cinco camadas
sobrepostas: comunidades, doutrinadores, defensores do pensamento radical, radicalizados
dispostos à ação e os já envolvidos na consecução de ações específicas.

Palavras-chave: Terrorismo; Processo de radicalização; Operação Hashtag.

Introdução

A percepção da ameaça terrorista pela


Inteligência brasileira passou por vá-
rias fases nas últimas duas décadas. Essas
autonomia decisória, organização, méto-
dos de propaganda e fundamentação ide-
ológica, e suas implicações no contexto
fases acompanharam os rearranjos obser- temporal político e social brasileiro até o
vados no seu objeto, ou seja, os grupos estágio mais recente, precedido por uma
terroristas, conforme suas características real ameaça detectada alguns meses antes
de maior ou menor grau de centralização, dos Jogos Olímpicos Rio 2016.1

* Oficial de Inteligência.
** Oficial de Inteligência.
*** Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
1
O presente ensaio se baseia primordialmente nos dados e informações revelados e disponí-
veis publicamente na denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF) no contex-
to da chamada Operação Hashtag e na posterior sentença prolatada pelo juiz federal Marcos
Josegrei da Silva, da 14ª Vara Federal, em Curitiba/PR, primeira sentença no Brasil sob a
égide da Lei nº 13.260/2016, que disciplina o crime de terrorismo e correlatos. Links para
acessar essas duas peças podem ser vistos nas referências bibliográficas.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 7


Thiago A. - Augusto O. - Allan S.

Durante a década passada, a Inteligên- redes sociais dos jovens brasileiros e à


cia estudou o fenômeno do terrorismo forma de inserção destes na comunida-
a partir da análise dos diferentes grupos de muçulmana. Apesar de o processo
terroristas internacionais, identificação de radicalização de nacionais nesses úl-
de possíveis células atuantes no Brasil e timos anos ter se iniciado a partir de ide-
acompanhamento de indivíduos, residen- ologia disseminada pela Al Qaeda, com
tes ou em trânsito no país, vinculados ou o EI esse processo se expandiu de ma-
ideologicamente simpáticos a grupos ex- neira significativa, o que possibilitou a
tremistas. A preocupação quanto à ame- formação de uma efetiva rede extremista
aça de um atentado terrorista de matiz identificada no país em 2015.
islâmico, nesse período, residia na even-
tual possibilidade de uma ação planeja- Em face à imagem de brutalidade exposta
da e coordenada utilizando o Brasil, se pelo EI e estimulada pelas preocupações
não como alvo, mas como palco, a partir decorrentes dos vários grandes eventos
de uma célula cuja unidade de comando sediados no Brasil nos últimos anos, a
estaria fora do país, vinculada a grupos postura de negação do fenômeno como
como Al Qaeda. uma preocupação nacional, defendida
por muitos operadores da política ex-
Entretanto, até o período dos grandes terna brasileira3, diminuiu, e os dirigen-
eventos sediados no Brasil nos últimos tes passaram a considerar o terrorismo
anos, o risco de um atentado em territó- como uma ameaça potencial. Os órgãos
rio nacional sempre foi tido como míni- competentes esforçaram-se, então, para
mo, considerando principalmente fatores adequar seus métodos a essa nova re-
socioculturais, contexto de inserção das alidade, com consequentes mudanças
comunidades muçulmanas nos estados na estrutura pública ligada ao tema e no
da federação e posicionamentos da po- ordenamento jurídico, o que resultou na
lítica externa brasileira. promulgação da Lei nº 13.260/2016.

A partir de 2014, com o despontamen- Este ensaio será dedicado ao estudo dos
to do grupo terrorista autodenominado processos de radicalização e formação
Estado Islâmico (EI)2 como principal de redes extremistas, com base no caso
ameaça terrorista no cenário interna- da rede identificada em 2015, tendo
cional, esse fenômeno manifestou-se no como fontes primárias a denúncia ofe-
Brasil com características próprias re- recida pelo Ministério Público Federal
lacionadas principalmente a fatores so- (MPF) e a sentença exarada pelo juiz do
cioculturais, particularmente no que diz caso. Em um primeiro momento, serão
respeito à dinâmica de comunicação em apresentadas hipóteses que ajudem a
2
Sobre a discussão a respeito de como se deve chamar esse grupo terrorista – se Estado Islâ-
mico, ISIS, ISIL, Daesh etc. – cf. HASHIM (2014) e Zach Beauchamp, “ISIS, Islamic State or
ISIL? What to call the group the US is bombing in Iraq”, OSINT Journal Review, 17 set. 2014.
Em consonância com o exposto nessas referências, optou-se por utilizar somente “Estado
Islâmico” ou EI neste artigo.
3
Cf. CUNHA (2009), cap. 5 – “O regime em construção – posições brasileiras”, em especial o
item 5.1 – “Baixa prioridade do tema na agenda externa”, p. 113.

8 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


O processo de radicalização e a ameaça terrorista no contexto brasileiro
a partir da Operação Hashtag

compreender como se deu a formação prudencial e teológica (suras do Corão


da rede em tão curto período e por que e ahadith da Sunna5) que justificaria as
ela era composta, em sua maior parte, ações violentas da Al Qaeda à luz do
de nacionais brasileiros. Posteriormente, Islã, restringiu o público no Brasil aos
abordar-se-ão características da rede, que se ocupavam em se aprofundar na
classificando sua estrutura conforme doutrina e difundi-la, tendo, mesmo
atributos e posicionamentos dos mem- assim, pouco alcance radial. Esses pou-
bros dentro dos processos de radicali- cos indivíduos da primeira geração de
zação e da ação terrorista, utilizando radicais frequentavam pequenas comu-
para isso um modelo analítico proposto nidades religiosas, comunicavam-se vir-
como adequado ao contexto do contra- tualmente e encontravam-se em eventos
terrorismo no Brasil. religiosos, mas comumente eram recha-
çados pelas comunidades muçulmanas
O grupo Estado Islâmico e radicalização tradicionais, sempre preocupadas em
de brasileiros evitar uma imagem na opinião pública
O framework terrorista introduzido pela que associasse o Islã ao terrorismo. Ha-
Al Qaeda ao longo da década de 2000 via no país, portanto, pouco espaço para
e início da atual, baseado na dissemina- a formação de uma estrutura celular bra-
ção coordenada de sua base ideológica sileira com capacidade de ação no nível
em células (subordinadas a uma lideran- de organização e complexidade dos ata-
ça central forte)4, com forte uso da pro- ques assinados pela Al Qaeda.
paganda virtual, que sustentou o grupo
Em 2015, as inovações implementadas
mesmo durante seu progressivo enfra-
pelo EI a partir do método de doutrina-
quecimento naquele período, encontrou
ção da Al Qaeda6, que foram determi-
no Brasil atores isolados e favoreceu,
nantes para a expansão e capilaridade
ainda que de forma incipiente, o início
alcançadas pelo grupo no mundo desde
de processos de radicalização de brasi-
o início de sua formação, encontraram
leiros. Alguns indivíduos, que manifesta-
campo fértil em parte dos jovens muçul-
vam pensamento extremista e demons-
travam simpatia pelo grupo, utilizavam manos sunitas no Brasil. Apontar alguns
as redes sociais para atingir seguidores ingredientes do modelo de propagação
e, possivelmente, radicalizá-los. do EI – e em especial elementos distin-
tos do receituário da Al Qaeda, que en-
Entretanto, a abordagem adotada, com contraram grande receptividade entre os
ênfase no domínio da ampla base juris- brasileiros convertidos – torna possível
4
Cf. SCHWEITZER; LONDON (2009) e SEDGWICK (2004).
5
Sunna (“hábito”, “modo de agir” em árabe, pl. sunan) é a coleção de ditos, pregações, regis-
tros de como o profeta Muhammad agiu em várias situações com que se deparava, base, jun-
to com as suras (capítulos) do Corão, de toda a jurisprudência islâmica, transmitida oralmente
por décadas ou séculos e registrada por escrito posteriormente sob a forma de ahadith (plural
de hadith, “relato”, “narrativa”).
6
Cf. AL-TAMIMI (2004, 2013).

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Thiago A. - Augusto O. - Allan S.

compreender as razões por trás desse por MARQUES (2010). Os brasileiros


processo7. Destacam-se, entre outros, convertidos trazem consigo caracterís-
elementos de propaganda virtual e o ticas próprias da cultura ocidental de
esmero em sua produção, estruturação tradição cristã. Eles são normalmente
em rede, disseminação do pensamento originários de famílias católicas ou evan-
radical sem o rigor doutrinário funda- gélicas e geralmente se veem afastados
mentalista e a mensagem do califado8. do convívio familiar após a conversão.
Apontar-se-ão também, por outro lado, Introduzem-se na comunidade muçul-
características observadas nos perfis mana, tão estranha às suas formações
desses jovens brasileiros que eventual- originais, e com ela passam a conviver
mente podem contribuir para o processo com frequência. Esforçam-se para se
de absorção da narrativa extremista. Para aproximar de uma realidade cujo extre-
isso, o estudo se iniciará com uma rápi- mo seria a profundidade das atividades
da análise sobre as barreiras e rupturas religiosas mescladas às práticas culturais
muitas vezes enfrentadas nas trajetórias tradicionais das famílias muçulmanas es-
de conversão desses jovens.9 trangeiras e de seus descendentes.11

Percebe-se que o processo de conver- Já os estrangeiros muçulmanos, mesmo


são10 dos brasileiros costuma ser difícil, que bem adaptados à cultura brasileira,
não envolvendo apenas os desafios de conservam características de suas ra-
inserção na nova religião, mas uma com- ízes, carregadas de uma complexa so-
plexa readaptação social, psicológica e breposição identitária étnica, política e
cultural. Essa percepção é compartilhada religiosa. Em razão disso, os converti-
7
SILVA (2017, mimeo) analisa perfis de terroristas envolvidos nos principais atentados ocorri-
dos nos últimos anos, apontando elementos observados em suas trajetórias de radicalização
e características no modo de atuação do Estado Islâmico, que possibilitam melhor compre-
ender o fenômeno do terrorismo na atualidade. A abordagem do autor quanto ao cenário
internacional norteou a elaboração do conteúdo apresentado ao longo desse capítulo, em que
trabalhamos processos de radicalização observados no Brasil.
8
Califado (árabe, khilafah), nesse contexto, se refere ao modelo de organização política, de
Estado confessional idealizado no Islã, tendo como referência o reinado dos primeiros quatro
califas (árabe, khalifah, “sucessor”) após a morte do profeta Muhammad. O grupo terrorista
Estado Islâmico, em sua tentativa de se afirmar como entidade estatal de facto e de legitimar
o papel de liderança sobre toda a comunidade islâmica mundial, que pretenderia exercer,
chama a si mesmo de califado e a seu líder, Abu Bakr al-Baghdadi, de califa. O termo serviu
ao longo da história do Islã, de acordo com DANFORTH (2014), mais como slogan utilizado
por grupos isolados em tentativas frustradas de legitimarem-se como liderança política em
conflitos localizados.
9
Não há dados precisos que quantifiquem num espaço temporal o crescimento da população
de brasileiros convertidos ao Islã nos últimos anos. Todavia, é possível afirmar que é inegá-
vel, a partir de informações das principais organizações muçulmanas e do acompanhamento
empírico do fenômeno no período, que este apresentou expressivo crescimento nos últimos
cinco anos.
10
A conversão para o Islã é chamada pelos seguidores dessa religião de “reversão”. Eles
professam que todos nascem muçulmanos, mas as famílias e sociedades em que estão in-
seridos pervertem essa inclinação inata e fazem com que sigam outras fés. Ao encontrarem
o Islã mais tarde em suas vidas, os convertidos estariam apenas retornando ou revertendo à
sua fé original.
11
Cf. MARQUES (2010).

10 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


O processo de radicalização e a ameaça terrorista no contexto brasileiro
a partir da Operação Hashtag

dos geralmente se agrupam com outros progressivo processo de isolamento so-


brasileiros que compartilham a mesma cial e imersão no mundo virtual.13
situação. A essas diferenças, que so-
brecarregam o processo de adaptação, Nesse meio também foram observados14
somam-se as dificuldades étnico-lin- sentimentos de inferioridade, carências
guísticas que dificultam ou retardam a relacionadas ao sentimento de pertenci-
absorção cultural, teórica e prática da mento, problemas conjugais, desempre-
religião por parte dos brasileiros. go e baixas perspectivas laborais. Certa-
mente, outros elementos relacionados à
Nos processos de transição para uma história de vida desses potenciais jovens
identidade muçulmana observados em radicais, anteriores ou não ao processo
grande parte dos indivíduos identifica- de conversão, muitas vezes difíceis de
dos na rede extremista brasileira alvo identificar sem uma análise mais criterio-
deste estudo, os convertidos passaram sa por parte de um psicólogo clínico, so-
por uma trajetória de distanciamento maram-se a esse processo de adaptação
familiar, ruptura compelida de práticas e contribuíram na formação de um perfil
da cultura ocidental secular e de parte suscetível ao discurso radical. Muitos se
de seu vínculo pátrio, passando por fa- viam perdidos em meio a essa transição
ses de isolamento social12. Aqueles que ou não encontravam substitutos para
não participavam de alguma comunidade ocupar os vazios deixados pelas ruptu-
física (a maioria deles) – que passaram ras da conversão. A maioria recorreu a
por experiências isoladas de conversão e substitutos dissonantes: o discurso radi-
cujas práticas religiosas eram fomentadas cal supriu os anseios de superioridade,
por pares nas redes sociais – comumen- os líderes jihadistas ocuparam o espaço
te reclamavam que sofriam discriminação de carência paternal, a irmandade dos
por parte de familiares ou pessoas de seu mujahedin substituiu a família, o ideal do
convívio. Esses indivíduos passaram por califado, sua pátria, o jihad, sua causa.15
12
Cf. BHUI et al. (2012) e KHADER (2016), p. 300.
13
Importante destacar, nesse ponto, o momento político e social vivido no Brasil no período
que indiretamente pode ter influenciado o processo de radicalização dos jovens brasileiros.
O Brasil vivia um momento de forte mobilização social e experimentava a impressionante
capacidade de organização, mobilização e disseminação de protestos pelos jovens nas redes
sociais. Eles encontravam na internet o seu campo de batalha inicial em meio aos movimentos
contra a corrupção na política brasileira. Os jovens perceberam o seu poder na sociedade por
meio de mobilizações organizadas online. É possível apontar esse fato como um processo
no inconsciente coletivo juvenil, que contribuiu paralelamente para a ampliação da exposição
desses jovens nas redes sociais, no tocante a discussões sobre o EI. Tal hipótese, porém,
requer estudo mais profundo, que fugiria ao escopo do presente ensaio.
Observados na literatura a respeito de processos de radicalização referenciada neste artigo e
14

depreendidos do conteúdo da denúncia do Ministério Público Federal (MPF), da sentença judicial


e de material de interrogatórios e entrevistas com os réus, divulgados no decorrer do processo.
15
Não cabe neste texto discutir os diversos sentidos da palavra jihad (lit. “esforço”). É sabido
que o discurso apologético e proselitista do Islã e de suas lideranças busca enfatizar que o
vocábulo não tem uma conotação violenta, que faria referência a um “esforço interno” do fiel
para combater sua negatividade e ser uma pessoa melhor. Entretanto, é inegável que esse
termo foi e é usado na história e na jurisprudência do Islã desde as primeiras décadas da
Hégira como uma referência explícita a esforços violentos e militares para proteger e expandir
a religião. Há todo um gênero de literatura islâmica clássica (séculos 11 e 12) a que se dá o
nome de “Kitab al-Jihad” (Livro do Jihad), que são livros de estratégia puramente militar.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 11


Thiago A. - Augusto O. - Allan S.

O poder de arregimentação do EI, com isoladamente no Brasil, protegidos pela


base nos fatores acima analisados, tor- ausência de instrumentos legais que
nou-se particularmente maior perante permitissem qualquer tipo de ação re-
o público jovem. Apesar das diferenças pressiva ou preventiva – e utilizavam as
em relação ao fenômeno na Europa, os redes sociais para disseminar os pen-
jovens brasileiros radicalizados apre- samentos radicais difundidos pelos ca-
sentam a semelhança da vulnerabilidade nais de comunicação extremistas, como
social e etária. a revista Inspire. Esses indivíduos, que
buscavam os fundamentos e preceitos
Na Europa16, a radicalização ocorre fre- do Islã baseados nos complexos discur-
quentemente em um contexto de ressen- sos dos porta-vozes da Al Qaeda – mas
timento pela forma como os imigrantes que eram vozes isoladas em suas co-
oriundos de ex-colônias de maioria mu- munidades, normalmente tachados de
çulmana são acolhidos e integrados nas terroristas – passaram a ver no EI uma
antigas metrópoles, muitas vezes ocor- oportunidade até então despercebida.
rendo no ambiente prisional, em que
essa parcela marginalizada da população O EI inova e aprimora a propaganda vi-
é desproporcionalmente representada. sual e simplifica a linguagem da Al Qae-
No Brasil, diferentemente, a radicaliza- da, utilizando grande aparato tecnológi-
ção alcança indivíduos sem quaisquer co e propagação na internet, com forte
laços prévios com o Islã, que veem nele, apelo emocional, alcançando espaço na
no califado e na promessa de recompen- mente de vários jovens brasileiros. Esses
sas do martírio, um escape perfeito para jovens passam, por meio de um simples
suas frustrações familiares e sociais. juramento de lealdade, a bay‘ah, a fa-
zer parte de um forte aparato militar e
Na maioria dos casos observados no combater por uma causa divina. Agora
Brasil, os convertidos radicais são jovens é a luta pelo reestabelecimento dos pre-
sem vínculos identitários com o Islã. Eles ceitos, da tradição do Islã, a Umma,17 a
não pertencem às comunidades muçul- Dawla,18 o califado (khilafah) do século
manas brasileiras históricas, formadas VII, um estado para todos muçulmanos
pelas famílias de imigrantes de origem independentemente de suas origens, sob
árabe que vieram ao Brasil desde o final o comando de um sucessor do profeta.
do século XIX.
Ao contrário da Al Qaeda em seu auge
Enquanto a Al Qaeda ainda era a prin- e outros grupos terroristas tradicionais,
cipal fonte de inspiração para radicais o EI não se preocupa em incentivar for-
pelo mundo, pregadores e dissemi- mação de células dirigidas diretamente
nadores do ideal combatente atuavam por um comando central que planeja to-
16
Cf. AZZAM (2007) e MURSHED e PAVAN (2009) para comparar duas visões contrastantes
sobre essa questão.
17
Comunidade de fiéis.
18
Estado; manifestação do Islã na esfera política.

12 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


O processo de radicalização e a ameaça terrorista no contexto brasileiro
a partir da Operação Hashtag

das as ações em detalhes, mas estimula aplicativos móveis criptografados. Ao


seus combatentes (todo aquele que fez a longo dos meses seguintes, outros gru-
bay‘ah) a agirem localmente e de maneira pos menores foram se formando nesses
simples, mas efetiva. Atentados recentes aplicativos e o nível do discurso radical
na Europa com o uso de facas ou cami- aumentou progressivamente entre os
nhões são um exemplo dessa transição membros. Os principais grupos passa-
no modus operandi. ram a tratar, entre outros assuntos, da
formação de células para treinamento e
Em meados de 2015, tornou-se evi-
preparação física e espiritual em favor do
dente19 uma maior movimentação em
jihad, de recursos e meios de migração
grupos nas redes sociais e em algumas
para combater na Síria (hijra) e, já próxi-
comunidades muçulmanas em torno de
mo das Olimpíadas, da possibilidade de
longos debates sobre a legitimidade da
executar um atentado terrorista no Bra-
existência e das ações do EI, apontan-
sil. Não eram típicas células terroristas
do para a formação de um grupo em
nos moldes da Al Qaeda, mas uma rede
processo de rápida radicalização. Após
de extremistas do EI formado por poten-
um período de agrupamentos e reagru-
pamentos físicos e virtuais, com parti- ciais terroristas brasileiros.
cipação de indivíduos com diferentes Em julho de 2016, mais de uma dúzia
graus de instrução, chegou-se, pouco
de indivíduos foram presos em quatro
antes dos atentados na França, em 13
etapas operacionais executadas pelo
de novembro de 2015, a um conjunto
Departamento de Polícia Federal (DPF),
de indivíduos que representavam o que
acusados de praticarem crimes previs-
se pode chamar de uma “rede extremista
tos na lei que disciplina o terrorismo,
brasileira” e cujo marco focal foi a cria-
entre eles indivíduos que faziam parte
ção de um grupo secreto no Facebook
da rede de radicais islâmicos identifica-
denominado “Defensores da Sharia”.20
da no Brasil. Em setembro do mesmo
No final de novembro de 2015, pouco ano, oito indivíduos foram denunciados
após os atentados em Paris, os mais ra- pelo Ministério Público Federal (MPF)
dicalizados saíram ou deixaram de parti- pelos crimes de promoção de organi-
cipar do grupo de discussões Defensores zação terrorista e atos preparatórios de
da Sharia e passaram a se comunicar em terrorismo, entre outros.21
19
Cf. Denúncia do MPF e sentença judicial.
20
Segundo perícia policial referida na denúncia.
21
Os indivíduos denunciados e, posteriormente, sentenciados foram descritos amplamente na
imprensa e por algumas autoridades como “amadores” e como não representando grande
ameaça real, uma vez que estavam espalhados pelo território nacional sem estarem reuni-
dos fisicamente; não possuíam poder de fogo de fato, nem teriam sido treinados por grupo
terrorista estrangeiro. Essa análise revela uma falta de compreensão, à época, da mudança
de paradigma representada pela ascensão do EI e de seu modo de recrutar combatentes e
pô-los em ação.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 13


Thiago A. - Augusto O. - Allan S.

Análise e identificação de radicais sa, formação educacional, vida familiar,


experiências vividas etc.
É possível, a partir de uma análise cri-
teriosa da experiência brasileira, formar No caso da rede de extremistas identi-
alguns conceitos e taxonomias que per- ficada no Brasil, é possível afirmar que
mitam compreender de maneira mais a passagem de parte dos membros do
objetiva e didática como têm ocorrido grupo do Facebook “Defensores da Sha-
processos de radicalização no País. ria” para grupos menores em aplicativos
móveis, com aumento contínuo na pre-
Pode-se afirmar que o processo de radi- ocupação quanto à segurança23, repre-
calização de muçulmanos tem início com sentaria a transição de indivíduos que
a exposição do indivíduo a um ambiente completaram um ciclo de radicalização
psicossocial que lhe ofereça condições para o início do ciclo da ação. O marco
propícias para que venha a ser introdu- dessa transição foi observado no final de
zido ao pensamento radical. Essa expo- novembro de 2015, após um período de
sição é o primeiro passo de um ciclo que pouca atividade no grupo do Facebook
resulta num ponto focal, porém abstrato, em razão do impacto causado pelos
que seria o momento em que poder-se- atentados na França. Esse evento ser-
-ia atribuir-lhe o adjetivo de “radical”. viu como certo “divisor de águas”, que
trouxe aos indecisos do grupo, ainda não
Um indivíduo já radicalizado, ou seja,
completamente radicalizados, o questio-
que completou o que se chama aqui de
namento definitivo sobre o caráter terro-
“ciclo22 de radicalização” pode ou não
rista da organização EI, fator que levou
iniciar outro processo, o “ciclo da ação”,
os mais radicalizados a migrarem para
que o leva ao cometimento de fato de
canais de comunicação criptografados,
uma ação terrorista. Este ciclo pode in-
em que passaram a tratar da formação
cluir várias etapas, como a absorção do
de uma célula extremista.
ideal terrorista, a decisão da ação, o pla-
nejamento e a preparação do atentado. Os atores relacionados ao ciclo comple-
Ambos os ciclos, de radicalização e da to da ação terrorista podem ser classi-
ação, formariam o que aqui se denomi- ficados de diversas formas, conforme o
na, para fins didáticos, “ciclo completo papel que desempenham no grupo, seu
da ação terrorista”. No entanto, fatores nível de radicalização e de ação ou qual-
subjetivos anteriores ao ciclo do radica- quer outra forma de atuação que auxi-
lismo são igualmente ou até mais impor- lie no planejamento de suas ações. Por
tantes no estudo desse processo, ou seja, exemplo, definir o ambiente de maior
as condições psicossociais do indivíduo, atuação do indivíduo radicalizado, seja
expectativas de futuro, história pregres- virtual ou físico, e o papel que desempe-
22
Utilizou-se ao longo do artigo o termo “ciclo” por este ser muito comum na literatura especiali-
zada. No entanto, tratam-se de processos e subprocessos complexos, não necessariamente
cíclicos ou fechados, mesmo que possa haver elementos de retroalimentação.
23
V. Denúncia do MPF e sentença.

14 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


O processo de radicalização e a ameaça terrorista no contexto brasileiro
a partir da Operação Hashtag

nha dentro de um determinado contexto, calizados dispostos à ação e os já envol-


como “disseminador do pensamento ra- vidos no ciclo da ação.
dical” ou “disposto à ação violenta”, é
essencial na definição da estratégia ana- Identificação de redes extremistas
lítica e operacional de acompanhamento Utilizando o modelo de classificação por
desses indivíduos. camadas mencionado anteriormente, é
Para fins de análise dos casos relaciona- possível analisar como exemplo, de for-
ma mais objetiva, parte da rede identi-
dos ao extremismo islâmico no contexto
ficada no Brasil. Antes, porém, importa
brasileiro, utilizou-se aqui um modelo24
pontuar que fogem dessa metodologia
de classificação que mescla, em camadas
casos genuínos de agentes isolados, in-
ou níveis sobrepostos, vários atributos,
divíduos que passam por todo o ciclo
como o ambiente de radicalização, a
de radicalização e cometimento de um
função que determinado ator desempe-
atentado sem nenhuma ou com mínima
nha no grupo, o grau de radicalização
participação de terceiros.25 Tais casos
do indivíduo radical e a disponibilidade
são extremamente difíceis de identificar
dele à ação. Essa metodologia, apesar de
e requerem métodos variados que envol-
simples, permite trilhar um caminho lógi-
vem vários atores na estrutura de enfren-
co cuja correta análise, desde o enfoque
tamento ao terrorismo.
da primeira exposição ao pensamento
radical, facilita a identificação de indiví- O primeiro nível de análise, pelo qual se
duos radicalizados nas camadas subse- inicia a prospecção do indivíduo radical,
quentes, até o nível maior da ameaça, ou é a camada referente à comunidade ou
seja, o indivíduo na iminência de execu- grupo em que o extremista possa es-
ção de uma ação terrorista. São cinco as tar inserido. É o ambiente primeiro de
camadas: comunidades, doutrinadores, exposição do indivíduo ao processo de
defensores do pensamento radical, radi- radicalização. Identificam-se assim am-
24
O modelo empregado no artigo, detalhado em seguida no texto, se trata de um conjunto
de características depreendidas empiricamente dos dados constantes no caso em questão,
acrescidas de substrato teórico obtido na revisão da literatura, organizados pelos autores em
uma taxonomia analítica capaz de auxiliar na compreensão de processos de radicalização
observados no País. É um modelo empírico inédito, sujeito a constante atualização.
25
É deliberada a opção de não utilizar o termo “lobos solitários”, amplamente difundido. Ape-
sar de alguns autores repudiarem a existência da figura do lobo solitário terrorista, sob o
argumento de que nenhum indivíduo chega ao ponto de cometer um atentado terrorista de
matiz islâmico de sua inteira e autônoma vontade, sem qualquer ingerência ou participação
mesmo que motivacional de terceiros, falta nessa discussão uma uniformidade conceitual na
compreensão do termo. Não se trata de comparar tais casos às ações observadas em outros
matizes em que o indivíduo atua a partir de uma ideologia adquirida autonomamente e imbu-
ído geralmente de distúrbios psicológicos, o que recai em discussões desnecessariamente
complexas. Por isso, prefere-se o uso do termo “agente isolado”, entendido como o indivíduo
que, sem a participação ativa e direta de terceiros e a partir unicamente de acesso a material
doutrinário, considerando todos os fatores subjetivos adjetos ao ciclo de radicalização, pode
adquirir a motivação necessária e cumprir todas as etapas de um ciclo completo do atentado,
indo inclusive ao encontro do que hoje é amplamente incitado pelos principais grupos terroris-
tas islâmicos e tende a aumentar com o fim do califado enquanto proto-Estado.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 15


Thiago A. - Augusto O. - Allan S.

bientes na sociedade propícios a um redes sociais. Há pouca ênfase no emba-


processo de radicalização, sejam comu- samento teológico (embora ele exista), o
nidades religiosas, grupos de discussão que permite disseminar a ideologia do
virtual, grupos de estudos etc. combate e atingir os níveis menos ins-
truídos das comunidades sunitas, arre-
Em comunidades islâmicas formais (in- gimentando jihadistas por meio de um
cluídos, nessa camada, ambientes físicos simples juramento de fidelidade, inde-
e virtuais), por exemplo, é necessário ini- pendentemente da chancela de qualquer
cialmente compreender a linha doutriná- liderança. Esse processo, porém, tam-
ria empregada, a escola de pensamento bém pode ocorrer sob a leniência e ne-
seguida pelos seus principais líderes e gligência das lideranças religiosas.
sheikhs. Não se trata apenas de iden-
tificar pregadores oriundos de escolas Vários fatores inibem a grande maio-
wahhabitas ou salafitas26, o que por si só ria das autoridades religiosas islâmicas
não sugere posicionamento extremista; de manifestarem diretamente qualquer
mas de conhecer seus verdadeiros dire- pensamento radical. Mesmo os mais ex-
cionamentos doutrinários, muitas vezes tremistas, em público ou para a comu-
sutis e manifestados apenas a um públi- nidade aberta, se valem constantemen-
co específico. Sem qualquer pretensão te do discurso antiterrorista. Podemos
de achar indivíduos radicalizados nesse confirmar essa observação nos próprios
nível analítico, procura-se aqui identificar indivíduos da rede extremista brasilei-
as portas que vão dar acesso ao primeiro ra quando concluem, segundo relatado
e complexo corredor de introdução ao pelo MPF, “que nenhum sheik (líder re-
pensamento radical. ligioso) que comande uma mesquita ofi-
cialmente no Brasil declararia seu apoio
Essa primeira camada analítica pode ser expresso ao EI”.27
a menos importante e, por vezes, in-
frutífera na detecção de indivíduos ra- A propagação do pensamento radical em
dicalizados. Atualmente, as lideranças rede, que atinge indiscriminadamente
religiosas podem ter pouca ou nenhuma amplo público de pretendentes à radicali-
influência nos processos de radicaliza- zação, mas sem estruturação clara, pode
ção de seus seguidores, dada a estraté- gerar, de certa forma, um obstáculo ou
gia do EI de utilização maciça do poder atraso no ciclo de cometimento do aten-
midiático e da violência como espetácu- tado, justamente pela insegurança deri-
lo, propagada indiscriminadamente nas vada da ausência de um líder religioso.
26
Aqui, e em boa parte da literatura, salafita e wahhabita são tratados como sinônimos, para
se referir a um movimento reformista ultra-conservador dentro do Islã sunita. Embora tenham
origens distintas, por razões históricas e econômicas eles, na prática, se fundem a partir da
década de 1960, em especial no que se refere a sua manifestação no Ocidente ou na rela-
ção de países árabes ou muçulmanos com os países ocidentais. Isso ocorre, principalmente,
devido ao poder econômico da Arábia Saudita e sua política continuada de financiar centros
islâmicos ao redor do mundo, além da formação acadêmica e religiosa de suas lideranças.
27
Denúncia do MPF, p. 49.

16 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


O processo de radicalização e a ameaça terrorista no contexto brasileiro
a partir da Operação Hashtag

Isso é o que, de fato, se pôde verificar reconhece como líderes tácitos, em rela-
nas amplas discussões dentro dos gru- ção ao qual está disposto a submeter-se
pos fechados da rede identificada no declaradamente. Essas pretensas autori-
Brasil.28 Em determinado momento, dades ou líderes religiosos, de fato, já há
membros do grupo sugerem nomes, muito exerciam forte influência no pro-
entre os indivíduos reconhecidos por cesso de radicalização de seus liderados
possuírem mais conhecimento do Islã desde o início do ciclo de radicalização,
de linha radical, para desempenharem independentemente de ser ou não um
o papel de possíveis líderes religiosos processo consciente. Isso leva à próxima
da célula.29 Alguns, inclusive, chegaram camada analítica na prospecção de indi-
a ser convidados para serem “imã” do víduos radicalizados, os doutrinadores.
grupo. Nesse sentido, pode-se especu-
lar que muitos desses indivíduos, pela Próximas ou não aos líderes religiosos
ausência de uma liderança religiosa que tratados na primeira camada, é possível
chancelasse suas ações, permaneceram identificar lideranças religiosas de facto
no estágio de transição entre os ciclos em grupos de indivíduos em processo de
de radicalização e da ação até a ope- radicalização. Esses geralmente não pos-
ração policial que interrompeu as ativi- suiriam interesse de se engajar pessoal-
dades do grupo. Essa parece ser uma mente em uma ação extremista, mas são
situação peculiar ao caso brasileiro, em indivíduos já radicalizados que possuem
função do baixo conhecimento religioso conhecimento religioso mais consisten-
e grau de radicalização dos membros da te, têm forte capacidade de persuasão
rede, que não conseguiram alcançar um doutrinária e desempenham, em grupos,
estágio de organização física e logística, o papel de difusores do pensamento ra-
dentro do ciclo da ação, necessário para dical. É o que se observa, no exemplo
um processo estruturado da ação, como estudado, quando os jovens da rede bus-
observado em diversos casos de atenta- cam líderes, apontando pessoas entre os
dos perpetrados na Europa por redes de que respeitam como conhecedores dos
imigrantes ou descendentes de imigran- fundamentos do Islã.30 Ao redor dessas
tes com vínculo direto às regiões mais lideranças religiosas tácitas, muitas ve-
conflituosas e maior comprometimento zes aninham-se indivíduos inexperientes,
com a causa terrorista. mas com perfis adequados ao processo
positivo de radicalização e, por isso, essa
Após membros da rede em análise terem é uma das principais camadas no proces-
excluído a possibilidade de ter um sheikh so de prospecção de radicais.
como seu líder, partiram para a seleção
de alguns nomes que julgavam adequa- Esses doutrinadores desempenham im-
dos para serem seu imã. O grupo buscou portante papel no ciclo de radicalização,
um único nome entre os indivíduos que pelo seu poder de persuasão, e manifes-
28
Denúncia do MPF pp. 41-52.
29
Denúncia do MPF pp. 49 e 66-71.
30
Denúncia do MPF, pp. 49 e 66-71.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 17


Thiago A. - Augusto O. - Allan S.

tam diretamente posicionamentos radi- partiram efetivamente para alguma etapa


cais, além de não estarem limitados às executiva no ciclo de cometimento de um
restrições políticas observadas nas lide- atentado. O que difere as duas camadas
ranças religiosas oficiais identificadas na é unicamente a disposição do indivíduo
camada anterior. Como tratado anterior- à ação, fator essencial na definição da
mente, alguns indivíduos já radicalizados estratégia e da prioridade de seu acom-
e formados pela doutrina pregada pela panhamento. São pessoas que apoiam
Al Qaeda se destacavam isoladamente organizações e defendem o cometimento
nas comunidades físicas e redes sociais de ações terroristas. Na rede em estu-
e passaram, a partir de 2015, com o EI, do, os indivíduos dessas camadas repre-
a ter um papel relevante na formação da sentavam o maior número e contribuíam
rede extremista. consideravelmente para a manutenção
do discurso extremista nos grupos, radi-
No caso brasileiro, além da atuação da calizando e incitando outros envolvidos.
Inteligência, com foco nesse nível de
doutrinação, e dependendo da forma do A atividade analítica nessas camadas re-
discurso empregado, tornou-se recente- quer acompanhamento contínuo, avalia-
mente possível o início de uma investiga- ção psicológica sistemática dos indivídu-
ção criminal pela polícia judiciária com- os e obtenção de dados que possibilitem
petente, com base no crime tipificado a compreensão precisa da disposição
pelo art. 3º. da Lei n.º 13.260/2016, dos indivíduos de partirem para a ação.
o crime de promoção de organização Também se faz imperativo uma boa arti-
terrorista. Entretanto, a aplicação desse culação entre os órgãos de prevenção e
tipo penal, cujo núcleo consiste no ver- investigação da ameaça terrorista.
bo “promover”, denota amplo campo
conceitual, requerendo, por essa razão, A camada mais crítica refere-se aos in-
mais esclarecimento, a ser alcançado divíduos que iniciaram alguma atividade
por decisões judiciais futuras.31 O art. relacionada ao planejamento e prepara-
4º da lei, originalmente, previa o crime ção para a ação terrorista. É o caso de
de apologia ao terrorismo – poder-se-ia um dos denunciados, considerado líder
argumentar mais adequado para a pre- intelectual do principal grupo identifica-
sente hipótese –, porém, o dispositivo do na rede, que foi condenado pelo cri-
foi vetado pela Presidente da República, me de atos preparatórios de terrorismo
Dilma Rousseff. (art. 5º da Lei n.º 13.260/2016).

Nos próximos dois níveis, defensores do Nessa camada ocorrem as etapas finais
pensamento radical e radicalizados dis- do ciclo da ação, período em que as
postos à ação, encontram-se os indiví- ações de Inteligência dão lugar primor-
duos radicalizados, mas que ainda não dialmente aos procedimentos investi-
31
No entanto, a sentença judicial a que esse ensaio faz referência já avançou muito nesse
sentido. O juiz federal dedicou grande parte de sua fundamentação a um estudo detalhado
do significado do verbo “promover” e, por fim, o interpretou de maneira ampla e profunda. Tal
decisão deverá ter influência em casos subsequentes de aplicação da Lei 13.260/2016.

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O processo de radicalização e a ameaça terrorista no contexto brasileiro
a partir da Operação Hashtag

gativos de obtenção de provas que vão Estado Islâmico como maior ameaça,
fundamentar imputações aos indivíduos em substituição ao modelo anterior da
envolvidos nos principais crimes tipi- Al Qaeda, é necessário conhecer e com-
ficados na lei que regula o terrorismo. preender como isso tem ocorrido no
Esse processo de transição das ações de contexto brasileiro.
Inteligência e policiais pode ser bastan-
te delicado e depende sobremaneira da A desmobilização de uma rede extre-
estrutura orgânica executiva e do orde- mista composta por cidadãos brasileiros,
namento jurídico de cada país. Geral- trazida a público com a divulgação da
mente, os processos de Inteligência e Operação Hashtag e dos inquéritos, de-
investigativo nessas camadas vão recair núncias e processos judiciais subsequen-
numa ação ostensiva repressiva ou ação tes – experiência piloto de aplicação da
policial controlada. No caso de iminente Lei nº 13.260/2016, que disciplina o
ação terrorista ou atentado em curso, no combate ao terrorismo no País – forne-
ordenamento brasileiro, passam a atuar ce subsídios para que se elaborem arca-
os batalhões especializados das forças bouços analíticos que permitam vislum-
armadas especialmente treinados para brar os processos que concorrem para a
essas situações. construção da ameaça, em especial no
que se refere à dinâmica de radicaliza-
Conclusão ção dos indivíduos envolvidos, desde o
encontro com a ideologia violenta até a
Sem deixar de lado o que já se conhece disposição e emprego efetivo da força
a respeito da radicalização islâmica em em atentados terroristas.
regiões do mundo que a confrontam há
mais tempo do que o Brasil, e a alte- A taxonomia do processo de radicalização
ração da dinâmica do terrorismo inter- apresentada nesse artigo representa uma
nacional representada pela ascensão do contribuição para o debate a respeito. 

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20 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


ESTUDO DOS SERVIÇOS DE INTELIGÊNCIA:
UMA ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA COMPARADA
Roberto Numeriano*

Resumo
O objetivo do presente artigo é demonstrar que o método comparado configura-se uma das
mais robustas estratégias de análise da evolução dos serviços de Inteligência, um dos objetos
mais enigmáticos na estrutura dos Estados. Nos países sob uma democracia consolidada ou
ainda incipiente, tais serviços, como aparatos político-institucionais muitas vezes fechados à
fiscalização e controle (accountability), podem ser melhor analisados pelo método comparati-
vista. Enigmas institucionais ou não, as agências de Inteligência (bem como os sistemas que elas
conformam e integram) são sempre o reflexo de escolhas e agendas de elites estatais. Para além
da condição de instituições técnicas na estrutura de Estado, tais órgãos possuem um ethos
político que afeta suas atividades e interesses complexos, sobretudo nos processos de mudança
política e social. A abordagem comparada é um instrumento eficaz para apreender essa natu-
reza política, as possibilidades estratégicas dos seus atores e os limites político-institucionais
dessas agências, as quais, muitas vezes, operam num espaço estatal cinzento.

Palavras-chave: Serviço de Inteligência; Marco teórico; Método comparado.

Introdução

O método comparado constitui-se


como uma das mais adequadas
estratégias de análise no estudo da evo-
evolucionário e desvelar o sentido dos
interesses das agências nos processos de
mudança político-institucionais.1
lução dos serviços de Inteligência, uma
Nos países sob uma democracia conso-
das instituições mais enigmáticas na es-
lidada ou incipiente, tais serviços, como
trutura dos órgãos de Estado. Essencial- aparatos político-institucionais muitas
mente, pretendemos demonstrar que a vezes fechados à fiscalização e contro-
abordagem comparada (com o aporte do le, podem ser melhor apreendidos pelo
vasto campo de referenciais teóricos em método comparativista. Seu ethos ins-
Ciência Política) é um instrumento eficaz titucional fechado talvez explique por
para captar a natureza desse movimento que entre os think tanks anglo-saxônicos
* Roberto Numeriano, graduado em Comunicação Social, mestrado, doutorado e pós-doutorado
em Ciência Política; também é professor, jornalista e escritor, tendo publicado doze livros, dos
quais quatro romances. É Oficial de Inteligência da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
1
Este trabalho é um capítulo inédito da minha tese de doutoramento: NUMERIANO, Roberto.
Serviços secretos: a sobrevivência dos legados autoritários. Recife: Editora Universitária da
UFPE, 2010, 395 p.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 21


Roberto Numeriano

(com uma já extensa reflexão teórica em Em um caso e outro, os serviços de In-


Intelligence studies) e os demais gru- teligência são instituições cujos ethos
pos de pesquisa acadêmicos do mundo políticos inerentes implicam que as suas
ainda seja fraca a produção de estudos elites orgânicas, ao mesmo tempo em
comparados. Defendemos o método que são demandadas nas atividades de
porque ele pode amenizar essa dificul- Segurança e Defesa nacionais, parale-
dade, propiciando estudos que apon- lamente tentem influenciar as agendas
tem (sob o aporte dialético de várias dessas duas áreas estratégicas, conforme
teorias) as intersecções e variações de seus interesses internos.
fenômenos político-institucionais relati-
vos aos serviços, os quais muitas vezes Do método comparativo
negligenciados no estudo da evolução Nos estudos de caso sobre a evolução
dessas instituições nas democracias ro- de agências, sob determinados limites de
bustas ou frágeis. tempo, lugar e contexto político, um dos
métodos teórico-metodológicos adequa-
No caso de países de frágil democracia,
dos para analisar os serviços de Inteligên-
o fato de não se deixarem apreender ime-
cia é o comparativo. O perfil institucional
diatamente pode derivar, por exemplo, de
de uma agência de Inteligência, antes e
legados e clivagens políticas que confor-
depois de uma guerra civil ou entre es-
mam suas estruturas e consubstanciam
tados, ou antes e depois de transições
suas concepções doutrinárias – sejam
políticas, pode ser comparável numa
estas vistas como técnica fundamentada
perspectiva intra e interinstitucional.
em princípios, padrões e normas (a dou-
trina per se) ou como uma política de Os estudos comparativos entre serviços
Estado (fundamentada em diretrizes de de Inteligência são um campo ainda in-
governo para gerir a segurança, mas nem cipientes na Ciência Política ibero-sul-
por isso infensa, como qualquer políti- -americana. Qualquer pesquisa prelimi-
ca, a escolhas também ideologicamente nar vai identificar poucas obras sobre
condicionadas). Nas democracias conso- o funcionamento, características insti-
lidadas, o fato de os serviços secretos já tucionais, história e enquadramento le-
estarem politicamente instituídos e orga- gislativo dos órgãos de Inteligência do
nicamente estruturados como um poder Brasil, Argentina, Peru, México, Chile,
de Estado (Estados Unidos e Inglaterra, Espanha, Portugal e os demais países
por exemplo) não significa que as suas de língua portuguesa. Os poucos textos
agendas político-institucionais sejam existentes são em geral descritivos, em
menos reativas aos processos de mudan- perspectiva histórica ou propriamente
ça política. Sem dúvida, a onipresença (e política, mas restritos a cada serviço.
até, em certos casos, a onipotência polí- Nesses estudos, a área de Inteligência é
tica) de suas elites e demandas de poder um problema político menos em função
sempre se fazem presentes, direta e indi- da doutrina, missão, objetivos e nature-
retamente, no direcionamento e debate za institucional dos seus órgãos do que
das diretrizes de Inteligência. em função de como se estrutura organi-

22 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Estudo dos serviços de Inteligência:
uma abordagem teórico-metodológica comparada

camente na superestrutura do poder de semelhantes; ou pelo estudo e compara-


Estado. Reduz-se o estatuto político da ção, por meio de técnicas diferentes, das
atividade nos termos de uma “burocra- manifestações de um mesmo fenômeno
cia técnica”, a despeito de ela operar o (DUVERGER, 1976).
poder invisível.2
Para Landmann, a comparação de países
O método comparativo também é ade- centra-se hoje em quatro principais ver-
quado ao estudo das transições nos ser- tentes, todas co-existindo e se reforçan-
viços, porque abre um campo de análise do nos estudos comparados sistemáti-
mais heterogêneo das realidades, pa- cos (LANDMANN, 2003). A ênfase em
drões, estruturas e perfis institucionais um delas dependerá, é claro, das aspira-
de cada órgão, na perspectiva de seus ções do pesquisador. A primeira verten-
contrastes internos e em face de sua in- te é a Contextual description (Descrição
ter-relação com outros serviços de Inte- contextual), que permite aos cientistas
ligência e demais atores estatais. políticos conhecerem como são os ou-
tros países. O segundo enfoque é o da
A política comparada serve para explicar Classification (Classificação), que torna
as diferenças e as similaridades de um o mundo da política menos complexo
mesmo fenômeno, qualquer que seja o a partir da coleção de dados empíricos
foco do pesquisador (PETERS, 1998). organizados e classificados. Já a função
Segundo Durkheim, a comparação é um da comparação das Hypothesis-testing
método fundamental, porque “(...) quan- (hipóteses-provas) propicia a eliminação
do a produção dos fatos não está ao nos- de explicações concorrentes sobre da-
so alcance e só podemos confrontá-los dos eventos, atores, estruturas etc. Fi-
tal como se produziram espontaneamen- nalmente, a comparação entre países e
te, o método utilizado é o da experimen- a generalização que dela resulta permite
tação indireta ou método comparativo” a Prediction (predição) sobre prováveis
(DURKHEIM, 1990). Em Ciência Políti- resultados em outros países não incluí-
ca, a abordagem comparativa serve para dos na comparação original, ou resulta-
estudar os países e seus sistemas e regi- dos futuros, dada a presença de certos
mes de governo, constituições, parlamen- fatores antecedentes.3
tos etc. O Estado e suas instituições são
os objetos centrais da perspectiva com- Para comparar os serviços de Inteligên-
parada. De acordo com Duverger, esse cia pode-se trabalhar com o método
método pode ser empregado estudando qualitativo, que busca identificar e com-
e comparando, por meio de uma mesma preender os atributos, características
técnica, fenômenos independentes mas e traços dos objetos investigados. Esse
2
É Bobbio quem diz: “Não se pode combater o poder invisível senão com um poder igualmente
invisível e contrário, os espiões dos outros senão com os espiões próprios, os serviços se-
cretos dos outros Estados senão com os serviços secretos do próprio Estado”. BOBBIO, Nor-
berto. Teoria Geral da Política – A Filosofia Política e as Lições dos Clássicos. (Trad. Daniela
Beccaccia Versiani). RJ: Campus, 2000, p. 412.
3
Idem, ibidem.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 23


Roberto Numeriano

método requer necessariamente o foco bretudo na perspectiva histórica – quan-


da pesquisa sobre um pequeno número do não é possível a observação direta do
de países.4 Em política comparada, os fenômeno e o pesquisador lança mão do
três tipos de método qualitativo são: a) estudo de fontes como livros, jornais, re-
comparação macro-histórica, com seus vistas e entrevistas, para se acercar do
três subtipos; b) entrevistas em profundi- seu objeto (FRIEDE, 2002).
dade; e c) observação participante.
A minha definição de método compara-
Segundo Peters, existem cinco tipos de tivo segue a formulação de Ragin, se-
estudos comparados, a saber: a) descri- gundo a qual esse método distingue-se
ção da política em um dado país, qualquer pela utilização das características das
que seja este; b) análise de processos e unidades macrossociais como fatores
instituições similares em um número li- explicativos dos fenômenos políticos e
mitado de países, selecionados por ra- sociais (RAGIN, 1989). Se o centro de
zões analíticas: c) estudo para desenvol- gravidade teórico das ciências sociais
ver tipologias ou outras formas de planos reside na comparação de objetos e seus
de classificação para países ou unidades respectivos fenômenos, no caso especí-
subnacionais, usando as tipologias para fico da Ciência Política, a comparação
comparar grupos de países e revelar algo – seja a partir de estudos de caso ou
sobre a política interna de cada sistema da estratégia multinível – é o método
político; d) análise estatística ou descri- fundamental para o cientista explicar a
tiva de dados de um conjunto de países, realidade e ao mesmo tempo se interro-
normalmente selecionados por motivos gar sobre o seu próprio trabalho, numa
geográficos ou graus de desenvolvimen- perspectiva epistemológica e heurística.
to (…); e e) análise estatística de todos Com efeito, segundo Bonfils-Mabilon e
os países do mundo com o fim de revelar Étienne (1998, p. 28),
padrões e/ou testar a relação entre um
A ciência política procura compreender
conjunto de sistemas políticos.5 como é que os seres humanos podem
criar representações de instituições
Nos estudos comparativos, o método aparentemente permanentes quando se
analógico é um dos recursos mais em- sabem mortais e condenados a um pro-
pregados para a investigação das institui- cesso biológico descontínuo. Portanto,
ela analisa sistemas políticos globais.
ções estatais. O uso da analogia tem sido Para este efeito, estuda o conjunto de
mais aplicado no estudo das relações in- normas, dos mecanismos, das institui-
ternacionais, mas a sua base lógica serve ções e das crenças que lhe servem de
base; mas, também, o conjunto de pro-
igualmente para a análise política com-
cessos que atribuem autoridade, que
parada.6 Uma das técnicas desse método permitem regular os conflitos que ame-
é a observação indireta documental, so- açam a coesão social.
4
Idem, p. 19.
5
PETERS, B. Guy, op. cit., p. 10 (livre tradução).
6
Idem, p. 73 (livre tradução).

24 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Estudo dos serviços de Inteligência:
uma abordagem teórico-metodológica comparada

Conforme registra Johnson, o estudo de to, devem levar em conta a conjuntura


caso é uma pesquisa que a) investiga um em que o fenômeno se verifica, mas os
fenômeno contemporâneo dentro de um seus nexos causais não devem ser con-
dado contexto; quando b) as fronteiras cebidos probabilisticamente.9 A estraté-
entre um fenômeno e o contexto em que gia com base nos casos é indicada so-
ocorre não são claramente evidentes; e bretudo para a comparação de poucos
na qual c) múltiplas fontes de evidência casos, embora, como alerta Ragin, essa
são usadas (JOHNSON, JOSLYN e REY- limitação condicione a generalização das
NOLDS, 2001, p. 43). Um estudo de conclusões obtidas.10 Um meio de dimi-
caso pode ser usado para explorar, des- nuir essa limitação da estratégia focada
crever ou explicar eventos. É importan- nos casos é combinar a análise do fenô-
te, por exemplo, descrever e explicar as meno com a estratégia de pesquisa cen-
relações de causa e efeito dos eventos trada nas variáveis. Em outras palavras,
institucionais como fenômenos políticos é preciso combinar a dimensão empírica
per se. Em termos descritivos, porque da primeira com a dimensão teórica da
é fundamental descobrir e descrever as segunda. As variáveis, nessa perspectiva,
características dos perfis institucionais são os Estados e, dentro deles, a cau-
dos serviços de Inteligência face ao re- sa de um fenômeno político é entendida
gime político no qual foram instituciona- como um elemento estrutural macrosso-
lizados. Em termos explicativos, porque cial. Se, na pesquisa centrada nos casos,
é necessário saber como e por que tais a partir da teoria nós podemos explicar /
características se impõem no processo interpretar um dado fenômeno político-
de mudança política nos países que atra- -institucional, na pesquisa focada nas va-
vessam transições políticas radicais (com
riáveis, nós podemos testar as hipóteses
guerra civil, por exemplo) ou pacíficas.
derivadas do marco teórico. Trata-se,
Os casos são uma das cinco categorias com efeito, de explorar o jogo dialético
da análise comparativa, ao lado das uni- entre generalização (típica da estraté-
dades e níveis de análise (os quais po- gia das variáveis) e complexidade (típica
dem ser do tipo individual ou sistêmico), da estratégia dos casos). Numa análise
as variáveis e as observações.7 Conforme comparada de dois ou mais serviços de
Ragin, os países podem ser considerados Inteligência, pode ser necessário, por
como totalidades na estratégia focada na exemplo, enquadrar a pesquisa em um
categoria dos casos, o que a torna in- nível de análise macropolítico, dado que
dicada para o estudo das causas múlti- o foco recai sobre instituições caracteri-
plas de tipo conjuntural.8 As análises, zadas como estruturas de poder coerci-
baseadas nas relações de causa e efei- tivas no aparelho de Estado.
7
LANDMANN, Todd, op. cit., pp. 17-19.
8
RAGIN, Charles C., op. cit., pp. 31-52.
9
Idem, ibidem. Isto implica compreender que uma mesma causa, relativamente ao tipo de con-
texto em que ocorre, pode provocar efeitos diferentes.
10
Idem, pp. 49-50.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 25


Roberto Numeriano

Dos referenciais teóricos teórica e metodológica que possam ba-


lizar os estudos pioneiros. A incipiência
Nos regimes democráticos, os serviços
e insipiência dos estudos de Inteligência
de Inteligência tendem a ser instituições da vertente ibérica e sul-americana re-
complexas e tensionadas pelas demandas querem do investigador acercar-se de
dos governos e policymakers. A comple- referenciais teóricos que possam abarcar
xidade é um efeito orgânico, dado que as especificidades dos órgãos / sistemas
as agências são subconjuntos de um sis- de Inteligência instituídos sob condições
tema ou comunidade de Inteligência no políticas diferentes face à matriz clássi-
qual os níveis analítico e operacional da ca anglo-saxônica. São alguns deles: a)
atividade são demandados continuamen- Institucional; b) Teoria das Elites; e c)
te em um sentido vertical e horizontal. Dialético. No marco teórico Institucio-
A tensão é um efeito do jogo intrainsti- nal, é possível trabalhar, por exemplo,
tucional (entre grupos orgânica e ideo- com os conceitos de Ação e Estrutura,
logicamente antagônicos na estrutura de dentro da vertente do institucionalismo
poder das agências) e interinstitucional histórico. No marco Elites, pode-se usar
(entre as elites políticas que tendem a as categorias Elite Hierárquica Militar,
formatar/controlar a Inteligência confor- Militar Não-Hierárquica e Civil. E no re-
me suas políticas de poder pela hegemo- ferencial teórico Dialético, pode-se tra-
nia no aparelho de Estado). balhar com o conceito de Hegemonia,
em sua acepção gramsciana.
O estudo da natureza complexa dos
serviços e a análise do jogo de poder Em termos conceituais, considero a ati-
interno e externo à instituição implicam vidade de Inteligência uma estratégia de
o uso de marcos teóricos que possam elites de Estado constituída pelo trabalho
contemplar o objeto e seus atores na di- de coleta e análise de dados sensíveis e
versidade dos fenômenos que os envol- pela disseminação deles para uma rede
vem. Daí a minha simpatia metodológi- de atores e decisores, sob a forma de
ca por uma abordagem teórica eclética. conhecimentos relativos às questões de
Essa opção poderia sinalizar, na visão de segurança e defesa do Estado e da socie-
um juízo mais severo, uma saída “fácil”, dade. Já o conceito clássico e genérico da
no sentido de que pouparia ao estudio- Teoria das Elites afirma que “em toda a
so um esforço concentrado no eixo de sociedade, existe, sempre e apenas, uma
um referencial único. Na prática, essa minoria que, por várias formas, é deten-
opção eclética exige do pesquisador um tora do poder, em contraposição a uma
maior cuidado e requer um esforço ain- maioria que dele está privada”. (BOB-
da mais concentrado dentro dos marcos BIO, MATTEUCCI e PASQUINO, 1986,
teóricos escolhidos. p. 385). Mais estritamente, segundo o
filósofo italiano (BOBBIO, 1986):
Os estudos comparativistas ibero-sul-
(...) uma vez que, em todas as formas de
-americanos na área de Inteligência são
poder (entre aquelas que, socialmente ou
embrionários. Inexiste uma fortuna críti- estrategicamente, são mais importantes
ca comparada e sobretudo uma reflexão estão o poder econômico, o poder ide-

26 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Estudo dos serviços de Inteligência:
uma abordagem teórico-metodológica comparada

ológico e o poder político), a teoria das (…) nos casos em que os militares re-
Elites nasceu e se desenvolveu por uma lativamente coesos e submetidos a uma
especial relação com o estudo das Elites liderança hierárquica acabaram de deixar
políticas, ela pode ser redefinida como a o exercício direto do poder, as complexas
teoria segundo a qual, em cada socieda- e dialéticas tarefas de criação do poder
de, o poder político pertence sempre a democrático, bem como da redução dos
um restrito círculo de pessoas: o poder domínios de prerrogativas não-democrá-
de tomar e de impor decisões válidas ticas mantidos pelos militares, terão de se
para todos os membros do grupo, mes- converter em duas das principais tarefas
mo que tenha de recorrer à força, em a serem enfrentadas pelos novos líderes
última instância. democráticos.

Mas de quais elites de Estado estou fa- Assim, em termos teóricos e práticos,
lando? Linz e Stepan, ao discorrerem so- “(…) quanto mais direta for a ingerência
bre a forma das elites durante a transição cotidiana da hierarquia militar no Estado
e consolidação democrática, discriminam e em sua própria organização, anterior-
os seguintes tipos de elites estatais: a) mente à transição, mais patente será a
hierarquia militar; b) militares não-hierar- questão de como a nova democracia lida-
quizados; c) elite civil; e d) a de catego- rá com os militares, para o bom desem-
ria distinta das elites sultanísticas (LINZ penho da tarefa de consolidação demo-
e STEPAN, 1999). Para qualquer estudo crática”.12 Os militares não-hierárquicos
sobre a criação e evolução de órgãos de são a elite que domina o regime autori-
Inteligência, será sempre necessário levar tário, mas não como instituição castren-
em conta essa tipologia, dado que, nos se. No papel de militares como governo,
processos de mudança política, o perfil
essa elite pode representar um obstáculo
institucional das agências é desenhado
de menor gravidade na transição e con-
mediante as escolhas influenciadas pelos
solidação democráticas, dadas algumas
legados políticos incidentes nas relações
características do regime.13 Aqui, em
civis-militares. Nestas relações, as elites
tese, a elite não-hierárquica militar nego-
civil, militar-hierárquica e militar não-
-hierárquica são um fator decisivo na dia- ciaria com os civis leis e agendas de re-
lética da clivagem x ruptura que permeia forma que propiciariam uma progressiva
a construção dos serviços e sistemas de transferência do poder. Os regimes auto-
Inteligência. A elite hierárquica militar ritários controlados por civis têm (poten-
nos regimes não-democráticos possui, cialmente) mais capacidade institucional
iniciada uma transição, a capacidade de de, iniciada uma transição democrática,
impor a um governo eleito “reservas de criar e consolidar um regime dentro de
domínio” ou prerrogativas não demo- um Estado de Direito porque “os líde-
cráticas que podem limitar a consolida- res civis, em geral, são mais motivados
ção democrática.11 Segundo os autores a tomar iniciativas e são mais capazes de
(LINZ e STEPAN, 1999, p. 91), negociar pactos complexos visando às
11
Idem, pp. 90-91.
12
Idem, p. 90.
13
Idem, p. 91.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 27


Roberto Numeriano

reformas do que os militares e, frequen- acentuando mais o aspecto coativo que


temente, mantêm vínculos mais estreitos persuasivo, a força mais que a direção, a
com a sociedade do que os militares ou submissão de quem suporta a hegemo-
os líderes sultanísticos paramilitares”.14 nia mais que a legitimação e o consenso,
a dimensão política mais que a cultural,
Essas três elites de Estado podem ser intelectual e moral” (BELIGNI, 1986).
consideradas como categorias estraté- O outro significado identifica hegemonia
gicas, porque suas agendas na transição como “capacidade de direção intelectu-
e consolidação democráticas afetam os al e moral, em virtude da qual a classe
serviços de Inteligência e ao mesmo
dominante, ou aspirante ao domínio,
tempo são afetadas pelos legados polí-
consegue ser aceita como guia legítimo,
ticos e/ou autoritários desses órgãos. É
constitui-se em classe dirigente e obtém
preciso ainda se prevenir em face de um
o consenso ou a passividade da maioria
enfoque redutor da análise que preten-
da população diante das metas impos-
da situar apenas estruturalmente a ins-
tas à vida social e política de um país”.15
titucionalização da Inteligência nos pro-
Esta é a acepção da teoria da hegemonia
cessos de mudança política. Também se
numa vertente gramsciana.
deve evitar a reificação do ator na esco-
lha de um dado desenho institucional da Os atores, quando tentam formatar um
Inteligência, como se a ação desse fos- desenho institucional consentâneo com
se condição necessária e suficiente para os seus interesses, também estão bus-
preencher o vácuo institucional comum cando afirmar uma hegemonia que reflita
aos espaços de poder, nos quais forças um dado consenso político-institucional
em conflito lutam para criar e consolidar
para um aparelho de Estado, no caso, um
uma hegemonia.
serviço de Inteligência. O conceito de
Em sua acepção geral, o conceito de he- hegemonia pode, assim, ajudar a explicar
gemonia (do grego egemonía ou direção algumas dificuldades políticas das elites
suprema) aplica-se ao sistema interna- civis em instituir, mesmo nas democra-
cional e às relações entre os Estados. Na cias, um consenso institucional relativo
linha teórica gramsciana (mas não ape- aos órgãos de Inteligência. No limite, o
nas nos escritos da vertente marxiana), a caráter coercitivo de um serviço secreto
hegemonia refere-se às relações entre as (coerção sui generis, diríamos, pois os
classes sociais e entre os partidos políti- serviços civis não têm poder de polícia)
cos, e ainda às instituições e aos apare- e a sua natureza política na provisão da
lhos públicos e privados. Beligni observa segurança e defesa do Estado – o que
que, nessa acepção mais restrita, há dois implica uma necessidade orgânica de se
significados dominantes para o uso do legitimar e ser, pela sociedade, legitima-
termo. Um deles tende a equiparar ou do –, parece transformar os órgãos em
aproximar hegemonia de domínio, “(...) um cabo de guerra institucional.
14
Idem, p. 92.
15
Idem.

28 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Estudo dos serviços de Inteligência:
uma abordagem teórico-metodológica comparada

O referencial dialético adequa-se ao estu- A luta intrainstitucional (entre grupos or-


do desse combate pela hegemonia, por- gânica e ideologicamente antagônicos na
que pode apreender o sentido e explicar estrutura de poder das agências) e inte-
as clivagens político-institucionais das rinstitucional (entre os poderes Executi-
agências, a par dos legados da transição vo e Legislativo, por exemplo) dá-se sob
que afetam as escolhas e ações das elites uma dialética que pode explicar as dispu-
na discussão/formatação do modelo ins- tas pelos espaços de poder estratégicos
titucional dos órgãos de Inteligência. Ao que, em um nível micropolítico, tendem a
mesmo tempo, parece-me que essas cli- refletir as opções macropolíticas das eli-
vagens são símiles de contradições entre tes na conformação de uma hegemonia.
ação e estrutura, típicas de instituições Daí a tensão típica dos órgãos e comuni-
cujo desenho ainda é influenciado pelos dade de Inteligência quando a transição
legados políticos e/ou autoritários que é deflagrada: de arenas relativamente au-
instituíram órgãos de Inteligência dentro tônomas numa ordem autoritária, inicia-
de um paradigma repressivo. da a transição, (re)assumem sua natureza
política inata e se transformam em arenas
Para analisar esse conflito (em alguns conflagradas, porque seus integrantes in-
casos já como efeito de visões politica- ternalizam institucionalmente a luta pela
mente antagônicas em torno do discurso hegemonia como “adversários” ou “alia-
doutrinário institucional), o qual se des- dos” do processo de mudança.
vela entre e nas elites políticas/orgânicas
Ora, o conflito de poder que permeia
do Estado, o método dialético pode con-
os órgãos e a atividade de Inteligência
templar criticamente a relação doutrina
supõe um conflito civil-militar naqueles
de Inteligência – ideologia de elites de regimes e condições políticas da transi-
Estado. A dialética que permeia tal rela- ção originárias de uma ordem autoritária.
ção configura-se como um jogo contra- Parece-me uma conditio sine qua non
ditório na teoria e na prática dos órgãos que esse conflito somente possa aflorar
de Inteligência. Na qualidade de institui- pela resistência de legados que opõem,
ções localizadas numa dada estrutura de mesmo dentro de uma dada elite, visões
poder, tais órgãos podem, numa verten- distintas e/ou opostas sobre opções e
te marxiana, ser analisados como insti- escolhas dos atores políticos e institucio-
tuições de caráter político-ideológico e nais. Nessa dialética, a principal contra-
superestrutural (BOTTOMORE, 1988). dição dos que resistem à democratização
Tomando a teoria da hegemonia como da área de Inteligência está em pretender
um eixo dentro do referencial dialético, reformar apenas tecnicamente a burocra-
é possível, por exemplo, apreender o cia e as estruturas orgânicas de Inteligên-
sentido de eventuais contradições como cia (meio de manter espaços de poder
expressão ideológica (fundada em uma político-institucional), sem enxergar que
ideia doutrinária consagrada pela Inte- é preciso antes reformá-la politicamente
ligência) e política (condicionada pelo (o que só é possível se os atores internos
jogo das elites face aos desafios de cada e externos cooperarem a partir da com-
época histórica). preensão das vantagens mútuas).

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 29


Roberto Numeriano

Nas transições políticas, e até na pax de- vai ser configurado a partir de escolhas
mocrática, uma das características cen- condicionadas. Se, ao fim de uma transi-
trais da crise de identidade dos órgãos ção, persistirem enclaves da velha ordem
de Inteligência é tentar construir uma configurando o regime, esses certamente
imagem entre categorias antitéticas: co- influenciarão as escolhas dos atores he-
erção e consenso/legitimidade. A elite no gemônicos no aparelho de Estado. Isso
poder (governo) embala a criança com o porque os atores possuem, tendencial-
canto das prerrogativas coercitivas (até mente, uma predisposição em reproduzir
mesmo cevando-a nos legados autoritá- no interior do órgão memórias e práticas
rios) enquanto a elite na oposição (parla- autoritárias. Uma elite hierárquica militar
mento) levanta-se em protestos retóricos que seja institucionalmente aferrada ao
que tangenciam as causas da crise, pois a serviço secreto dificilmente se afastará
luta pela hegemonia, nesses termos, não dessa “reserva de domínio” de poder
é sob o princípio de um projeto de con- estratégica naquelas transições de uma
senso de dada elite que pretende inter- ordem autoritária de cariz militar para a
nalizar no órgão o sentido/compreensão instauração de um regime democrático.
política do seu papel institucional. Um Aliás, essa observação vale também para
dos poucos teóricos políticos que pro- as transições pactuadas hegemonizadas
põe uma leitura que contempla as con- por uma elite civil.
dições macroestruturais e os processos
da micropolítica é Terry Karl, que propõe O referencial institucional também é im-
um enfoque mediano (ARTURI, 2001): portante para a análise comparada de
serviços secretos numa transição políti-
A autora elaborou a noção de “contin-
gência” para escapar do dilema “deter- ca. Esse marco serve para explicar como
minismo das estruturas versus liberdade a institucionalização dos serviços de In-
do ator” e capturar os vínculos entre os teligência é afetada pela disputa entre
fatores macroestruturais, a tradição insti-
burocracias e policymakers. De acordo
tucional do país e as opções dos atores
políticos. É preciso demonstrar “como, com Théret, o institucionalismo aponta
em dado momento, o leque de opções para a “necessidade de se levar em con-
disponíveis é função das estruturas cria- ta, a fim de compreender a ação dos in-
das em período anterior e como essas
decisões estão condicionadas pelas ins-
divíduos e suas manifestações coletivas,
tituições estabelecidas no passado (…) as mediações entre as estruturas sociais
Nessa perspectiva, as instituições políti- e os comportamentos individuais” (THE-
cas pré-existentes realizam a mediação RET, 2003). Na teoria institucional, o
entre a estrutura sócio-econômica e as
ações dos atores políticos”. debate contemporâneo enfoca três no-
vos institucionalismos em Ciência Políti-
Com efeito, os legados autoritários na ca, a saber: a) Histórico; b) da Escolha
área de Inteligência podem ser caracteri- Racional, e c) Sociológico.
zados como expressão de contingências
que permeiam a institucionalização dos Para Hall e Taylor, essas três vertentes
serviços secretos. Nesse sentido, na tra- distinguem-se analiticamente a partir de
vessia da transição, o perfil das agências duas questões: como tais enfoques en-

30 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Estudo dos serviços de Inteligência:
uma abordagem teórico-metodológica comparada

caram a relação entre instituições e com- O institucionalismo histórico parte de


portamentos individuais e como veem pressupostos menos fechados em ter-
o processo de formação e transforma- mos metodológicos. Para essa vertente,
ção das instituições (HALL e TAYLOR, o ator decide com base em um cálculo,
2003). Para os dois autores, é possível mas este não é “puro”, dado que é me-
responder à primeira questão a partir das diatizado pela posição do ator e o con-
noções de enfoque estratégico e enfoque texto social no qual interage: “Cálculo
cultural.16 No primeiro caso, enfatiza- e estrutura se combinariam para formar
-se o caráter instrumental e estratégico atores coletivos, que agiriam no plano de
macroinstituições herdadas e com base
do comportamento (HALL e TAYLOR,
em relações de poder assimétricas”.18
2003, p. 227):
Essa coletividade de atores é questiona-
Nessa perspectiva, as instituições têm da por Elster a partir de uma visão cen-
sobre o comportamento do indivíduo o trada no individualismo metodológico.
efeito de reduzir a incerteza em relação a Para ele, somente os indivíduos agem e
como será a ação dos outros. O enfoque
cultural, privilegiado pela teoria das or-
pretendem algo, não as instituições: “Se
ganizações (na base do institucionalismo pensarmos em instituições como indiví-
sociológico), enfatiza, ao contrário, a di- duos em grande escala e esquecermos
mensão rotineira do comportamento e o que as instituições são compostas de
papel desempenhado pela visão de mun-
indivíduos com interesses divergentes,
do do ator na interpretação de situações.
Nesse caso, as instituições corresponde- podemos ficar irremediavelmente perdi-
riam aos “planos morais e cognitivos de dos” (ELSTER, 1989). Há um exagero
referência sobre os quais são baseadas a nessa crítica, pois o enfoque histórico
interpretação da ação”. reconhece que as instituições também
são suscetíveis à influência dos interes-
Segundo Théret, na concepção estraté-
ses e dos cálculos dos atores, mas não
gica as instituições resultam de um cál-
absolutiza, como faz o referencial da es-
culo intencional e funcional dos agentes
colha racional, a intencionalidade do ator
em busca de otimizar seus ganhos. “Ao
como elemento fundamental na gênese
contrário, para a concepção ‘cultural’,
e mudança das instituições. Mas antes
baseada em níveis de percepção e em de expor o institucionalismo histórico,
comportamentos rotineiros, as institui- tomemos desde já a definição que os te-
ções são a tal ponto convencionais que óricos dessa vertente têm de instituição
quase escapam à análise; resistiriam à (HALL e TAYLOR, 2003, p. 196):
mudança até porque estruturariam mes-
De modo global, como os procedimen-
mo as escolhas individuais visando a re-
tos, protocolos, normas e convenções
forma”.17 São essas as abordagens típicas oficiais e oficiosas inerentes à estrutura
da vertente da escolha racional. organizacional da comunidade política

16
Idem, p. 227.
17
THERET, Bruno, op. cit., p. 228.
18
Ibidem.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 31


Roberto Numeriano

ou da economia política. Isso se estende rias sob a forma de legados. De fato, a


das regras de uma ordem constitucional distribuição do poder dentro de órgãos
ou dos procedimentos habituais de fun-
cionamento de uma organização até às de Inteligência (perspectiva intrainstitu-
convenções que governam o comporta- cional) e a hierarquização dos mecanis-
mento dos sindicatos ou as relações en- mos de accountability do e no sistema
tre bancos e empresas.
de Inteligência (perspectiva interinstitu-
Hall e Taylor relacionam as seguintes cional) podem servir como indicativos do
propriedades do institucionalismo histó- grau de instauração e recepção de um
rico, a saber: a) articulação dos critérios perfil institucional democrático na ativi-
metodológicos cultura e cálculo na análi- dade e sobre seus agentes públicos.
se da relação entre instituições e ação; b)
A compreensão da trajetória institucio-
importância atribuída às relações de po-
der assimétricas; c) reconhecimento de nal (path dependency) postulada pelos
uma causalidade social dependente da teóricos do institucionalismo histórico
trajetória histórica; e d) reconhecimento tem como pressuposto que os atores
de fatores múltiplos sobre a vida políti- são afetados pelas propriedades de cada
ca, além das instituições, como o papel contexto local.21 Essas propriedades po-
desempenhado pela difusão de ideias e dem ser heranças de um passado social
pelo desenvolvimento socioeconômico.19 e político no qual dois ou mais atores
político-institucionais foram antagonistas
Outro critério distintivo do institucio- em um processo de conquista e manu-
nalismo centra-se na gênese das insti- tenção do poder. Assim, os legados de
tuições. Essas surgiriam para “regular uma ordem autoritária também podem
conflitos inerentes ao desenvolvimento ser considerados propriedades que afe-
da diferenciação de interesses e à assi- tam os interesses e condicionam as es-
metria de poder”.20 A análise das rela- colhas dos atores na transição ou conso-
ções de poder assimétricas é importante, lidação democrática. Para Amy Zegart, a
porque pode indicar como as instituições institucionalização dos serviços secretos
repartem o poder desigualmente nas ne- pode ser estudada sob duas teses: a) As
gociações intrainstitucionais e interinsti- burocracias da área de segurança nacio-
tucionais. Compreender essa repartição nal tenderiam a ser criadas pelo Poder
desigual é necessário porque, no caso de Executivo (com um papel secundário do
órgãos de Inteligência gerados durante e Parlamento), e o seu desenho institucio-
após transições políticas, pode indicar o nal refletiria as disputas entre aquelas
grau de ruptura com a ordem autoritária burocracias e os interesses da equipe
ou a permanência de clivagens autoritá- presidencial; e b) As escolhas estruturais
19
Idem, p. 229.
20
Idem, pp. 198-202.
21
THERÉT, Bruno, op. cit., p. 229. Para a Teoria da Escolha Racional, uma instituição surge
como solução para problemas de coordenação entre indivíduos que visam um fim ótimo face
a um problema. Para o Institucionalismo Sociológico, a coordenação da ação por meio de
dispositivos cognitivos é central às organizações.

32 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Estudo dos serviços de Inteligência:
uma abordagem teórico-metodológica comparada

feitas no nascimento de um órgão de se- Conclusão


gurança nacional tenderiam a durar no
Cremos ter demonstrado que a abor-
tempo, e tais estruturas seriam alteradas
dagem comparada, com o aporte dos
pela mudança dos interesses dos atores diversos referenciais criticados, é uma
principais e por eventos externos.22 estratégia robusta para analisar as
agendas políticas, as clivagens evolu-
A segunda tese pode explicar esse para-
tivas, o desenho institucional e o perfil
doxo no contexto das democracias sóli-
das elites que formatam e/ou integram
das, mas acredito ser incompatível para os serviços de Inteligência nas demo-
padrões evolutivos de países que nas cracias consolidadas ou precárias. Em
últimas décadas sofreram rupturas de face dessas instituições tradicional-
ordem político-institucionais (golpes de mente fechadas, o método comparado
Estado, ditaduras militares e civis etc). pode servir como apoio na fiscalização
A ideia de durabilidade de dadas “es- e controle de suas atividades, nas pers-
colhas estruturais” dos atores principais pectivas intra e interinstitucional.
(stakeholders) é contraditada empirica-
mente pelos casos de muitos países cuja A principal força metodológica dessa
transição política não debelou totalmente estratégia é a capacidade de articular
criticamente a variedade dos marcos te-
legados autoritários na área de seguran-
óricos, focando-os sobre as experiên-
ça e defesa. De fato, a pouca durabilida-
cias concretas das agências e de suas
de estrutural das escolhas de atores que
elites políticas. A capacidade analítica
decidem politicamente constrangidos do pesquisador poderá lançar luz sobre
por legados de regimes autoritários é um a evolução desses objetos que, de fato,
alerta importante para, na perspectiva muitas vezes ocupam áreas cinzentas do
institucionalista, nem reificar o objeto, aparelho de Estado, mas nem por isso o
nem minimizar as decisões dos atores. seu ethos político e os interesses de suas
Se a cultura importa, importa mais ainda burocracias são inescrutáveis ao juízo da
a política das elites. Ciência Política.

22
HALL, Peter A. and TAYLOR, Rosemary C. R., op. cit., p. 200.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 33


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34 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


QUANDO O SEGREDO É A REGRA:
ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA E ACESSO À INFORMAÇÃO NO BRASIL
Gills Vilar-Lopes*

Resumo
É possível compatibilizar o sigilo característico e vital à Atividade de Inteligência com a demo-
cracia? Responder a tal indagação é o objetivo principal deste trabalho. Como marcos teóri-
cos, opta-se pelos seguintes arcabouços conceituais: a teoria do accountability, de Guillermo
O’Donnel; o preceito de limitação temporal do segredo, popularizado por Norberto Bobbio;
e o pressuposto defendido por Paulo Bonavides de que o direito à informação se encontra no
bojo dos chamados direitos humanos de quarta dimensão. Ademais, doutrinadores da área do
Direito – p. ex., José dos Santos Carvalho Filho e Gilmar Mendes – e da Atividade de Inteligên-
cia – p. ex., Joanisval Brito Gonçalves e Marco Cepik – ajudam a lançar luz sobre o tema em
tela. Por fim, elege-se uma metodologia mista, ou seja, qualitativa e quantitativa, cujas fontes
primárias são a Constituição Federal de 1988, tratados internacionais, leis infraconstitucionais
– com especial atenção à Lei de Acesso à Informação (LAI) – e dados extraídos do Portal Aces-
so à Informação, para a criação e a manipulação de um banco de dados.

Palavras-chave: Atividade de Inteligência; Legislação de interesse da Atividade de Inteligência;


Lei de Acesso à Informação.

Sigilo e inteligência[...] são temas sobre os quais seria oportuno que cien-
tistas políticos[...] e juristas se debruçassem mais detidamente. Reconhe-
cendo os problemas que as discussões sobre sigilo e agências de inteli-
gência trazem para todas as democracias do mundo, o pior que se pode
fazer é fingir que eles não existem. (PROENÇA JR; DINIZ, 1998, p. 92).

Introdução

A razão de ser deste trabalho gira em


torno da relação entre o sigilo da
Atividade de Inteligência, de um lado,
nº 12.527, de 18 de novembro de 2011
– determina a “observância da publicida-
de como preceito geral e do sigilo como
e a questão democrática, do outro. No exceção” (BRASIL, 2011, art. 3º, I). To-
atual estado de coisas jurídico brasileiro, davia, essa lógica parece colocar em rota
a Lei de Acesso à Informação (LAI) – Lei de colisão duas idiossincrasias das atuais
* Doutor em Ciência Política (Relações Internacionais) pela Universidade Federal de Pernam-
buco (UFPE) e Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Fe-
deral de Rondônia (UNIR).

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 35


Gills Vilar-Lopes

democracias liberais: (i) a tutela do direi- inerente à Atividade de Inteligência não


to fundamental de acesso à informação; obstaria o exercício do controle social.
e (ii) a atuação inerentemente sigilosa
dos seus serviços secretos. Logo, analisar a aparente relação con-
traditória dos itens (i) e (ii) é o objetivo
A Atividade de Inteligência – também geral deste trabalho, tendo, ainda, como
conhecida por Inteligência de Estado ou objetivos específicos (i) analisar a natu-
espionagem – visa a coletar, analisar e reza democrática do sigilo inerente à In-
disseminar informações relevantes para teligência de Estado e (ii) compreender
o processo decisório (CEPIK, 2003, sua coexistência com o direito de acesso
pp. 13 e 21). No caso brasileiro, ela se à informação, no âmbito do Estado De-
mocrático de Direito brasileiro.
liga umbilicalmente ao assessoramento
estratégico do Presidente da República Com o fito de manter uma lógica argu-
(BESSA, 2014, p. 68; BRASIL, 1999, mentativa entre problema de pesquisa
art. 4º, I; GONÇALVES, 2013; PRO- e literatura especializada, utilizam-se
ENÇA JR; DINIZ, 1998). Para atingir marcos teóricos tanto da Ciência Po-
esse intento, a legislação de interesse lítica quanto do Direito, a exemplo da
da Atividade de Inteligência garante ao teoria de accountability (O’DONNEL,
órgão central do Sistema Brasileiro de 2002), do preceito de limitação tempo-
Inteligência (Sisbin), ou seja, à Agência ral do segredo (BOBBIO, 1997) e do
Brasileira de Inteligência (Abin), a possi- pressuposto de que o direito à informa-
bilidade de recorrer a métodos sigilosos. ção se encontra no bojo dos chamados
Não é à toa, pois, que o sentido restrito direitos humanos de quarta dimensão
de Inteligência aqui empregado é sinô- (BONAVIDES, 2014).
nimo de segredo e informação secreta
Para testar a hipótese principal, opta-se
(CEPIK, 2003, p. 28).
metodologicamente por uma aborda-
Diante dessa relação entre publicidade e gem mista, utilizando-se tanto métodos
sigilo governamentais, surge o seguinte quantitativos quanto qualitativos. No que
problema de pesquisa: em que medida a tange aos métodos quantitativos, elege-
Atividade de Inteligência limita o direito -se a estatística descritiva, a partir de da-
dos oriundos do site acessoainformacao.
de acesso à informação no Brasil? A fim
gov.br. Quanto aos métodos qualitativos,
de responder a essa pergunta, parte-se
enfatiza-se a revisão bibliográfica de
da hipótese principal de que a concreti-
normas sobre Atividade de Inteligência
zação do direito de acesso à informação
e acesso à informação, tendo como fon-
não encontraria impedimentos frente à
tes primárias a Carta Magna brasileira de
Atividade de Inteligência. Assim, sur-
1988, tratados internacionais e leis in-
gem as hipóteses secundárias de que (i) fraconstitucionais, especialmente a LAI.
a informação sigilosa – matéria-prima de
qualquer serviço secreto – seria com- O presente trabalho divide-se em duas
patível com a democracia; e (ii) o sigilo seções principais. Na primeira, abarcam-

36 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Quando o segredo é a regra:
Atividade de Inteligência e acesso à informação no Brasil

-se questões mais conceituais. Já a se- 5º, XXXIII, CF)” (CARVALHO FILHO,
gunda seção analisa a coexistência entre 2014, p. 27, grifo nosso).
Atividade de Inteligência e direito de
acesso à informação no Brasil. Destaca- Se o direito de acesso à informação está
-se que o desenho de pesquisa foi ela- diretamente relacionado à publicidade
borado com o intuito de que cada uma (CARVALHO FILHO, 2014, p. 26), po-
das duas principais seções – segunda e de-se dizer que a Atividade de Inteligên-
terceira – englobe uma hipótese secun- cia está estritamente ligada ao sigilo (CE-
dária e um objetivo específico, de modo PIK, 2003, pp. 27-28). Porém, como
que, agindo dessa forma, deixam-se para nota a ex-presidente da Comissão Mista
a Conclusão tanto o teste final da hipóte- de Controle das Atividades de Inteligên-
se principal quanto o atingimento ou não cia (CCAI) do Congresso Nacional, De-
do objetivo geral já mencionados. putada Federal Jô Moraes, a Inteligência
brasileira não lida apenas com questões
Delineando o problema: a aparente de Defesa Nacional, mas também com
incompatibilidade da Atividade de Inte- Segurança Nacional, tais como “[...]
ligência com a democracia o acompanhamento de movimentos de
fronteira, [...]a localização de indícios de
Analisa-se aqui a natureza do sigilo ine-
praga criminosa numa produção agríco-
rente à Atividade de Inteligência, bem
la ou de crescimento do desmatamento”
como sua relação – aparentemente con-
(MORAES, 2015). Portanto, trata-se de
flituosa – com um dos principais pressu-
atividade necessária para assessorar a
postos democráticos da atualidade jurí-
tomada de decisão no mais alto escalão
dica: o direito de acesso à informação.
da política nacional; daí a importância
A diferença entre direito à informação e do sigilo em seus planejamentos e ações
direito de acesso à informação dos ór- (BRASIL, 1999).
gãos públicos contém suas nuances.
O tipo de sigilo aqui analisado é, por-
De acordo com a doutrina administrati- tanto, aquele imprescindível à própria
vista, p. ex., o primeiro direito, “embora existência da Atividade de Inteligência e
nascido com o timbre de direito indivi- à segurança da sociedade e do Estado
dual, atualmente [...] espelha dimensão (BRASIL, 1988, art. 5º, XXXIII). Logo,
coletiva, no sentido de que a todos, de não se estudam aqui, p. ex., o sigilo pre-
um modo geral, deve assegurar-se o ceituado para o inquérito policial, de que
direito” (CARVALHO FILHO, 2014, p. trata o art. 20 do Código de Processo
27). Já o segundo direito é fundamen- Penal nem os sigilos bancário, fiscal,
tal (BRASIL, 2015a, p. 79) e objetiva industrial, empresarial, das Sociedades
“[...]viabilizar o acesso dos usuários a Anônimas, decorrente de direitos auto-
registros administrativos e a informações rais ou de risco à governança empresarial
sobre atos de governo, desde que res- (BRASIL, 2015a, pp. 67-77), da corres-
peitados o direito à intimidade (art. 5º, pondência ou das comunicações. Mais
X, CF) e as situações legais de sigilo (art. especificamente, trata-se do “[...]sigilo

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 37


Gills Vilar-Lopes

das atividades de inteligência, como as contas (CEPIK, 2003, pp. 138 e 183;
da Abin, que permanecem sob restrição SOUSA, 2012, p. 28) e de responsabili-
de acesso caso devidamente classifica- dade pública (MAINWARING; BRINKS;
das, conforme disposto no inciso VIII PÉREZ-LIÑÁN, 2001, p. 651). Conso-
do art. 23 da LAI” (BRASIL, 2015a, p. ante tipologia amplamente difundida por
77). Entrementes, não se pode banalizar O’Donnel (2002), destaca-se a versão
as ressalvas constitucional e legais, sob vertical de accountability, em que cida-
o risco de degenerar o próprio direito dãos e sociedade civil organizada esta-
(MENDES; BRANCO, 2014, p. 450). belecem controles sobre o Estado.

Diante das ações sigilosas, características Para se chegar a um alto grau de accoun-
dos serviços de Inteligência, é até natural tability vertical, é necessário também que
que, no âmbito de um Estado Democrá- os governados possam ter acesso a in-
tico de Direito, preceitos como transpa- formações públicas, providas median-
rência e accountabillity entrem em con- te transparência – ativa e passiva – de
flito com o segredo (CEPIK, 2003, p. quem os governa. Assim, transparência
137). É nesse sentido que Proença Jr. e é um imperativo das democracias con-
Diniz (1998, p. 90) apregoam que “a temporâneas (CEPIK, 2003, p. 15) e
tensão entre sigilo e democracia é uma “[...]pode ser percebida como a neces-
das mais delicadas dentre todas as dis- sidade de ampla publicidade dos atos
cussões sobre governos democráticos”. de Estado e de governo. Nesse caso, o
acesso à informação é elemento funda-
Democracia, accountability e transparên- mental da transparência[...]” (GONÇAL-
cia são conceitos interrelacionados, po- VES, 2008, p. 229), uma vez que “[...]
rém diferentes (GONÇALVES, 2008, p. a transparência no trato da coisa pública
229). Embora não haja consenso sobre não é apenas um direito do cidadão, mas
o conceito de democracia (MAINWA- um dever do Estado” (FIGUEIREDO,
RING; BRINKS; PÉREZ-LIÑÁN, 2001, 2015). Esses elementos mantêm uma
p. 648), percebe-se que sua definição relação diretamente proporcional entre
subminimalista – a qual defende a tese si: quanto mais transparência, mais ac-
econômica de que democracia é apenas countability e, consequentemente, mais
a expressão do voto popular – é atual- democrático um regime político é.
mente minoritária, fazendo surgir uma
gama de definições outras atrelando Assume-se também o direito à informa-
democracia à concretização e à efetivi- ção como direito fundamental de quarta
dade de direitos fundamentais, tal como dimensão1. Isso quer dizer que a demo-
o direito à informação. Accountability, cracia positivada só será “[m]aterialmen-
por sua vez, traz a ideia de prestação de te possível graças ao avanço da tecno-
1
A teoria tridimensional dos direitos humanos, popularizada por Norberto Bobbio, encontra
bastante consonância na literatura jurídica, tendo na primeira dimensão os direitos civis e
políticos; na segunda, os sociais, econômicos e culturais; e na terceira, os chamados direi-
tos coletivos, como meio-ambiente e paz. Atualmente, questões como patrimônio genético e
acesso à informação e à Internet vêm sendo alocados em outras dimensões.

38 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Quando o segredo é a regra:
Atividade de Inteligência e acesso à informação no Brasil

logia de comunicação, e legitimamente art. 176). Essa lógica foi aperfeiçoada,


sustentável graças à informação correta de modo que a Constituição Cidadã,
e às aberturas pluralistas do sistema” ao elencar a legalidade e a publicidade
(BONAVIDES, 2014, p. 586). como princípios da Administração Públi-
ca (BRASIL, 1988, art. 37, caput; CAR-
Por seu turno, Bobbio (1997) lança luz
VALHO FILHO, 2014, p. 26), buscou
sobre a limitação temporária do segredo
garantir a “[...]chamada máxima divulga-
pelo Estado, legítimo corolário da trans-
ção [das informações públicas], em que
parência pública. Para ele, “[...]o caráter
a publicidade é a regra e o sigilo a exce-
público é a regra, o segredo a exceção,
e mesmo assim é uma exceção que não ção” (BRASIL, 2015a, p. 52), adotada
deve fazer a regra valer menos, já que o também pela LAI.
segredo é justificável apenas se limitado
Esse estado de coisas faz surgir a se-
no tempo[...]” (BOBBIO, 1997, p. 86,
guinte dúvida: como, então, certificar
grifo nosso).
que uma atividade de Estado seja, majo-
Bobbio credita a ideia-chave da limita- ritariamente, realizada de forma sigilosa,
ção temporal do segredo/sigilo a Nata- porém dentro dos princípios norteadores
le (1976 apud BOBBIO, 1997, p. 86, da res publica brasileira? Posto de forma
grifo nosso), o qual registrou que “todas diferente: como garantir ao cidadão o di-
as operações dos governantes devem ser reito à informação pública quando, em
conhecidas pelo Povo Soberano, exceto casos excepcionais, o sigilo é a regra, e a
algumas medidas de segurança pública, publicidade, a exceção?
que ele deve conhecer apenas quando
cessar o perigo”. Observa-se esse pen- Diante dessa problemática, Sousa
samento também no fato de que: (2012, p. 27) fornece um indício de
resposta, ao ponderar que a contradição
[...]a Constituição de 1988 institui uma entre sigilo-democracia e segredo-trans-
ordem democrática fundada no valor da parência pode ser superada com um efi-
publicidade[...], substrato axiológico de
ciente controle público sobre a Atividade
toda a atividade do Poder Público. No
de Inteligência. Pode-se complementar
Estado Democrático de Direito, a publi-
tal ideia da seguinte forma: se accoun-
cidade é a regra; o sigilo, a exceção[...].
tability é central para a manutenção das
(MENDES; BRANCO, 2014, p. 407,
democracias hodiernas, ela
grifo do autor).
[...]torna-se muito mais relevante em si-
De forma contrária, a ordem jurídica tuações onde a transparência é limitada
imediatamente anterior à atual Carta por comprometer, por exemplo, a segu-
Maior de 1988 preconiza a obrigato- rança nacional – como ocorre com a ati-
riedade de os órgãos públicos respon- vidade de inteligência. Daí se dizer que
derem às consultas do cidadão, desde determinada ação ou conduta, ainda que
não possa ser transparente para o público
que relacionadas a seus legítimos inte- em geral, deve estar sujeita ao controle
resses e pertinentes a assuntos específi- daqueles legal ou constitucionalmente
cos da repartição requerida, ressalvados competentes para isso. (GONÇALVES,
os de caráter sigiloso (BRASIL, 1967, 2008, pp. 229-230).

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 39


Gills Vilar-Lopes

Uma vez que, ainda, lembra Gonçalves sigilo inerente à Atividade de Inteligên-
(2013), mesmo que as informações rela- cia não obstaria o exercício do controle
cionadas à Inteligência de Estado sejam social. Assim, assume-se que o sigilo
sigilosas e, portanto, fechadas ao público inerente à Atividade de Inteligência não
em geral, cabe aos representantes políti- atrapalha o direito de acesso à informa-
cos fazer seu controle precípuo. ção; restando saber se essa compatibi-
lidade jurídica encontra efetividade nas
A LAI é outra importante fomentadora
do controle da Atividade de Inteligência, leis e políticas públicas brasileiras de
que ajuda a manter a excepcionalidade acesso à informação. Emprega-se o con-
do sigilo e, ao mesmo tempo, busca ga- ceito de controle social aqui em seu sen-
rantir a publicidade até mesmo de partes tido amplo, embora órgãos de controle
de documentos considerados sigilosos. – p. ex., o Ministério da Transparência e
Controladoria-Geral da União (CGU) –
Como se vê, a tensão entre publicida- atrelem-no, em sentido estrito, ou seja,
de, transparência, acesso à informação à fiscalização de gastos públicos, e, por-
e sigilo é permanente, mas compatível, tanto, ligado a accountability.
sobretudo em países democráticos que
possuem um eficaz sistema de controle Antes da publicação da LAI em 2011, já
sobre a Inteligência de Estado. existia significativo arcabouço legal sobre
o tema. O Quadro 1 elenca leis brasileiras
Atividade de Inteligência à luz da LAI
e tratados internacionais que, de alguma
Esta seção põe à prova a segunda hi- forma, interessam ao direito de acesso à
pótese secundária de que, no Brasil, o informação e à Atividade de Inteligência.
1
QUADRO 1: Rol legal sobre direito de acesso à informação e Atividade de Inteligência.

Referência ao direito de Referência à Atividade de


Anoa) Dispositivo
acesso à informação Inteligência
Declaração Universal dos Direitos
1948 art. 19 --
Humanos
Pacto Internacional dos Direitos
1966 art. 19, § 2o-3o o
art. 19, § 3 , “b”
Civis e Políticos (Decreto nº 592/92)
Convenção Americana sobre
1969 Direitos Humanos ou Pacto de San art. 13, itens 1-5 art. 13, item 2, “b”
José da Costa Rica
art. 5o, X, XII, XIV, XXII,
Constituição da República
1988 XXXIII, LX e LXXII; art. 37, art. 5o, XXXIII
Federativa do Brasil
§ 3o, II; art. 216, § 2o
Estatuto dos Servidores Públicos
1990 Civis da Administração Pública art. 116, V, “a”; art. 117, II art. 116, V, “a”
Federal (Lei no 8.112)
Política Nacional de Arquivos (Lei art. 4o-5o; art. 14; art. 18-21;
1991 art. 4o
no 8.159) art. 25
Lei sobre os Acervos Documentais
art. 4o; art. 6o, II-III; art. 8o,
1991 Privados dos Presidentes da art. 6°, parágrafo único
o VIII e XI; art. 10; art. 15, § 2°
República (Lei n 8.394)
Código de Ética Profissional do
itens VII-VIII; XIV, “s”; XV, “h”
1994 Servidor Público Civil do Poder item VII
e “l”
Executivo Federal
Lei do Processo Administrativo
1999 art. 2o, V art. 2o, V
Federal (Lei nº 9.784/1999)
Declaração de Princípios sobre
2000 item 4 item 4
Liberdade de Expressão
402005
Revista Brasileira
Convenção das Nações Unidas de Inteligência. Brasília:
art. 10; Art. 13, 1-2 Abin, n. 12, dezembro 2017
art. 13, 1, d
contra a Corrupção
2009 LC 131 tudo --
Lei de Acesso à Informação – LAI art. 7o, VII; art. 23-24; art. 35,
República (Lei n 8.394)
Código de Ética Profissional do
itens VII-VIII; XIV, “s”; XV, “h”
1994 Servidor Público Civil do Quando
Poder o segredo é a regra: item VII
e “l”
Executivo Federal
Atividade de Inteligência e acesso à informação no Brasil
Lei do Processo Administrativo
1999 art. 2o, V art. 2o, V
Federal (Lei nº 9.784/1999)
Declaração de Princípios sobre
2000 item 4 item 4
Liberdade de Expressão
Convenção das Nações Unidas
2005 art. 10; Art. 13, 1-2 art. 13, 1, d
contra a Corrupção
2009 LC 131 tudo --
Lei de Acesso à Informação – LAI art. 7o, VII; art. 23-24; art. 35,
2011 o tudo
(Lei n 12.527/2011) § 1o, III; art. 35, § 2o; art. 37, II
o
Regulamento da LAI (Decreto n art. 6o; art. 25-27; art. 47, IV;
2012 tudo
7.724) art. 49
2012 Decreto no 7.845 b) tudo art. 45-47
2012 Regimento Interno da CMRI c) tudo art. 1o, IV
Fonte: Elaboração própria.
Notas:
a) A variável Ano refere-se à publicação da norma original, e não, p. ex., à do Decreto que internaliza tratado
no ordenamento jurídico pátrio.
b) Regulamenta procedimentos para credenciamento de segurança e tratamento de informação sigilosa e
dispõe sobre o Núcleo de Segurança e Credenciamento.
c) CMRI = Comissão Mista de Reavaliação de Informação. Conferir, ainda, Atas, Decisões e Súmulas da
Comissão, a partir de 2012, disponíveis em http://acessoainformacao.gov.br/assuntos/recursos/recur-
sos-julgados-a-cmri.

Como se pode observar, os primeiros e Políticos (BRASIL, 1992) traz ressalvas


dispositivos sobre direito de acesso à in- a tal direito, entre elas a “salvaguarda da
formação são esparsos, internacionais e segurança nacional”. Já a CF 88 cita, in
“principiológicos”. Ao se analisar o Qua- verbis, o parâmetro legal para o acesso à
dro 1, percebe-se que, ao longo da série informação, bem como a exceção a esse
temporal, ocorreu um triplo movimento, direito, que passa a ser o norte da atua-
no sentido de (i) os tratados internacio- ção da Atividade de Inteligência no Brasil:
nais apenas repetirem o mantra positiva-
do pelo art. 19 da Declaração Universal todos têm direito a receber dos órgãos
públicos informações de seu interesse
dos Direitos Humanos, (ii) mais recen- particular, ou de interesse coletivo ou
temente, as leis brasileiras reproduzirem geral, que serão prestadas no prazo da
ipsis litteris a ressalva do inciso XXXIII lei, sob pena de responsabilidade, res-
do art. 5º da Constituição Federal de salvadas aquelas cujo sigilo seja impres-
cindível à segurança da sociedade e do
1988 (CF88) e (iii) a criação, a partir de
Estado. (BRASIL, 1988, art. 5º, XXXIII,
2011, de uma “cultura de acesso” ou, grifo nosso).
nas palavras da LAI, uma “cultura de
transparência na administração pública” Ora, em plena Era da Informação, cabe,
(BRASIL, 2011, art. 3º, IV). cada vez mais, a máxima de que infor-
mação é poder (BESSA, 2014, p. 104)
Destaca-se também o fato de que as res- e que, no âmbito da Inteligência de Esta-
salvas ou previsões de exceções ao direi- do, “a Informação estratégica importan-
to de acesso à informação pública não te, assim como o poder, não se entrega
aparecem na Declaração Universal dos a ninguém; [...]têm de ser conquistados”
Direitos Humanos, que apenas declara, (BESSA, 2014, p. 128).
como seu próprio nome já remete, o di-
reito à informação como universal. So- Por sua vez, a LAI deve ser observada
mente em 1966 é que o § 3º do art. 19 por todos os entes federativos, a fim de
do Pacto Internacional dos Direitos Civis que os direitos à informação e ao acesso

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 41


Gills Vilar-Lopes

à informação sejam garantidos (CARVA- VI - prejudicar ou causar risco a projetos


LHO FILHO, 2014, pp. 26-27; MEN- de pesquisa e desenvolvimento científico
ou tecnológico, assim como a sistemas,
DES; BRANCO, 2014, p. 464). Já que bens, instalações ou áreas de interesse
nenhum direito fundamental é absoluto estratégico nacional;
(MENDES; BRANCO, 2014, pp. 139,
VII - pôr em risco a segurança de institui-
142-144), a LAI trata de definir a res- ções ou de altas autoridades nacionais ou
salva constitucional do sigilo a partir do estrangeiras e seus familiares; ou
momento em que esta se mostra impres-
VIII - comprometer atividades de inte-
cindível à segurança da sociedade e do ligência, bem como de investigação ou
Estado. Mas o que se quer dizer por fiscalização em andamento, relacionadas
“segurança da sociedade e do Estado”? com a prevenção ou repressão de infra-
ções. (BRASIL, 2011, grifo nosso).
Diante da imprecisão do constituinte
originário, a CGU lembra que o legisla- Como se vê, a LAI elenca, taxativamente,
dor da LAI criou um rol exaustivo dos oito hipóteses em que informações im-
tipos de informações que se aplicam à prescindíveis à segurança da sociedade
ressalva constitucional, instituindo tam- ou do Estado podem ser “classificadas”2,
bém processos e prazos específicos para destacando-se a derradeira hipótese,
a restrição de acesso a tais informações comprometer atividades de Inteligência.
(BRASIL, 2015a, p. 78), a saber:
Ademais, seguindo Bobbio (1997) e
Art. 23. São consideradas imprescin-
díveis à segurança da sociedade ou do seus pressupostos de temporariedade do
Estado e, portanto, passíveis de classifi- segredo público, a LAI ainda apresenta
cação as informações cuja divulgação ou os seguintes tipos e prazos máximos da
acesso irrestrito possam:
informação classificada quanto à sua im-
I - pôr em risco a defesa e a soberania prescindibilidade à segurança da socie-
nacionais ou a integridade do território dade ou do Estado brasileiro:
nacional;

II - prejudicar ou pôr em risco a condu- Art. 24. [...]


ção de negociações ou as relações inter- § 1º Os prazos máximos de restrição de
nacionais do País, ou as que tenham sido acesso à informação, conforme a clas-
fornecidas em caráter sigiloso por outros sificação prevista no caput, vigoram a
Estados e organismos internacionais; partir da data de sua produção e são os
III - pôr em risco a vida, a segurança ou a seguintes:
saúde da população; I. ultrassecreta: 25 (vinte e cinco) anos;
IV - oferecer elevado risco à estabilida- II. secreta: 15 (quinze) anos; e
de financeira, econômica ou monetária
do País; III. reservada: 5 (cinco) anos.

V - prejudicar ou causar risco a planos § 2º As informações que puderem co-


ou operações estratégicos das Forças locar em risco a segurança do Presi-
Armadas; dente e Vice-Presidente da República e
2
“O ato de estabelecer que determinada informação se sujeita a tais hipóteses chama-se clas-
sificar a informação e o ato administrativo decisório que classifica a informação chama-se
Termo de Classificação da Informação – TCI” (BRASIL, 2015a, pp. 78-79, grifo nosso).

42 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Quando o segredo é a regra:
Atividade de Inteligência e acesso à informação no Brasil

respectivos cônjuges e filhos(as) serão queiras classificações de informações


classificadas como reservadas e ficarão
– sobretudo, ultrassecretas – por parte
sob sigilo até o término do mandato
em exercício ou do último mandato, em do serviço secreto brasileiro. Pondo de
caso de reeleição. forma diferente: parte-se da hipótese de
§ 3º Alternativamente aos prazos pre-
que a Atividade de Inteligência brasileira
vistos no § 1º, poderá ser estabelecida exerceria um efeito positivo sobre o nível
como termo final de restrição de acesso a de classificação de informações.
ocorrência de determinado evento, des-
de que este ocorra antes do transcurso Para testar essa hipótese, constrói-se um
do prazo máximo de classificação.
banco de dados a partir do Levantamen-
§ 4º Transcorrido o prazo de classifica- to de informações classificadas e desclas-
ção ou consumado o evento que defina o
sificadas dos órgãos do Poder Executivo
seu termo final, a informação tornar-se-á,
automaticamente, de acesso público. Federal, do Portal Acesso à Informação.
§ 5º Para a classificação da informação Antes, porém, registre-se que, apesar de
em determinado grau de sigilo, deve-
rá ser observado o interesse público da
Brasil (2015c) informar que o número
informação e utilizado o critério menos total de observações – quantidade de
restritivo possível, considerados: órgãos ou entidades que responderam à
I. a gravidade do risco ou dano à segu- pesquisa – ser de 167, por alguma ra-
rança da sociedade e do Estado; e zão desconhecida, a planilha eletrônica
II. o prazo máximo de restrição de acesso disponibilizada pela CGU contém 168
ou o evento que defina seu termo final. observações/linhas. Logo, o banco de
(BRASIL, 2015b, grifo no original). dados, aqui nomeado inf_classif_bra-
Como observa Brasil (2015a, p. 80), a sil.dta3, é constituído por uma amostra
única classificação da informação pas- (n=168) oriunda de uma população
sível de prorrogação é a ultrassecre- (N=305) baseada exclusivamente em
ta – uma única vez e por igual período órgãos e entidades do Poder Executivo
(BRASIL, 2011, art. 35, § 1º, III; § 2º). Federal, sendo composto pelas variáveis
Neste ponto, podem-se esperar corri- listadas no Quadro 2.
1
QUADRO 2: Variáveis do banco de dados inf_classif_brasil.dta.

Variável Descrição Tipo


orgao Nome do órgão ou entidade do Executivo Federal Qualitativa
ic_reserv Número de informações classificadas no tipo reservada (5 anos) Quantitativa
ic_sec Número de informações classificadas no tipo secreta (15 anos) Quantitativa
ic_ultrassec Número de informações classificadas no tipo ultrassecreta (25 anos) Quantitativa
ic_total Somatório de informações classificadas Quantitativa
inf_desclassif Número de informações desclassificadas Quantitativa

Fonte: Elaboração própria.

3
O banco de dados está disponível irrestritamente em repositório virtual, no endereço: https://
github.com/gillsvilarlopes/lai-e-inteligencia.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 43


Gills Vilar-Lopes

Selecionando apenas órgãos públicos que servações – exatamente 25% da amostra –


possuem, pelo menos, uma informação variam entre 1 e 45.935 informações clas-
classificada, obtém-se que 42 das 168 ob- sificadas, conforme a Tabela 1 apresenta.
3
TABELA 1: Órgãos públicos federais com pelo menos uma informação classificada (2015).
Informação Informação Informação
Órgão Total
reservada secreta ultrassecreta
Comaer -----Comando da Aeronáutica 45.248 687 0 45.935
MRE ---------Ministério das Relações Exteriores 17.552 4.082 151 21.785
GSI-----------Gabinete de Segurança Institucional da
4.090 3.800 0 7.890
Presidência da República
MD -----------Ministério da Defesa 2.825 764 33 3.622
Anac ---------Agência Nacional de Aviação Civil 2.842 11 0 2.853
Infraero -----Empresa Brasileira de Infraestrutura
2.099 0 0 2.099
Aeroportuária
CEX----------Comando do Exército 811 1.056 0 1.867
UFSC--------Universidade Federal de Santa Catarina 866 3 0 869
UFMT -------Fundação Universidade Federal de Mato
383 0 0 383
Grosso
Antaq --------Agência Nacional de Transportes
268 0 0 268
Aquaviários
Capes -------Coordenação de Aperfeiçoamento de
3 243 0 246
Pessoal de Nível Superior
AGU ---------Advocacia-Geral da União 220 0 0 220
AEB ----------Agência Espacial Brasileira 10 182 0 192
Ibama -------Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
146 0 0 146
Recursos Naturais Renováveis
MF -----------Ministério da Fazenda 139 0 0 139
BNB----------Banco do Nordeste do Brasil S.A. 96 29 0 125
MCT ---------Ministério da Ciência e Tecnologia 87 23 0 110
LNA ----------Laboratório Nacional de Astrofísica 100 0 0 100
AmE ---------Amazonas Distribuidora de Energia S.A. 91 0 0 91
CDP ---------Companhia Docas do Pará 91 0 0 91
BNDES -----Banco Nacional de Desenvolvimento
56 0 0 56
Econômico e Social
Fiocruz ------Fundação Oswaldo Cruz 0 54 0 54
MTE ---------Ministério do Trabalho e Emprego 32 0 0 32
ANS----------Agência Nacional de Saúde Suplementar 31 0 0 31
SEP ----------Secretaria de Portos 27 0 0 27
MP -----------Ministério do Planejamento, Orçamento e
18 4 0 22
Gestão
CGU ---------Controladoria-Geral da União 15 0 0 15
ANP----------Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural
10 4 0 14
e Biocombustíveis
Inep ----------Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
10 0 0 10
Educacionais Anísio Teixeira
Imbel --------Indústria de Material Bélico do Brasil 7 0 0 7
SAC----------Secretaria de Aviação Civil 7 0 0 7
Ancine-------Agência Nacional do Cinema 5 0 0 5
UFABC------Fundação Universidade Federal do ABC 4 0 0 4
Telebrás ----Telecomunicações Brasileiras S.A. 1 2 0 3
Unifei --------Universidade Federal de Itajubá 0 3 0 3
Codesp -----Companhia Docas do Estado de São Paulo 2 0 0 2
Huol----------Hospital Universitário Onofre Lopes 2 0 0 2
CEF ----------Caixa Econômica Federal 1 0 0 1
HNSC -------Hospital Nossa Senhora da Conceição S.A. 1 0 0 1
MDIC --------Ministério do Desenvolvimento, Indústria e
0 0 1 1
Comércio Exterior
UFCSPA----Fundação Universidade Federal de
1 0 0 1
Ciências da Saúde de Porto Alegre
UFTM -------Universidade Federal do Triângulo Mineiro 1 0 0 1
Total 78.198 10.947 185 89.330

Fonte: Elaboração própria.


Fonte dos dados: http://www.acessoainformacao.gov.br/assuntos/relatorios-dados/informacoes-classifica-
das/informacaoclassficada2015-xlsx.xlsx.
Nota: Última atualização em 1º ago. 2015.

44 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Quando o segredo é a regra:
Atividade de Inteligência e acesso à informação no Brasil

Antes de analisar a Tabela 1, é neces- 29 de setembro de 2016, por seu tur-


sário compreender algumas questões no, traz a primeira reforma ministerial do
institucionais brasileiras que envolvem Governo Temer, que restaura o “novo”
tanto o direito de acesso à informação GSI no lugar da Casa Militar, com status
quanto a Atividade de Inteligência. Uma de Ministério, e a Abin volta a se subor-
delas diz respeito à atualização do Le- dinar a ele (BRASIL, 2016b, pp. 3-4).
vantamento de informações classificadas
e desclassificadas dos órgãos do poder Nesse sentido, não é por acaso que a
executivo federal aqui utilizada, de 1º de Tabela 1 apresente o GSI como o ter-
agosto de 2015. Até essa data, a Abin ceiro órgão público federal que mais
vinculava-se ao então “antigo” Gabinete classifica informações, haja vista que,
de Segurança Institucional da Presidên- além de suas próprias classificações, es-
cia da República (GSIPR). Mas, com a tão também incluídas nele as da Abin4.
Reforma Ministerial de outubro de 2015, Mesmo assim, os dois principais órgãos
mudanças profundas na Atividade de In- da Atividade de Inteligência de Estado, 4
teligência ocorreram: a Abin desvincula- Abin e GSI, detinham aproximadamente
-se do GSI e se subordina à recém-criada um terço do número de classificações
Secretaria de Governo; o GSI perde o em relação ao segundo colocado e não
status de Ministério e volta a se chamar possuíam sequer uma informação classi-
Casa Militar (AQUINO, 2015; BRASIL, ficada no grau ultrassecreto, conforme
2015e). Todavia, a Lei nº 13.341, de mostra o Gráfico 1.
GRÁFICO 1: Órgãos com informações ultrassecretas (2015).

Fonte: Elaboração própria.


Fonte dos dados: http://www.acessoainformacao.gov.br/assuntos/relatorios-dados/informacoes-classifica-
das/informacaoclassficada2015-xlsx.xlsx.
Nota: Última atualização em 1º ago. 2015.

4
As informações da Abin estão disponíveis no seguinte endereço: http://www.abin.gov.br/aces-
so-a-informacao/informacoes-classificadas. Ademais, ainda em 1999, a lei que cria a Abin já
previa que seus atos “[...], cuja publicidade possa comprometer o êxito de suas atividades sigi-
losas, deverão ser publicados em extrato. § 1º Incluem-se entre os atos objeto deste trabalho
os referentes ao seu peculiar funcionamento, como às atribuições, à atuação e às especifi-
cações dos respectivos cargos, e à movimentação dos seus titulares. § 2º A obrigatoriedade
de publicação dos atos em extrato independe de serem de caráter ostensivo ou sigiloso os
recursos utilizados, em cada caso” (BRASIL, 1999, grifo nosso).

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 45


Gills Vilar-Lopes

Da mesma forma que o número de in- possível conhecer quais órgãos públi-
formações classificadas é conhecido cos federais – e que, obrigatoriamen-
pelo cidadão, o de informações des- te, responderam ao Levantamento da
classificadas5 também o é. Por meio de CGU – desclassificaram informações,
manipulações no banco de dados, é consoante a Tabela 2. 5

TABELA 2: Órgãos públicos federais com pelo menos uma informação desclassificada (2015).

Órgão Informações desclassificadas


Comaer – Comando da Aeronáutica 43.187
MRE – Ministério das Relações Exteriores 17.544
CEX – Comando do Exército 17.224
GSI – Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República 1.437
MD – Ministério da Defesa 651
Anac – Agência Nacional de Aviação Civil 593
Valec – Engenharia, Construções e Ferrovias S.A. 195
UFSCar – Fundação Universidade Federal de São Carlos 105
UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora 100
ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar 26
MF – Ministério da Fazenda 20
Cetene – Centro de Tecnologias Estratégicas do Nordeste 9
BNB – Banco do Nordeste do Brasil S.A. 8
Infraero – Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária 8
AEB – Agência Espacial Brasileira 4
MTE – Ministério do Trabalho e Emprego 4
CGU – Controladoria-Geral da União 3
MDIC – Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior 2
CDP – Companhia Docas do Pará 1
Total 81.121
Fonte: Elaboração própria.
Fonte dos dados: http://www.acessoainformacao.gov.br/assuntos/relatorios-dados/informacoes-classifica-
das/informacaoclassficada2015-xlsx.xlsx.

O valor qualitativo “GSI”, na Tabela 2, Estado, esses números são aproximada-


corresponde ao quarto órgão da Admi- mente 8.000 e 1.500, respectivamente,
nistração Pública Federal que mais des- ou seja, menos de 10% do total. Logi-
classificou informações. Embora aquém camente que se esperava um número
dos três primeiros, está, igualmente, de classificações grande, porém o fato
muito acima do restante. de haver quase 1.500 desclassificações
também demonstra o alto grau de ob-
Como se vê nos números totais das servância do serviço secreto brasileiro
Tabelas 1 e 2, houve quase 90.000 ao direito de acesso à informação. Não
classificações de informações e aproxi- menos importante é ressaltar o fato de
madamente 80.000 desclassificações. que um documento estar classificado
Por parte dos órgãos de Inteligência de como sigiloso não quer dizer que ele
5
Cf. BRASIL, 2011, art. 29-30.

46 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Quando o segredo é a regra:
Atividade de Inteligência e acesso à informação no Brasil

está totalmente inacessível (BRASIL, to arcabouço legal e institucional de me-


2011, art. 7º, § 2º), o que torna ainda canismos de controles interno e externo.
mais presente o respeito ao princípio da
transparência pública, mesmo quando o Como este trabalho busca demonstrar, a
sigilo é a regra. coexistência entre o direito de acesso à
informação e a Atividade de Inteligência
Conclusão de Estado pode ser justificada por dois
grandes motivos que confluem para a
A primeira parte deste trabalho exami- manutenção – e o aperfeiçoamento – do
nou a hipótese secundária de que o sigilo Estado Democrático de Direito brasileiro.
seria compatível com os regimes demo-
cráticos, ainda mais quando existe um O primeiro desses motivos aponta para
eficaz sistema de controle sobre a Ati- o fato de que um cidadão desinforma-
vidade de Inteligência. Assim, entende- do sobre seu próprio Estado está pas-
-se que o primeiro objetivo específico – sível de manipulação/alienação, seja por
analisar a natureza democrática do sigilo parte de terceiros ao governo, seja pelo
característico da Inteligência de Estado próprio governo. É mediante o princípio
– foi alcançado. republicano e democrático da transpa-
rência (CEPIK, 2003, p. 16) que esse
A segunda parte evocou a LAI e o regime mesmo cidadão pode “empoderar-se”
constitucional e internacional de acesso à de ferramentas e informações capazes
informação, para lançar luz sobre a Inte- de ajudá-lo a cobrar, eficaz e eficiente-
ligência brasileira. Após apresentação e mente, as autoridades públicas por seus
análise de dados, entende-se que não se atos e omissões.
pode refutar a segunda hipótese secun-
dária, de que, no Brasil, o sigilo inerente O segundo motivo diz respeito à rele-
à Atividade de Inteligência não obstaria o vância da Atividade de Inteligência para
exercício do controle social democrático. a própria sobrevivência e a manutenção
Além disso, o segundo objetivo especí- do regime democrático no Brasil, as
fico – compreender a coexistência entre quais podem ser, sumariamente, vistas
o sigilo da Atividade de Inteligência e o na afirmação de que “[...]a mais impor-
direito de acesso à informação no Brasil tante razão para a existência de uma es-
– é também alcançado. Resta, por fim, trutura de Inteligência estatal é a produ-
conhecer da conclusão sobre a hipótese ção de análises e avaliações estratégicas
principal e o objetivo geral apresentados de interesse para o processo decisório
na seção introdutória. nacional[...]” (BESSA, 2014, p. 68).
Logo, a inexistência tanto de acesso à
A simples existência de documentos – informação quanto da Atividade de In-
e partes destes – sigilosos não obsta o teligência põe em risco o próprio Es-
exercício de uma efetiva gestão pública e tado brasileiro, seja em sua dimensão
de um efetivo controle social da informa- democrática, seja estratégica. É nesse
ção, ainda mais quando o tema do sigilo sentido que Gonçalves (2008, p. 216)
das informações carrega consigo um vas- assevera que é “difícil discordar de que

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 47


Gills Vilar-Lopes

a atividade de inteligência é imprescindí- republicanos e de direitos humanos em


vel em qualquer democracia[...]”. seus considerandos e dispositivos legais,
como também é o que demonstra seu
Após analisar considerável leque norma- trato com a informação sigilosa.
tivo nacional e internacional, bem como
doutrina brasileira sobre a Atividade de Diante dos aspectos acima analisados,
Inteligência, constata-se que tal Ativida- chega-se à conclusão de que o Estado
de de Estado não obsta nem o controle Democrático de Direito brasileiro não
social nem o princípio da transparência encontra impedimentos frente à Ati-
pública, por, entre outros, não só levar vidade de Inteligência. Na realidade,
em conta os princípios democráticos, ambos se legitimam.

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Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 49


A IMPORTÂNCIA DA INTELIGÊNCIA COMO OBJETO DE ESTUDO
PARA O CAMPO DA DEFESA NO BRASIL
Arthur Macdowell Cardoso*

Resumo
Essencial para que todas as ações no campo da defesa sejam desenvolvidas com base em
conhecimentos precisos e oportunos, a Inteligência desempenha um papel crucial na Defesa
Nacional. Como elemento intrínseco à defesa, a Atividade de Inteligência proporciona a ca-
pacidade de produzir conhecimentos estratégicos por meio de uma metodologia que busca
ser isenta de viés e imparcial. Apesar de sua importância para a defesa, a Inteligência é pouco
contemplada como objeto de estudo no campo acadêmico dos estudos estratégicos no Bra-
sil. Este trabalho aborda o papel da Inteligência nesse campo de estudos, sua importância
como ferramenta para o assessoramento estratégico aos processos decisórios do Estado no
âmbito da defesa e o atual cenário dos estudos voltados à Inteligência no campo dos estudos
estratégicos no Brasil.

Palavras-chave: Atividade de Inteligência; Defesa nacional; Estudos estratégicos; Inteligência


de defesa.

Introdução

A partir da redemocratização do
Brasil, concretizada com a Consti-
tuição Federal de 1988, iniciou-se um
Outra reformulação conduzida no mes-
mo período e que merece destaque foi a
alteração na estrutura da Atividade de In-
prolongado processo de transformação teligência do país. O Serviço Nacional de
da estrutura da Defesa Nacional. Este Informações (SNI), criado em 1964 para
processo foi responsável pela extinção desenvolver a atividade de Inteligência,
do Estado-Maior das Forças Armadas foi extinto em 1990. De 1990 a 1999,
(EMFA), do Conselho de Segurança Na- a unidade responsável pela atividade de
cional e pela criação do Ministério da Inteligência do país sofreu muitas altera-
Defesa (MD), em 1999. Tal reforma teve ções de nome e de subordinação. A Lei
como objetivo modernizar a estrutura da nº 9.883, de 7 de dezembro de 1999,
Defesa, buscando aproximá-la dos pa- reestruturou a atividade de Inteligência:
drões vigentes em outras repúblicas de- criou o Sistema Brasileiro de Inteligência
mocráticas (OLIVEIRA, 2005). (Sisbin) e a Agência Brasileira de Inte-

* Graduando do bacharelado de Defesa e Gestão Estratégica (DGEI/UFRJ) e pesquisador vo-


luntário do Laboratório de Segurança Internacional e Defesa Nacional (LABSDEN/CEE/ESG).

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ligência (Abin), órgão central do novo Com o auxílio de iniciativas federais, a


sistema, subordinada ao Gabinete de exemplo do Programa de Apoio ao Ensi-
Segurança Institucional da Presidência no e à Pesquisa Científica e Tecnológica
da República (GSIPR). Como atribuições em Defesa Nacional (Pró-Defesa), criado
legais da Abin, podemos destacar o pla- pelo MD em 2005, buscou-se incentivar
nejamento, a execução, a coordenação, projetos capazes de criar redes de co-
a supervisão e o controle das Atividades operação acadêmica na área de Defesa
de Inteligência no país e a implementa- Nacional no país.
ção de medidas para a proteção de infor-
As mudanças impostas às estruturas da
mações de interesse estratégico relativas
Defesa nacional, bem como a criação de
à segurança do Estado e da sociedade.
cursos de graduação e pós-graduação
Como órgão central, também é sua res-
no campo da Defesa, são marcos no de-
ponsabilidade coordenar e integrar as
senvolvimento de uma nova mentalidade
atividades do Sisbin.
de Defesa Nacional no Brasil e desem-
Em 2002, o MD, membro integrante do penham um papel importante na formu-
Sisbin e responsável pelo fornecimento lação do arcabouço teórico de futuros
de dados e conhecimentos específicos profissionais da Defesa.
relacionados à defesa, criou o Sistema de
Tendo como objetivo a produção e a di-
Inteligência de Defesa (Sinde) por meio fusão de conhecimentos estratégicos ca-
da Portaria Normativa n° 295, de 3 de pazes de auxiliar os processos decisórios
junho. Com isso, procurava otimizar a do Estado, a Atividade de Inteligência
estrutura de Inteligência voltada para o desempenha papel essencial na Defesa
desempenho e a coordenação da Ativi- Nacional. Embora valiosa como ferra-
dade de Inteligência de Defesa. menta para a elaboração e a condução
de políticas públicas voltadas à defesa, a
As reformas implantadas na defesa oca-
Inteligência está pouco presente no cam-
sionaram uma considerável desmilitari-
po dos estudos estratégicos no Brasil.
zação da sua estrutura nos níveis polí-
tico e estratégico, tornando crescente a O objetivo deste trabalho é abordar a im-
necessidade da formação de profissionais portância da Inteligência como objeto de
civis para atuarem no campo da Defesa. estudo para o aprimoramento das capa-
A Estratégia Nacional de Defesa (END), cidades analíticas inerentes à formulação
documento responsável pelo estabeleci- e à coordenação das políticas e estraté-
mento das diretrizes estratégicas no âm- gias da Defesa Nacional. Serão primeiro
bito da Defesa Nacional, define capaci- apresentados os principais documentos
tação de especialistas civis no campo da que norteiam as ações do Estado volta-
defesa como de interesse estratégico do das à defesa, sendo destacado o papel da
Estado, sendo responsabilidade do Go- Inteligência e da capacitação dos recur-
verno Federal o apoio às universidades sos humanos, em especial os civis, para
no desenvolvimento de estudos relativos o campo. Em seguida, será abordada
à defesa (END, 2012). a Atividade de Inteligência e seu papel

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A importância da Inteligência como objeto de estudo para o campo da Defesa no Brasil

como ferramenta de assessoramento à definida como: “conjunto de medidas e


defesa. O tópico seguinte será dedicado ações do Estado, com ênfase na expres-
ao estudo da defesa em instituições civis são militar, para a Defesa do território,
no Brasil, sendo, em seguida, abordado da soberania e dos interesses nacionais
o estudo da Inteligência nestes espaços. contra ameaças preponderantemen-
Por fim, serão expostas algumas breves te externas, potenciais ou manifestas”
considerações finais. (PND, 2012, pp.1-2).

A Política e a Estratégia Nacionais Além da definição dos conceitos funda-


de Defesa mentais relacionados à Defesa Nacional,
a PND contextualiza o cenário interna-
A partir da Lei Complementar n° 97, cional contemporâneo, enfatizando a
de 1999, instrumento normativo que delicada posição ocupada pelo Brasil e
dispõe sobre as normas gerais para a sua postura perante aquele. Explicitadas
organização, o preparo e o emprego as questões relativas ao Brasil, seu en-
das Forças Armadas (FAs), fica esta- torno estratégico e o contexto interna-
belecida a responsabilidade do poder cional, a PND estabelece oito Objetivos
Executivo em enviar, para apreciação Nacionais de Defesa a serem alcança-
do Legislativo, três documentos funda- dos para a preservação da soberania e
mentais da Defesa Nacional, a Políti- dos interesses nacionais, sendo também
ca Nacional de Defesa (PND), a END determinadas orientações para guiar o
e o Livro Branco de Defesa Nacional, comprimento destes (PND, 2012).
todos obrigatoriamente renováveis em
um período de quatro anos. A partir das premissas e dos Objetivos
Nacionais de Defesa estabelecidos pela
A PND é o documento condicionante de PND, foi elaborada a END, documen-
mais alto nível do planejamento de ações to que busca propiciar a execução da
destinadas à Defesa nacional. Voltada PND. Configurada para a construção
essencialmente para ameaças externas, de uma estratégia de caráter dissuasó-
estabelece objetivos e orientações para o rio, a END busca o aperfeiçoamento
preparo e o emprego dos setores militar das capacidades de preparo e emprego
e civil em todas as esferas do Estado, em das FAs e da sociedade civil em prol da
prol da Defesa Nacional (PND, 2012). Defesa Nacional.

A PND explicita os conceitos de Segu- A Inteligência é descrita pela END


rança e Defesa Nacional, em que a Se- (2012) como uma atividade voltada
gurança é definida como: “a condição para o acompanhamento de situações
que permite ao País preservar sua sobe- e atores que possam vir a representar
rania e integridade territorial, promover potenciais ameaças ao Estado e para
seus interesses nacionais, livre de pres- proporcionar o alerta antecipado ante a
sões e ameaças, e garantir aos cidadãos possibilidade de concretização de tais
o exercício de seus direitos e deveres ameaças. Por meio dela, busca-se que
constitucionais”. Já a Defesa Nacional é todos os planejamentos – políticos, es-

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tratégicos, operacionais e táticos – e sua ensino militar, em particular no nível de


execução sejam desenvolvidos com base Altos Estudos, e capacitar civis e milita-
em conhecimentos confiáveis e oportu- res para a própria Administração Central
nos (PND, 2012, p.33). do ministério e para outros setores do
governo, de interesse da Defesa (END,
A END (2012) também aborda direta- 2012). A PEnsD reconhece como obje-
mente o ensino e a capacitação de pro- tivo a capacitação de recursos humanos
fissionais civis para o campo da Defesa, da área de Inteligência, com ênfase na
definindo como objetivo: elaboração de documentos prospectivos
e na análise nos campos científico, nucle-
“Promover maior integração e participa-
ção dos setores civis governamentais na ar, cibernético e espacial.
discussão dos temas ligados à Defesa,
através, entre outros, de convênios com No intuito de promover essa capacita-
Instituições de Ensino Superior e do fo- ção, o Governo Federal deve apoiar, nas
mento à pesquisa nos assuntos de Defe-
universidades, um amplo espectro de
sa, assim como a participação efetiva da
sociedade brasileira, por intermédio do programas e cursos que versem sobre
meio acadêmico e de institutos e entida- a Defesa (END, 2012). Buscando aten-
des ligados aos assuntos estratégicos de der a esta demanda estratégica por es-
Defesa” (END, 2012, p. 41).
pecialistas civis em assuntos de defesa,
Uma vez que o papel das Instituições de crescente desde a criação do MD em
Ensino Superior (IES) tido como funda- 1999, foram idealizados os primeiros
mental para a participação da sociedade cursos dedicados ao campo da defesa
brasileira nos assuntos da defesa, o do- em IES do Brasil.
cumento busca se aprofundar no dire-
cionamento ideal das questões relativas A Atividade de Inteligência
ao ensino. Dessa forma, a END atribui Conforme definido na Lei nº 9.883/1999,
ao MD a responsabilidade de promover a Abin é responsável por planejar e exe-
estímulos a encontros, simpósios e se- cutar ações, inclusive sigilosas, referentes
minários destinados à discussão de as- à obtenção e à análise de dados destina-
suntos de relevância estratégica à Defesa dos à produção de conhecimento para o
Nacional. Determina, também, que o assessoramento à Presidência da Repú-
ministério deverá implementar ações e blica. Também é sua responsabilidade a
programas voltados à promoção e à dis- execução de medidas de proteção de co-
seminação de pesquisas essenciais à for- nhecimentos sensíveis, relativos aos inte-
mação de recursos humanos para a área resses nacionais e à segurança do Estado
da Defesa. Para o cumprimento dessas e da sociedade. A mesma lei determina,
atribuições, a END determina que o MD ainda, que compete à Abin promover o
deverá manter uma Política de Ensino desenvolvimento de recursos humanos e
de Defesa (PEnsD)1, tendo como obje- da doutrina de Inteligência, assim como
tivo acelerar o processo de interação do a realização de estudos e pesquisas para
1
Cf. Decreto n°7.247, 25 de agosto de 2010. Publicado no D.O.U. de 26/08/2010, p.8.

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A importância da Inteligência como objeto de estudo para o campo da Defesa no Brasil

o exercício e o aprimoramento da ativida- A Política Nacional de Inteligência (PNI)


de de Inteligência (BRASIL, 1999, Art.
A Política Nacional de Inteligência (PNI)
4°, V). A Escola de Inteligência2 (Esint/
é o documento de mais alto nível para
Abin) é responsável pela formação, pela
a orientação da atividade de Inteligên-
capacitação e pelo aperfeiçoamento dos
cia no país e já estava previsto na Lei
profissionais de Inteligência da Abin e,
n° 9.883/1999. Foi aprovado em 2016
também, pela qualificação e pelo apri- pelo presidente interino Michel Temer
moramento em Inteligência de servido- e publicado no Diário Oficial da União,
res de órgãos integrantes do Sisbin. em 29 de junho, por meio do Decreto
n° 8.793/2016.
Servindo como instrumento legislativo
complementar, o Decreto n° 4.376, Responsável pela definição dos parâ-
de 13 de setembro de 2002, dispõe metros e limites da Atividade de Inteli-
sobre a organização e o funcionamen- gência e seus executores, a PNI (2016)
to do Sisbin, composto por represen- estabelece seus pressupostos, instru-
tantes de diversos ministérios, sem mentos, diretrizes e objetivos no âmbito
vínculo de subordinação. Cabem aos do Sisbin. Como instrumento de gestão
integrantes do Sisbin, a produção de pública, a PNI (2016) busca estar em
conhecimentos, o planejamento e a perfeita sintonia com os preceitos da Polí-
execução de ações relativas à obtenção tica Externa Brasileira e com os interesses
e à integração de dados e informações, estratégicos definidos pelo Estado, como
o intercâmbio destas informações, bem aqueles consignados na PND e na END.
como o fornecimento de conhecimen-
tos de Inteligência à Abin, seu órgão Os recursos humanos são definidos
central. Uma das mais desafiadoras como um fator estratégico, sendo enfa-
atribuições do Sisbin é a identificação tizadas as ações de capacitação, forma-
ção e desenvolvimento de pessoal para
e a prevenção de ameaças internas e
a Atividade de Inteligência (PNI, 2016).
externas à ordem constitucional (BRA-
Portanto, há uma sintonia entre a PNI
SIL, 1999), função que demanda um
(2016) e a PEnsD no que tange à ca-
acompanhamento permanente de inú-
pacitação de recursos humanos para a
meras ameaças concretas e potenciais.
Atividade de Inteligência e aos benefícios
Para a execução desta tarefa, é essen-
que essa proporciona às capacidades de
cial que o Sistema disponha de profis- produção de conhecimentos estratégicos
sionais com altas capacidades analíti- úteis ao Estado e à Defesa Nacional.
cas, aptos a considerarem uma ampla
variedade de fatores multidisciplinares As capacidades analíticas proporciona-
para a produção de conhecimentos das pela capacitação no campo da Inte-
úteis ao assessoramento, nas suas es- ligência, voltadas ao assessoramento de
feras de atribuições. processos decisórios desenvolvidos pelo
2
Sobre a ESINT ver: www.abin.gov.br/atividadeinteligencia/escola-de-inteligencia/.
Acesso em 25/7/2016.

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Estado e ao acompanhamento perma- O Sinde foi idealizado para aperfeiçoar e


nente de circunstâncias de interesse es- integrar as Atividades de Inteligência já
tratégico, permitem o emprego de técni- conduzidas pelos Órgãos de Inteligência
cas capazes de produzir conhecimentos do MD e das FAs. Através dele, é rea-
estratégicos objetivos. lizado o assessoramento ao Ministro da
Defesa e ao Chefe do Estado-Maior Con-
A Inteligência de Defesa junto das Forças Armadas (CEMCFA),
respectivamente, os decisores estratégi-
Conduzida em caráter permanente mes-
co e operacional de mais alto nível no
mo em situação de paz, a Atividade de
âmbito da defesa.
Inteligência de Defesa (AID) é definida
como o conjunto de ações de Inteligência Na defesa, a Inteligência está presente
desenvolvidas “no interesse da Defesa, em todos os níveis de seus processos
englobando os ramos Inteligência e Con- decisórios. Seu emprego é essencial
tra-inteligência” (MD, 2002). Sua finali- para que todas as ações desenvolvidas
dade é o acompanhamento de situações no campo da defesa sejam conduzidas
e atores que possam vir a representar po- com base em conhecimentos confiáveis
tenciais ameaças ao Estado, permitindo o e oportunos (END, 2012).
alerta antecipado ante a possibilidade de
concretização de tais ameaças. O estudo da Defesa em instituições civis
no Brasil
Conduzida pelo MD através do Sinde,
a AID é responsável pela coleta e pela Desenvolvidos quase que exclusivamente
análise de informações de interesse es- em instituições de caráter militar até o
tratégico para a defesa, utilizados para final do século XX, os estudos de Defe-
o assessoramento a decisores políticos e sa só foram introduzidos em instituições
estratégicos. Instituído por meio da Por- civis do Brasil após a reformulação da es-
taria Normativa n° 295/2002 do MD, trutura da Defesa Nacional, no início da
o Sinde é a plataforma responsável pela década de 1990.
integração das ações de planejamento e
execução da AID, tendo como integran- A formulação da PND e da END foi
tes todos os órgãos de Inteligência do conduzida especialmente com a ideia
MD e das FAs, sistemicamente conecta- de que “a Defesa do país é inseparável
dos sem vínculos de subordinação. do seu desenvolvimento” e que “preser-
var a segurança requer medidas de lar-
A produção de conhecimento, principal go espectro”, envolvendo várias áreas e
objetivo da AID, é regulada por meio instituições nacionais, muitas das quais
da Doutrina de Inteligência de Defesa não implicam qualquer envolvimento
(DID), definida como: “o conjunto de das FAs (PND, 2012). Essa nova men-
conceitos, princípios, normas, métodos talidade criou uma demanda por pro-
e processos que orienta e disciplina a fissionais capacitados para atuação com
Atividade de Inteligência no âmbito do diferentes especialidades e perspectivas.
SINDE” (MD, 2002). Tal demanda impulsionou a criação dos

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A importância da Inteligência como objeto de estudo para o campo da Defesa no Brasil

cursos de graduação e pós-graduação maiores integração e participação dos


dedicados ao campo da defesa. Em abril setores civis e governamentais na discus-
de 2017, foi assinado e homologado o são de temas ligados à defesa. Embora
parecer do Conselho Nacional de Edu- idealizada inicialmente para a capacita-
cação/Câmara de Educação Superior nº ção de oficiais dos estamentos superio-
147/2017, que autoriza a inserção da res das três forças, a busca pelo estímu-
Defesa no rol das Ciências estudadas no lo intelectual multidisciplinar fez que, a
país (MEC, 2017). partir de 1951, a ESG recebesse tam-
bém a contribuição de civis de diversos
Neste tópico, serão apresentados os atu- segmentos profissionais.
ais cursos de graduação, pós-graduação
e Altos Estudos destinados à formação A criação do MD e o desejo pela cons-
de profissionais para o campo da defesa, trução de uma nova mentalidade de de-
com ênfase nos conduzidos por meio de fesa no Brasil levaram também à criação
IES de caráter civil. das primeiras graduações e pós-gradua-
ções dedicadas aos estudos estratégicos
Criada pela Lei n° 785/1949, publicada e de defesa no país.
em 20 de agosto de 1949, a Escola Su-
perior de Guerra (ESG)3 é um Instituto Conduzido por meio do Instituto de Estu-
de Altos Estudos de Política, Estratégia dos Estratégicos (INEST) da Universidade
e Defesa e tem como objetivo desen- Federal Fluminense (UFF), o Programa de
volver e consolidar os conhecimentos Pós-Graduação em Estudos Estratégicos
necessários ao exercício de funções de da Defesa e da Segurança (PPGEST) é o
direção e assessoramento superior para primeiro curso de uma IES de caráter civil
o planejamento da Defesa Nacional, nela a contemplar os estudos da defesa. Tendo
inclusos os aspectos desenvolvimentistas início a partir do Programa Pró-Defesa,
introduzidos pela PND (2012). Como foi autorizado em dezembro de 2007
principal centro de estudos dedicado aos pela Coordenação de Aperfeiçoamento
Altos Estudos da Defesa no país, a esco- de Pessoal de Nível Superior (Capes) do
la é responsável pela realização de cur- Ministério da Educação (MEC) e iniciou
sos, pesquisas, palestras, seminários e suas atividades em 2008.
outras atividades acadêmicas dedicadas
ao tema. É através da ESG que o MD A única outra IES no Brasil a se dedi-
realiza a maioria de suas ações e progra- car aos estudos estratégicos no nível de
mas para a promoção e a disseminação pós-graduação é a Universidade Federal
de pesquisas essenciais à formação de do Rio Grande do Sul (UFRGS), respon-
recursos humanos para a área da De- sável pelo Programa de Pós-Graduação
fesa. Hoje subordinada diretamente ao em Estudos Estratégicos Internacionais
gabinete do Ministro da Defesa, a ESG (PPGEEI), criado em 2010. No PPGEEI,
também atua como uma das principais são conduzidos os cursos de Mestrado e
plataformas para o ministério promover Doutorado em Estudos Estratégicos.
3
Informações detalhadas sobre a ESG podem ser obtidas na página da instituição na internet:
http://www.esg.br. Acesso: 7/9/2017.

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Instituído a partir do Programa de Apoio variedade de campos de conhecimento,


a Planos de Reestruturação e Expansão ajustando-se ao contexto essencialmente
de Universidades Federais (REUNI) em multidisciplinar introduzido pela PND,
2009, o Bacharelado em Defesa e Ges- e não são, portanto, percebidos como
tão Estratégica Internacional (DGEI) da área de interesse exclusivamente militar.
Universidade Federal do Rio de Janeiro Norteado por essa mentalidade, o Ba-
(UFRJ) foi o primeiro curso de graduação charelado em DGEI foi idealizado com
criado para a formação de profissionais o objetivo de:
civis para a área da defesa e ainda é o
“[…] preparar gestores e operadores
único. Idealizado como essencialmente com sólida formação em estudos estra-
multidisciplinar, o curso é atualmente mi- tégicos e defesa capazes de formular,
nistrado em diversos institutos do cam- coordenar e aplicar políticas e recursos,
pus da Cidade Universitária, tais como prospectar cenários, lidar com situações
de risco e de incerteza e executar ope-
o Centro de Letras e Artes, o Centro de rações diversas nos planos doméstico e
Ciências Matemáticas e da Natureza e o internacional.” (UFRJ, 2009).
Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa
em Administração (COPPEAD)4. A cooperação entre os acadêmicos da
defesa e as FAs na produção de conhe-
A graduação promove anualmente a Se- cimento se dá, especialmente, por meio
mana de Defesa e Gestão Estratégica de atividades promovidas por institui-
Internacional (SDGEI). O evento propor- ções de ensino e pesquisa do MD. Em
ciona uma plataforma para o aperfeiçoa- busca de conhecimentos mais específi-
mento das capacidades acadêmicas dos cos ao campo da defesa, muitos acadê-
alunos de DGEI, em que os graduandos micos frequentemente recorrem a essas
desfrutam de uma rara oportunidade de instituições. Esse relacionamento é ex-
apresentar estudos especificamente de- cepcionalmente produtivo por meio das
dicados à temática de defesa. Não limita- atividades conduzidas pelos centros de
da à participação de graduandos do cur- pesquisa de duas destas instituições: o
so, a SDGEI é também uma importante Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da
plataforma para a maior integração do ESG e o Centro de Estudos Políticos e
DGEI com outras instituições, cursos e a Estratégicos da Escola de Guerra Naval
sociedade em geral, importante também (EGN). Há ainda o Instituto Brasileiro
para a consolidação dos estudos estraté- de Estudos de Defesa Pandiá Calógeras
gicos como uma área de conhecimento (Ibed), centro de pesquisas que, como
essencialmente multidisciplinar. a ESG, é responsável por assessorar di-
retamente o MD, tendo como objetivos
A criação do DGEI foi um importante produzir análises, promover o diálogo e
marco para o aprimoramento das capaci- estimular a produção de conhecimentos
dades de defesa do país. Os estudos da acadêmicos sobre temas de interesse es-
defesa foram ampliados em direção a uma tratégico à Defesa Nacional.
4
O bacharelado de DGEI é a única graduação a desfrutar o privilégio de ter disciplinas minis-
tradas pelo COPPEAD, instituto de excelência no campo da administração, antes dedicado
exclusivamente à pós-graduação.

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A importância da Inteligência como objeto de estudo para o campo da Defesa no Brasil

O estudo da Atividade de Inteligência da esfera acadêmica e colaborando para


no campo dos estudos no Brasil a valorização da Inteligência como ativi-
dade essencial do Estado.
Como ferramenta voltada ao acompa-
nhamento de circunstâncias e atores Como argumenta Martins (2015), o
estratégicos aos interesses nacionais, a avanço de estudos e pesquisas dedica-
Inteligência desempenha um papel im- dos à Inteligência contribui não apenas
portante no assessoramento dos proces- para o aprendizado dos que a estu-
sos decisórios desenvolvidos pelo Esta- dam, mas também para o aperfeiçoa-
do, sobretudo no âmbito da defesa. mento das noções metodológicas da
própria Inteligência:
Embora definida pela END (2012) como
ferramenta pela qual os conhecimentos “As pesquisas, estudos e reflexões teó-
essenciais aos processos decisórios da rico-doutrinárias em Inteligência e te-
defesa são elaborados, a Inteligência é mas afins retroalimentam as atividades
de ensino, levando à incorporação de
pouco contemplada como um objeto de novas práticas, tecnologias, abordagens
estudo formal no campo dos estudos es- metodológicas e alterações doutrinárias”
tratégicos no Brasil. (MARTINS, 2015, p. 17).

A Atividade de Inteligência, como con- No campo da defesa, a capacitação de


junto de ações voltadas à produção de recursos humanos para a Inteligência
conhecimentos estratégicos capazes de permite o aperfeiçoamento de técnicas
assessorar na elaboração e na implemen- voltadas à produção de conhecimentos
tação de políticas públicas, bem como ao imparciais úteis ao assessoramento dos
acompanhamento de ameaças concretas processos decisórios em todos os níveis
ou potenciais ao Estado e à sociedade, da defesa. Ela é também uma ferramenta
possui um potencial considerável no essencial para o processo de avaliação de
aperfeiçoamento das capacidades analíti- riscos impostos por ameaças à defesa e
cas de acadêmicos da defesa. A chegada de possíveis vulnerabilidades nacionais.
desta nova geração de estudantes e fu-
turos profissionais do campo da defesa, A ESG foi a primeira instituição nacional
indivíduos com capacidades desenvolvi- a se dedicar ao estudo da Atividade de
das em ambientes com metodologias dis- Inteligência, buscando institucionalizar a
tintas de seus antecessores, está sendo formação de recursos humanos na área.
responsável por uma transformação nas Em 1996, foi instituído o Curso Superior
relações entre civis e militares. A inser- de Inteligência Estratégica (CSIE), refor-
ção da Inteligência como objeto de estu- mulado em 1999, com a criação do MD.
do nestes espaços, além de aperfeiçoar Conduzido ao longo de vinte semanas, o
as capacidades analíticas dos alunos e fa- CSIE permanece como um dos principais
miliarizá-los com as estruturas nacionais mecanismos para a capacitação de recur-
operantes no âmbito do Sisbin, poderia sos humanos para a Atividade de Inteli-
contribuir também com a disseminação gência, tendo formado 468 profissionais
da cultura de Inteligência, aproximando-a desde sua restauração (CSIE, 2016).

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 59


Arthur Macdowell Cardoso

Além do CSIE, a ESG também promove tratégicos no Brasil, a Inteligência nunca


outras atividades acadêmicas dedicadas foi contemplada como objeto de estudo
à Inteligência. Em 2014 e 2015, foi rea- por nenhuma de suas publicações7.
lizado o Seminário de Inteligência Estra-
tégica, evento que possibilitou uma ino- O Programa de Pós-Graduação em
vadora aproximação dos Altos Estudos Estudos Estratégicos Internacionais
de Inteligência Estratégica promovidos (PPGEEI/UFRGS) se destaca por ser o
pela ESG com acadêmicos. O seminá- único programa de pós-graduação de es-
rio abordou questões contemporâneas tudos estratégicos a possuir uma discipli-
relativas ao papel da Inteligência e seu na dedicada especificamente ao estudo
uso como ferramenta pelo Estado, pos- da Inteligência. Intitulada: “Inteligência
sibilitando aos acadêmicos presentes a governamental na guerra e na paz”, a
oportunidade de se familiarizarem com disciplina tem como objetivo:
o tema e as estruturas nacionais dedi- “discutir criticamente a literatura de inte-
cadas a estas atividades. Em 2016, o ligência governamental, introduzindo os
Laboratório de Segurança Internacional alunos aos fundamentos conceituais do
objeto, à história da atividade de inteli-
e Defesa Nacional (LABSDEN) do CEE gência desde o início do século XX, às
da ESG contemplou a Inteligência como relações entre a inteligência e a guerra
uma de suas linhas de pesquisa, propor- e, por fim, as relações entre a inteligên-
cionando uma rara oportunidade de ini- cia e a política internacional.” (UFRGS,
2017).
ciação científica no tema.
Sendo a Atividade de Inteligência essen-
Nos poucos cursos dedicados ao estu- cial para que o planejamento e a execu-
do da defesa nas IESs de caráter civil no ção de todas as ações conduzidas no
Brasil, a Inteligência permanece como âmbito da defesa desenvolvam-se com
uma temática pouco explorada. No ba- base em conhecimentos confiáveis e
charelado de Defesa e Gestão Estraté- oportunos (END, 2012, p.33), os aca-
gica Internacional (DGEI/UFRJ)5 e no dêmicos do campo da defesa precisam
Programa de Pós-Graduação em Estu- estar devidamente familiarizados com
dos Estratégicos da Defesa e da Segu- essa importante ferramenta do processo
rança (PPGEST/UFF)6, a Inteligência não decisório para o qual estão sendo inten-
é contemplada com uma disciplina pró- cionalmente preparados para participar.
pria. Na principal publicação acadêmica
do Inest a Revista Brasileira de Estudos Tanto o bacharelado de DGEI (UFRJ)
Estratégicos, um dos poucos periódicos quanto o PPGEST (UFF) têm como ob-
acadêmicos dedicados aos estudos es- jetivo a capacitação de profissionais para
5
A estrutura curricular de DGEI está disponível em: www.siga.ufrj.br/sira/repositorio-curriculo/
distribuicoes/E51458A0-92A4-F79C-018B-32800BF8936D.html. Acesso em: 5/9/2017.
6
A estrutura curricular do PPGEST pode ser encontrada em: www.ppgest.uff.br/index.php/
estrutura-curricular. Acesso em: 5/9/2017.
7
Todas as edições da Revista Brasileira de Estudos Estratégicos podem ser encontradas em:
www.inest.uff.br/index.php/rest/inicio . Acesso em: 6/9/2017.

60 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


A importância da Inteligência como objeto de estudo para o campo da Defesa no Brasil

o assessoramento de alto nível no campo de estudo. Tampouco foi a Inteligência


dos estudos estratégicos (UFRJ, 2009; contemplada como tema por sequer uma
INEST, 2017). Assim, é possível obser- das sessenta e nove dissertação de mes-
var uma sintonia entre a proposta peda- trado do PPGEST(UFF)8. No PPGEEI
gógica desses cursos e os objetivos da (UFRGS, 2017), único espaço a ofere-
Atividade de Inteligência, uma vez que cer uma disciplina estritamente dedicada
ambos compartilham o compromisso à Inteligência, também não há teses ou
com a produção de conhecimentos ne- dissertações que tenham contemplado a
cessários ao aprimoramento das capaci- Inteligência como tema9.
dades do Estado Brasileiro e à salvaguar-
Salvo as periódicas atividades desen-
da de sua sociedade. volvidas no âmbito da ESG, das quais
os acadêmicos eventualmente podem
Entretanto, o estudo da Atividade de
participar voluntariamente, são poucas
Inteligência vem sendo negligenciado
as oportunidades disponíveis aos alunos
nestes raros espaços dedicados ao es-
para se familiarizarem com a Atividade
tudo da defesa no Brasil, espaços cuja
de Inteligência. Uma das raras exce-
proposta é, justamente, a capacitação de
ções se deu durante a terceira edição da
civis para o assessoramento estratégico a SDGEI, em 2013, quando foi promovi-
questões de defesa. A ausência da Inte- do o painel: “A comunidade de Inteligên-
ligência como disciplina e a falta de um cia brasileira: Espionagem para quem?”,
docente especialista no tema dificulta o evento que contou com a presença de
desenvolvimento de artigos acadêmicos um Oficial de Inteligência da Abin como
que contemplem a Inteligência como palestrante convidado10.
tema e distancia os alunos de uma área
essencial para os processos decisórios da Para o aprimoramento das capacidades
Defesa Nacional. analíticas destes acadêmicos, seria ideal
que estes fossem preparados para o uso
Até o momento (2017), nenhuma mo- da Inteligência como ferramenta para o
nografia defendida para a obtenção do assessoramento de processos decisórios
diploma do bacharelado de DGEI (UFRJ) no campo da defesa. Por meio do estudo
contemplou a Inteligência como objeto da Inteligência, os graduandos poderiam
8
As dissertações defendidas para a obtenção do título de mestre no PPGEST (UFF) podem ser
encontradas em: ppgest.uff.br/index.php/dissertacoes-defendidas-ppgest. Acesso: 13/9/2017.
9
As teses e dissertações defendidas no PPGEEI (UFRGS) estão disponíveis em: https://www.
ufrgs.br/ppgeei/?page_id=272 , acesso: 10/9/2017.
10
A III SDGEI ocorreu de 11 a 14 de dezembro de 2013, no auditório do Centro Cultural Pro-
fessor Horácio de Macedo, localizado no Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza,
Cidade Universitária, Rio de Janeiro, contando com a presença de estudantes do curso de
DGEI, graduandos e pós-graduados dos cursos de Direito, Gestão Pública para o Desen-
volvimento Econômico e Social, História, Ciências Econômicas, Geografia, Letras, Ciências
Sociais, Ciências da Computação, Administração, Relações Internacionais, assim como de
ouvintes de UFRJ, UFF, UFRRJ, PUC Rio, UnB, UFPR, IBMEC, ISE La Salle, UERJ, UniRio,
USP, Colégio Pedro II, empresas, grupos e profissionais oriundos das Forças Armadas e das
Forças Auxiliares (SDGEI, 2013).

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 61


Arthur Macdowell Cardoso

aprender não apenas sobre a estrutura decisórios desenvolvidos pelo Estado


do Sisbin e suas atribuições, mas tam- para a elaboração e a implementação
bém técnicas para a produção de conhe- de políticas públicas, bem como para a
cimento em uma metodologia específica condução de todas as ações desenvolvi-
que busca a verdade, sem influências das no âmbito da defesa (END, 2012,
ideológicas ou outro viés. p. 33), a Atividade de Inteligência é
negligenciada como objeto de estudo
Porém, não sendo a Atividade de Inteli- nos poucos espaços dedicados à defesa
gência contemplada como um objeto de na esfera acadêmica civil. Salvo o pro-
estudo específico nesse campo acadêmi- grama de pós-graduação e o doutora-
co, os estudantes que não buscam tais do da UFRGS, nenhum outro curso de
conhecimentos individualmente desco- graduação ou pós-graduação dedicado
nhecem, como boa parte da sociedade à defesa possui disciplinas voltadas es-
brasileira, a natureza da Atividade de In- pecificamente à Inteligência. A produ-
teligência, sua estrutura institucional no ção acadêmica dedicada ao tema nestes
Brasil e seu papel no processo decisório espaços também é modesta.
de políticas e estratégias nacionais. Pri-
vados de estudos idealizados para aper- A inserção da Inteligência como objeto
feiçoar a produção de conhecimentos de estudo no campo da defesa permiti-
dedicados ao assessoramento em situa- ria aos discentes o aperfeiçoamento de
ções de tomada de decisão e gerencia- técnicas voltadas para a produção de co-
mento de crises, os graduandos acabam nhecimento em uma metodologia espe-
por permanecer leigos quanto à impor- cífica que busca ser isenta de viés e útil
tância da Inteligência para o Estado e a ao assessoramento estratégico. Também
sociedade brasileiros. proporcionaria a familiarização com as
estruturas nacionais dedicadas à Ativida-
Considerações finais de de Inteligência e o papel do Sisbin na
defesa dos interesses nacionais. Sobretu-
Apesar do considerável avanço da defesa do, sua inserção na academia colaboraria
em se fazer presente na esfera acadêmica para o aprimoramento da cultura nacio-
e incluir a sociedade civil e sua capacita- nal de Inteligência, proporcionando um
ção para o campo da defesa como ele- espaço onde o tema poderia ser debati-
mento fundamental das capacidades na- do e aprimorado, possibilitando também
cionais, objetivo estratégico reconhecido a aproximação da sociedade acadêmica
pela END (2012), à luz do paradigma de defesa com o tema e a valorização da
essencialmente multidisciplinar introdu- Inteligência como uma atividade essen-
zido pela PND (2012), a Inteligência cial para o Estado e à Defesa Nacional.
permanece pouco presente no campo
dos estudos da defesa no Brasil. A consolidação dos estudos da defesa
no contexto acadêmico foi um balizador
Embora seja uma atividade essencial para o avanço da produção de conhe-
para o assessoramento dos processos cimento neste campo. Orientados por

62 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


A importância da Inteligência como objeto de estudo para o campo da Defesa no Brasil

doutrinas de perspectivas abrangentes existente entre a Inteligência e a comu-


quanto à natureza da defesa e à sua nidade acadêmica no Brasil.
multidisciplinaridade, as graduações e
Conclui-se pela necessidade e pela im-
pós-graduações de estudos estratégi-
portância de atividades de estudo e pes-
cos se tornarão os principais núcleos
quisa voltadas ao tema da Inteligência no
para a capacitação de profissionais civis campo dos estudos estratégicos no Bra-
para o campo da defesa. Porém, a au- sil, reconhecido como objetivo específi-
sência da Inteligência como objeto de co pela PEnsD e como um instrumento
estudo nestes espaços poderá ter como essencial da Inteligência Nacional pela
consequência a preservação da distância PNI (2016).

Bibliografia
BRASIL. Lei nº 9.883, de 7 de dezembro de 1999. Brasília, DF, 1999.

CSIE. Curso Superior de Inteligência Estratégica (CSIE) – Resumo Histórico, Escola Superior de Guer-
ra, Ministério da Defesa, Brasília-DF, 2016. Disponível em: <esg.br/images/resumo_historico_cursos/
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END. Estratégia Nacional de Defesa. Ministério da Defesa, Brasília-DF, 2012.

INEST. Perfil do profissional. Instituto Nacional de Estudos Estratégicos, Universidade Federal Flumi-
nense, Niterói-RJ, 2017. Disponível em:<ppgest.uff.br/index.php/perfil-do-profissional-do-ppgest>.
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MARTINS, Erika F.S. O papel da Escola de Inteligência para o avanço dos estudos em Inteligência no
Brasil. Revista Brasileira de Inteligência, 10ª Edição, Brasília, 2015. Disponível em:<abin.gov.br/con-
teudo/uploads/2016/02/RBI-10.pdf>. Acesso em: 9/9/2017.

MEC. Parecer nº 147/2017. Conselho Nacional de Educação da Câmara de Educação Superior, Minis-
tério da Educação, 2017.

MD. Portaria Normativa nº 295/2002. Ministério da Defesa, Brasília-DF, 2002.

OLIVEIRA, Eliézer Rizzo. “Democracia e Defesa Nacional – A criação do Ministério da Defesa na Pre-
sidência de FHC”. Editora Manole Ltda., São Paulo– SP, 2005.
PND. Política Nacional de Defesa (PND). Ministério da Defesa, Brasília-DF, 2012.

PNI. Política Nacional de Inteligência (PNI). Decreto n° 8.793/2016, Brasília-DF, 2016.

SDGEI. III Semana de Defesa e Gestão Estratégica Internacional. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
2013. Disponível em: <semanadefesa.com.br/iiisdgei>. Acesso em: 9/9/2017.

UFRGS. EEI 18 (M/D) – Inteligência Governamental na Guerra e na Paz. Programa de Pós-Graduação


em Estudos Estratégicos Internacionais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2017. Disponível
em: <ufrgs.br/ppgeei/wp-content/uploads/2017/05/eei18.pdf>. Acesso em: 9/9/2017.

UFRJ. “Projeto Pedagógico do Curso de DGEI”. Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas /Centro de
Ciências Jurídicas e Econômicas, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), RJ, 2009.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 63


REFERENCIAIS BÁSICOS PARA A CAPACITAÇÃO DE PROFISSIONAIS
DE INTELIGÊNCIA DE SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL
Hélio Hiroshi Hamada*
Renato Pires Moreira**

Resumo
Existe uma lacuna nas ações formativas de profissionais que atuam na atividade de Inteligência
de Segurança Pública (ISP) no Brasil, que, por sua vez, está carente de referências que orien-
tem o desenvolvimento de matrizes curriculares de cursos de capacitação. Por se tratar de uma
atividade especializada, destinada à produção e salvaguarda de conhecimentos necessários à
tomada de decisão nos diversos níveis de assessoramento estatal, os profissionais que atuam
nessa área necessitam de uma capacitação específica que contenha uma base filosófica e dou-
trinária capaz de proporcionar suporte a seu trabalho diário. Posto isso, foram analisadas litera-
turas especializadas em ISP e documentos que tratam de educação profissional nas instituições
de segurança pública, o que gerou um resultado teórico-prático de referenciais básicos que
auxiliam nas propostas de currículos de cursos de capacitação. Nesse sentido, os referenciais
propostos partem das competências e missões das instituições de segurança pública, alinhados
com os temas tratados no âmbito da Doutrina Nacional de Inteligência de Segurança Pública e
suas conexões com os conhecimentos, habilidades e atitudes esperados dos profissionais de ISP.

Palavras-chave: Inteligência de segurança pública; Matriz Curricular Nacional; Segurança pú-


blica; Perfil profissiográfico; Mapeamento de competências.

Introdução

A atuação de profissionais de Inteli-


gência de Segurança Pública (ISP)
no Brasil surge como debate na medida
te executada pelas forças policiais nos
níveis federal, estadual e municipal1,
para subsidiar decisões estratégicas e
em que há a necessidade de se qualificar operacionais que orientem as políticas e
a atividade e seus produtos voltados para ações em suas respectivas áreas de atri-
o controle da criminalidade e da violên- buição e competência. Neste cenário, a
cia. A atividade de ISP é prioritariamen- capacitação de profissionais que atuam

* Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atuação como
chefe do Centro de Pesquisa e Pós-graduação da Polícia Militar de Minas Gerais.
** Analista de Inteligência. Especialista em Inteligência de Estado e Inteligência de Segurança
Pública. Especialista em Política e Estratégica e em Polícia Judiciária Militar. 2º Sargento da
Polícia Militar de Minas Gerais.
1
Em se tratando de atividade de Inteligência, as demais agências que compõem o Sistema
Brasileiro de Inteligência (Sisbin) também colaboram com o fluxo de informações, a exemplo
da Agência Brasileira de Inteligência, Exército, Marinha, Aeronáutica e Receita Federal, que
mantém acompanhamento de campos de interesse na área da segurança pública.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 65


Hélio Hiroshi Hamada - Renato Pires Moreira

nessa atividade é fundamental para atividade de ISP, de forma a auxiliar a


que haja padronização e efetividade dos elaboração de currículos de cursos de
esforços institucionais. capacitação nas instituições que lidam
com segurança pública.
O propósito do presente artigo é discutir
questões que permeiam a capacitação de Concepções sobre capacitação em Inteli-
profissionais que lidam com a análise de gência de Segurança Pública
informações, cujo emprego de técnicas
especializadas e ações próprias da ativi- O surgimento de sistemas de Inteligên-
dade de ISP têm a finalidade de produ- cia nas forças policiais não é um fenô-
meno recente. No entendimento de
ção de conhecimentos úteis e oportunos
Cepik (2003), está inserido na terceira
com vistas ao assessoramento do proces-
matriz histórica dos serviços de Inteli-
so decisório. Por certo, esse campo da
gência contemporâneos2, inicialmente
ISP se mostra carente de referências que
voltados para a manutenção da ordem
orientem o desenvolvimento de matrizes
interna, que remontam a atividades de-
curriculares de cursos de capacitação.
senvolvidas na Europa na primeira me-
Por cursos de capacitação, entende-se
tade do século XIX, principalmente em
os direcionados a policiais já formados,
decorrência de movimentos inspirados
designados para agências de Inteligência na Revolução Francesa e do desenvol-
e que necessitam de conhecimento mais vimento do movimento operário anar-
aprofundado e treinamento especializa- quista e socialista. Segundo o autor,
do para o exercício da função. atualmente, tais sistemas ainda cuidam
da segurança interna, porém com outros
Para a discussão do assunto em pauta,
focos, a exemplo de terrorismo, crimes
emerge a seguinte problemática: quais
graves e proliferação de armas.
são os referenciais básicos que devem
orientar os currículos voltados para a No Brasil, somente no ano 2000, por
capacitação de profissionais de ISP no meio do Decreto nº 3.695, foi criado o
Brasil? Nessa acepção, foi realizada uma Subsistema de Inteligência de Seguran-
pesquisa de natureza exploratória base- ça Pública (Sisp) no âmbito do Sistema
ada em levantamento bibliográfico espe- Brasileiro de Inteligência (Sisbin). O Sisp
cializado no assunto e pesquisas em sites é composto pelas instituições que atuam
das diversas instituições de segurança pú- na segurança pública e tem por finalida-
blica do país, com o intuito de encontrar des coordenar e integrar as atividades de
respostas ao questionamento em pauta. ISP no Brasil e suprir os governos federal
e estaduais de informações que subsi-
Dessa forma, este artigo se desenvol- diem a tomada de decisão neste campo.
ve numa perspectiva teórico-prática
para orientar ações formativas que Notadamente, para a execução da ISP,
envolvam profissionais que atuam na é necessário que haja um corpo per-
2
Segundo Cepik (2003), a primeira matriz refere-se à Inteligência externa, voltada para as
atividades de diplomacia, a segunda à Inteligência de defesa, voltada para a busca de infor-
mações de guerra, e a terceira à Inteligência de segurança, com foco em policiamento.

66 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Referenciais básicos para a capacitação
de profissionais de Inteligência de segurança pública no Brasil

manente e dedicado de integrantes nas tação dos recursos humanos. Telemberg


agências de Inteligência das instituições (2015, p. 108), afirma que “a formação
de segurança pública. Gonçalves (2016, na área de Inteligência segue a (sic) nor-
pp. 48-49) destaca que são objetivos mas e padrões flexíveis e diferenciados,
da ISP “identificar, acompanhar e avaliar de acordo com sua finalidade e carac-
ameaças reais ou potenciais de seguran- terística”. Assim, os recursos humanos
ça pública e produzir conhecimentos e a serem empregados devem receber o
informações que subsidiem ações para treinamento específico de acordo com
neutralizar, coibir e reprimir atos crimi- cada segmento (Inteligência e Contrain-
nosos de qualquer natureza”. Para atin-
teligência) e a busca de conhecimento
gir tais objetivos, os profissionais de ISP
protegido ou negado (Operações de In-
precisam lidar rotineiramente com recur-
teligência), com o foco nos objetivos da
sos especializados, o que exige um pre-
paro para a função desempenhada. Nesse atividade de ISP.
ponto, o foco recai sobre os recursos hu-
Do ponto de vista do tipo de formação,
manos, cujas instituições devem incenti-
Telemberg (2015, pp. 111-112) apresen-
var cursos de formação e aperfeiçoamen-
ta um esquema de formação continuada
to com o objetivo de capacitá-los para o
desempenho de suas atribuições dentro para analistas e agentes de Inteligência
de critérios de eficiência e eficácia. que pode ajudar na formulação de cur-
rículos para capacitação de recursos hu-
As especificidades da atividade de ISP fa- manos a serem empregadas na atividade
zem que haja uma atenção para a capaci- de ISP, conforme se vê no QUADRO 1:
QUADRO 1: Conhecimentos necessários para a formação continuada de profissionais de Inteligência.

Nível de formação Analista de Inteligência Agente de Operações

Conhecimentos especializados compatí- Domínio de técnicas especializadas, méto-


veis com o setor de atuação, aliado a dos e doutrina.
Básica algum treinamento quanto a técnicas,
métodos e doutrina.

Ênfase na especialização, algum conhe- Ênfase em técnicas, métodos, procedi-


cimento interdisciplinar aliado a um sólido mentos e doutrina, que visam, em especial,
Intermediária treinamento quanto a doutrina, técnicas e ao planejamento, aliado a algum conteúdo
métodos de procedimento. para adequar o profissional às coberturas
mais comuns.

Ênfase nos conhecimentos político-sociais, Ênfase no treinamento individual capaz de


visão interdisciplinar, sólidos conhecimen- adequar o profissional à estória-cobertura
tos de doutrina, técnicas e métodos para a específica, aliado ao treinamento sobre o
Avançada produção de documentos mais livres com planejamento de operações, cujos técni-
vistas a valorizar a visão prospectiva. cas, métodos e procedimentos já seriam do
domínio do operador.

FONTE: Adaptado de Telemberg (2015, p. 103).

A partir da formação continuada pro- Discussões contemporâneas acerca da


posta por Telemberg (2015), infere-se construção de matrizes curriculares
a necessidade de se ter parâmetros em
matrizes curriculares para atender as de- Em se tratando de capacitação de recur-
mandas dos três níveis de formação dos sos humanos, há de se reportar, neces-
profissionais de ISP. sariamente, às matrizes curriculares de

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 67


Hélio Hiroshi Hamada - Renato Pires Moreira

cursos para que elas atendam aos objeti- Sacristán (2000) considera que o currí-
vos da profissionalização, no caso, de in- culo é o cruzamento de práticas diversas
tegrantes das instituições que compõem e que decorre de uma construção social
o Sisp para o exercício da atividade de que leva a contextos concretos que vão
ISP. Neste escopo, abre-se uma discus- dando forma e conteúdo, sendo conver-
são para a questão do currículo, a partir tido ou modelado de maneira particular
de suas convergências e divergências do na prática pedagógica. Assim, o autor
ponto de vista educacional. descreve que o currículo é produzido
sob contextos que se sobrepõem e se in-
Conforme Pacheco (1996), existe uma tegram uns aos outros, dando significa-
dificuldade quando se procura definir do a experiências obtidas por quem delas
o currículo em razão de sua própria
participa. Desta forma, o currículo passa
natureza e dimensão. Assim, o autor
a ser o cruzamento de práticas diferentes
situa a divergência em seu aspecto
que convergem no que se pode denomi-
conceitual em duas definições que se
nar de prática pedagógica que se encon-
contrapõem, sendo uma formal, com
tra ancorada em contextos diversos.
um plano previamente definido a partir
de seus fins e finalidades, e outra infor- Nesta perspectiva, parte-se para o for-
mal, como um processo decorrente de mato do currículo, que adquire uma for-
sua própria aplicação. ma singular, mas que não se traduz em
mera seleção de conteúdos justapostos
Na perspectiva formal, o currículo apre-
senta-se como o conjunto de conteúdos ou desordenados e sem critério. Como
a serem ensinados e que se encontram relata Sacristán (2000), o currículo deve
organizados por disciplinas, temas e áre- ser organizado sob uma forma que seja
as de estudo. Na perspectiva informal, apropriada ao nível educativo, derivando-
as definições são caracterizadas por um -se de importantes repercussões da práti-
conjunto de experiências educativas que ca. Assim, os objetivos e conteúdos de-
compõem um sistema dinâmico, proba- vem estar agrupados sob um esquema de
bilístico e complexo, sem uma estrutura organização que componha um mosaico
predeterminada (PACHECO, 1996). cujas peças se integrem e relacionem-
-se umas com as outras de forma aberta.
Nesta discussão, os problemas curricu- Esta organização de conteúdos faz com
lares não passam somente pela solução que o currículo adquira sentido em sua
teórica, mas também pela prática, pois forma prática, alcançando efeitos em seu
o currículo possui fatores e variáveis aspecto educativo e no contexto social a
que decorrem do discurso prático, re- que o indivíduo se encontra inserido.
forçando a concepção como processo e
não como produto. Mesmo assim, como A perspectiva formal do currículo adqui-
explica Doll Junior (1997), a mudança re importância na medida em que contri-
de ênfase para a discussão do currículo bui para apresentar os mecanismos para
com foco na prática não exclui a dimen- a organização de conteúdos. Zabala
são teórica, mas desenvolve a teoria a (1998) trata da organização dos conte-
partir da prática. údos como unidades de intervenção que

68 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Referenciais básicos para a capacitação
de profissionais de Inteligência de segurança pública no Brasil

se vinculam e definem a prática da aula, comporão tais currículos, são aponta-


não se reduzindo ao trabalho de um úni- dos, a seguir, os referenciais básicos
co conteúdo, geralmente configurados para que esses conteúdos possam ser
em unidades, que, por sua vez, obede- elaborados de acordo com as especifici-
cem a critérios de seleção e tipo de re- dades da atividade de ISP.
lações entre eles, articulando-se em tor-
no de temas, perguntas, tópicos, lições, Competências e missões das instituições
entre outros. O entendimento é de que, de segurança pública
quanto mais relacionados entre si estejam
As instituições de segurança pública pos-
os conteúdos, maior será a potencialida-
suem competências específicas definidas
de de uso e compreensão deles. Nesse
na Constituição Federal de 1988, cujo
sentido, o autor destaca que os conteú-
artigo 144 determina que o exercício da
dos devem ser trabalhados conforme os
preservação da ordem pública e da in-
“centros de interesse”, de modo a auxi-
columidade das pessoas e do patrimônio
liar na organização de unidades didáticas
é realizado por meio de polícia federal,
que são relevantes para a compreensão
polícia rodoviária federal, polícia ferrovi-
de realidades em seus diferentes graus
ária federal, polícias civis, polícias milita-
de relação: multidisciplinares, interdisci-
res e corpos de bombeiros militares.
plinares e transdisciplinares3.
Na esfera federal, a polícia federal, a po-
A última expressão do valor do currículo
lícia rodoviária federal e a polícia ferrovi-
dá-se quando ele é colocado em práti-
ária federal possuem papéis específicos
ca, na qual toda a intenção realiza-se e
descritos no mesmo dispositivo legal.
adquire significados definitivos para alu-
Assim, à polícia federal cabe apurar in-
nos e professores. Segundo Sacristán
frações penais contra a ordem política e
(2000), o currículo é a ponte entre teo-
social ou em detrimento de bens, servi-
ria e ação, entre intenções ou projetos e
ços e interesses da União ou de suas en-
realidade. Desta forma, não há contradi-
tidades autárquicas e empresas públicas,
ção entre o currículo formal e o informal,
assim como outras infrações cuja prática
mas, sim, uma complementaridade em
tenha repercussão interestadual ou in-
que cada um contribui para o equilíbrio
ternacional e exija repressão uniforme,
entre teoria e prática.
segundo se dispuser em lei; prevenir e
Uma vez apresentadas as particulari- reprimir o tráfico ilícito de entorpecen-
dades da construção de currículos do tes e drogas afins, o contrabando e o
ponto de vista educacional, parte-se descaminho, sem prejuízo da ação fa-
para a discussão em relação à capaci- zendária e de outros órgãos públicos nas
tação dos profissionais de ISP. Assim, respectivas áreas de competência; exer-
para se atingir as áreas temáticas que cer as funções de polícia marítima, aérea

3
A multidisciplinaridade é a disposição de conteúdos independentes uns dos outros, em uma
organização somativa. A interdisciplinaridade é a interação entre duas ou mais disciplinas.
A transdisciplinaridade é o grau máximo de relações entre disciplinas que supõe integração
global em um sistema (ZABALA, 1998).

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 69


Hélio Hiroshi Hamada - Renato Pires Moreira

e de fronteiras; e exercer, com exclusivi- nos municípios da região sudeste. Toda-


dade, as funções de polícia judiciária da via, em quase todos os municípios com
União. O patrulhamento ostensivo nas mais de 500.000 habitantes, há uma
rodovias federais cabe à Polícia Rodo- guarda municipal em funcionamento, o
viária Federal e nas ferrovias federais, à que denota a demanda por esse serviço
Polícia Ferroviária Federal. nos grandes centros urbanos.

Na esfera estadual, as polícias civis, po- Além de conhecer as competências le-


lícias militares e corpos de bombeiros gais das instituições que cuidam da segu-
militares cumprem o papel estabelecido rança pública, é importante saber como
no caput do artigo 144. Às polícias ci- estas se encontram alinhadas estrate-
vis foram incumbidas as funções de po- gicamente, e o que pode ser analisado
lícia judiciária e a apuração de infrações através das missões constantes nos pla-
penais, exceto as militares. Às polícias nos estratégicos. A missão, conforme o
militares cabem a polícia ostensiva e a pensamento estratégico, consiste na de-
preservação da ordem pública, e aos claração sobre o que a organização quer,
corpos de bombeiros militares, além das num propósito fundamental, definindo a
atribuições definidas em lei, incumbe à finalidade de sua existência. Desta forma,
execução de atividades de defesa civil. foram realizados levantamentos em sites
institucionais da polícia federal, da polí-
Ainda, a Carta Magna estipulou a pos- cia rodoviária federal, das polícias milita-
sibilidade de formação de guardas mu- res e civis dos Estados e Distrito Federal5
nicipais nos municípios, as quais ficam e de algumas guardas municipais6 acerca
destinadas à proteção de seus bens, ser- do registro da missão num planejamen-
viços e instalações públicas. Apesar de to estratégico. Neste universo, foram
previsto desde a promulgação da Cons- coletados dados de 30 instituições de
tituição Federal, a grande maioria dos segurança pública atuantes no país que
municípios brasileiros ainda não possui dispunham das informações requeridas.
estrutura para o funcionamento de uma
guarda municipal. Segundo o levanta- Após a coleta de dados junto às institui-
mento do Instituto Brasileiro de Geo- ções de segurança pública, foi realizada
grafia e Estatística (IBGE), realizado em uma análise bibliométrica com o propó-
20124, do total de 5.565 municípios no sito de identificar os assuntos mais re-
país, somente 993 possuem o serviço, levantes por meio da medição de fluxos
totalizando um efetivo total de 96.147 de informação, resultando numa nuvem
integrantes, do qual pouco mais da me- de palavras. Uma nuvem de palavras, se-
tade (49.280) encontra-se concentrado gundo Lunardi, Castro e Monat (2008),
4
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Perfil dos Municípios Brasileiros 2012.
5
Dos 27 entes federados, 13 polícias militares e 12 polícias civis possuíam disponíveis nos
sites institucionais a respectiva missão estratégica.
6
Foram encontrados registros da missão estratégica nas guardas municipais de Florianópolis/
SC, Pelotas/RS e São Gonçalo/RJ.

70 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Referenciais básicos para a capacitação
de profissionais de Inteligência de segurança pública no Brasil

é composta de textos que proporcionam Considerações da Doutrina Nacional de


uma compreensão rápida de um conteú- Inteligência de Segurança Pública
do a partir de palavras mais frequentes.
A Doutrina Nacional de Inteligência de
De acordo com esses autores, os dados
Segurança Pública (DNISP) foi proposta
que estão na nuvem de palavras nada
pela Secretaria Nacional de Segurança
mais são que uma lista de palavras que
Pública (Senasp), em sua primeira ver-
está relacionada ao número de vezes que
são, no ano de 2007. Com a evolução
elas aparecem. A importância de deter-
das questões de segurança pública e da
minada palavra em relação à sua semân-
própria ISP, a DNISP, depois de seguidas
tica, ao contexto e a dimensões adicio-
revisões, chegou a 4ª edição em 20 de
nais de significados são possibilidades de
janeiro de 2016, data em que foi publi-
interpretação da nuvem de palavras.
cada no Diário Oficial da União (DOU).
Nesse sentido, a partir da nuvem de pa-
Na esfera educacional, a DNISP é fun-
lavras formada com os dados coletados
damental para orientar a construção de
da missão estratégica das instituições de
uma matriz curricular para a área, haja
segurança pública, observa-se que há
vista conter, no bojo do citado ordena-
uma essência no contexto legal e social
mento doutrinário, além dos conceitos
cujos focos são a paz, o bem-estar da
básicos necessários à ISP, os fundamen-
sociedade e o fomento ao respeito aos
Nível de formação Analista de Inteligência Agente de Operações tos doutrinários à produção do conhe-
direitos humanos e à garantia da prote-
cimento, as operações de ISP, os ramos
çãoConhecimentos
da pessoa especializados compatí- Domínio de técnicas especializadas, méto-
pela polícia ostensiva e
Básica
veis com o setor de atuação, aliado a dos e doutrina. Inteligência e Contrainteligência, bem
judiciária. A eficiência
algum treinamento quanto a técnicas, dos serviços das como a organização das agências de In-
métodos e doutrina.
instituições policiais apresenta-se com teligência e a articulação dessas perante
Ênfase na especialização, algum conhe- Ênfase em técnicas, métodos, procedi-
ênfase
cimento na excelência.
interdisciplinar A mentos e doutrina, que visam,
aliado a um sólido preocupação, em especial, o Sisp. Destarte, o objetivo da DNISP
Intermediárianotadamente,
treinamento quanto a volta-se
doutrina, técnicas para o ambiente
e ao planejamento, aliado a algum conteúdo
métodos de procedimento. consiste na busca de uma padronização
para adequar o profissional às coberturas
criminal, demonstrando, mais comuns. por vezes, a de procedimentos da ISP para as insti-
parceria entre os político-sociais,
Ênfase nos conhecimentos outros órgãos estatais
Ênfase no treinamento individual capaz de
tuições de segurança pública pertencen-
e a visão interdisciplinar, sólidos conhecimen- adequar o profissional à estória-cobertura
comunidade como estratégias para a
tos de doutrina, técnicas e métodos para a específica, aliado ao treinamento sobre teso ao Sisp, com vistas a disponibilizar
Avançada
resolução
produção de de problemas.
documentos mais livres com planejamento de operações, cujos técni-
aos profissionais de Inteligência os fun-
vistas a valorizar a visão prospectiva. cas, métodos e procedimentos já seriam do
FIGURA 1: Nuvem de palavras domínio do operador.
mais frequentes damentos necessários para o enfrenta-
nas missões estratégicas das Instituições de Segu-
rança Pública no Brasil.
mento preventivo da criminalidade.

Feitoza (2012, p. 89) relata que a


DNISP não é um conjunto de normas em
sentido estrito, mas um modelo que cada
instituição de segurança pública pode ou
não seguir. Mas, uma vez aceita, deve
ser imperativa nos respectivos âmbitos
organizacionais. Isso leva a crer na ne-
cessidade de se disseminar a DNISP aos
profissionais de Inteligência de seguran-
Fonte: Dados dos autores (2017). ça pública das instituições.

Revista Brasileira
Aspectos conceituais deprocedimentais
Aspectos Inteligência. Brasília: Abin,
Aspectos n. 12, dezembro 2017
atitudinais 71
Compartilhamento e
Histórico da atividade de
Atividades de Inteligência compartimentação
Hélio Hiroshi Hamada - Renato Pires Moreira

Nessa perspectiva, por constituir um comunidade, colaboração e integração


conjunto de conceitos, características, das ações de justiça e segurança, me-
princípios, valores, normas, métodos, diação de conflitos, administração do
procedimentos, ações e técnicas nor- uso da força e gerenciamento de crises.
teadoras de ISP, atreladas à capacida- Ainda, ações que permitam lidar com a
de de padronização para a atuação das complexidade, o risco e a incerteza e,
agências que integram o Sisp, torna-se por fim, a utilização de metodologias
necessário que esta doutrina seja discu- que possibilitem identificar problemas,
tida em cursos iniciais para os profissio- buscar, implementar e avaliar soluções.
nais de segurança pública. Isso facilitará
que a atividade seja desmistificada e, Para a MCN (BRASIL, 2014, p. 41), os
consequentemente, seja viável uma ca- eixos articuladores “estruturam o con-
pacitação mais consistente e necessária junto dos conteúdos de caráter trans-
aos profissionais de Inteligência de se- versal definidos por sua pertinência nas
gurança pública para atuarem em prol discussões sobre segurança pública e
da sociedade ordeira. por envolverem problemáticas sociais de
abrangência nacional”. E tais eixos “de-
Ainda sobre a DNISP, vale esclarecer que
vem permear as diferentes disciplinas,
a “qualificação do profissional de ISP de-
seus objetivos, conteúdos, bem como as
verá ser realizada por meio de específicos
orientações didático-pedagógicas”.
e sistemáticos programas de formação,
de especialização, de aperfeiçoamento Os eixos articuladores que compõem a
continuado e treinamento permanente”
Matriz são:
(BRASIL, 2009).
a) sujeito e interações no contexto da
Eixos articuladores da Matriz Curricular segurança pública;
Nacional para ações formativas dos pro-
fissionais da área de segurança pública b) sociedade, poder, estado e espaço
público e segurança pública;
As ações formativas dos profissionais
da área de segurança pública no Brasil c) ética, cidadania, direitos humanos e
são orientadas pela Matriz Curricular segurança pública;
Nacional (MCN) (BRASIL, 2014) com d) diversidade étnico-sociocultural, con-
seus eixos articuladores e áreas temáti- flitos e segurança pública.
cas executados pela Senasp. Trata-se de
um documento cuja abrangência faz-se A MCN foi produzida por meio de um
em nível nacional e que recomenda que estudo profissiográfico e do mapeamen-
os currículos das ações de treinamento to de competência realizado sob coor-
contemplem, entre outros, as diferentes denação da Senasp e com viés no perfil
formas de violência e criminalidade, a dos cargos das instituições estaduais de
organização do Estado Moderno, papéis segurança pública. Nesse sentido, o ob-
das instituições de segurança pública, as jetivo da MCN é orientar, por meio de
metodologias orientadas e focadas na um referencial teórico-metodológico,

72 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Referenciais básicos para a capacitação
de profissionais de Inteligência de segurança pública no Brasil

as ações formativas dos profissionais de A disciplina Inteligência de Segurança Pú-


segurança pública em qualquer nível ou blica demanda, como competência asso-
modalidade de ensino. As competências ciada, o conhecimento dos fundamentos
são as cognitivas (requerem o desenvol- das Atividades de Inteligência, cujo obje-
vimento do pensamento por meio da in- tivo é criar condições para que os profis-
vestigação e da organização do conheci- sionais de segurança pública possam:
mento), as atitudinais (visam
Nível de formação
a estimular
Analista de Inteligência
Ampliar Agente
conhecimentos para: conhecer
de Operações
a percepção da realidade, por meio do os conceitos da atividade de inteligência
Conhecimentos especializados compatí- de Domínio de técnicas especializadas, méto-
segurança pública, as redes e os res-
conhecimento
Básica e do algum
desenvolvimento
veis com o setor de das
atuação, aliado a dos e doutrina.
treinamento quanto a técnicas, pectivos sistemas de inteligência. Desen-
potencialidades individuais) e as opera-
métodos e doutrina. volver e exercitar habilidades para: utilizar
tivas (preveem a aplicação
Ênfase na do conheci-
especialização, algum conhe- técnicas
Ênfase de
eminteligência de segurança
técnicas, métodos, pú-
procedi-
cimento interdisciplinar aliado a um sólido mentos e doutrina, que visam, em especial,
blica; produzir conhecimentos necessá-
mento teórico em treinamento
Intermediária prática responsável,
quanto a doutrina, técnicas e ao planejamento, aliado a algum conteúdo
métodos de procedimento. rios à tomada
para adequar de decisões. Fortalecer
o profissional ati-
às coberturas
refletida e consciente). mais comuns.
tudes para: proteger redes e sistemas de
Ênfase nos conhecimentos político-sociais, inteligência; reconhecerindividual
Ênfase no treinamento a importância de
capaz de
visão interdisciplinar, sólidos conhecimen- adequar o profissional à estória-cobertura
A ISPAvançada
apresenta-se, nesse contexto da um comportamento devidamente regrado
tos de doutrina, técnicas e métodos para a específica, aliado ao treinamento sobre o
produção de documentos mais livres com por princípios,de características
planejamento e valores
operações, cujos técni-
MCN, como disciplina da área “comu-
vistas a valorizar a visão prospectiva. cas, métodos e procedimentos já seriam do
éticos da atividade
domínio do operador.
de inteligência de se-
nicação, informação e tecnologias em gurança pública (BRASIL, 2014, p. 173).
segurança pública” e tem a seguinte te-
Para isto, de acordo com a MCN, o mapa
mática: atividades, operações e análise
de competências da disciplina deve obe-
de Inteligência (BRASIL, 2014). Nes- decer aos critérios de aspectos conceitu-
se sentido, ressalta-se a importância da ais, procedimentais e atitudinais, que de-
inclusão, nos currículos das instituições verão ser observados e planejados para
de segurança pública, da disciplina em cada discente que terá como repositório
questão, dada sua capacidade de levar, os conteúdos contidos na disciplina de
ao discente, conhecimentos oportunos ISP. O QUADRO 2 apresenta uma visão
sobre tal temática. dessas competências.
QUADRO 2: Aspectos conceituais, procedimentais e atitudinais da disciplina Inteligência de Segurança
Pública delineada na Matriz Curricular Nacional.
Aspectos conceituais Aspectos procedimentais Aspectos atitudinais
Compartilhamento e
Histórico da atividade de
Atividades de Inteligência compartimentação
Inteligência
responsáveis da informação
Sistema Brasileiro de Objetividade e capacidade
Produção do conhecimento
Inteligência (SISBIN) intelectual e analítica
Preservar informações e ter
Doutrina Nacional de
ciência das consequências do
Inteligência de Segurança Proteção do conhecimento
destino indevido destas
Pública (DNISP)
informações
Segurança orgânica,
Fundamentos jurídicos da
segurança de assuntos Sigilo
atividade de inteligência
internos e segurança ativa
Operações de Inteligência de
- -
segurança pública
Manejo seguro de informações;
- destinação e manejo de -
documentação sigilosa
FONTE: Matriz Curricular Nacional (BRASIL, 2014).

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 73


Hélio Hiroshi Hamada - Renato Pires Moreira

A partir das competências demonstradas Para que a formação em ISP obedeça ao


acima, verifica-se que o conteúdo pro- critério sugerido por Telemberg (2015)
gramático aborda os principais temas – o desenvolvimento gradual nos níveis
relacionados à atividade de Inteligência, básico, intermediário e avançado – é
no sentido estrito: os ramos Inteligência necessário delinear o perfil e mapear as
e Contrainteligência, as operações de competências necessárias para o desen-
Inteligência, os fundamentos jurídicos, volvimento da atividade de ISP. Para isto,
arcabouço histórico, o Sisbin e a DNISP. é necessário analisar-se os conhecimen-
tos, habilidades e atitudes que possuem
Perfil profissiográfico para o exercício da esses profissionais de ISP.
atividade de Inteligência de Segurança
Pública Alcântara (2008) afirma que o analista de
Inteligência deverá possuir conhecimen-
O perfil profissiográfico tem por finali- tos sobre contexto sociocultural local,
dade auxiliar na determinação de carac- regional e global, cultura profissional,
terísticas desejáveis em um profissional, ética profissional, informática, missão da
suas habilidades cognitivas, técnicas Atividade de Inteligência e produção do
e comportamentais. Para isto, podem conhecimento. Como habilidade, deve
serem dimensionados conhecimentos, possuir capacidade de análise e síntese,
responsabilidades, experiências, habili- disponibilidade para lidar com situações
dades, aptidões e atitudes do indivíduo imprevistas, gerenciamento de dados, ra-
que o qualifiquem para o desempenho ciocínio crítico, resolução de problemas,
de uma função. trabalho em equipe e visão prospectiva.
Como atitudes, Alcântara (2008) des-
Por se tratar de uma atividade especiali- taca comprometimento, confiabilidade,
zada, a Inteligência de Segurança Pública sinceridade, discrição, respeito às nor-
requer de seus profissionais característi- mas e às leis e responsabilidade.
cas capazes de atender a atividade de as-
sessorar os tomadores de decisões com Alcântara (2008) sugere um perfil consi-
conhecimentos de Inteligência. Para exe- derado como desejável ao agente de In-
cutar essa atividade, esses profissionais teligência. Deve possuir conhecimentos
podem atuar no campo da produção de de manuseio de armamento e equipa-
conhecimento e/ou na condição de bus- mentos, noções de cultura profissional,
ca do dado negado quando da realização defesa pessoal e uso de força, noções
de operações de Inteligência. de geografia urbana, gerenciamento de
crises, missão e técnicas operacionais da
Primeiramente, percebe-se a necessida- atividade de Inteligência. Como habilida-
de de que esses profissionais possuam des, deve ter a capacidade de empregar
formações específicas. Telemberg (2015) técnicas de análise, síntese, observação,
estabelece requisitos para a formação memorização, descrição, trabalho em
profissional de Inteligência destinado à equipe e saber empregar corretamente
produção de conhecimentos e para área essas técnicas nas atividades de Inteli-
de operações de Inteligência. gência. Quanto a atitudes, deve sempre

74 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Referenciais básicos para a capacitação
de profissionais de Inteligência de segurança pública no Brasil

agir com discrição, tranquilidade, pru- currículos, de forma a abranger as com-


dência, firmeza e compromisso com o petências das instituições e o perfil do
alcance de metas e resultados propos- profissional de ISP, num contexto doutri-
tos, buscando atuar com respeito às nário e específico da atividade.
normas e às leis.
Nessa concepção, os referenciais que
Conclusão formam a base para a construção de
currículos para cursos de capacitação
A capacitação de recursos humanos que de profissionais de ISP devem levar em
compõem as agências de Inteligência consideração, primeiramente, as com-
das instituições de segurança pública é petências e missões das instituições de
fator essencial ao êxito no cumprimen- segurança pública, pois constituem a ati-
to das missões a elas atribuídas, com a vidade-fim das organizações. A DNISP,
finalidade de garantir a ordem pública. por sua vez, aponta para a padronização
Essas agências, como integrantes do de conceitos e técnicas especializadas
Sisp, formam uma rede cujas instituições utilizadas na atividade de ISP. Já a MCN,
possuem características em comum, tais elaborada pela Senasp, tem a pretensão
como, discutir ações formativas que de ser um referencial teórico-metodoló-
promovam o aprimoramento de cursos gico, que considera o ensino por com-
de capacitação de profissionais de ISP. petências como foco da formação de
Notadamente, com a discussão da ca- profissionais que atuam na segurança pú-
pacitação profissional no campo da ISP, blica. Por último, o perfil profissiográfico
pretende-se alcançar uma eficiência das dos profissionais de ISP como referencial
instituições de segurança pública, com demonstra as áreas de conhecimento e
o enfoque na solução de problemas que as habilidades que a capacitação deve
envolvam o ambiente criminal. atingir com prioridade.

Diante do contexto da educação profis- Assim, como proposta de discussão


sional, a construção de um currículo que de referenciais para a capacitação de
tenha experiências que convirjam para profissionais de ISP, o presente artigo
práticas pedagógicas direcionadas a con- buscou reunir os aspectos básicos que
teúdos que tenham “centros de interes- permeiam a construção de um currículo
se”, auxilia na organização didática para que atenda às necessidades das institui-
compreensão das realidades no campo ções atuantes na segurança pública, no
da ISP. Dessa forma, o presente artigo sentido de valorizar e qualificar a forma-
apresenta os referenciais básicos que ção profissional dos recursos humanos
possam direcionar a construção desses que compõem o Sisp.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 75


Hélio Hiroshi Hamada - Renato Pires Moreira

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76 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


A MODERNIZAÇÃO DA INTELIGÊNCIA ESTRATÉGICA
NA PERSPECTIVA DA SEGURANÇA HUMANA
Danilo Coelho*

Resumo
Este artigo objetiva analisar a modernização da Inteligência, sob a mudança do paradigma da
segurança nacional para o da segurança humana, e alguns obstáculos a esta modernização.
São discutidos quatro elementos da modernização (paradigma de segurança, corpo doutriná-
rio, técnicas de análise e controle externo) e, como resultado, é apresentado o novo conceito
da “transecuritização da Inteligência de Estado”, que sistematiza o processo estruturante em
curso. Conclui-se que a modernização transecuritizada é fundamental para atender às múltiplas
ameaças, na perspectiva da segurança humana, contra a sociedade brasileira e, por conseguin-
te, para aumentar a eficiência do Sistema Brasileiro de Inteligência.

Palavras-Chave: Segurança humana; Inteligência Estratégica; Abin; Sisbin.

Introdução

A recente fixação da Política Nacional


de Inteligência (PNI) pelo Decreto
nº 8.793, de 29 de junho de 2016, tor-
de fornecer subsídios ao Presidente da
República nos assuntos de interesse na-
cional”. Em 2002, o Sisbin foi regula-
nou públicas as diretrizes da Inteligência mentado pelo Decreto nº 4.376, de 13
Estratégica de Estado no Brasil. Em de- de dezembro de 2002, com a compo-
corrência da PNI, iniciou-se, em 2017, sição inicial de 21 órgãos de diversos
a elaboração do primeiro Plano Nacional setores, como o da segurança - com o
de Inteligência do Sistema Brasileiro de Ministério da Defesa (MD) e da Justiça
Inteligência (Sisbin). (MJ) - e o da saúde - com o Ministério da
Estes dois documentos-chave refletem Saúde (MS) e a Agência Nacional de Vi-
o quanto o debate sobre o papel da gilância Sanitária (Anvisa), por exemplo.
Inteligência brasileira é atual, em que Em 2017, 38 órgãos integravam o Siste-
pese a criação da Agência Brasileira de ma, destacando-se a entrada, em 2012,
Inteligência (Abin) ter ocorrido há 18 do Ministério do Meio Ambiente (MMA)
anos, por meio da Lei nº 9.883, de 7 e do Ministério da Agricultura, Pecuária
de dezembro de 1999. e Abastecimento (Mapa).

A mesma lei instituiu o Sistema Brasileiro Apesar de a composição do Sisbin e


de Inteligência (Sisbin), “com a finalidade as diretrizes de Inteligência apontarem
* Médico, especialista em bioética (UnB), mestre em políticas públicas em saúde (FIOCRUZ).

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 77


Danilo Coelho

para a estruturação de um sistema am- Além do Consisbin militarizado, outro


plo, que transcende a área tradicional da resquício da Inteligência com viés poli-
segurança para incorporar temas estra- cial e militar seria a priorização expressa
tégicos de diversos setores, persiste um dos órgãos de defesa externa e seguran-
arcabouço institucional que obstaculizaria ça interna na composição do Sisbin e a
esta atuação abrangente. persistência do Subsistema de Seguran-
ça Pública, criado por meio do Decreto
O Conselho Consultivo do Sisbin nº 3.695, de 21 de setembro de 2000,
(Consisbin) é integrado apenas por como o único subsistema de Inteligência
órgãos de segurança. São onze in- instituído.
tegrantes, cinco dos quais militares,
sendo o MD o ministério com maior Apesar deste legado, a tendência de mo-
número de representantes. dernização do Estado brasileiro se refle-
te na Inteligência, por meio da demanda
Cabe ao Consisbin um papel-chave na estatal por análises preditivas de amea-
comunidade de Inteligência brasileira. É ças não tradicionalmente securitárias e
dele a prerrogativa, entre outras com- da definição de diretrizes de Inteligência
petências, de “emitir pareceres sobre a que incluem assuntos de saúde humana,
Política Nacional de Inteligência” e de meio-ambiente, recursos agropecuários
“opinar sobre propostas de integração e infra-estrutura, por exemplo.
de novos órgãos ou entidades”.
O presente artigo busca demonstrar tal
Segundo Bruneau (2015, p. 514), tendência modernizante, na perspectiva
apesar de uma década de promessas do paradigma da segurança humana (hu-
por melhorias, a Inteligência brasilei- man security), que é apresentado como
ra não se tornou mais eficiente do que norteador de uma atuação sustentável
era há dez anos. A partir desta crítica, para a Atividade da Inteligência em um
busco discutir elementos que podem Estado democrático.
conferir maior legitimidade e eficiência
à Inteligência brasileira, sem foco nas A ideia da transecuritização da Inteligên-
questões de orçamento. cia de Estado incorpora o conceito da
segurança humana e sistematiza outros
Um dos obstáculos à maior eficiência e elementos presentes e necessários para o
à modernização efetiva é a dubiedade processo de modernização da Inteligência.
de apontar o sistema para uma atuação
ampla – por meio, como veremos, das Considerar-se-á a Inteligência como
diretrizes do Sisbin e do largo espectro uma das instituições tradicionais do
de seus integrantes -, necessária para fa- setor de segurança, como também as
zer frente às múltiplas ameaças contra a polícias e as Forças Armadas (ELBA,
população em um Estado moderno, mas 2011, p. 856), ressalvando que o pre-
dificultar este processo com normativas e sente artigo questiona a própria noção
estruturas que induzem a priorização de da Inteligência de Estado como ativida-
temas estritamente securitários. de necessariamente securitária.

78 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


A modernização da Inteligência Estratégica na perspectiva da segurança humana

Segurança humana e Inteligência Estratégica sido criticado, com mais ênfase, desde
o início do milênio, por, entre outros
Tradicionalmente, segurança nacional é
fatores, dissociar a noção do Estado da
a proteção da fronteira territorial, da po- sua razão de ser, que são os cidadãos. A
pulação e dos interesses nacionais contra humanização do Estado tem sido enfati-
ameaças externas (BERNARD, 2013, p. zada em fóruns internacionais, no sen-
158). Entretanto, durante a maior parte tido de se difundir a ideia de segurança
do século XX, o paradigma de segurança humana em contraposição a tal conceito
nacional adotado no Brasil foi a proteção de segurança nacional.
do Estado contra o inimigo interno do co-
munismo (REZNIK, 2004, pp. 177-180). Em 2000, durante a Cúpula do Milê-
nio da Organização das Nações Unidas
A doutrina brasileira de segurança na- (ONU), foi lançada a ideia de se criar uma
cional foi elaborada na Escola Superior Comissão Independente para a Seguran-
de Guerra (ESG), fundada em 1949 e ça Humana, por iniciativa do governo do
inspirada na estadunidense National War Japão apoiada pela ONU. A Comissão
College. Esta doutrina foi utilizada por foi coordenada pelo indiano ganhador
muitos anos como justificativa para o do prêmio Nobel de economia, Amar-
advento e a manutenção dos governos tya Sen, e Sadako Ogata, japonesa então
militares, bem como de órgãos de segu- Alta Comissária das Nações Unidas para
rança brasileiros, incluindo a Inteligência os Refugiados (COMMISSION ON HU-
(CARVALHO, 2002, p. 159). MAN SECURITY, 2003, p. 5).

A lei 7.170, de 14 de dezembro de A Comissão publicou, em 2003, um


1983, ainda vigente, chama de crimes relatório intitulado Segurança Huma-
contra a segurança nacional “os crimes na Agora (Human Security Now, minha
que lesam ou expõem a perigo de lesão: tradução) em que defende a mudança
i. a integridade territorial e a soberania do paradigma de uma segurança nacio-
nacional; ii. o regime representativo e nal baseada no Estado-Nação para uma
democrático, a Federação e o Estado de segurança humana baseada nas comuni-
Direito; e iii. a pessoa dos chefes dos dades (COMMISSION ON HUMAN SE-
Poderes da União” (artigo primeiro). CURITY, 2003, p. 5). Segundo o novo
paradigma da segurança humana, valori-
A normativa vigente sobre segurança na- za-se o conceito inovador de soberania
cional é anterior à Constituição de 1988 interdependente e compartilhada para a
e trata a segurança nacional com o foco proteção de pessoas.
no Estado e nos chefes dos Poderes, mas
não na população, estando condenada a Alguns autores distinguem o conceito
se manter como uma peça normativa de de segurança nacional do conceito de
aplicabilidade mínima. segurança humana (WALSH, 2016; THE
HUMAN SECURITY CENTRE, 2005;
O paradigma de segurança nacional FIDLER, 2003); outros, todavia, consi-
como defesa precipuamente estatal tem deram a segurança nacional como parte

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 79


Danilo Coelho

da segurança humana (COMMISSION contra a violência política, terrorismo,


ON HUMAN SECURITY, 2003, p. 9). guerra civil, colapso do Estado vulnerabi-
lidades econômicas, doenças e desastres
De qualquer modo, segurança humana naturais - todos fenômenos que trans-
e segurança nacional devem ser com- cendem a ideia de Estado, porque “não
plementares, uma vez que a segurança respeitam” necessariamente as fronteiras
de um Estado não é garantia de que os - precisam estar incluídos no conceito de
indivíduos estão seguros contra amea- segurança humana (THE HUMAN SE-
ças diversas (THE HUMAN SECURITY CURITY CENTRE, 2005, p. 8).
CENTRE, 2005, p. 8).
É relevante mencionar que o novo pa-
Há duas abordagens conceituais possí- radigma não desconsidera o fato de
veis de segurança humana, com base nas que os interesses nacionais continuam
ameaças que podem estar contidas ou a pautar grandemente a agenda interna-
não em seu escopo: i. enfoque restrito, cional, apesar de relativizar a importância
considerando apenas a violência sobre destes interesses.
os indivíduos como ameaça (segurança
humana como proteção de comunidades Nesta perspectiva, cabe indagar qual
e do indivíduo contra violência interna); o papel a ser exercido pela Inteligência
e ii. enfoque amplo, considerando doen- Estratégica de Estado, tradicionalmente
ças, desastres - uma vez que estas duas vinculada à antiga ideia de segurança na-
matam três vezes mais do que a violên- cional. Como órgão de antecipação de
cia - insegurança econômica e outras fatos e de apoio à tomada de decisão, a
ameaças, inclusive as ameaças à dignida- atuação da Inteligência ajuda a moldar a
de humana (THE HUMAN SECURITY própria atuação do Estado.
CENTRE, 2005, p. 8).
Vinculado a uma Inteligência sob o antigo
A noção de “segurança humana”, em paradigma de segurança nacional, o Esta-
suma, amplia o conceito de “segurança do tende a sobrevalorizar as ameaças tra-
nacional” para transcender a ideia de dicionalmente securitárias, resultando em
proteção do Estado e abranger o concei- perda de eficiência no enfrentamento de
to de proteção ao indivíduo, tanto den- outras ameaças, igualmente relevantes.
tro do Estado como transitando entre as
fronteiras estatais. Além disso, o novo No contexto brasileiro, considerando que
conceito, mormente em seu enfoque am- a Abin atua por demanda presidencial e
plo, reconhece que as ameaças se torna- também dos parceiros do Sisbin, outro
ram múltiplas (PAGOTTO, 2016, p. 12). problema associado a uma Inteligência
excessivamente voltada para temas po-
Este novo paradigma se fundamenta tam- liciais e militares é a baixa demanda de
bém no fato de que 95% dos conflitos atores não securitários.
hodiernos não ocorrem entre os Esta-
dos, mas são fenômenos intraestatais ou Forma-se, então, um círculo vicioso no
transestatais. Neste sentido, a proteção qual o produto da Inteligência não inclui

80 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


A modernização da Inteligência Estratégica na perspectiva da segurança humana

conhecimentos de interesse para áreas Nas democracias maduras, com a busca


não securitárias. Estas áreas, por sua vez, pela eficiência de Estado em prol do bem
não se percebem como parte do sistema comum, tende a surgir a necessidade
de Inteligência e passam a não demandá- de o decisor contar com um corpo de
-lo. Sem demandas das áreas não secu- profissionais de Inteligência para asses-
ritárias, a Inteligência amplia seu enfo- soramento técnico supraministerial, com
que policial-militar, numa dinâmica que o foco em análises estratégicas preditivas
impede a modernização da Inteligência, sobre temas de políticas públicas inter-
afastando-a das engrenagens de um Es- setoriais e sobre as múltiplas ameaças
tado que carece de modernização. contra a população.

Pode-se negar a possibilidade lógica da Ressalte-se, entretanto, que, em algumas


necessidade de serviços de Inteligência democracias supostamente maduras,
em poliarquias liberais, supondo uma persistem práticas anacrônicas e de pa-
relação funcional entre os serviços e drão ético amplamente questionado na
regimes autoritários, dada a neces- atualidade, como as ações de espiona-
sidade daqueles de conhecer o que gem internacional realizadas pelos EUA
está obscurecido. Entretanto, Reznik e reveladas por Edward Snowden.
(2004, p. 23) enfatiza que os Estados
nacionais, incluindo democracias libe- Apesar desta incongruência, numa or-
rais, durante o século XX, ao especiali- dem política democrática, observa-se
zarem as funções estatais, constituíram tendência de afastamento da produção
agências de Inteligência. de conhecimentos de Inteligência de
caráter repressivo e policial/militar (NU-
Bruneau e Boraz (2007, pp. 4-6) afir- MERIANO, 2010, p. 279), para uma
mam que a Inteligência deveria ser anali- produção de conhecimentos ampliada
sada como um componente das relações para temas não tradicionalmente milita-
civis-militares por três motivos: i. é um res, mas vinculada às múltiplas ameaças
monopólio dos militares na maior parte contra a população nacional (NUME-
dos regimes não democráticos; ii. mesmo RIANO, 2010, p. 279).
nas democracia mais maduras, os milita-
res tem um papel muito grande na Inteli- Esta evolução, que pode estar sujeita
gência; e iii. FFAA e Inteligência existem a retrocessos conjunturais, associa-se
para garantir a segurança nacional. à passagem do antigo paradigma da
segurança nacional (ameaças securitá-
A superação gradual da antiga ideia de rias contra o Estado) ao paradigma da
segurança nacional contribui para re- segurança humana (múltiplas ameaças
modelar o papel da Inteligência, porque
contra a população).
tende a deslocar o eixo de demanda pe-
los serviços de Inteligência da esfera es- Elementos da modernização da Inteligência
tritamente policial e militar para incluir
amplamente a esfera civil, refutando as Na perspectiva desta mudança de para-
observações de Bruneau e Boraz. digma da antiga segurança nacional para a

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 81


Danilo Coelho

emergente segurança humana, cabe ana- nizado e aos ilícitos transnacionais”, “d)
lisarmos alguns elementos da moderniza- biodefesa da população e dos recursos
ção da Inteligência de Estado brasileira. naturais e agropecuários”, “g) acompa-
nhamento de assuntos internacionais de
A supracitada lei de criação da Abin e do interesse estratégico para o Brasil, com
Sisbin estabeleceu, em seu artigo quin-
ênfase na América do Sul”, “s) desastres
to, que “a execução da Política Nacional
naturais e de origem humana” e “t) ame-
de Inteligência, fixada pelo Presidente da
aças e agressões ao meio-ambiente”.
República, será levada a efeito pela Abin,
sob a supervisão da Câmara de Relações Como se percebe, a ideia de múltiplas
Exteriores e Defesa Nacional do Conse- ameaças, associada ao paradigma da se-
lho de Governo” (Creden). gurança humana está presente nesta re-
solução. Sem a priorização, ao menos em
Entretanto, somente em 2003, por meio
do Decreto nº 4.801, de 06 de agosto, tese, das ameaças securitárias tradicionais.
foi criada a Creden, vinculada ao Conselho A PNI prioriza onze ameaças balizadoras
de Governo da Presidência da República,
da Atividade de Inteligência do Sisbin.
“com a finalidade de formular políticas
Ao mencionar, entre as ameaças, “ações
públicas e diretrizes de matérias relacio-
contrárias ao Estado Democrático de
nadas com a área de relações exteriores
Direito”, o documento humaniza a no-
e defesa nacional do Governo Federal”.
ção de Estado, porque inclui, entre estas
Entre as matérias de competência da Câ-
ações, “a dignidade da pessoa humana;
mara está a Atividade de Inteligência.
o bem-estar e a saúde da população;
Durante o período sem uma PNI, que […] o meio ambiente”, entre outras.
perdurou de 1999 a 2016, supria a lacu-
na das diretrizes de Inteligência a Resolu- Com estes dois documentos, o campo
ção nº 02/2009 da Creden/CG/PR1, assi- de atuação prioritário da comunidade de
nada pelo presidente da Creden, o então Inteligência brasileira amplia-se da área
Ministro de Estado Chefe do Gabinete securitária, predominante em décadas
de Segurança Institucional da Presidên- anteriores, para abranger, ao menos nor-
cia da República (GSI/PR). A Resolução mativamente, questões como de seguran-
considerava vinte e seis áreas de atuação ça da saúde (health security), entre outros
da Inteligência de Estado, listadas como temas tradicionalmente não securitários.
de igual relevância.
Outro elemento da modernização cor-
Entre elas, destaco: “a) segurança públi- rente é a mudança da doutrina de Inte-
ca, com vista à repressão ao crime orga- ligência. Quanto mais orgânica e menos
1
A fonte das informações sobre a Resolução Creden nº 02/2009 foi a resposta do GSI/
PR ao pedido de informações que realizei junto ao Sistema Eletrônico do Serviço de
Informação ao Cidadão (https://esic.cgu.gov.br/sistema/site/index.aspx), sob número de
protocolo 00077000745201731, aberto em 9 de junho de 2017. Por meio da resposta, a
resolução, que possuía grau de sigilo “reservado” e cujo conteúdo não consta de fontes
abertas, foi desclassificada.

82 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


A modernização da Inteligência Estratégica na perspectiva da segurança humana

ideológica, a doutrina mais se afasta do razão de Estado, vigente no absolutis-


antigo paradigma da segurança nacional mo e, mutatis mutandis, sobrevaloriza-
e incorpora elementos inerentes à ideia da nos regimes autoritários, na medida
de segurança humana. em que a defesa do Estado, como ente
dissociado da população, durante os
A doutrina de Inteligência é composta governos ditatoriais, é utilizada como
por conceitos, princípios, normas e va- um dos argumentos para desconsiderar
lores. No Brasil, a partir dos anos 1950, proteções individuais.
a Doutrina de Segurança Nacional, cuja
matriz foi a ESG, influenciou a doutrina Neste sentido, a defesa da dignidade
de Inteligência dos primeiros manuais, da pessoa humana e do constituciona-
que exibiam substrato ideológico contra lismo na nova doutrina de Inteligência,
o inimigo interno esquerdista (NUME- ratifica a ideia de proteção dos indiví-
RIANO, 2010, pp. 285-286). duos contra arbitrariedades estatais – o
que vai de encontro com à concepção
Em contraposição à doutrina ideológi- moderna dos direitos humanos – e,
ca, há o caráter doutrinário orgânico e portanto, humaniza o antigo paradigma
laico-científico, “fundado em um Estado de segurança nacional2.
de direito democrático sólido, no qual
um serviço de Inteligência deve fazer Considerando que o conceito de razão
a análise das ameaças e oportunidades de Estado se vincula, em alguma medi-
estratégicas imunizado da contaminação da, a este paradigma, a nova doutrina de
político-ideológica - afirmando a própria Inteligência reconhece, ao se embasar na
laicidade do regime em seus princípios” proteção da dignidade humana, a neces-
(NUMERIANO, 2010, p. 289). sidade de flexibilização da ideia de se-
gurança nacional, em prol da perspectiva
Após a redemocratização, a doutrina de de proteção das pessoas.
Inteligência é revista, para enfatizar, como
base, o respeito à dignidade humana e Vemos, portanto, um certo paralelismo
às normas constitucionais, que reconhe- entre a valorização do princípio da dig-
cem, em seu artigo primeiro, a dignidade nidade humana – e do constitucionalis-
da pessoa humana como fundamento do mo - com a emergência do paradigma da
Estado Democrático de Direito. segurança humana.

Considerar o conceito da dignidade da Ressalte-se que este novo paradigma am-


pessoa humana é relativizar a noção de plia a ideia clássica da proteção da pes-
2
A Abin aprovou, em caráter experimental, por meio da Portaria nº 244-ABIN/GSI/PR, de 23
de agosto de 2016, o documento Fundamentos Doutrinários da Atividade de Inteligência, que
enfatiza seu papel na contribuição “para o planejamento, execução e o acompanhamento
de políticas governamentais, visando à segurança do Estado e ao bem-estar da sociedade”
(PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 2016, p. 9). Segundo o documento, que está em período de
“possível revisão” pela Escola de Inteligência, a atividade de inteligência pode e deve colocar-
-se no espaço que o constitucionalismo lhe concede; constitucionalismo que não permite mais
se tomar a razão de Estado como princípio moral predominante (cf. PRESIDÊNCIA DA REPÙ-
BLICA, 2016, p. 76).

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 83


Danilo Coelho

soa, porque inova na discussão da função saúde pública de importância nacional e


do Estado, ao citar as múltiplas ameaças internacional”, entre outros.
contra a sociedade que precisam ser en-
frentadas pelo arcabouço estatal. Vemos, portanto, que a END, apesar de
citar a expressão “segurança nacional”,
Não bastaria, para atingir a plena mo- vincula-se com a ideia de human security,
dernização da Inteligência Estratégica ao arrolar temas tradicionalmente não
de Estado, aderir ao constitucionalismo securitários como prioridades de ação
sem admitir a necessidade de proteger do Estado na área de defesa. O docu-
a população contra múltiplas ameaças, mento também se afasta da ideia de uma
que vão além das ameaças securitárias defesa nacional estritamente militarizada
tradicionais, com a mesma ênfase. (Estratégia de “Defesa Nacional”) para
adotar outra sob participação de diver-
Por isso, reconheço que a nova doutri- sos atores estatais, notadamente civis
na da Inteligência pós-redemocratização (Estratégia “Nacional de Defesa”).
incorpora alguns elementos da seguran-
ça humana, mas se encontra ainda em Ao se avaliarem as ameaças sem o crivo
processo de transição paradigmática, as- ideológico e militarizado, no sentido de
sim como outras normativas federais da uma doutrina laico-científica, afasta-se
área de segurança. de uma Inteligência com pendor repres-
sivo e se consagra uma Inteligência pre-
A atual Estratégia Nacional de Defe- ditiva, sob a égide da análise baseada em
sa (END), por exemplo, aprovada por evidências. Tanto maior tende a ser a re-
meio do Decreto nº 6.703, de 18 de levância de um tema para a Inteligência,
dezembro de 2008 e revista em 2012, quanto maior o risco de ameaça contra a
prevê que “todas as instâncias do Esta- população nacional, independentemente
do deverão contribuir para incremento de se tratar ou não de ameaça tradicio-
do nível de Segurança Nacional”, com nalmente securitária.
particular ênfase sobre: “a integração de
todos os órgãos do Sistema de Brasileiro Menciono mais dois elementos da mo-
de Inteligência (Sisbin)”; “as medidas de dernização, que também ocorrem pa-
defesa química, bacteriológica e nuclear, ralelamente à mudança do paradigma
a cargo da Casa Civil da Presidência da securitário e do corpo doutrinário: i.
República, dos Ministérios da Defesa, consolidação do controle externo da
da Saúde, da Integração Nacional, das Atividade de Inteligência, que deixa de
Minas e Energia e da Ciência e Tecnolo- inexistir ou ser mínimo, para ser bem
gia, e do GSI-PR, para as ações de pro- estruturado, atuante e transparente; e
teção à população e às instalações em ii. elaboração das técnicas de análise de
território nacional, decorrentes de possí- Inteligência, que deixam de ser desestru-
veis efeitos do emprego de armas dessa turadas para se tornarem estruturadas
natureza”; “medidas de emergência em (FIGURA 1).

84 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


A modernização da Inteligência Estratégica na perspectiva da segurança humana

FIGURA 1: Quatro Elementos do Processo de Modernização da Inteligência Estratégica.

PROCESSO DE MODERNIZAÇÃO DA INTELIGÊNCIA ESTRATÉGICA


paradigma de segurança segurança nacional > segurança humana
corpo doutrinário ideológico > orgânico
técnicas de análise não estruturadas > estruturadas......
controle externo pouco atuante > efetivo
Fonte: elaborado pelo autor.

Instituída em 2000, a Comissão Mista nova abordagem da análise de Inteligência


de Controle das Atividades de Inteli-
TRANSECURITIZAÇÃO (HEUER JR e DE
DA INTELIGÊNCIA PHERSON,
ESTADO2011, p. 8).
gência do Congresso Nacional (CCAI), Competência
mostrou-se inoperante em sua primeira Esta nova abordagem deveria ser base-
transdisciplinar
Doutrina orgânica não
década de atuação. Uma das razões para ada em técnicas
Paradigma
estruturadas
(temas de produ-
não tradicionalmente
ideológica e produção ção dos conhecimentos
securitários comdeigual
Inteligência.
relevância
a inatividade teria sido a inexistência de
da segurança humana
laica-científica aos temas securitários;
Tais técnicas consistem em métodos que
seu Regimento Interno, que foi aprovado integração entre áreas de
somente em 19 de novembro de 2013. externalizam o raciocínio
segurança edo analista de
as demais)
informações (i.e. do profissional de Inteli-
Apesar do avanço, a CCAI continua gência), permitindo que a linha de pensa-
como uma comissão com pouca ini- mento possa ser percebida, compartilha-
ciativa, uma vez que não controla efe- da, complementada e criticada por outros
tivamente a implementação da PNI e a (HEUER JR e PHERSON, 2011, p. xvi).
elaboração do Plano Nacional de Inte-
ligência, nem participa do planejamento O trabalho analítico estruturado não
estratégico da Abin e do Sisbin. A mo- prescinde da intuição do profissional de
dernização da CCAI depende do inte- Inteligência, mas a análise intuitiva deixa
resse dos representantes político e, em de ser a ferramenta predominante para
último grau, da pressão popular. a elaboração de conclusões. Além disso,
a própria intuição passa a ser utilizada
Quanto à elaboração de técnicas estru- de maneira mais organizada e vinculada
turadas de análise de Inteligência, vale a técnicas estruturadas.
observar que, quanto mais desestrutura-
do e mais predominantemente intuitivo O uso da expressão “técnicas estrutu-
for o trabalho analítico, maior a chance radas de análise” na comunidade de In-
de enviesamento político-ideológico e da teligência remonta a 2005, mas o con-
ocorrência de erros de Inteligência. ceito subjacente à expressão é dos anos
1980, quando se começa a ensinar e
A comissão investigativa dos EUA, cria- escrever sobre “análise de alternativas”
da após os ataques de 11 de setembro (alternative analysis) - técnica que ques-
de 2001 e depois do erro da Estimativa tiona o raciocínio final ao buscar iden-
1
Nacional de Inteligência sobre as Armas tificar e analisar conclusões diferentes
de Destruição em Massa do Iraque, em das inicialmente elaboradas (HEUER JR
2002, documentou a necessidade de uma e PHERSON, 2011, p. 9).

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 85


Danilo Coelho

Neste aspecto, a Escola de Inteligên- cia moderna, na perspectiva da seguran-


cia (Esint/Abin), que é responsável ça humana. Todavia, depende do grau
pelo ensino de Inteligência e Contrain- de maturidade institucional do stablish-
teligência para os servidores da Abin ment político e da população quanto ao
e dos demais órgãos do Sisbin, busca desejo e necessidade de transcender a
aprimoramento contínuo de uma meto- ideia da Inteligência Estratégica como
dologia de produção do conhecimento estritamente securitária.
com o ensino de técnicas acessórias de
análise estruturadas. Atuar de maneira transecuritizada não
significa desconsiderar a relevância da te-
Um novo conceito: transecuritização da mática de segurança estrita - até porque
Inteligência de Estado a Inteligência é órgão tradicionalmente
de segurança e tem muito a contribuir na
Os quatro aspectos da modernização
área -, mas tornar igualmente relevantes
analisados, apesar de complementares,
são de evolução independente e sujei- os demais setores.
ta a retrocessos. Um deles, o controle O conceito de transecuritização engloba
externo da Atividade de Inteligência, é
as mudanças na doutrina e na produção
atribuição precípua do poder legislativo.
da Inteligência, sob o paradigma da se-
Os outros três aspectos, inerentes ao ór- gurança humana, e implica na ideia de
gão de Inteligência Estratégica de Estado, que os temas e diretrizes da atividade se
formam a base do que chamo de “transe- tornam transdisciplinares (FIGURA 2).
curitização da Inteligência”;
PROCESSO é dinâmica em DA INTELIGÊNCIA ESTRATÉGICA
DE MODERNIZAÇÃO No contexto brasileiro, é processo fun-
curso e necessária para a efetiva moderni-
paradigma de segurança segurançadamental
zação da Inteligência, apesar de sujeita a > segurança
nacional para o aumentohumana
da credibilida-
corpo(COELHO,
retrocessos doutrinário2017, p. 71). de e da legitimidade
ideológico > orgânicoda Inteligência de
Estado, uma vez que o histórico de ex-
técnicas de análise não estruturadas > estruturadas......
A transecuritização da Inteligência não cessiva securitização obstaculiza a acei-
controle externo
seria, portanto, um processo circunstan- pouco atuante > efetivo
tação da atividade como atributo de um
cial, mas estruturante de uma Inteligên- Estado democrático.
FIGURA 2: Transecuritização da Inteligência de Estado.

TRANSECURITIZAÇÃO DA INTELIGÊNCIA DE ESTADO


Competência
transdisciplinar
Doutrina orgânica não (temas não tradicionalmente
Paradigma
ideológica e produção securitários com igual relevância
da segurança humana
laica-científica aos temas securitários;
integração entre áreas de
segurança e as demais)

Fonte: elaborado pelo autor.

Há uma dinâmica de mão dupla na mo- tra ameaças múltiplas, na perspectiva da


dernização das instituições estatais no segurança humana: por um lado, órgãos
sentido da proteção da sociedade con- tradicionalmente securitários, como a

86 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


A modernização da Inteligência Estratégica na perspectiva da segurança humana

Inteligência, incorporam temas de áreas A DCIT não lida diretamente com temas
pouco securitizadas, como saúde e meio- sociais, como a diplomacia na área da
-ambiente, em decorrência da percepção saúde, nem com a maior parte da parti-
estratégica destas áreas. Por outro lado, cipação brasileira na ONU, de modo que
setores como saúde e meio-ambiente a sua inclusão como representante do
buscam se aproximar de discussões e co- MRE no Sisbin é restritiva. Um contato
legiados da esfera securitária. institucional entre a Abin e o MRE, por
exemplo, para a troca de informações
Percebo duas razões principais para sobre temas relacionados com seguran-
este processo: i. a necessidade dos mi- ça da saúde (health security), abordados
nistérios não securitários se tornarem principalmente pela Divisão de Desar-
mais priorizados na esfera decisória mamento e Tecnologias Sensíveis (DDS/
máxima; e ii. percepção de que a maior MRE) do Departamento de Organismos
eficiência no enfrentamento de ameaças Internacionais (DOI), é feito por inter-
depende da maior integração destes médio da DCIT. Este fato atrasa o ade-
ministérios com os órgãos securitários quado fluxo de informações.
(FFAA, polícias e Inteligência).
Verifica-se que a transecuritização de-
Como a atuação da Inteligência nor- pende de uma mudança de paradigma
malmente se pauta pelas ameaças (po- tanto dos órgãos securitários quanto
tenciais ou não) contra a população, a dos demais, numa articulação dialógica,
transecuritização nivela as diversas ame- complementar e interdependente.
aças à sociedade, sem sobrevalorizar as
ameaças violentas. A consolidação e aprofundamento desta
articulação, no âmbito da Inteligência,
O Sisbin foi estruturado de modo que dependem dos órgãos que integram o
pode exercer importante papel propulsor Sisbin, sobretudo os tradicionalmen-
do processo de modernização transecu- te não securitários, no sentido de de-
ritizada da Inteligência de Estado, porque mandar da comunidade de Inteligência
permite e estimula o diálogo intersetorial. maior foco nas ameaças à segurança da
Apesar disso, persiste uma composição saúde humana, agropecuária e ambien-
excessivamente securitária de estruturas- tal, por exemplo, que são estratégicas
-chave do sistema como o Consisbin. para o desenvolvimento do Brasil. Desta
forma, a transecuritização da Inteligên-
A priorização expressa de temas securi- cia Estratégica vincula-se à securitiza-
tários no Sisbin dificulta a maior fluência ção de temas de outros setores, como o
da troca de informações de outras áre- da saúde pública.
as que lidam com temas estratégicos. À
guisa de exemplificação, verifica-se a pre- Um exemplo da securitização da sanida-
sença, como representante do Ministério de animal e vegetal, convergindo com a
das Relações Exteriores (MRE) no Sisbin transecuritização da Inteligência Estraté-
e no Consisbin, da Divisão de Combate gica, é verificado na recente relação ins-
aos Ilícitos Transnacionais (DCIT). titucional entre o Mapa e a Abin.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 87


Danilo Coelho

Em 2012, o Mapa passa a integrar o te o mais alto corpo gerencial, tende a


Sisbin e, no ano seguinte, convida a Abin ser mais vinculada à concepção anterior
a participar como membro observador de segurança nacional, em que pese pos-
do gabinete de crise sobre a emergên- sa estar aberta a novas ideias de moder-
cia fitossanitária da Helicoverpa armige- nização da Inteligência brasileira.
ra - praga que ameaçava as lavouras de
soja do sul baiano -, num processo de Considerações finais
securitização de um evento de sanidade
Ao criar e discutir o conceito da tran-
agrícola ou defesa fitossanitária.
securitização da Inteligência Estratégica,
O processo culminou, entre outros as- buscou-se analisar sistematicamente um
pectos, na criação, no âmbito da Secre- processo em curso e de fundamental im-
taria de Defesa Agropecuária, de uma portância para tornar a Inteligência mais
Coordenação-Geral de Inteligência Es- eficiente na sua missão de antecipar fa-
tratégica, conforme a última estrutura re- tos de impacto relevante contra a socie-
gimental do Mapa, definida no Decreto dade. Este processo não é inexorável,
nº 8.852, de 20 de setembro de 2016. mas passível de retrocessos.

Por parte da Abin, a aproximação impli- A possibilidade de retrocessos está, em


cou no fortalecimento da área de bio- parte, associada a aspectos do sistema
defesa, que conta hoje com analistas de Inteligência que tendem a sobreva-
especializados para acompanhamento lorizar as ameaças securitárias, como a
de ameaças e eventos biológicos, como atual estrutura do Consisbin e a vigência
acidentes laboratoriais e casos de terro- de um único subsistema interministerial
rismo agropecuário, entre outros. no âmbito do Sisbin3, o de segurança
pública. Dois fatos que convergem os
Além da dinâmica horizontal de apro- esforços da comunidade de Inteligência
ximação mútua entre o setor de segu- para uma atuação preponderante em te-
rança com os demais setores (e vice- mas tradicionais de segurança.
-versa), ocorre uma dinâmica vertical
de mudança de cultura dentro das or- Neste ano de “maioridade da Abin”,
ganizações de Inteligência. são reconhecidos os avanços no campo
doutrinário da Atividade de Inteligên-
Na atualidade, esta dinâmica vertical se cia, mas, apesar da inclusão de vários
propaga menos no sentido dos mais altos órgãos no Sisbin, houve pouco avanço
gestores para o corpo de profissionais do na modernização do sistema. Reconhe-
que o contrário, uma vez que a geração cendo a necessidade da transecuritiza-
mais antiga de servidores da Inteligência ção como processo modernizante e le-
de Estado, que forma predominantemen- gitimador da Atividade de Inteligência
3
O Subsistema de Inteligência de Segurança Pública (Sisp) foi criado pelo Decreto Presidencial
nº 3.695, de 21 de dezembro de 2000. O Sistema de Inteligência de Defesa (Sinde), instituído
pela Portaria Normativa nº 295/MD, de 3 de junho de 2002, não é um sistema interministerial
no âmbito do Sisbin, mas uma estrutura interna do MD, apesar de articulada com o Sisbin,
para integrar os órgãos de Inteligência das Forças Armadas.

88 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


A modernização da Inteligência Estratégica na perspectiva da segurança humana

Estratégica no Brasil, caberia rever a da Inteligência Estratégica transecuriti-


composição do Conselho e estimular a zada, com vistas ao ganho de credibili-
criação de novos subsistemas de Inteli- dade da Atividade de Inteligência face às
gência interministeriais. instituições democráticas.

A ampliação do número de integrantes No caso brasileiro, por exemplo, a tran-


do Sisbin dos originários 21 para 38, securitização seria um requisito para a
sem a criação de novos subsistemas e maior e mais rápida aceitação governa-
sem a atualização do seu marco regula- mental e popular da Inteligência como
tório – como da lei que criou o Sisbin órgão legítimo e relevante. E a percep-
e prioriza os órgãos tradicionalmente ção de legitimidade e relevância é ne-
securitários -, demonstra um limitado cessária, apesar de não suficiente, para
avanço institucional neste quesito. que a atividade enfrente os problemas
de insuficiência de recursos e de ade-
A transecuritização transcende à ideia da
quação do marco legal, apontados por
intersetorialidade, porque também impli-
Bruneau (2015).
ca na incorporação de temas de setores
não securitários na própria raison d´être O assessoramento transdisciplinar deve
da Inteligência Estratégica. O resultado ocorrer sempre com o foco no poder
é a realização de trabalhos estratégicos decisório máximo do Executivo. E este
conjuntos que consistem, entre outras enfoque supraministerial deve partir,
características, no acompanhamento
sempre que necessário, de uma articu-
permanente de temas interministeriais e
lação do setor de segurança com os se-
no assessoramento do poder decisório
tores tradicionalmente não securitários,
sobre tais temas, com influência no pla-
rompendo o ciclo vicioso do enfoque
nejamento e implementação de ações e
excessivamente policial e militar.
políticas públicas transversais.
A modernização vinculada à transecu-
É importante superar o tabu de que Inte-
ritização da Inteligência Estratégica é,
ligência trata de ameaças necessariamen-
em suma, fundamental para legitimar a
te policiais ou militares. A maior comple-
xidade do mundo contemporâneo revela Atividade de Inteligência no meio so-
diversos riscos à sociedade que não de- ciopolítico brasileiro e para estabelecer
vem ser enfrentados por ações isoladas melhores condições em prol da eficiên-
dos órgãos de segurança. cia da atividade, mas depende da con-
solidação de mudanças paradigmáticas,
Quanto maior o histórico de uso repres- como a superação do antigo conceito
sivo do aparato da Inteligência de Esta- de segurança nacional em favor da nova
do, mais importante se torna o enfoque ideia de segurança humana.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 89


Danilo Coelho

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90 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


INDICADORES ECONÔMICOS NA ANÁLISE DE INTELIGÊNCIA –
ESTUDO SOBRE OS ÍNDICES DE RISCO SOBERANO
Eduardo Castello*

Resumo
O objetivo do presente artigo é determinar a adequação do uso de indicadores de risco so-
berano na análise de Inteligência. Entre os indicadores utilizados para se avaliar a situação
econômica geral de um país, estão os de natureza estritamente quantitativa, como o EMBI+,
e os ratings soberanos, que congregam características qualitativas e quantitativas. A razão
para o uso disseminado desses índices é o fato de que eles resumem quantidade significativa
de dados disponíveis para os agentes econômicos, com ênfase para aqueles que atuam no
mercado financeiro, ao captar informações sobre os fundamentos econômicos de um país
objeto de análise. Nesse sentido, busca-se tanto avaliar em que medida as duas categorias
de indicadores são eficientes em sintetizar dados sobre fundamentos econômicos, quanto
contextualizar de que forma esses indicadores servem como suporte para exercícios de análise
de Inteligência Econômica. Conclui-se que é recomendável à análise de Inteligência utilizar
ambos os índices de maneira complementar; aqueles puramente quantitativos possuem maior
precisão, mas são menos abrangentes; os ratings soberanos contam com menor confiabilida-
de, mas têm maior completude.

Palavras-chave: Risco soberano; Inteligência Econômica; Análise de Inteligência.

Introdução

O objetivo do presente artigo é deter-


minar as condições de utilização de
tipo particular de indicador econômico,
cadores são eficientes ao sinalizarem o
comportamento de variáveis atinentes
à situação econômico-financeira de um
os índices de risco soberano, no pro- país de interesse. Em outras palavras,
cesso de análise de Inteligência. Esses questiona-se se eles sintetizam ade-
índices são comumente usados como quadamente as informações dos fatores
referência em relatórios de consultorias subjacentes a esses índices, se o fazem
econômicas e de analistas de fundos de de maneira tempestiva e fidedigna, e em
investimento, com o intuito de nortear que medida esses índices são úteis em
decisões de investimento. Sob a pers- avaliações de curto e de longo prazo
pectiva analítica, avalia-se se esses indi- para a economia em análise.
* Oficial de Inteligência

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 91


Eduardo Castello

Para se atingir esse objetivo, organizou- mento do Resultado Primário – superavi-


-se o trabalho em cinco seções: primei- tário ou deficitário – do governo federal
ro, delineia-se o que são indicadores de ou esfera equivalente. Conjuntamente,
risco soberano, qual sua relevância e esses indicadores são úteis para se jul-
em quais categorias eles podem ser or- gar a solidez econômica e financeira dos
ganizados. Em seguida, avalia-se o que países-alvos das avaliações. Um país que
informam esses índices, em termos de apresente bons indicadores é considera-
dados econômicos e financeiros, e quão do possuidor de grau de investimento, ou
bem desempenham essa tarefa. Apre- seja, é reduzida a probabilidade de que
sentamos uma breve revisão da literatura o retorno sobre investimentos realizados
sobre o trabalho de Inteligência na área ali sofra a influência negativa de fatores
econômica, antes de ponderar quais os relacionados à condução econômica do
prós e os contras da utilização desses in- país – p. ex., uma recusa ou incapacida-
dicadores no contexto analítico. Por fim, de do governo de pagar os credores de
concluímos o artigo, ao apontar quais parte das dívidas que emitiu no passado.
as lacunas de conhecimento persistem a
respeito do tema. Existem duas categorias de indicadores
de risco soberano1. A primeira é a dos
Tipos e características dos indicadores indicadores que agregam informações de
de risco soberano natureza estritamente quantitativa. Um
Indicadores de risco soberano são ins- índice comumente utilizado para mer-
trumentos criados para se avaliar o ris- cados emergentes, como o Brasil, é o
co percebido por agentes econômicos Emerging Markets Bond Index (EMBI+
a respeito dos títulos de dívida emitidos Global, para o conjunto dos países emer-
por Estados. A formação das expectati- gentes, e EMBI+ específicos para cada
vas dos investidores sobre a capacidade país, como o EMBI+ Brazil), calculado
de pagamento desses títulos baseia-se, pelo banco de investimento J.P. Morgan2.
principalmente, em avaliações sobre va- O EMBI compreende cestas de títulos
riáveis econômicas relevantes, tais como de dívida externa de longo prazo (acima
a razão entre dívida pública e o Produto de um ano) dos países em análise, com-
Interno Bruto (PIB), o estoque de reser- paradas a conjuntos de títulos públicos
vas cambiais acumuladas junto à autori- dos Estados Unidos da América (EUA)
dade monetária (no Brasil, o Banco Cen- de características semelhantes, como o
tral do Brasil – BCB), a razão entre essas prazo (no jargão, maturidade). O mo-
reservas e volume de importações men- tivo dessa comparação é que os títulos
sais do país, e a trajetória do comporta- estadunidenses são considerados, na
1
Risco soberano e risco-país são conceitos distintos. O primeiro tende a levar em considera-
ção elementos estruturais macro e microeconômicos nas avaliações, enquanto o segundo,
além desses fatores, contempla fatores conjunturais, p. ex., o relacionamento político entre
Executivo e Legislativo. Para explanações adicionais, cf. o material disponibilizado pelo BCB
a respeito, disponível em https://www.bcb.gov.br/conteudo/home-en/FAQs/FAQ%2009-Coun-
try%20Risk.pdf.
2
Cf. J.P. Morgan (1999).

92 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Indicadores econômicos na análise de Inteligência –
estudo sobre os índices de risco soberano

prática, isentos de risco de calote; logo, Variações no indicador de risco sobera-


são a referência para o que se denomina no são capazes de refletir mudanças na
de instrumento livre de risco (em inglês, percepção de incertezas políticas e eco-
risk-free benchmark). O diferencial ob- nômicas que possam ameaçar a dinâmi-
tido entre os retornos totais dos títulos ca de pagamento da dívida. Aumentos
das duas cestas, comumente denomi- nesse índice significam que os investi-
nado spread, é resumido no indicador dores consideram o país mais arriscado.
EMBI, em termos de pontos-base (um Em decorrência disso, eles cobram taxas
ponto-base corresponde a 0,01%). Es- de juros mais altas para adquirir novos
ses retornos são função direta das taxas títulos. A análise do comportamento
de juros ofertadas pelos emissores dos desse índice no caso brasileiro, de 1999
títulos, e função inversa do preço, ou do a 2017, conforme o Gráfico 1, é perti-
valor de face, desses títulos. nente nesse contexto.
GRÁFICO 1: EMBI+ Brazil (1999:01 - 2017:09).

Fonte: adaptado de Ipeadata.

Em janeiro de 1999, com a adoção do brasileiros. As eleições presidenciais em


modelo do tripé macroeconômico3, o 2002 provocaram fortes incertezas, atri-
risco-Brasil começa a ceder, resultado da buídas à ausência de discurso econômico
melhora nas expectativas dos investidores coeso da parte do comitê de campanha
em relação aos fundamentos econômicos do Partido dos Trabalhadores (PT). O ín-
3
Marco conceitual da teoria econômica, produto do consenso de que a estabilidade econômica
requer, simultaneamente, compromisso com geração de superávits primários, flutuação cam-
bial e metas de inflação. Para um tratamento atualizado sobre a adoção desse construto no
Brasil, ver Bonomo, Brito e Martins (2014).

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 93


Eduardo Castello

dice de risco variou mais de 200% entre em duas grandes categorias: o Perfil Ins-
março e julho desse ano, de 718 para titucional, de Governança e Econômico
2.341 pontos-base. O “vale” entre os e o Perfil de Flexibilidade e Desempenho
dois “picos” em 2002 é atribuído pela (este, composto pelos Escores Externo,
literatura econômica4, entre outros fato- Fiscal e Monetário). Os ratings corres-
res, à publicação da “Carta ao Povo Bra- pondem a um conjunto determinado de
sileiro”, de autoria de Antônio Palocci, notas, referentes a diferentes graus de
em 22 de junho. solvência. Estes níveis de solvência são
expressões de probabilidades de calote.
O mercado internacional levou poucos
dias para absorver a informação5, re- Na metodologia da S&P, essas notas es-
gistrada na redução da média do índice tão compreendidas em um intervalo en-
observada em agosto. Os níveis de risco tre AAA+ (títulos com grau de investi-
alcançariam patamares mais estáveis com mento máximo, probabilidade de calote
a confirmação de Palocci como titular da próxima de zero), passando por BB+ (tí-
pasta da Fazenda em 2003. A posse do tulos especulativos sem grau de investi-
novo ministro foi acompanhada de uma mento, probabilidade de calote de 5,7%),
série de medidas favoráveis à captação até SD/D (em calote seletivo ou genera-
de investimentos estrangeiros e da pre- lizado). O Gráfico 2 mostra a trajetória
sença de sinais favoráveis à continuidade dos ratings atribuídos ao Brasil de 1999
da política econômica da gestão anterior. até 2017. A nota dos títulos brasileiros
Observe-se que, seis anos depois, no emitidos em moeda estrangeira até se-
decorrer da crise de 2008, a amplitude tembro de 2015 foi BBB-, a última nota
das variações do EMBI foi reduzida, se de grau de investimento (probabilidade
comparada à de 2002 e à dos indica- de calote de 3,02%, um nível acima de
dores de outros países emergentes. Isso BB+). A partir dessa data, o país foi no-
ocorreu devido à influência de variáveis vamente rebaixado para BB+, com piora
econômicas brasileiras relacionadas ao subsequente, até a nota atual, BB (refe-
setor externo, como a estratégia de acu- rência: outubro de 2017), o que reflete
mulação de reservas de moeda estran- uma deterioração da percepção de risco
geira no Banco Central. em relação ao Brasil. Ao comparar o grá-
fico 2 com o anterior, pode-se perceber
A segunda categoria de indicadores de que os ratings das agências não respon-
risco soberano é composta por notas dem da mesma maneira que o EMBI+,
atinentes ao grau de solvência de países e tendem a ser mais rígidos; trataremos
e de corporações privadas, chamados dessa questão adiante, ao contemplar as
ratings. De acordo com o manual da diferenças entre indicadores estritamen-
Standard & Poor´s (2012), as variáveis te quantitativos e aqueles que combinam
contempladas na análise estão agrupadas aspectos qualitativos e quantitativos.

4
Cf. Giambiagi (2005, pp. 206-8).
5
No jargão do mercado financeiro, dir-se-ia que a informação foi “precificada”, pois ela foi incor-
porada ao preço do ativo financeiro.

94 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Indicadores econômicos na análise de Inteligência –
estudo sobre os índices de risco soberano

Note-se que o marco cronológico abran- rating e autoridades governamentais da


gido pelos dois indicadores, durante os área econômica do país avaliado. Pos-
quais o país apresentou notas compatí- teriormente, a avaliação será conduzida
veis com grau de investimento (abaixo de por um desk de análise, dividido por re-
200 pontos-base, no caso do EMBI+, giões geográficas. Os relatórios elabora-
ou grau BBB e BBB-, no caso do rating dos pelo desk são levados a um comitê
da S&P), é coincidente. deliberativo de alto nível na agência: essa
é a instância responsável pela decisão
A combinação de elementos quantitati- sobre qual nota será conferida a deter-
vos e qualitativos possibilitaria corrobo- minado país e se devem ocorrer altera-
rar ou refutar sinais de curto prazo e ten- ções6. A justificativa para que as notas
dências de longa duração detectados nas não sejam baseadas apenas em indicado-
variáveis. As agências, de acordo com res objetivos é o fato de que um calo-
Bhatia (2002, p. 12), desenvolveram te soberano pode não significar apenas
métodos de tomada de decisão que con- a incapacidade financeira de cumprir os
jugam a análise numérica e objetiva, com acordos de dívida, mas ser resultado de
o exame qualitativo. O lado subjetivo da um cálculo político doméstico, como a
avaliação é feito por meio de entrevis- suspensão temporária de pagamento de
tas entre os funcionários das agências de dívidas vincendas a credores externos.

GRÁFICO 2: Ratings atribuídos à dívida soberana do Brasil emitida em moeda estrangeira pela Standard &
Poor´s (1999:01 – 2017:09).

Fonte: adaptado de Standard & Poor´s.

6
Bhatia, op. cit., p. 26.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 95

1
Eduardo Castello

Além da S&P, outras agências de rating, A utilização desse insumo comporta-se


como a Fitch e a Moody´s, comparti- de forma análoga ao fornecimento ener-
lham semelhanças metodológicas7. Além gético: não é possível substituí-lo no cur-
da utilização pelos agentes do mercado to prazo por outro tipo, assim como não
financeiro, os ratings soberanos torna- é possível alternar entre o uso de carvão
ram-se objeto de atenção da mídia espe- e de gás natural em uma mesma planta
cializada por diversos motivos8: são mais industrial. O encarecimento, a redução
simples de serem compreendidos que os ou, no pior dos casos, a interrupção do
indicadores puramente quantitativos; são fornecimento desse insumo provocaria
ofertados por um conjunto crescente de impactos significativos nos parques in-
instituições; e são utilizados para a ava- dustriais do Brasil, aos quais se seguiriam
liação tanto de títulos de dívida públicos, problemas macroeconômicos de nature-
quanto de títulos corporativos – o ra- za sistêmica, como redução da produção
ting de uma empresa é determinado, em industrial, problemas na manutenção dos
grande medida, pela percepção do nível níveis de emprego em zonas industriais e
de risco do país onde ela está sediada. desequilíbrios na balança comercial.

O conteúdo informacional dos indicado- Nesse sentido, torna-se necessário anali-


res de risco soberano sar a causa eficiente dessa ameaça, a piora
econômica em Paribali. Considerando-se
A fim de clarificar quais informações os que o mercado previu a evolução dessa
índices de risco soberano são capazes deterioração, é seguro supor que os in-
de sinalizar, apresenta-se exemplo hi- dicadores de risco soberano traduzam as
potético de situação em que a análise expectativas negativas de investidores e
desses indicadores seria empregada para de analistas financeiros. A trajetória his-
reduzir incertezas acerca de problema tórica desses indicadores seria avaliada a
enfrentado pelo Brasil. Considere-se um fim de se estabelecer padrões sobre os fa-
cenário em que um país fornecedor de tores historicamente relacionados ao ris-
insumo relevante para o setor produtivo co econômico-financeiro desse país, ou
brasileiro, chamado Paribali, registre de- seja, sobre as variáveis que estejam cor-
terioração aguda, antecipada pelo mer- relacionadas com situações passadas aná-
cado, de suas condições econômicas. logas ao processo de desestabilização.
Isso ocorre, p. ex., devido à imposição
de sanções econômicas. A situação eco- Historicamente, um indicador como o
nômica desse país teria piorado de tal EMBI mostraria como os títulos de Pa-
forma que a oferta desse insumo para o ribali são avaliados, em termos de risco,
Brasil encontra-se ameaçada. pelo conjunto dos investidores desse
7
Em estudo sobre as variáveis que influenciam os indicadores de risco soberano, Cantor e Pa-
cker (1996, p. 43) apontaram que a Moody´s confere maior peso ao estoque de dívida externa,
enquanto que a S&P valoriza mais o histórico de calotes.
8
Para um exemplo de crítica a essa adoção ampla dos ratings pelo mercado financeiro, con-
jugada com uma avaliação dos fatores que tornam índices de risco soberano atraentes, cf. o
artigo de Masciandaro (BIS paper no. 72), Sovereign debt: financial markets over-reliance on
credit rating agencies, de 2012.

96 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Indicadores econômicos na análise de Inteligência –
estudo sobre os índices de risco soberano

ativo financeiro. A trajetória desse indi- subsidiaram o relatório. O relatório de


cador revelaria episódios de incerteza avaliação do rating dado aos títulos pú-
política e de fragilidade em variáveis ma- blicos de Paribali seria forma eficiente de
croeconômicas estratégicas – especial- se acessar, em um mesmo documento,
mente as que refletem a situação fiscal dados resumidos de diversas categorias
e externa do país. O EMBI refletiria tam- financeiras, econômicas e políticas.
bém os momentos em que as autorida-
des econômicas foram bem-sucedidas Existem, contudo, lacunas específicas
em alinhavar as expectativas do mercado a serem preenchidas para cada tipo de
e em conferir maior credibilidade às suas indicador utilizado na análise de Pariba-
decisões. Em relação a Paribali, seriam li. Em relação ao indicador quantitativo,
duas as vantagens na utilização desse há casos, como o da Argentina, em que
indicador: a primeira é a elevada capa- os países estão ausentes do mercado
cidade de resumir os dados disponíveis internacional de dívida por tempo con-
para os agentes econômicos envolvidos siderável, de forma que os indicadores
no mercado de títulos públicos desse de risco soberano permanecem em pa-
país9. Além disso, conforme observado tamares críticos, e não respondem com
no caso do Brasil, o hiato temporal que precisão a eventos drásticos como os
separa eventos positivos ou negativos no ocorridos em Paribali. Os investidores
país-alvo e as respectivas variações no assumem que os títulos emitidos por
EMBI é, em geral, curto, embora não esses países são de natureza arriscada –
imediato. Em outras palavras, indicado- são chamados de “títulos-lixo”, ou junk
res desse tipo responderiam de forma bonds. Logo, a sinalização do indicador
rápida a eventos econômicos e políticos não responderia proporcionalmente à
que ocorram no âmbito doméstico. gravidade da situação.

Os relatórios de ratings soberanos de Países emergentes como Paribali tendem


Paribali, por outro lado, apresentariam a apresentar desempenho econômico
variáveis políticas e econômico-financei- mais volátil que o das economias desen-
ras agregadas, que conferem suporte à volvidas, logo, há probabilidade não des-
nota dada pela instituição avaliadora. O prezível de que um indicador semelhante
ponto forte dos ratings é a completude: ao EMBI apresente esse tipo de com-
nos relatórios, as variáveis relevantes são portamento. Há outras situações em que
apresentadas de maneira histórica, com uma convulsão política – como o caso da
comentários metodológicos que per- Bélgica no início dos anos 2010, em que
mitem ao leitor fazer inferências acerca o país ficou sem governo formado por
da qualidade dos dados estatísticos que quase dois anos – não é suficiente para
9
Há literatura ampla na área microeconômica sobre a eficiência dos mercados, em termos de
formação de preços, e o papel das expectativas dos agentes econômicos. As contribuições
seminais nesse sentido foram dadas por Arrow e Debreu (1956), e Fama et al. (1969). Uma das
condições para que um mercado seja fortemente eficiente é que toda a informação sobre um
ativo financeiro (p. ex., uma ação) esteja contida nos preços desse ativo. Em outros termos, tudo
que há para saber sobre esse ativo é de conhecimento de todos os participantes do mercado.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 97


Eduardo Castello

abalar os pilares de sustentação econô- índices11. Seria incorreto dizer que os


mica do país. No caso belga, a inexistên- fundamentos da economia grega eram
cia de histórico de calote em títulos de sólidos naquele ano, embora, com base
dívida soberana e a presença de institui- nos ratings, poder-se-ia afirmar que a si-
ções econômicas supranacionais – nesse tuação grega não periclitava: a nota, pela
caso, o Banco Central Europeu – servi- S&P, era BBB+, grau de investimento,
ram para suavizar a percepção de risco. em março de 2010, e caiu para BB+,
grau especulativo, no mês seguinte; o
Em relação aos ratings, não raro, as mesmo processo demorou quase três
agências assumem postura de observa- anos no Brasil, conforme a descrição no
ção em face de eventos críticos, a fim gráfico 2. O efetivo rebaixamento do ra-
de mitigar decisões precipitadas. Em de- ting grego pela S&P, em 27 de abril de
corrência disso, a resposta dos ratings 2010, somente ocorreu quando os pro-
a esses eventos é, em geral, lenta. Por blemas tornaram-se óbvios. Esse país so-
esse motivo, esses indicadores são mais fria de vulnerabilidades severas nas áreas
adequados como norteadores de de- fiscal e externa, que ameaçavam não ape-
cisões de investimento de longo prazo nas a solvência dos títulos emitidos pelo
(mais de um ano), tendo menor serventia Tesouro da Grécia, mas colocavam em
para aplicações de curto prazo (um ano xeque o conjunto da economia nacional
ou menos). Além disso, o processo de de forma sistêmica, ao prejudicar o pa-
tomada de decisão dos comitês delibera- gamento a aposentados e o fornecimen-
tivos a respeito da nota de um país não to de serviços públicos essenciais.
é aberto ao público; dessa forma, não
se pode conhecer diretamente a forma- Com base nessa discussão, seria razoável
ção do elemento subjetivo dos ratings. supor um uso complementar dos dois in-
As agências vendem suas notas para os dicadores de risco. Antes de evoluir para
emissores governamentais e corporati- um debate mais pormenorizado nesse
vos, além de concorrerem entre si, o que sentido, apresentamos algumas con-
contribui para que as notas possam ser tribuições que auxiliam a localizar esse
artificialmente infladas10. tema no contexto da área de Inteligência.
A forma como as agências de rating Análise de Inteligência na área econômica
rebaixaram a nota dos títulos públicos
da Grécia durante a crise de dívida so- Na literatura, há contribuições que res-
berana no país em 2010, de maneira saltam o peso da análise econômica para
abrupta, apenas quando os problemas o trabalho de Inteligência, e como essa
mostraram-se evidentes, provocou ques- tarefa articula-se com as demais ativida-
tionamentos sobre a consistência desses des estatais e com as demandas da so-
10
O conflito de interesses entre as agências de rating e os compradores de ativos financeiros
chancelados por elas tornou-se caso paradigmático, além de fato amplamente divulgado na
mídia. Ver, p. ex., o verbete principal-agent problem no site Investopedia (www.investopedia.
com), em que essa situação – a venda de ratings – é dada como exemplo.
11
Rating agencies criticized by European Commission - http://www.bbc.com/news/busi-
ness-14043293.

98 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Indicadores econômicos na análise de Inteligência –
estudo sobre os índices de risco soberano

ciedade. Lewis (1993), p. ex., enfatiza a de determinados países em empreender


importância de compreender de que for- ações de coleta ilegais. O autor tece
ma tanto o mercado de capitais quanto considerações acerca da expansão dos
o sistema bancário funcionam como en- sistemas de Inteligência contemporâneos
grenagens relevantes de uma economia na direção da coleta de dados econômi-
nacional. Segundo o autor, nessas áre- cos (p. 164), em resposta ao aumento
as, o trabalho de Inteligência insere-se, da competição internacional e ao maior
simultaneamente, como ferramenta de grau de vulnerabilidade dos Estados a
detecção de problemas em setores vul- choques econômicos adversos vindos do
neráveis da economia nacional – p. ex., exterior. Maior competição, conjugada
a exposição dos bancos a ações de or- com maior abertura do relacionamen-
ganizações criminosas – e como instru- to comercial entre países, implica que
mento de acompanhamento de situações mais agentes econômicos têm incentivos
no mercado financeiro internacional com para burlar regramentos internacionais e
capacidade de desestabilizar os setores executar ações hostis. Obter dados so-
produtivos domésticos. bre esses problemas torna-se tarefa es-
pecializada, que, em geral, sobrepuja a
Porteous (1995) levanta os desafios para capacidade dos ministérios de relações
o desenvolvimento da atividade de Inteli- exteriores em lidar com esses desafios;
gência nas áreas econômica e comercial, firmas e órgãos de representação seto-
tendo como pano de fundo a realidade rial também encontram limitações para a
canadense. O autor descreve cinco ta- empreitada. Por conseguinte, essa tarefa
refas (pp. 288-9) relacionadas ao de- torna-se cabível ao aparato de Inteligên-
sempenho histórico de ações na área, cia estatal. Para o caso brasileiro, isso
em ordem de sensibilidade: suporte de está explícito no texto da Política Nacio-
Contrainteligência (a menos controversa, nal de Inteligência12, item quatro, onde
e produto tipicamente oferecido); provi- se lê que a crescente relevância econô-
mento de Inteligência para autoridades mica e comercial do país, combinada à
sobre temas e países de interesse, cujo complexidade do cenário global, reco-
acesso é indisponível por outros órgãos menda que a análise das ameaças seja
governamentais; monitoramento de feita de maneira integrada.
acordos comerciais, semelhante à ativi-
dade de compliance; influência, incluin- Por fim, a análise dos indicadores de ris-
do desinformação e ações encobertas em co soberano, da forma como foi exempli-
países de interesse; e espionagem eco- ficada neste artigo, guarda proximidade
nômico-comercial (a mais controversa). com quatro pontos estabelecidos por
Zelikow (1997), quando abordou quais
De maneira semelhante, Luong (in John- as condições para o uso eficaz da análise
son, 2012) pondera sobre os prós e os de Inteligência Econômica. O primeiro é
contras da coleta de Inteligência Econô- fornecer informações diferenciadas para
mica, em face dos esforços crescentes os decisores, que é uma característica
12
Decreto nº 8.793, de 29 de junho de 2016.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 99


Eduardo Castello

típica da atuação de órgãos de Inteligên- três questões. A primeira é se índices de


cia de Estado, na qual sombreamentos risco soberano são confiáveis, ou seja,
em relação a outros órgãos de governo se servem como insumo para o trabalho
devem ser evitados. Em seguida, o autor de Inteligência, ao sintetizar a percep-
recomenda que se deva operar em áreas ção dos agentes econômicos a respeito
em que há poucas informações abertas, do nível de risco a que estão expostos.
onde entra o problema de agregação de A resposta a esse questionamento é po-
valor ao produto de Inteligência; aborda- sitiva, com ressalvas, para ambos os ín-
remos esse problema na próxima seção. dices estudados aqui. Indicadores como
O terceiro ponto é adequar os dados a o EMBI tendem a ser precisos, pois os
demandas específicas: em geral, esses dados utilizados nos indicadores estão
dados são de natureza estratégica, ou disponíveis em diversas fontes de dados
seja, atinentes a temas em que a compe- estatísticos, e a fórmula adotada pelo JP
tição entre agentes estatais prepondera Morgan para o cálculo é de amplo co-
sobre a cooperação entre eles. nhecimento. O uso desses indicadores
seria mais seguro, garantido por sua ob-
Por último, é necessário agir em áreas jetividade intrínseca. Além disso, esses
onde a atuação de entidades privadas não índices traduzem de maneira ágil a forma
é viável. Isso se seguiria por três motivos: como o mercado molda suas expectati-
i) por causa da necessidade de escala vas acerca das vulnerabilidades dos fun-
para as ações, ou seja, apenas o Estado damentos econômicos de países de inte-
seria capaz de concentrar os recursos ne- resse. Trata-se de um indicador eficiente
cessários para financiar e organizar, sob para captar movimentos do mercado fi-
padrões de segurança adequados, ações nanceiro de curto prazo, em termos de
de coleta, de busca e de processamento dias ou de semanas.
de dados necessárias para a avaliação do
tema; ii) pela existência de obstáculos le- Ao se observar a dinâmica do EMBI+
gais para a atuação privada na área, ape- na situação do Brasil, pôde-se identifi-
sar de existirem firmas capazes de arcar car o efeito da implementação de medi-
com os custos operacionais da atividade; das econômicas após a crise cambial de
e iii) o assunto em questão extravasa o 1999, que aprimoraram os fundamentos
interesse de uma firma singular e o de macroeconômicos brasileiros (redução
organizações de representação setorial, de 48%, de 1.345 pontos-base em feve-
ao englobar segmentos mais amplos dos reiro de 2002, para 647 pontos em fe-
setores produtivo do país. vereiro de 2000). A ameaça, não consu-
mada, do desmonte dessas medidas em
Indicadores de risco soberano sob a 2002 também foi registrada de maneira
ótica da análise de Inteligência: vanta- precisa por esse indicador, conforme
gens e obstáculos mencionado na seção 2. Com o bene-
fício do olhar pregresso, é possível di-
Sob a perspectiva da análise de Inteligên- zer que, para a realidade brasileira, esse
cia propriamente dita, o uso de indica- indicador conseguiu traduzir em núme-
dores econômicos suscita, pelo menos, ros as incertezas percebidas por agentes

100 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Indicadores econômicos na análise de Inteligência –
estudo sobre os índices de risco soberano

econômicos. Em resumo, índices quan- terá horizonte temporal mais longo. As-
titativos são confiáveis, embora o esco- sim, trata-se de um índice melhor para se
po de inferências que se pode realizar a compreender a situação de longo prazo
partir deles é restrito a asserções sobre a de um país de interesse, em termos de
percepção dos agentes econômicos pre- semestres ou de anos. Além disso, a va-
sentes no mercado financeiro – bancos, riedade de dados considerados na elabo-
fundos de investimento etc. – em relação ração das notas torna-os mais comple-
ao risco que o Brasil oferece para investi- tos, capazes de permitirem inferências
mentos financeiros no país. mais amplas sobre a situação estrutural
da economia do país-alvo.
Em relação aos ratings, o grande obstá-
culo para se avaliar esse indicador é o A segunda pergunta é como a análise so-
desconhecimento sobre as decisões dos bre os dados disponíveis para os agen-
comitês deliberativos a respeito da nota tes econômicos no mercado, traduzidos
a ser conferida a determinado país – isso pelo EMBI13 e coletados de maneira
afeta a rigidez a que se aludiu ao se com-
abrangente pelas agências de rating, é
parar os gráficos do EMBI+ e o dos ra-
apropriada para basear o assessoramen-
tings da S&P. O componente político que
to do processo de tomada de decisão,
envolve as decisões de rating influencia
tarefa fundamental da Atividade de In-
negativamente a utilidade deles para o
teligência. Trata-se aqui de se abordar o
trabalho analítico. O lado positivo desses
problema de agregação de valor à aná-
indicadores é o fato de que os relatórios
lise, especialmente quando o substrato
que acompanham as decisões de mudan-
ça ou manutenção de um rating soberano dela é composto por dados de fontes
são, em geral, coerentes com a decisão, abertas. O uso de dados dessa nature-
apresentam elementos de análise sobre za é necessário, pois permite delimitar-
o objeto de avaliação e contemplam nú- -se o problema econômico externo que
mero significativo de variáveis. Em com- gera a ameaça sobre os setores produ-
paração com os indicadores estritamente tivos domésticos. Serve para: i) clarificar
quantitativos, os ratings são menos tem- o entendimento a respeito dos condi-
pestivos em relação ao fato que preten- cionantes econômicos do processo; ii)
dem ilustrar. Pode-se dizer que são mais conceber as trajetórias prováveis dessa
rígidos que indicadores como o EMBI ameaça na área econômica, ou seja, para
para responder a eventos negativos, se- fundamentar exercícios de cenários; e
melhantes àqueles ocorridos em Pariba- iii) condicionalmente a essas trajetórias,
li, embora se deva frisar que a avaliação ponderar a dimensão dos impactos dessa
sobre a solvência de um ente nacional ameaça sobre a economia brasileira.14
13
Os conhecidos efeitos de “comportamento de manada” são referência quando se pondera
acerca da conduta de investidores e da dinâmica do trânsito da informação nos mercados.
Para um tratamento abrangente sobre as teorias a esse respeito, ver Hirshleifer & Teoh (2003).
14
Sobre as possibilidades de aplicação de ferramentas estatísticas na Atividade de Inteligência,
especialmente métodos inferenciais bayesianos, cf. o artigo de Jack Zlotnick, Bayes’ theorem
for intelligence analysis, disponível em www.cia.gov.br/library/center-for-the-study-of-intelli-
gence/kent-csi/vol16no2/html/v16i2a03p_0001.htm. Acessado em 6 de setembro de 2017.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 101


Eduardo Castello

A obtenção de fontes capazes de gerar de corte econômico. Aqui é pertinente


dados mais específicos é elemento fun- retornar ao caso hipotético apresentado
damental para se complementar o co- neste artigo. A diferença – ou, de for-
nhecimento obtido por meio de dados ma mais precisa, a assimetria – de infor-
abertos, que gera diferencial ao produto mação existente entre, de um lado, os
de Inteligência em relação às informa- diversos agentes econômicos expostos
ções geradas por outros entes governa- diretamente à crise de Paribali e, de ou-
mentais e privados. Sem a pretensão de tro, as autoridades do país, que natural-
esgotar o assunto neste texto, pode-se mente conhecem melhor a gravidade da
afirmar que, sem uma contextualização situação doméstica e os desdobramentos
apropriada, esforços de coleta e de busca possíveis da crise, é evidente. A essên-
mais pontuais tenderão a ser mal direcio- cia do problema reside na magnitude
nados, ou a produzir resultados aquém dos efeitos dessa assimetria para as duas
do esperado. Segundo Coulthart (2017, grandes categorias de afetados: investi-
pp. 373-374), é possível encontrar ou- dores e terceiros Estados.
tras análises suficientemente próximas
daquelas feitas por órgãos de Inteligên- O grau de aversão de firmas de investi-
cia, de forma a servirem como elementos mento a crises é considerável, por causa
acessórios de trabalho. Mas o diferencial das perdas de fluxos de caixa gerados pe-
do trabalho de Inteligência, o sigilo das los investimentos financeiros perdidos16.
fontes de dados e dos métodos emprega- Mas a sensibilidade de autoridades res-
dos para obtê-los, torna-o único, p. ex., ponsáveis pela condução econômica
em relação a relatórios de consultorias de um país afetado de forma sistêmica,
econômicas15. Em decorrência disso, a como o Brasil em relação a Paribali no
agregação de valor do produto da ativi- cenário exposto, será radicalmente dife-
dade de Inteligência demanda a combi- rente, mais profunda. De maneira aná-
nação entre a abrangência da análise, e a loga, as formas de reação dos atingidos
precisão das ações de coleta e de busca. pela crise serão de caráter distinto. In-
vestidores, como fundos de pensão, con-
A terceira pergunta é qual a racionali- tratam consultorias econômicas e firmas
dade que norteia essa tarefa analítica de Inteligência privada para melhorar seu
como um todo, a análise de Inteligência conhecimento sobre as incertezas em

15
Uma passagem do texto do autor (ibidem) é pertinente ao tema aqui desenvolvido: “Apesar de
não ser idêntico à análise de Inteligência, devido ao segredo conferido a fontes e a métodos,
o processo analítico [de consultorias privadas], em geral, é similar, uma vez que ele acontece
em ambientes complexos e de alto risco, comumente sob pressão do tempo. Previsões de
analistas financeiros, p. ex., incluem resultados altamente incertos sobre eventos que combi-
nam baixa probabilidade e alto impacto, como a quebra de um mercado (...). Como resultado,
estudos de fora da área de Inteligência são suficientemente semelhantes a ponto de serem
úteis para os profissionais da área” (tradução nossa).
16
Analistas financeiros dominam as teorias de composição de portfolios de investimento e os
métodos de diversificação de risco; logo, é crível supor que investidores de junk bonds tenham
noção clara do risco de calote. Sendo assim, exercerão controle sobre o grau de exposição
dos investimentos a países como Paribali. Para maiores detalhes sobre as teorias de risco e
retorno, ver, p. ex., Ross e Westerfield (2009), caps. 11 e 12.

102 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Indicadores econômicos na análise de Inteligência –
estudo sobre os índices de risco soberano

países onde tenham investimentos. Esta- cisão sobre fatos que não são imediata-
dos, por sua vez, necessitam de institui- mente dedutíveis dos dados existentes, é,
ções de maior porte, capazes de mobili- em última instância, o objetivo que fun-
zar recursos em maior escala. damenta a Atividade de Inteligência.18

Na medida em que estão expostos a um Considerações finais


número maior de riscos, e que o núme-
ro de afetados é muito superior (poten- Neste artigo, vimos que os indicadores
cialmente, todos os cidadãos, incluídos de risco soberano possuem ampla apli-
os empresários, os trabalhadores etc.), cabilidade no trabalho de Inteligência
Estados mantêm sistemas de Inteligên- voltado para a compreensão de desafios
cia. Assim, por terem mais a perder em econômicos. Torna-se recomendável um
contextos de forte incerteza, torna-se uso complementar desses índices, uma
necessário aos entes estatais recorrer vez que sinalizam com relativa eficiên-
a processos diferenciados de obtenção cia a situação de curto e longo prazo
e de processamento de dados. A soma de uma economia. Não representam
desses dois fatores, a assimetria de in- solução pronta, mas são instrumentos
formação e a dimensão desproporcional úteis para se realizar três tarefas: di-
do impacto de eventos econômicos ad- retamente, ajudam a avaliar o nível de
versos sobre os setores produtivos na- fragilidade de variáveis estruturais, em
cionais, resulta na produção de conhe- termos econômico-financeiros, de países
cimentos de Inteligência que conjuguem estratégicos para o Brasil, e a desenhar
coleta, busca e processamento de dados trajetórias prováveis de crises econômi-
abertos, sigilosos e, pontualmente, de cas que ocorram nesses países; também
dados negados.17 permitem determinar a amplitude dos
impactos dessas crises na interação entre
O exemplo hipotético de Paribali, soma- o Brasil e os países-alvos da análise.
do ao debate acerca do uso de dados
abertos e negados, ilustra situação típica O exercício analítico proposto insere-se
enfrentada por uma fração de análise de em um quadro mais amplo de trabalho
Inteligência Econômica. Muitas vezes, in- de Inteligência. Conforme mencionado
formações detalhadas a respeito de temas anteriormente, a análise dos vetores de
estratégicos não existem, não atendem às ameaça contemporâneos exige esforço
necessidades mínimas de quem necessita analítico que contemple não apenas ele-
saber o que fazer a respeito, ou não são mentos econômicos, mas também políti-
suficientemente confiáveis. Aumentar o cos, institucionais e sociais. A multidis-
conhecimento sobre riscos escondidos ciplinaridade tornou-se requisito para o
em eventos críticos, em outras palavras, melhor desempenho da atividade. A aná-
reduzir a incerteza de tomadores de de- lise econômica, no entanto, não dispensa
17
Sobre o papel da Inteligência Econômica na agenda de segurança regional, cf. Herzog (2008).
18
Para uma discussão nesses termos, com ênfase no conceito de incerteza ligado à atividade
de Inteligência, cf. Fingar (2011), pp. 3 e ss.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 103


Eduardo Castello

o aprofundamento técnico; para mencio- Inteligência é outro assunto que requer


nar um tema conexo, a título de exemplo, atenção. Sente-se a necessidade de or-
veja-se o nível elevado de complexidade ganizar a categoria “dados abertos” em
de questões relacionadas ao mercado fi- subconjuntos distintos, como bases de
nanceiro e ao sistema bancário, somado dados estatísticos, relatórios oficiais e
à diversidade de artifícios contábeis em matérias de imprensa. No que se refere
empresas de fachada, em face da moni- a dados numéricos, há algumas décadas,
toração dos fluxos de recursos da crimi- as Ciências Econômicas reconhecem a
nalidade organizada. O dilema, existente necessidade de processamento de gran-
em outras áreas do conhecimento, entre des séries de dados, principalmente para
especialização e generalização faz-se exercícios de simulação de modelos eco-
sentir na área de Inteligência e demanda nômicos e para a decorrente obtenção
ser adequadamente ponderado. de parâmetros de interesse. Em relação à
área de Inteligência, na atualidade, seria
Este estudo destinou-se a investigar uma um contrassenso advogar em prol de pri-
fração do trabalho de Inteligência Eco- vilégios exclusivos para a coleta de dados
nômica, a saber, o uso de indicadores de sigilosos e negados; estes possuem im-
risco no processo analítico. Há, eviden- portância fundamental para a Inteligên-
temente, tópicos abordados neste traba- cia, mas é recomendável que a dicotomia
lho de maneira superficial que convidam fontes abertas versus dados negados seja
a explorações posteriores: a integração superada. O crescimento exponencial do
da análise econômica de Inteligência no financiamento destinado a ferramentas
contexto institucional do Sistema Bra- de análise de dados, aportados por ór-
sileiro de Inteligência (Sisbin), ou o pa- gãos governamentais e por firmas atuan-
pel da Inteligência na recuperação eco- tes nos mais diversos mercados, são um
nômica brasileira são alguns deles. O sintoma de que há elementos propícios
papel dos dados abertos na análise de para discussão nesse debate.

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Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 105


PERSPECTIVAS E DESAFIOS DA ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA
A PARTIR DA POLÍTICA NACIONAL DE INTELIGÊNCIA
Pablo Duarte Cardoso*

Resumo
O artigo colige impressões de diplomata de carreira acerca dos avanços e desafios institu-
cionais da Atividade de Inteligência no Brasil. Sublinha a importância da Política Nacional de
Inteligência (2016) no processo de circunscrição da Atividade de Inteligência aos marcos do
Estado democrático de direito. Salienta a necessidade de aperfeiçoamento de mecanismos que
permitam maior compartilhamento de informações e maior cooperação entre os integrantes do
Sisbin e sugere que sejam consideradas novas medidas legislativas que deem à atividade refe-
renciais jurídicos mais sólidos (notadamente no monitoramento das “interferências externas”).
Por fim, cogita da conveniência da criação de instância análoga ao Conselho de Segurança
Nacional dos EUA.

Palavras-chave: Legislação; Sistema Brasileiro de Inteligência; Efetividade da Atividade de Inte-


ligência no Brasil; Compartilhamento de informações.

Introdução

M andam a modéstia e o bom senso


que um artigo como o presente
se inicie com uma advertência formal e
A SAE/PR, como se sabe, tem, entre suas
missões institucionais, as de “cooperar
na formulação, no planejamento, na exe-
cução e no acompanhamento de ações
explícita: as anotações que o leitor tem
governamentais com vistas à defesa da
diante de si não são de autoria de al- soberania e das instituições nacionais e à
guém acostumado ao tratamento coti- salvaguarda dos interesses do Estado” e,
diano das questões de Inteligência, por mais especificamente, de “colaborar no
dever de ofício. São, antes, o resulta- delineamento de estratégias para a Pre-
do de observações de quem teve com sidência da República na formulação de
o tema um contato episódico e pontu- políticas, em especial nas áreas de segu-
rança, defesa nacional, política externa,
al, em discussões que a esse respeito
inteligência, indústria, comércio e desen-
se travaram no âmbito da Secretaria de volvimento e ciência e tecnologia” (art.
Assuntos Estratégicos da Presidência da 16, V e VIII, do Decreto nº 9.038, de
República (SAE/PR). 26 de abril de 2017).
* Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Conselheiro da
Carreira Diplomática. Assessor Especial do Gabinete de Segurança Institucional da Presidên-
cia da República (GSIPR).

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 107


Pablo Duarte Cardoso

Nisto, como em tudo o mais, a sintaxe Decreto n° 8.793, de 29 de junho de


ajuda a delimitar o espaço da interven- 2016, escassos 48 dias após o início da
ção legítima da secretaria e de seus re- atual gestão presidencial.
presentantes, e o próprio sentido dos
verbos que iniciam os incisos destacados O que precede também merece maior
(“colaborar”, “cooperar”) já esclarece contextualização. Como bem esclarece
que seu papel é adjetivo e de assesso- o documento informativo divulgado pela
ramento. Com muito maior razão, essa Agência Brasileira de Inteligência (Abin)
contextualização serve para salientar o no dia seguinte ao da promulgação, a
fato óbvio de que nada do que se segue, PNI é fruto de um esforço iniciado pela
partindo de diplomata de carreira, tem a agência ainda em 2009 e do qual resul-
ambição de representar a última palavra tou proposta submetida pelo Executivo
sobre assunto tão específico. Quando ao Congresso Nacional em 2010. No
muito, estas anotações terão a virtude entanto, após ser analisada pela Comis-
expressa com graça no seguinte truísmo: são Mista de Controle das Atividades de
“Olhando de dentro para fora, a gente Inteligência (CCAI), a proposta perma-
nunca repara como as coisas são olhan- neceu sob o crivo do Poder Executivo
do de fora para dentro”. por seis longos anos. Nesse período,
segundo consta, a chamada comunidade
Noutras palavras, o que se segue, espe- de Inteligência aguardava com alguma
ra-se, terá, ao menos, uma virtude: a de ansiedade a fixação de parâmetros que
uma perspectiva informada por dezes- dessem à atividade um marco referencial
sete anos de serviço público em área, algo mais preciso que aquele estabeleci-
em alguma medida, afim à Atividade de do pela Lei nº 9.883, de 7 de dezembro
Inteligência, mas suficientemente diver- de 1999, e pelo Decreto nº 4.376, de
sa para que estas anotações mereçam 13 de setembro de 2002.
tomar-se com um grão de sal.
Seja como for, importa aqui ressaltar que
Inteligência no Brasil: desenvolvimentos a PNI representou passo importante no
processo, iniciado em março de 1990,
recentes
qual seja, o de circunscrição da atividade
Olhando sempre de fora para dentro, a e dos processos de Inteligência aos mar-
impressão que se tem é a de que, após cos do Estado democrático de direito. O
quase duas décadas de avanços tímidos, histórico da questão é conhecido, e aqui
a Atividade de Inteligência beneficiou- não será o caso de assinalar os erros e
-se, recentemente, de muito maior ou- acertos registrados ao longo do proces-
sadia “conceitual” por parte dos diri- so, tarefa, de resto, já empreendida por
gentes nacionais. O marco óbvio neste autores com muito maior conhecimento
processo foi, sem dúvida, a Política Na- de causa.1 O que, sim, vale a pena sa-
cional de Inteligência (PNI) adotada pelo lientar é que a PNI contribuiu para for-
1
GONÇALVES, Joanisval Brito. “The Spies Who Came from the Tropics: Intelligence Services
and Democracy in Brazil. In Intelligence and National Security, 2014. Vol. 29, nº 4,pp. 581-599.

108 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Perspectivas e desafios da Atividade de Inteligência
a partir da Política Nacional de Inteligência

talecer conceitualmente este processo. vistas a dar plena efetividade à Atividade


Já de início, o documento reitera, agora de Inteligência no Brasil; e (3) possíveis
em linguagem ainda mais inequívoca, desdobramentos institucionais futuros,
noções já avançadas na legislação prévia sempre com o mesmo objetivo em vista.
(notadamente, a Lei n° 9.883/1999).
Em sintonia com o anterior, o novo di- O fortalecimento do Sistema Brasileiro
ploma estabelece como “pressupostos” de Inteligência
da Atividade de Inteligência noções
A Lei nº 9.883/1999, antes mesmo de
como a de que “a Inteligência desenvol-
criar a Abin, instituiu um Sisbin, a ser
ve suas atividades em estrita obediên-
integrado por todos os “órgãos e enti-
cia ao ordenamento jurídico brasileiro, dades da administração pública federal
pautando-se pela fiel observância aos que, direta ou indiretamente, possam
princípios, direitos e garantias funda- produzir conhecimentos de interesse
mentais expressos na Constituição Fede- da Atividade de Inteligência, em espe-
ral, em prol do bem-comum e da defesa cial aqueles responsáveis pela defesa
dos interesses da sociedade e do estado externa, segurança externa e relações
democrático de direito”, ou, ainda, a de exteriores” (art. 2º). Coube, depois,
que “a Inteligência é atividade exclusi- ao Decreto nº 4.376/2002, esclarecer
va do estado [...], não se colocando a que órgãos específicos, a juízo do legis-
serviço de grupos, ideologias e objeti- lador, reúnem as condições necessárias
vos mutáveis e sujeitos às conjunturas para integrar esse rol. Atualmente, são
político-partidárias”. dezenove agências do Poder Execu-
tivo, das mais óbvias (a própria Abin,
Pressuposto, está claro, é algo que, a
os Ministérios da Defesa e da Justiça, o
rigor, nem se deveria discutir, mas que
Itamaraty) àquelas que, numa definição
as circunstâncias históricas conhecidas
clássica da Atividade de Inteligência,
recomendaram fossem formulados ex-
talvez destoassem muito das demais
plicitamente em documento de caráter
(casos, talvez, dos Ministérios da Saú-
normativo. Este artigo se escusará de
de, do Trabalho e da Previdência Social
contribuir para um debate que se imagi-
ou da Ciência e Tecnologia). Nada, no
na já encerrado, concentrando-se antes
entanto, que surpreenda o analista e o
nos desdobramentos lógicos da norma- operador familiarizados com a grande
tiva estabelecida. E, com esse objetivo variedade de domínios hoje abarcados
em vista, apresentará brevíssimas refle- pela Atividade de Inteligência – algo que
xões sobre o que resta a ser feito em três a própria PNI reflete bem – ao elencar
áreas distintas, sempre tendo por base entre seus objetivos o de “proteger áre-
os princípios consagrados na PNI e na as e instalações, sistemas, tecnologias e
normativa anterior: (1) o fortalecimen- conhecimentos sensíveis, bem como os
to do Sistema Brasileiro de Inteligência detentores desses conhecimentos”.
(Sisbin), por meio do trabalho coorde-
nado entre seus integrantes; (2) as ino- O que importa, para os propósitos des-
vações legais que ainda se impõem, com te artigo, é assinalar que os integrantes

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 109


Pablo Duarte Cardoso

do Sistema têm, diante de si, a obriga- guns marcos referenciais que haverão de
ção de desenhar mecanismos que lhes orientá-los a montar o arcabouço nor-
permitam um compartilhamento de in- mativo apropriado. Antes, no entanto,
formações e conhecimentos tão amplo de sequer discutirem “procedimentos”,
e fluido quanto possível, respeitadas os atores relevantes terão antes de di-
todas as previsões legais aplicáveis, rimir a questão preliminar relacionada a
em benefício do bom funcionamento “que informações e análises” devem ser
do Sistema. Não é outra a instrução objeto de compartilhamento por par-
da própria PNI, que, em seu item 8.5, te das diversas agências intervenientes.
afirma-o de modo taxativo: Como se intui, a multiplicidade de ór-
gãos integrantes do Sisbin poderia levar
O êxito de uma atuação coordenada de-
pende do compartilhamento oportuno de à impressão equivocada de que todas as
dados e conhecimentos entre os diversos temáticas ali representadas – da previ-
organismos estatais, observadas as carac- dência social à vigilância sanitária – se-
terísticas específicas da atividade de Inte-
ligência, em especial quanto aos usuários
riam, em princípio, passíveis de compar-
que a eles devem ter acesso. tilhamento. Essa impressão reforça-se
com a linguagem demasiado genérica
As missões e atribuições da Inteligência
devem ser realizadas, sempre que pos- adotada pela própria PNI, que define a
sível, com a disponibilidade sistêmica de Atividade de Inteligência como aquela
acesso a dados e conhecimentos entre os voltada “para a produção e difusão de
órgãos do Sisbin. conhecimentos com vistas ao assessora-
Ocorre que, formulada nesses termos, mento das autoridades governamentais
a instrução tem todas as características [...] para o planejamento, a execução, o
de uma “norma programática”, ou seja, acompanhamento e a avaliação das polí-
traça diretrizes genéricas para a atuação ticas de estado” – “quaisquer” políticas
futura dos órgãos estatais, sem, no en- de estado, poder-se-ia concluir.
tanto, esmiuçar ritos e procedimentos,
A juízo deste autor, o dispositivo deve
prerrogativas e obrigações aplicáveis aos
interpretar-se à luz do art. 1º, § 2º do
entes integrantes do Sistema. Noutras
Decreto nº 4.376, de 13 de setem-
palavras, à ausência de regulamentação
bro de 2002, que ao menos registra
futura, tem o efeito de simples “reco-
mendação”, que as agências em questão uma ênfase importante ao encarregar o
poderiam, na prática, observar ou igno- Sisbin da “obtenção e análise de dados
rar segundo sua própria conveniência. e informações e pela produção e difu-
são de conhecimentos necessários ao
Salta aos olhos, portanto, que esta é processo decisório do Poder Executivo,
uma lacuna legal a ser suprida, no médio em especial no tocante à segurança da
prazo, pelos mecanismos apropriados, e sociedade e do estado, bem como pela
é de se supor que a iniciativa para tan- salvaguarda de assuntos sigilosos de in-
to há de partir dos próprios integrantes teresse nacional” [grifo do autor]. A PNI
do Sistema. Embora aparentemente im- parece ter relegado esta distinção a um
perfeita, a legislação vigente oferece al- segundo plano, de maneira que caberia,

110 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Perspectivas e desafios da Atividade de Inteligência
a partir da Política Nacional de Inteligência

agora, aos atores envolvidos – sob a co- que defendem aperfeiçoar a formação
ordenação, supõe-se, do Gabinete de dos diplomatas brasileiros nas atividades
Segurança Institucional da Presidência de coleta, processamento e dissemina-
da República (GSIPR) – envolvê-los to- ção de informações (para não mencionar
dos num esforço sistemático com vistas a Contrainteligência, ou ao menos uma
a estabelecer os procedimentos apro- instrução elementar quanto ao tratamen-
priados capazes de dar concretude à to com agentes estrangeiros). Tudo isso,
vontade do legislador. assinale-se, contribuiria em boa medida
para a concretização do mandamento le-
De sua parte, este autor limita-se a ob- gal relativo ao compartilhamento de da-
servar que, como integrante de carreira dos e conhecimentos entre os diversos
de estado que se estrutura sob a égide integrantes do Sisbin.
de um dos órgãos integrantes do Sisbin
– o Ministério das Relações Exteriores –, Lacunas legais a suprir
ele próprio se ressente da ausência de
Na seção anterior, assinalou-se um par de
normativa clara a esse respeito, sobre-
aperfeiçoamentos, por assim dizer, que se
tudo por ter plena consciência de que,
poderiam realizar no Sisbin por simples
no exercício cotidiano de suas funções,
medidas administrativas. Nesta seção,
com alguma frequência terá sido encar-
registram-se aparentes lacunas legais que
regado de coletar dados e formular análi-
teriam de ser supridas de maneira a per-
ses sobre assuntos atinentes à segurança
mitir o bom funcionamento do Sistema.
da sociedade e do estado, que talvez se
pudessem e devessem compartilhar de A PNI realizou um esforço meritório e
forma mais fluida e automática com as bem-vindo de formalizar, em documen-
demais agências interessadas. to de caráter legal, as principais “ame-
aças” a justificar a atuação dos órgãos
Uma última observação conviria regis-
que integram o Sisbin. Não há na lista
trar, à luz da experiência profissional
nada de propriamente contraintuitivo: aí
deste autor. O Ministério das Relações
figuram a espionagem, a sabotagem, a
Exteriores, como já se assinalou uma interferência externa, as ações contrárias
e outra vez, é um dos integrantes ori- à soberania nacional, os ataques ciber-
ginários do Sisbin. E, a despeito disso, néticos, o terrorismo, atividades ilegais
não conta, em seu quadro de pessoal, envolvendo bens de uso dual e tecno-
com número significativo de profissionais logias sensíveis, as armas de destruição
treinados em Atividade de Inteligência, em massa, a criminalidade organizada, a
ao contrário do que se dá com outros corrupção e as ações contrárias ao Esta-
países com aspirações de protagonismo do democrático de direito.
internacional. Talvez a observação valha,
também, para integrantes de outras car- Aqui não se trata de confundir a Inte-
reiras de estado, mas aqui cumpre regis- ligência em sentido amplo com a In-
trar a perspectiva do diplomata, e o autor teligência criminal em sentido estrito
deste artigo encontra alguma razão nos (ou seja, aquela voltada à instrução de

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 111


Pablo Duarte Cardoso

processo penal). Está claro que o elen- mente porque este não seria o instru-
co constante da PNI visa a orientar a mento apropriado para tanto – é parca
atuação das agências de Inteligência em em maiores precisões acerca do que exa-
suas atribuições precípuas, que dizem tamente venham a se constituir ações a
respeito à identificação de tais amea- serem monitoradas sob estas duas rubri-
ças com vistas a orientar a atuação da cas. Vale a citação textual.
autoridade superior. Ainda assim, não
[Interferência externa] é a atuação deli-
será ocioso o registro de que, dentre as berada de governos, grupos de interesse,
onze ordens de ameaças identificadas, pessoas físicas ou jurídicas que possam
três não estão adequadamente definidas influenciar os rumos políticos do país,
em lei. É o caso da interferência exter- com o objetivo de favorecer interesses
estrangeiros em detrimento dos nacio-
na, das ações contrárias à soberania na- nais. É prejudicial à sociedade brasileira
cional e das ações contrárias ao estado que ocorra interferência externa no pro-
democrático de direito. cesso decisório ou que autoridades bra-
sileiras sejam levadas a atuar contra os in-
Passemos ao largo das ações contrárias teresses nacionais e em favor de objetivos
externos antagônicos. [...]
ao Estado democrático de direito, que,
a rigor, talvez se pudessem contemplar [Ações contrárias à soberania nacional]
são ações que atentam contra a autode-
na antiga Lei de Segurança Nacional terminação, a não-ingerência nos assun-
(Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de tos internos e o respeito incondicional à
1983). É de conhecimento corrente, no Constituição e às leis. [...]
entanto, que há hoje amplos questio-
Como se vê, as descrições dão muito
namentos à própria constitucionalidade
pouca concretude “jurídica” aos com-
desse diploma. A questão é melindrosa
portamentos que se pretende com-
e transcende em muito o tema da Inte-
bater. Qualquer interferência externa,
ligência, de modo que não será este o
afinal, é indevida? Sob que parâmetros
âmbito adequado para discuti-la. Fica
deve atuar o agente de Inteligência para
apenas o registro de que a Atividade de
ponderar se, em casos específicos, in-
Inteligência haveria de beneficiar-se com
teresses estrangeiros estão sendo favo-
a adoção de legislação atualizada sobre
recidos “em detrimento” de interesses
o tema, que leve em devida conta as
mudanças institucionais por que passou nacionais? O agente diplomático regu-
o Brasil desde 1983. larmente acreditado ultrapassa as raias
do admissível ao promover projetos de
O que talvez seja apropriado, no con- lei específicos (e.g., sobre a compra de
texto deste artigo, é assinalar que seria terras por estrangeiros, sobre o controle
bem-vindo um debate sobre a conveni- de meios de comunicação por empresas
ência de uma legislação específica so- estrangeiras) junto ao Congresso Nacio-
bre os temas correlatos da interferência nal? Em que medida o lobbying merece
externa indevida e das ações contrárias a atenção das agências de Inteligência?
à soberania nacional. Como se percebe A simples promoção de valores profes-
já à primeira leitura, a PNI – provavel- sados por governos estrangeiros mere-

112 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Perspectivas e desafios da Atividade de Inteligência
a partir da Política Nacional de Inteligência

ceria monitoramento? A questão não é sim de assinalar a existência da lacuna


tão acadêmica quanto possa parecer à legal e as dificuldades que um debate a
primeira vista: suponha-se o exemplo, respeito acabaria envolvendo. De todo
que se dá em outras paragens, de esta- modo, permanece o fato de que, neste
dos estrangeiros financiarem entidades ponto específico, o agente de Inteligência
da sociedade civil, com o objetivo de opera sem um marco referencial mais só-
questionar em juízo a legislação vigente lido, e essa questão teria, cedo ou tarde,
sobre tema socialmente controverso. de discutir-se nas instâncias apropriadas.

O direito comparado oferece alguns Considerações finais: possíveis inicia-


exemplos de legislações desenhadas para tivas futuras
normatizar justamente essas questões.
A PNI, como não se deixou de reiterar
Os dois casos mais célebres serão, pro-
aqui, representou passo importante no
vavelmente, o dos Estados Unidos da
processo iniciado ainda em 1990, de
América e o da Rússia. No caso ameri-
aclimatação da Atividade de Inteligên-
cano, o Foreign Agents Registration Act
cia ao regime democrático instituído em
(FARA) data de 1938 e, desde então,
1988. Evidentemente, seria irrealista su-
obriga agentes que representem interes-
por que um documento desse caráter te-
ses de potências estrangeiras a notificar
nha, por si só, a capacidade de derrubar
a autoridade pública de sua condição,
os preconceitos e prevenções que boa
financiamento e atividades, de maneira
parcela da opinião pública e de nossos
a facilitar “a avaliação, pelo governo “e formuladores de políticas ainda nutrem
pelo povo americanos”, dos pronuncia- contra a Atividade de Inteligência. Es-
mentos e atividades de tais agentes”. No pera-se, no entanto, que sua linguagem
caso russo, em julho de 2012, adotou- e os conceitos que encerra contribuam,
-se legislação homóloga em ambiente ao menos, para o necessário processo de
marcado por denúncias de intervenção amadurecimento de nossa cultura insti-
estrangeira no processo político domés- tucional, que passa pelo fortalecimento
tico. A Lei sobre os Agentes Estrangeiros da Atividade de Inteligência, devidamen-
(tecnicamente, “Emendas a Atos Legis- te circunscrita a seus objetivos legítimos.
lativos da Federação da Rússia sobre a
Regulamentação das Atividades de Or- Estas anotações jamais pretenderam as-
ganizações Não-Lucrativas que Exercem sinalar caminhos definidos a seguir, mas
as Funções de Agentes Estrangeiros”), apenas suscitar questões que, eventual-
como se recordará, é muito mais restriti- mente, merecerão ser dirimidas ao longo
va que o modelo americano e, segundo deste processo de amadurecimento. Se
seus críticos, impõe embaraços quase in- for escusado verter aqui mais um truís-
transponíveis à atuação de organizações mo, não será demais recordar que o Bra-
não-governamentais no país. sil, por força de seus próprios atributos
geográficos, econômicos e políticos, não
Evidentemente, aqui não será o caso de pode eximir-se de buscar uma inserção
advogar por um ou outro modelo, mas internacional relevante, e este dado da

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 113


Pablo Duarte Cardoso

realidade recomenda-lhe fortalecer to- 24 de setembro de 1999, o GSI vem


dos os recursos de poder de que possa cumprindo a contento a atribuição de
legitimamente dispor, entre eles um ser- “coordenar as atividades de inteligên-
viço de Inteligência capacitado a monito- cia federal”. No acervo bibliográfico a
rar ameaças e identificar oportunidades, respeito do tema, há opiniões sólidas
a partir de uma análise realista das virtu- no sentido de que o GSI tem todos os
des e vulnerabilidades do país. atributos de um verdadeiro Conselho de
Segurança Nacional (tanto assim que, se
Na medida em que se assenta esta per- vale o dado anedótico, seu titular repre-
cepção, talvez o terreno se torne mais senta o Brasil nas reuniões periódicas de
propício para outras discussões, mais National Security Advisors do BRICS):
profundas, que forçosamente terão de está física e institucionalmente próximo
dar-se a este respeito. Transcorridos ao Presidente da República, elabora es-
quase vinte anos desde o diploma que tudos e presta aconselhamento em cri-
instituiu o Sisbin e criou a Abin, torna-se ses, propõe a adoção de normativa etc.2
lícito perguntar se o marco legal adota-
do de 1999 a 2002 de fato atende às Diante deste dado objetivo, talvez não
reais necessidades da comunidade e da seja ocioso inquirir se não é chegado o
Atividade de Inteligência no Brasil. Seria, momento de considerar a criação de um
talvez, o momento de avaliar se a legisla- Conselho de Segurança Nacional pro-
ção vigente equaciona a contento ques- priamente dito, nos moldes americanos,
tões como a proteção das prerrogativas e sob coordenação do titular do GSI e
identidade dos agentes de Inteligência, se com apoio da estrutura ali já existente.
os mandatos atribuídos às agências exis- Noutras palavras, talvez o Brasil possa
tentes atendem às reais necessidades do beneficiar-se de um órgão colegiado,
país e se nos seria conveniente fortalecer presidido pelo Ministro-Chefe do GSI
os “subsistemas” de Inteligência existen- e integrado pelos titulares de distintas
tes (de defesa e de segurança pública) e, pastas, encarregado de receber, filtrar e
possivelmente, criar especializações ulte- processar toda a Inteligência produzida
riores, à luz de nossas necessidades (e.g., pelos distintos integrantes do Sisbin e,
criminal, financeira, estratégica etc.). com base nisso “aconselhar o Presiden-
te a respeito da integração das políticas
Uma reavaliação como a que se propõe, públicas domésticas, da política exterior
de resto, talvez seja a ocasião apropria- e de defesa relacionadas à segurança na-
da para buscar mecanismos institucio- cional, de maneira a permitir às [Forças
nais capazes de aperfeiçoar e fortalecer Armadas] e outros ministérios e agências
a coordenação e a cooperação entre os de governo cooperar de maneira mais
órgãos do Sistema. Desde sua criação, eficiente nos temas que digam respeito à
pela Medida Provisória nº 1.911-10, de segurança nacional”.3
2
Ibid.
3
National Security Act, 1937, Título I, seção 101. Cit. por ROTHKOPF, David. Running the
World: The Inside Story of the National Security Council and the Architects of American Power.
Nova York, Public Affairs, 2006, loc. 275 (edição Kindle).

114 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Perspectivas e desafios da Atividade de Inteligência
a partir da Política Nacional de Inteligência

É incontroverso que este foi um passo No caso brasileiro, evidentemente não


fundamental no processo que levou os se colocam as mesmas exigências rela-
EUA a assumirem as responsabilidades cionadas ao exercício da liderança global
de verdadeiro líder global, após a vitó- que inspiraram o NSC americano. Ainda
ria na Segunda Guerra Mundial, e diante assim, permanece o fato de que o Brasil,
dos desafios da Guerra Fria que se inicia- por seu peso específico, está fadado a ter
va. Pesaram, então, as lições aprendidas uma inserção internacional relevante, e
a duras penas nos anos 1940, sobretu- deverá gerir com sabedoria crescente os
do no que respeitava à descoordenação desafios que daí decorrem (inclusive os
entre as distintas agências envolvidas no de segurança nacional). Se esta não fosse
razão suficiente, há sempre a situação da
esforço de guerra. No processo que se
segurança pública, que já há décadas exi-
iniciou então, as agências de Inteligência
ge uma intervenção mais ativa do estado,
assumiram papel de relevo crescente (a
envolvendo todos os atributos do poder
própria CIA, recorde-se, foi criada pela
nacional. Entre esses atributos, não con-
mesma Lei de Segurança Nacional que vém subestimar as agências de Inteli-
estabeleceu o Conselho de Segurança gência, que, bem coordenadas, podem
Nacional), e as vicissitudes da história prestar contribuição inestimável nesse
americana (com destaque para os atenta- esforço. Por todas as causas que aqui se
dos de 11 de setembro de 2001) refor- elencaram, talvez a democracia brasilei-
çaram uma e outra vez a absoluta neces- ra já esteja suficientemente madura para
sidade da boa coordenação entre todos encarar estas questões com o foco e a
os integrantes do sistema.4 seriedade que o caso exige.

4
Para um relato da descoordenação entre as agências de Inteligência no que respeita ao moni-
toramento das atividades da al-Qaeda, recomenda-se a leitura do livro já clássico de Lawren-
ce Wright. V. WRIGHT, Lawrence. The Looming Tower: al-Qaeda and the Road to 9/11. Nova
York, Alfred A. Knopf, 2006.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 115


Abstracts

THE RADICALIZATION PROCESS AND THE TERRORIST


THREAT WITHIN THE BRAZILIAN CONTEXT
BASED ON OPERATION HASHTAG
Thiago A.
Augusto O.
Allan S.

Abstract
This article is aimed at identifying aspects in the evolution of terrorism in Brazil starting from an
analysis of how a group of Brazilian youths were radicalized in a short period of time. These in-
dividuals, motived by a series of attacks perpetrated by the Islamic State (IS) in Western Europe,
took advantage of how easy it can be to communicate using social media and formed a closed
network in support of the IS in Brazil, whether it was to facilitate emigration towards Syria, or
to plan a violent action inside our borders. The network of radicalized youths was dismantled
during a Federal Police action called Operation Hashtag in July 2016, under the new counter-
terrorism law. One can analyze radicalization processes observed in Brazil as manifested along
five superimposing layers: communities, indoctrinators, defenders of radical discourse, radica-
lized individuals inclined to action, and those proactively involved in planning and carrying out
terrorist actions per se.

Keywords: Terrorism; Radicalization process; Operation Hashtag.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 117


Abstracts

A STUDY OF INTELLIGENCE SERVICES:


A COMPARED THEORETICAL-METHODOLOGICAL APPROACH
Roberto Numeriano

Abstract
The purpose of this article is to demonstrate that the comparative method is one of the most
robust strategies for analyzing the evolution of intelligence services, one of the most enigmatic
objects in the structure of the states. Whether in countries under a consolidated or still inci-
pient democracy, such services, as political-institutional apparatuses often closed to inspection
and control (accountability), can be better analyzed by the comparativist method. Institutional
enigmas or not, intelligence agencies (as well as the systems they form and integrate) are always
the reflection of choices and agendas of state elites. They go far beyond mere technical institu-
tions; they have a political ethos that affects their complex activities and interests, especially in
the processes of political and social change. The comparative approach is an effective tool for
understanding this political nature, the strategic possibilities of its actors and the political and
institutional boundaries of these agencies, which often operate in a gray area.

Keywords: Intelligence service; Theoretical framework; Comparative method.

118 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Abstracts

WHEN SECRECY IS THE RULE:


INTELLIGENCE ACTIVITY AND ACCESS TO INFORMATION IN BRAZIL
Gills Vilar-Lopes

Abstract
Is it possible to reach a common ground between the inherent secrecy of Intelligence and De-
mocracy? This work’s main objective is to answer such inquiry. The theoretical frameworks that
inform this paper are: Guillermo O’Donnel’s theory of accountability; The precept of temporal
limitation of the secret, popularized by Norberto Bobbio; and the assumption defended by
Paulo Bonavides that the right to information is in the midst of so-called fourth-dimensional
human rights. In addition, legal scholars- such as José dos Santos Carvalho Filho and Gilmar
Mendes - and Intelligence Activity scholars - such as Joanisval Brito Gonçalves and Marco Ce-
pik -, help shed light on the topic. Finally, this paper adopted both qualitative and quantitative
methodologies and its primary sources: 1988 Brazilian Constitution, international treaties,
infraconstitutional laws - with special attention to the Law of Access to Information (LAI) - and
data extracted from the Brazilian Portal Access to Information, for the creation and manipula-
tion of a database.

Keywords: Intelligence Activity; Brazilian legislation on Intelligence Activity; Access to


information act.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 119


Abstracts

THE IMPORTANCE OF INTELLIGENCE AS AN OBJECT


OF STUDY IN THE DEFENSE FIELD IN BRAZIL
Arthur Macdowell Cardoso

Abstract
Intelligence plays a crucial role in National Defense and is essential for ensuring that every ac-
tion in the defense sector is developed based upon precise and opportune knowledge,. As an
intrinsic element of defense, Intelligence provides the capacity to produce strategic knowledge
through a methodology that seeks neutrality and impartiality. Regardless of its importance in
defense, Intelligence is not well contemplated as an object of study in the academic field of
strategic studies in Brazil. This article aims at addressing the role of Intelligence in this academic
field, its importance as a tool for strategic assistance in the State’s decision making process on
defense matters and the current scenario of Intelligence studies in the academic field of strate-
gic studies in Brazil.

Keywords: Defense intelligence; Intelligence Activity; National Defense; Strategic studies.

120 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Abstracts

BASIC REFERENCES FOR TRAINING PUBLIC SECURITY


INTELLIGENCE PROFESSIONALS IN BRAZIL
Hélio Hiroshi Hamada
Renato Pires Moreira

Abstract
There is a gap in the training actions of professionals working in the Public Security Intelligence
(PSI) activity in Brazil, which, in turn, is lacking in references that guide the development of
curricular matrices of training courses. Because it is a specialized activity aimed at producing
and safeguarding the knowledge necessary for decision-making at the various levels of state
counseling, professionals working in this area need a specific training that have a philosophical
and doctrinal basis for ISP activity. We analyzed specialized literature on ISP and documents de-
aling with professional education in public security institutions, reaching a theoretical-practical
result of basic references that help in the curriculum proposals of training courses. In this sense,
the proposed references are based on the competencies and missions of the public security
institutions, aligned with the themes dealt with in the scope of the National Public Security
Intelligence Doctrine and their connections with the knowledge, skills and attitudes expected
of ISP professionals.

Keywords: Public Security Intelligence; National Curriculum Matrix; Public Security; Professio-
nal profile; Competency mapping.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 121


Abstracts

THE MODERNIZATION OF STRATEGIC INTELLIGENCE


ACCORDING TO THE HUMAN SECURITY PERSPECTIVE
Danilo Coelho

Abstract
This article aims at analysing the modernization of intelligence under the paradigm shift from
national security to that of human security and some obstacles to this modernization. Four ele-
ments of modernization (security paradigm, doctrinal body, techniques of analysis and external
control) are discussed and, as a result, the new concept of “transecuritization of state intelligen-
ce” is presented, which systematizes the ongoing structuring process. It is concluded that the
transecuritized modernization is fundamental to meeting the multiple threats in the perspective
of human security, against the Brazilian society and, therefore, to increasing the efficiency of the
Brazilian Intelligence System.

Keywords: Human security; Strategic Intelligence; Abin; Sisbin.

122 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


Abstracts

ECONOMIC INDEXES IN INTELLIGENCE ANALYSIS –


A STUDY ON SOVEREIGN RISK INDICATORS
Eduardo Castello

Abstract
In this paper, we evaluate the use of sovereign risk indicators in analytical procedures according
to Brazilian Intelligence Doctrine. Sovereign risk indicators are among the best-known bench-
marks in economic and financial evaluations used by market firms. These indexes are able to
summarize significant swathes of data available in open sources. They are also useful to deter-
mine levels of structural economic fragility of countries relevant to Brazilian decision-makers
and the likelihood of financial crises that may occur in these nations. In terms of intelligence
analytics, we strive to understand how efficient sovereign risk indicators are in merging econo-
mic data available in open sources, as well as how useful they can be to Economic Intelligence
analytical tasks. We conclude that the combined usage of both indicators is recommended.
On the one hand, strictly quantitative indicators, such as EMBI+, are more precise, but less
complete than sovereign ratings. On the other hand, sovereign ratings combine quantitative and
qualitative aspects in its engenderment, on the other hand, and allow for broader inferences
towards the economic facts under investigation, at the cost of loss of exactitude.

Keywords: Sovereign risk; Economic Intelligence; Intelligence analysis.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 123


Abstracts

INTELLIGENCE ACTIVITY PERSPECTIVES AND CHALLENGES


THROUGH THE LENS OF THE NATIONAL INTELLIGENCE POLICY
Pablo Duarte Cardoso

Abstract
The presente article compiles impressions of a carreer diplomat on the developments and
institutional challenges of the Intelligence Activity in Brazil. It underscores the importance of
the National Intelligence Policy (2016) in restraining the Intelligence Activity according to the
benchmarks of the Democratic Rule of Law. It also highlights the need to improve mechanisms
that allow for greater information sharing and cooperation among the members of the Brazilian
Intelligence System (Sisbin) and proposes that new legislative measures that give the Intelligen-
ce Activity more solid legal references be considered (notedly monitoring “foreign interferen-
ce”) At last, the article hints at the convenience of creating a government body similar to the
US National Security Council.

Keywords: Legislation; Brazilian Intelligence System; Efectiveness of the Intelligence Activity in


Brazil; Information sharing.

124 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017


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