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Minayo, MCS; Hartz, ZMA; Buss, Pm.

Qualidade de vida e saúde: um debate 7


necessário. Ciência & Saúde Coletiva 5(1):7-18,2000.

Qualidade de vida e saúde: um debate necessário

DEBATE DEBATE
Quality of life and health: a necessary debate

Maria Cecília de Souza Minayo 1


Zulmira Maria de Araújo Hartz 2
Paulo Marchiori Buss 3

Abstract This paper discusses the relationships Resumo Este trabalho traz para o debate as
between quality of life and health by applying relações entre saúde e qualidade de vida. Busca
the discourses emerging in the health sector to situar os discursos que se constróem na área da
other fields and other disciplines. These rela- saúde em outros setores e outras disciplinas.
tionships constitute social representation based Trata de uma representação social criada a par-
on subjective parameters (well-being, happi- tir de parâmetros subjetivos (bem-estar, felici-
ness, love, pleasure, personal satisfaction), and dade, amor, prazer, realização pessoal), e tam-
on objective ones such as satisfaction of basic bém objetivos, cujas referências são a satisfação
needs and of the needs created by the degree of das necessidades básicas e das necessidades
economical and social development of a given criadas pelo grau de desenvolvimento econômi-
society. The text presents the main instruments co e social de determinada sociedade. Mostra os
which have been constructed during the last principais instrumentos construídos nos últi-
years for measuring quality of life, as well as the mos anos para medir qualidade de vida e as
debate they cause. It also debates the semantic discussões que provocam. Reflete, também, so-
field where the representations and actions in bre o campo semântico em que se desenvolvem
favour of quality of life – such as the concept of as representações e ações voltadas para a quali-
development, democracy, quality, way and con- dade de vida, como as noções de desenvolvi-
ditions of life – develop. In relation to the field mento, democracia, modo, condições e estilo de
of health, this article discusses the tendency to vida. Na área da saúde, discute a tendência de
1 Vice-presidente de restrict the concept of quality of life to the bio- se estreitar o conceito de qualidade de vida ao
Ambiente, Comunicação
e Informação, Fundação
medical area, associated with an economic as- campo biomédico, vinculando-o à avaliação
Oswaldo Cruz. Av. Brasil, sessment. It shows the variety of instruments econômica. Apresenta os mais variados instru-
2.365, 21045-900, created for measuring quality of life in accor- mentos criados para medi-la nessa referida con-
Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
mcmina@netra.castelo.
dance with the concept. Health promotion is cepção. Considera a proposta de promoção da
fiocruz.br considered one of the most relevant strategies in saúde como a mais relevante estratégia do se-
2 Departamento de this field in order to avoid medical reductionism tor, para evitar o reducionismo médico e reali-
Epidemiologia e Métodos
Quantitativos em Saúde,
and to develop an interdisciplinary dialogue. It zar um diálogo intersetorial. Argumenta, po-
Escola Nacional de Saúde is argued that this proposal, however, still needs rém, que essa proposta ainda carece de aprofun-
Pública, Fundação to be refined and tested in sanitary practices. damento e de ser testada nas práticas sanitárias.
Oswaldo Cruz
3 Direção Escola Nacional Key words Quality of Life; Indicators for Palavras-chave Qualidade de Vida; Indicado-
de Saúde, Fundação Quality of Life; Health Promotion res de Qualidade de Vida; Promoção da Saúde
Oswaldo Cruz
8 Minayo, MCS; Hartz, ZMA; Buss, Pm. Qualidade de vida e saúde: um debate
Minayo, M. C. S. et al. necessário. Ciência & Saúde Coletiva 5(1):7-18,2000.

Introdução de situações de lesões físicas ou biológicas, se


oferecem indicações técnicas de melhorias nas
Tornou-se lugar-comum, no âmbito do setor condições de vida dos enfermos. A expressão
saúde, repetir, com algumas variantes, a se- usada é qualidade de vida em saúde. No entan-
guinte frase: saúde não é doença, saúde é qua- to, a noção de saúde é totalmente funcional e
lidade de vida. Por mais correta que esteja, tal corresponde ao seu contrário: a doença em cau-
afirmativa costuma ser vazia de significado e, sa, evidenciando uma visão medicalizada do
freqüentemente, revela a dificuldade que te- tema. Os indicadores criados para medir esta
mos, como profissionais da área, de encontrar qualidade de vida são notadamente bioesta-
algum sentido teórico e epistemológico fora tísticos, psicométricos e econômicos, funda-
do marco referencial do sistema médico que, mentados em uma lógica de custo-benefício.
sem dúvida, domina a reflexão e a prática do E as técnicas criadas para medi-la não levam
campo da saúde pública. Dizer, portanto, que em conta o contexto cultural, social, de histó-
o conceito de saúde tem relações ou deve es- ria de vida e do percurso dos indivíduos cuja
tar mais próximo da noção de qualidade de vi- qualidade de vida pretendem medir (Hubert,
da, que saúde não é mera ausência de doença, 1997).
já é um bom começo, porque manifesta o mal- Neste artigo, aceitamos o desafio de apro-
estar com o reducionismo biomédico. Porém, fundar a discussão sobre as relações entre saú-
pouco acrescenta à reflexão. de e qualidade de vida, por meio de um revisão
Para realizar este trabalho, pesquisamos sumária da literatura, buscando as bases con-
detalhadamente os anais dos congressos ge- ceituais e os fundamentos teórico-práticos de
rais e temáticos da Abrasco, assim como os re- suas principais medidas. Trabalhamos a ela-
gistros de diversos seminários realizados pela boração dos discursos e das técnicas de men-
instituição. Trata-se de material de grande re- suração. Assim, esperamos poder contribuir
levância, já que saúde coletiva tem, nesses para estabelecer um profícuo diálogo interdis-
eventos científicos, sua expressão privilegia- ciplinar, permitindo avançar no conhecimen-
da. O termo qualidade de vida aparece sempre to e dar consistência a um tema que conside-
com sentido bastante genérico. Ora é emprega- ramos de grande importância tanto para a teo-
do como título de seminários, chegando a de- ria como para a prática da saúde coletiva.
signar o 2o Congresso de Epidemiologia, Qua-
lidade de vida: compromisso histórico da epide-
miologia (Lima e Costa & Sousa, 1994), ora es- Qualidade de vida:
tá associado a algumas classificações nos agru- uma noção polissêmica
pamentos dos trabalhos dos vários congres-
sos. Porém, em nenhum momento, existe uma Quanto mais aprimorada a democracia, mais
definição dessa relação, seja no nível mais ele- ampla é a noção de qualidade de vida, o grau
mentar de noção, e muito menos, como con- de bem-estar da sociedade e de igual acesso a
ceito. Isso quer dizer que se a idéia geral de qua- bens materiais e culturais (Olga Matos, 1999).
lidade de vida está presente, precisa ser mais Qualidade de vida é uma noção eminente-
bem explicitada e clarificada. Na abertura do mente humana, que tem sido aproximada ao
2 o Congresso de Epidemiologia, Rufino Net- grau de satisfação encontrado na vida famili-
to (1994) assim se refere: Vou considerar como ar, amorosa, social e ambiental e à própria es-
qualidade de vida boa ou excelente aquela que tética existencial. Pressupõe a capacidade de
ofereça um mínimo de condições para que os in- efetuar uma síntese cultural de todos os ele-
divíduos nela inseridos possam desenvolver o mentos que determinada sociedade conside-
máximo de suas potencialidades, sejam estas: ra seu padrão de conforto e bem-estar. O termo
viver, sentir ou amar, trabalhar, produzindo abrange muitos significados, que refletem co-
bens e serviços, fazendo ciência ou artes. Falta nhecimentos, experiências e valores de indi-
o esforço de fazer da noção um conceito e torná- víduos e coletividades que a ele se reportam
lo operativo. em variadas épocas, espaços e histórias dife-
A área médica, por sua vez, já incorporou rentes, sendo portanto uma construção social
o tema qualidade de vida na sua prática pro- com a marca da relatividade cultural. Auquier
fissional. Quando se apropria do termo, po- et al. (1997) a qualificam como um conceito
rém, o utiliza dentro do referencial da clínica, equívoco como o de inteligência, ambos dota-
para designar o movimento em que, a partir dos de um senso comum variável de um indi-
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víduo ao outro. (Martin & Stockler, 1998) su- seu elevado grau predatório, desdenha a situa-
gerem que qualidade de vida seja definida em ção das gerações futuras, desconhece a cum-
termos da distância entre expectativas indivi- plicidade de toda a biosfera e não é replicável.
duais e a realidade (sendo que quanto menor No campo da saúde, o discurso da relação
a distância, melhor). entre saúde e qualidade de vida, embora bas-
A relatividade da noção, que em última ins- tante inespecífico e generalizante, existe des-
tância remete ao plano individual, tem pelo de o nascimento da medicina social, nos sécu-
menos três fóruns de referência. O primeiro é los XVIII e XIX, quando investigações siste-
histórico. Ou seja, em determinado tempo de máticas começaram a referendar esta tese e dar
seu desenvolvimento econômico, social e tec- subsídios para políticas públicas e movimen-
nológico, uma sociedade específica tem um tos sociais. A situação da classe trabalhadora
parâmetro de qualidade de vida diferente da na Inglaterra, de Engels, ou Mortalidade dife-
mesma sociedade em outra etapa histórica. O rencial na França, de Villermé, ambas citadas
segundo é cultural. Certamente, valores e ne- por Rosen (1980), são exemplos de tal preocu-
cessidades são construídos e hierarquizados pação. Na verdade, a idéia dessa relação atra-
diferentemente pelos povos, revelando suas vessa toda a história da medicina social oci-
tradições. O terceiro aspecto se refere às estra- dental e também latino-americana, como mos-
tificações ou classes sociais. Os estudiosos que tram os trabalhos de Mckeown (1982), Breilh
analisam as sociedades em que as desigualda- et al. (1990), Nuñez (1994) e Paim (1994). De
des e heterogeneidades são muito fortes mos- fato, na maioria dos estudos, o termo de refe-
tram que os padrões e as concepções de bem- rência não é qualidade de vida, mas condições
estar são também estratificados: a idéia de qua- de vida. Como mencionado em Witier (1997),
lidade de vida está relacionada ao bem-estar estilo de vida e situação de vida são termos que
das camadas superiores e à passagem de um compõem parte do campo semântico em que
limiar a outro. o tema é debatido.
O relativismo cultural, no entanto, não nos A visão da intrínseca relação entre condi-
impede de perceber que um modelo hegemô- ções e qualidade de vida e saúde aproxima os
nico está a um passo de adquirir significado clássicos da medicina social da discussão que,
planetário. É o preconizado pelo mundo oci- nos últimos anos, vem se revigorando na área,
dental, urbanizado, rico, polarizado por um e tem no conceito de promoção da saúde sua
certo número de valores, que poderiam ser as- estratégia central. Redimensionado pelo pen-
sim resumidos: conforto, prazer, boa mesa, samento sanitarista canadense a partir do co-
moda, utilidades domésticas, viagens, carro, nhecido relatório Lalonde (1974), tal concei-
televisão, telefone, computador, uso de tecno- to foi definido, tomando como base na con-
logias que diminuem o trabalho manual, con- cepção atual do que se consideram os determi-
sumo de arte e cultura, entre outras comodida- nantes da saúde: l) o estilo de vida; 2) os avan-
des e riquezas. ços da biologia humana; 3) o ambiente físico
A partir do crescimento do movimento am- e social e 4) serviços de saúde. Conferências
bientalista na década de 1970, o questionamen- mundiais e regionais (MS, 1997) têm debati-
to dos modelos de bem-estar predatórios, agre- do e ampliado o sentido do conceito de pro-
garam, à noção de conforto, bem-estar e qua- moção que, a nosso ver, constitui a estratégia
lidade de vida, a perspectiva da ecologia hu- chave da discussão da qualidade de vida pelo
mana – que trata do ambiente biogeoquímico, setor (Buss et al., 1998). O tema da promoção
no qual vivem o indivíduo e a população; e o é objeto específico de um artigo deste número
conjunto das relações que os seres humanos da revista.
estabelecem entre si e com a própria nature- Por fim, é importante observar também
za. Esse conceito não aplica a dimensão evo- que, em todas as sondagens feitas sobre qua-
lucionista de uma escalada cada vez maior de lidade de vida, valores não materiais, como
conforto, consumo e bem-estar. Pelo contrá- amor, liberdade, solidariedade e inserção so-
rio, ele se apóia na idéia de excelência das con- cial, realização pessoal e felicidade, compõem
dições de vida (Witier, 1997) e de desenvolvi- sua concepção. Como lembra Witier (1997),
mento sustentável. Questiona as condições para o ser humano, o apetite da vida está estrei-
reais e universais de manutenção de um pa- tamente ligado ao menu que lhe é oferecido. Se-
drão de qualidade de vida fundado no consu- ria, portanto, qualidade de vida uma mera re-
mismo e na exploração da natureza que, pelo presentação social? Sim e não. Sim, pelos ele-
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Minayo, M. C. S. et al.

mentos de subjetividade e de incorporação mento Humano (IDH), elaborado pelo Pro-


cultural que contém. Não, porque existem al- grama das Nações Unidas para o Desenvolvi-
guns parâmetros materiais na construção des- mento (PNUD). O IDH foi criado com a in-
ta noção que a tornam também passível de tenção de deslocar o debate sobre desenvolvi-
apreciação universal, como veremos a seguir. mento de aspectos puramente econômicos –
O patamar material mínimo e universal como nível de renda, produto interno bruto
para se falar em qualidade de vida diz respei- e nível de emprego – para aspectos de nature-
to à satisfação das necessidades mais elemen- za social e também cultural. Embutida nesse
tares da vida humana: alimentação, acesso a indicador encontra-se a concepção de que ren-
água potável, habitação, trabalho, educação, da, saúde e educação são três elementos fun-
saúde e lazer; elementos materiais que têm co- damentais da qualidade de vida de uma popu-
mo referência noções relativas de conforto, lação.
bem-estar e realização individual e coletiva. O IDH é um indicador sintético de quali-
No mundo ocidental atual, por exemplo, é pos- dade de vida que, de forma simplificada, so-
sível dizer também que desemprego, exclusão ma e divide por três os níveis de renda, saúde
social e violência são, de forma objetiva, reco- e educação de determinada população. A ren-
nhecidos como a negação da qualidade de vi- da é avaliada pelo PIB real per capita; a saúde,
da. Trata-se, portanto, de componentes passí- pela esperança de vida ao nascer e a educação,
veis de mensuração e comparação, mesmo le- pela taxa de alfabetização de adultos e taxas
vando-se em conta a necessidade permanen- de matrículas nos níveis primário, secundário
te de relativizá-los culturalmente no tempo e e terciário combinados. Renda, educação e saú-
no espaço. de seriam atributos com igual importância co-
Em resumo, a noção de qualidade de vida mo expressão das capacidades humanas.
transita em um campo semântico polissêmi- O IDH se baseia na noção de capacidades,
co: de um lado, está relacionada a modo, con- isto é, tudo aquilo que uma pessoa está apta a
dições e estilos de vida (Castellanos, 1997). De realizar ou fazer. Nesse sentido, o desenvolvi-
outro, inclui as idéias de desenvolvimento sus- mento humano teria, como significado mais
tentável e ecologia humana. E, por fim, rela- amplo, a expansão não apenas da riqueza, mas
ciona-se ao campo da democracia, do desen- da potencialidade dos indivíduos de serem res-
volvimento e dos direitos humanos e sociais. ponsáveis por atividades e processos mais va-
No que concerne à saúde, as noções se unem liosos e valorizados. Assim, a saúde e a educa-
em uma resultante social da construção cole- ção são estados ou habilidades que permitem
tiva dos padrões de conforto e tolerância que uma expansão das capacidades. Inversamen-
determinada sociedade estabelece, como pa- te, limitações na saúde e na educação seriam
râmetros, para si. obstáculos à plena realização das potenciali-
dades humanas (PNUD, 1990).
O IDH vem recebendo aceitação ampla pe-
Qualidade de vida: las facilidades na obtenção dos índices que o
medidas e padrões gerais compõem – disponíveis na maioria dos países
e regiões do mundo e são construídos com me-
A medida de qualidade de vida, mesmo se é ain- todologia semelhante –, o que garante razoá-
da um instrumento recente e vindo de uma tra- vel grau de aplicabilidade entre realidades to-
dição estrangeira, anglo-saxônica, empirista e talmente diversas. Mas também apresenta li-
utilitarista, é um fato irreversível que vai, pro- mitações que devem ser consideradas, seja no
vavelmente, pertencer ao nosso universo, da mes- uso para comparar qualidade de vida entre ter-
ma forma que a ecografia (Rameix, 1997:89). ritórios, seja ao longo do tempo em um mes-
Tentando sintetizar a complexidade da no- mo território. Por exemplo, discrimina pou-
ção de qualidade de vida e de sua relatividade co os países ou regiões mais desenvolvidas en-
vis-à-vis as diferentes culturas e realidades so- tre si, pois aí, as taxas de analfabetismo têm
ciais, diversos instrumentos têm sido construí- diferenças irrisórias, e apresenta problemas de
dos. Alguns tratam a saúde como componente consistência metodológica quando aplicado a
de um indicador composto, outros têm, no limites geográficos mais restritos, nos quais
campo da saúde, seu objeto propriamente dito. provavelmente os rankings produzidos seriam
Entre os primeiros, talvez o mais conheci- meras reproduções, com poucas diferenças, da
do e difundido seja o Índice de Desenvolvi- diferenciação da renda (Cardoso, 1998).
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Finalmente, o IDH não consegue incorpo- realidades, o ICV é um composto de 20 indica-
rar a essência do conceito central que tenta dores em cinco dimensões: 1) renda (familiar
medir. A esse respeito se refere Dines (1999): per capita, grau de desigualdade, percentagem
desenvolvimento é um processo mais amplo de pessoas com renda insuficiente, insuficiên-
que o mero aumento da promoção, melhoria cia média de renda e grau de desigualdade na
de produção e de índices. Envolve a direção, o população de renda insuficiente); 2) educação
sentido e sobretudo o conteúdo do crescimen- (taxa de analfabetismo, número médio de anos
to. Atualmente, essa dimensão anímica do pro- de estudo, percentagem da população com me-
cesso econômico faz a diferença entre o cresci- nos de 4 anos de estudo, percentagem da po-
mento e o desenvolvimento. Um país pode pulação com menos de 8 anos de estudo e per-
crescer ou deixar de crescer. Mas uma nação centagem da população com mais de 11 anos
desenvolvida nunca pode deixar de sê-lo, por- de estudo); 3) infância (percentagem de crian-
que o desenvolvimento se incorpora às estru- ças que trabalham, percentagem de crianças
turas, às instituições e às mentalidades. E não que não freqüentam escola, defasagem esco-
se desencarna. Da mesma forma, o campo se- lar média e percentagem de crianças com mais
mântico da qualidade de vida na tradição oci- de um ano de defasagem escolar); 4) habita-
dental, além da idéia de desenvolvimento, tran- ção (percentagem da população em domicí-
sita pela crença na democracia. Quanto mais lios com densidade média acima de duas pes-
aprimorada a democracia, mais ampla é a no- soas por dormitório, percentagem da popula-
ção de qualidade de vida, do grau de bem-es- ção que vive em domicílios duráveis e percen-
tar da sociedade e da eqüidade ao acesso aos tagem da população que vive em domicílios
bens materiais e culturais. Manifesta-se de for- com instalações adequadas de esgoto) e 5) lon-
ma palpável na dimensão de convivência en- gevidade (esperança de vida ao nascer e taxa
tre as pessoas, reveladora de urbanidade e res- de mortalidade infantil). O ICV é sintetizado
peito mútuo. Nesse sentido, a força espiritual por meio de vários artifícios metodológicos,
da democracia é um fator de resistência à redu- podendo ser compreendido em toda a sua ex-
ção de todas as esferas da vida, ao fato econô- tensão no trabalho ‘Desenvolvimento huma-
mico (Matos, 1998). no e condições de vida’ resultado da colabora-
Poderia ser criticado ainda do ponto de ção entre FJP/IPEA/IBGE/PNUD (1998).
vista ético-filosófico, na medida que revelaria Mesmo tendo seu espectro de abrangência
um viés etnocêntrico, que toma os padrões muito mais ampliado, o ICV trabalha apenas
ocidentais modernos como modelos de refe- com os aspectos objetivos, passíveis de medi-
rência a serem atingidos por todas as nações ção. É fundamental sua contribuição? Sem dú-
do planeta. Por exemplo, em países em desen- vida, na medida que existe uma intrínseca re-
volvimento com baixo grau de institucionali- lação entre a busca de eqüidade social e a capa-
zação das relações mercantis, a renda é um cri- cidade de desenvolvimento intelectual, de as-
tério pouco efetivo para avaliar a produção e a pirações e de reivindicação de determinada
circulação de bens e riquezas. Por outro lado, população ou grupos sociais.
existem sociedades em que o acesso ao conhe- Além deste conhecido indicador compos-
cimento se dá a partir de meios ligados à tra- to, identificam-se diversos outros, objetivos e
dição ou à transmissão oral, mais eficazes pa- subjetivos, que expressam alguma dimensão
ra lidar com as realidades locais do que a al- da qualidade de vida. Os considerados objeti-
fabetização (Cardoso, 1998). vos referem-se sempre a situações como renda,
Apesar das justas críticas que tem recebi- emprego/desemprego, população abaixo da li-
do, o IDH tem sido bastante utilizado, inclusi- nha da pobreza, consumo alimentar, domicí-
ve no Brasil, e inspirado outros como o Índi- lios com disponibilidade de água limpa, tra-
ce de Condições de Vida (ICV). Desenvolvido tamento adequado de esgoto e lixo e disponi-
pela Fundação João Pinheiro, em Belo Hori- bilidade de energia elétrica, propriedade da ter-
zonte, para estudar a situação de municípios ra e de domicílios, acesso a transporte, quali-
mineiros, foi logo depois adequado, em con- dade do ar, concentração de moradores por
sórcio com o IPEA, o IBGE e o PNUD, para a domicílio e outras.
análise de todos os municípios brasileiros Os de natureza subjetiva respondem a co-
(IPEA/IBGE/FJP/PNUD, 1998). Instrumento mo as pessoas sentem ou o que pensam das
muito mais sofisticado do que o IDH, com a suas vidas, ou como percebem o valor dos
vantagem de poder ser aplicado para micror- componentes materiais reconhecidos como
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Minayo, M. C. S. et al.

base social da qualidade de vida. Deste último complexa resultante social. Concordando, em
caso pode ser exemplo, o Índice de Qualidade termos gerais com esse ponto de vista, nós nes-
de Vida (IQV) de São Paulo, criado pelo jor- te trabalho a entendemos como uma síntese,
nal Folha de S. Paulo, que inclui um conjunto um híbrido biológico-social, mediado por con-
de nove fatores (trabalho, segurança, mora- dições mentais, ambientais e culturais.
dia, serviços de saúde, dinheiro, estudo, quali-
dade do ar, lazer e serviços de transporte). Es-
ses elementos são analisados a partir do pon- Qualidade de vida:
to de vista da população, que é dividida por medidas padrões do setor saúde
faixa de renda, escolaridade, categoria social,
sexo e faixa etária. A pergunta-chave é o grau As definições ampliadas já descritas convivem
de satisfação dos cidadãos, classificado em sa- com outras mais restritas e específicas, como as
tisfatório, insatisfatório e péssimo, em um in- econômicas e como as que também têm sido
tervalo de 0 a 10 (Índice Folha, 1999). Os con- desenvolvidas no setor saúde e que, como já
siderados objetivos referem-se a aspectos glo- dissemos, quase sempre se resumem ao campo
bais e gerais da vida, assim como a satisfação médico. A expressão qualidade de vida ligada à
com domínios específicos da existência. Pes- saúde (QVLS) é definida por Auquier et al.
quisadores da Universidade de Michigan, por e- (1997) como o valor atribuído à vida, ponde-
xemplo, citados por Patrick & Erickson (1993), rado pelas deteriorações funcionais; as per-
avaliaram a importância de cada domínio e de cepções e condições sociais que são induzidas
seus componentes específicos para a satisfa- pela doença, agravos, tratamentos; e a organi-
ção global com o domínio. Os níveis de bem- zação política e econômica do sistema assis-
estar e felicidade foram então correlacionados tencial. A versão inglesa do conceito de health-
a características sociais, geográficas e demo- related quality of life (HRQL), em Gianchello
gráficas específicas. (1996), é similar: é o valor atribuído à dura-
Parece-nos claro, ainda, que a qualidade de ção da vida quando modificada pela percep-
vida não é definível exclusivamente a partir de ção de limitações físicas, psicológicas, funções
critérios científicos ou técnicos. Por essa ra- sociais e oportunidades influenciadas pela
zão, alguns autores remetem a discussão tam- doença, tratamento e outros agravos, tornan-
bém para o âmbito político. Ou seja, os parâ- do-se o principal indicador para a pesquisa
metros para compor um padrão mínimo que avaliativa sobre o resultado de intervenções.
permita a construção de agendas de interven- Sendo utilizado nessa conotação, o HRQL in-
ção ou a avaliação de políticas não são auto- dicará também se o estado de saúde medido
evidentes ou factíveis apenas em gabinetes e ou estimado é relativamente desejável (Gold
laboratórios, devendo resultar de debates so- et al., 1996). Para esses autores, os conceitos
ciais amplos, que estabeleçam consensos mí- fundamentais de HRQL seriam igualmente a
nimos. percepção da saúde, as funções sociais, psico-
No Brasil, um exemplo significativo desse lógicas e físicas, bem como os danos a elas re-
modelo é o IQV de Belo Horizonte, criado a lacionados.
partir de um levantamento das questões con- Mostrando a extrema variabilidade do con-
sideradas relevantes pela população e tendo ceito, a revisão de Ann Bowling (1991) sobre
como objetivo fundamentar os debates públi- as escalas de qualidade de vida relacionadas
cos sobre o orçamento participativo. No en- com saúde inclui medidas de capacidade fun-
tanto, mais do que um índice sintético, o cional, do estado de saúde, de bem-estar psico-
IQV/BH seria um indicador setorial de carên- lógico, de redes de apoio social, de satisfação
cias, permitindo não apenas hierarquizar áreas, e estado de ânimo de pacientes. Em geral, de
mas também identificar problemas a serem forma implícita ou explícita, toda medida re-
enfrentados em cada bairro. pousa sobre teorias que guiam a seleção de
Pode-se observar, por fim, que nenhum procedimentos de mensuração. Auquier et al.
componente propriamente médico (ou sequer (1997) consideram que três correntes orien-
de indicadores clássicos de morbi-mortalida- tam a construção dos instrumentos hoje dis-
de) entra na composição dos indicadores com- poníveis: o funcionalismo, que define um es-
postos de qualidade de vida. Ou seja, tanto o tado normal para certa idade e função social
IDH, o ICV, como outros já citados tratam a e seu desvio, ou morbidade, caracterizado por
saúde como um dos componentes de uma indicadores individuais de capacidade de exe-
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cução de atividades; a teoria do bem-estar, que subseqüente à experiência de doenças, agra-
explora as reações subjetivas das experiências vos ou intervenções médicas. Referem-se a
de vida, buscando a competência do indiví- doenças crônicas – como câncer, diabete, do-
duo para minimizar sofrimentos e aumentar ença coronariana e cerebrovascular, Parkin-
a satisfação pessoal e de seu entorno e a teoria son e outros problemas do sistema nervoso,
da utilidade, de base econômica, que pressu- hepatites e artrites crônicas, asma brônquica
põe a escolha dos indivíduos ao compararem e outras doenças respiratórias – ou a conse-
um determinado estado de saúde a outro. qüências crônicas (seqüelas ou medidas cura-
Em relação ao campo de aplicação, as me- tivas e reabilitadoras) de doenças ou agravos
didas podem ser classificadas como genéricas, agudos, como problemas neurológicos pós-
se usam questionários de base populacional traumáticos, transplantes, uso de insulina e
sem especificar patologias, sendo mais apro- outros medicamentos de uso prolongado. Vá-
priadas a estudos epidemiológicos, planeja- rios instrumentos incluem indicadores para
mento e avaliação do sistema de saúde. Um aspectos subjetivos da convivência com doen-
desses instrumentos foi desenvolvido pela ças e lesões, como sentimentos de vergonha
OMS que recentemente criou o Grupo de Qua- e culpa, que trazem conseqüências negativas
lidade de Vida, The WHOQOL Group (1995), sobre a percepção da qualidade de vida por
e definiu o termo como a percepção do indiví- parte dos indivíduos acometidos e suas famí-
duo de sua posição na vida, no contexto da cul- lias.
tura e do sistema de valores em que vive e em Bley et al. (1997) falam da multiplicidade
relação aos seus objetivos, expectativas, padrões de usos profanos do conceito, particularmen-
e preocupações. Assim, o instrumento desen- te no domínio da comunicação e do consumo
volvido por esse organismo internacional em e alertam para o fato de que, embora a OMS
estudo multicêntrico baseia-se nos pressupos- considere que se deveria prioritariamente me-
tos de que qualidade de vida é uma constru- dir a qualidade de vida de cinco grupos (pa-
ção subjetiva (percepção do indivíduo em cientes crônicos, seus familiares e pessoal de
questão), multidimensional e composta por suporte, pessoas em situações extremas, com
elementos positivos (por exemplo, mobilida- dificuldade de comunicação, e crianças), os
de) e negativos (dor). estudo têm-se concentrado nos pacientes crô-
O grupo desenvolveu, até o momento, dois nicos, o que é facilmente evidenciável nas ba-
instrumentos gerais de medida de qualidade de ses bibliográficas. Hubert (1997) julga tam-
vida: o WHOQOL-100 e o WHOQOL-Bref. O bém que a literatura sobre qualidade de vida
primeiro consta de 100 questões que avaliam é essencialmente medicalizada, adotando uma
seis domínios: a) físico, b) psicológico, c) de visão bioestatística e economicista da saúde.
independência, d) relações sociais, e) meio am- Durand et al. (1997) acrescentam que os estu-
biente e f) espiritualidade/crenças pessoais. O dos são funcionalistas e focalizados no custo-
segundo instrumento é uma versão abrevia- efetividade.
da, com 26 questões, extraídas do anterior, en- No âmbito médico, desenvolveram-se tam-
tre as que obtiveram os melhores desempe- bém instrumentos de avaliação de qualidade
nhos psicométricos, cobrindo quatro domíni- de vida, focalizados, primeiramente, sobre a
os: a) físico, b) psicológico, c) relações sociais idéia de complementar as análises de sobrevi-
e d) meio ambiente. A versão em português – da. Esses estudos evoluíram para integrar aná-
inclusive dos questionários – está disponível lises de custo-utilidade, em voga na década de
no Brasil, no Grupo de Estudos sobre Quali- 1980, que ampliavam a visão restrita nos tra-
dade de Vida, do Departamento de Psiquiatria balhos de custo-eficácia dos anos 70, critica-
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul dos por se deterem apenas em indicadores clí-
e no Hospital das Clínicas do Paraná. nicos (Hartz & Pouvourville, 1998). A argu-
Outras modalidades de mensuração po- mentação tornou-se, assim, a de que a quali-
dem ser classificadas como específicas. Muitas dade de vida dos pacientes deveria alcançar
podem ser encontradas na literatura sobre saú- um patamar melhor do que o anterior à inter-
de e qualidade de vida, mormente nas fontes venção (Auray & Duru, 1995). Desde então,
anglo-saxãs (volumes e fascículos do periódi- passou-se a considerar que os estudos de cus-
co Quality of Life Research). Os estudos apon- to-utilidade são apropriados quando a quali-
tam, em geral, para situações relacionadas à dade de vida é um resultado importante,
qualidade da vida cotidiana dos indivíduos, usualmente apresentado como custo por ano
14
Minayo, M. C. S. et al.

de vida ganho, ajustado pela qualidade ou Para Maynard & Bloom (1998), o idadeís-
QALY (quality-adjusted life-years). mo é um dos principais problemas do QALY,
Auquier et al. (1997) propõem uma taxo- na medida que embute preconceito contra o
nomia das medidas, que vão de indicadores idoso, considerando-o sempre com menor ex-
simples a baterias ou conjunto de instrumen- pectativa e menor qualidade de sobrevida, no
tos, com indicadores e metrologias específi- que se refere a procedimentos médicos. Obser-
cas. Mesmo que não permitam agregar dados, va-se a mesma lógica discriminatória em re-
segundo os autores, sua importância residiria lação aos portadores de deficiência física, pois
na possibilidade de comparação de resultados. jamais partem de uma qualidade de vida = 1.
Nesse sentido, o QALY seria o mais apropria- Mesmo no sistema de saúde inglês, onde o
do, por combinar abordagem de quantidade e QALY se originou, tentou-se generalizar seu
qualidade de vida em uma estimativa de cus- uso a qualquer novo tratamento com finan-
to-oportunidade, para orientar a decisão de ciamento público, mas somente em 27 dos 95
alocação de recursos, envolvendo profissionais projetos foi possível calcular e em apenas 10
de saúde pública e economistas. Porém, sobre se pôde comparar com o tratamento anterior
a interpretação multiprofissional, Lebrun & (Castiel, 1995). Segundo Castiel, embora um
Sailly (1996) destacam contradições, uma vez fator como o QALY ajude a decisão sobre o
que os problemas suscitados para os econo- que fazer, não pode seguir apenas a lógica ma-
mistas, na definição e medida de qualidade de temática. Assim, muitos estudos se tornam
vida, são diferentes dos que têm médicos e psi- inúteis e alguns chegam a considerar o uso do
cometristas pois, para a medicina baseada em QALY efeito perverso ampliado da esperança
evidências, o único critério é a eficácia clínica. de vida ao nascer (Castiel, 1995).
Matematicamente, o QALY é calculado co- Para Green (1995), a questão ética chave é:
mo a soma do produto de anos de vida e a qua- quem fará as escolhas subjetivas que determi-
lidade de vida em cada um desses anos. A um nam o QALY? Seriam os profissionais de saú-
ano de vida em ótima saúde é atribuído o va- de, o público em geral ou os pacientes que vi-
lor 1 (um) e o valor 0 (zero) para o óbito (Das- venciam as condições analisadas, uma vez que
bach & Teutsch, 1996). O estado de saúde po- são três lógicas diferentes em jogo? Por esse
de ser medido direta ou indiretamente. Na for- motivo, Schlenk et al. (1998) demonstram que
ma direta, é o indivíduo que valoriza seu es- é preciso coletar opiniões diversas ao compa-
tado de saúde feito sob a forma de loteria, in- rar portadores de doenças crônicas com pes-
dagando-se sobre a escolha de um estado de- soas saudáveis. Oleske (1995) comenta que um
sejável, a probabilidade de melhorá-lo e a mor- dos problemas, dentro da perspectiva epide-
te. A abordagem indireta refere-se a preferên- miológica, é que as medidas não contemplam
cias do público em geral. A qualidade de vida qualquer pressuposto sobre a intensidade ou
é estimada usando dados que combinam di- duração dos sintomas ou acerca da existência
versas dimensões para computar uma série de de patologias associadas.
valores atribuídos matematicamente no mo- Outros autores, como Moatti (1996), ad-
delo multi-attribute-utility (MAU). vertem para os perigos do utilitarismo, que
As incertezas do QALY são relacionadas apresenta pelo menos dois problemas. Primei-
por Briggs (1995): a) tipos de dados requeridos ro, a lei de rendimentos decrescentes do siste-
– indicadores de recursos e estados conseqüen- ma de saúde, pois quanto mais se ampliam as
tes a intervenções ou tecnologias comparadas indicações de tecnologias, maiores são os cus-
só seriam otimizados com o uso simultâneo tos por unidade de resultado. Outro perigo se-
de avaliação clínica e econômica na mesma ria a tentação, para a saúde pública, de querer
população; b) extrapolação de dados, referin- hierarquizar os custos por QALY.
do-se a resultados clínicos intermediários, ex- Uma variante do QALY apareceu em 1994,
trapolados para finalísticos; c) generalização quando a OMS publicou uma série de traba-
de resultados evidenciando dificuldades rela- lhos, cujo objetivo era a medida da carga glo-
cionadas a diferenças demográficas, epidemio- bal de doenças (global burden disease, GBD)
lógicas, preços e custos e variações na prática em diversas regiões do mundo, como descri-
clínica e d) discordância na escolha de méto- tora do estado de saúde das populações. Espe-
dos analíticos e de metodologias entre econo- rava-se que o novo indicador fosse capaz de
mistas, assim como problemas ético-morais re- superar as insuficiências do QALY, na medida
ferentes a escolhas. que: a) incorpora condições não fatais na apre-
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ciação do status da saúde; b) desliga epidemio- DALY foi utilizado no Relatório Anual do Ban-
logia de advocacia, visando a produzir avalia- co Mundial de 1993, comparando a carga de
ção objetiva e demograficamente plausível da doenças nas diversas regiões do mundo e o
carga de doenças e outras condições particula- custo-efetividade de uma variedade de inter-
res e c) mede a carga de doença e incapacida- venções que lidam com esses problemas (Hin-
de em termos de custo por unidade de caso man, 1997). O propósito é redirecionar os re-
evitado, valorizando o custo-efetividade das cursos das intervenções ditas de maior custo
intervenções. por DALY ganho, de modo a garantir um pa-
O QALY posteriormente foi substituído cote mínimo que reduza a carga das doenças,
por DALY (disability-adjusted life-years), em sem aumentar os recursos da saúde. Para Das-
português, anos de vida corrigidos pela inca- bach & Teutsch (1996), embora o Banco Mun-
pacidade (AVCI). A mudança fundamental en- dial venha usando o DALY para comparar con-
tre um e outro é que o DALY, em lugar de bus- dições de saúde, falta-lhe o rigor de outras me-
car o valor subjetivo atribuído pelos indiví- didas de preferência, uma vez que esse indica-
duos a cada um dos estados de saúde, é cons- dor utiliza apenas as preferências de um gru-
truído a partir da mortalidade estimada para po de especialistas.
cada doença e seu efeito incapacitante, ajus- O indicador healthy life-year (HeaLY), que
tado pela idade das vítimas; e uma taxa de combina anos de vida perdidos pela morbida-
atualização, para calcular o valor de uma per- de com os que são atribuídos a mortalidade
da futura. O conceito de incapacidade foi defi- prematura e pode ser aplicado a indivíduos e
nido com a arbitragem exclusiva de especia- a populações, foi comparado com o DALY por
listas internacionais, segundo eles, buscando Hyder et al. (1998), demonstrando ser mais
o máximo de objetividade (Brunet-Jailly, compreensível, mais simples e flexível. Esses
1997). Para calcular o DALY total de uma de- atributos, que facilitam sua utilização para to-
terminada condição (acidentes de trânsito em mada de decisão, lhes pareceram suficientes
uma auto-estrada, por exemplo), soma-se o para que o recomendassem como medida da
número de anos perdidos em óbitos prematu- carga de doença ou identificar grupos mais
ros por essa causa e o total de anos vividos com vulneráveis, ao se avaliarem o custo e os be-
incapacidades de conhecida severidade e du- nefícios dos programas de intervenção.
ração, pelos sobreviventes de tais acidentes.
Um óbito prematuro é definido como aquele
que ocorre antes da idade que se esperaria so- Potencial das medidas de qualidade
breviver ao se padronizar a expectativa de vi- de vida e a busca da promoção da saúde:
da pela mais longa do mundo, no caso a do Ja- orientando o debate
pão, hoje em 82,5 anos para a mulher e 80 anos
para o homem. Como se pode concluir, o tema qualidade de
Para se calcular o número de anos vividos vida é tratado sob os mais diferentes olhares,
com uma condição incapacitante, parte-se da seja da ciência, através de várias disciplinas,
incidência, a idade média de início da doen- seja do senso comum, seja do ponto de vista
ça, a média de duração da incapacidade (me- objetivo ou subjetivo, seja em abordagens in-
ses ou anos) e a severidade dos casos com ou dividuais ou coletivas. No âmbito da saúde,
sem tratamento. O cálculo de severidade se ba- quando visto no sentido ampliado, ele se apóia
seia em um conjunto de indicadores de 22 con- na compreensão das necessidades humanas
dições classificadas em 7 níveis, ponderadas fundamentais, materiais e espirituais e tem no
de 0 (zero) a 1 (um). conceito de promoção da saúde seu foco mais
Apesar das dificuldades de se ponderar os relevante. Quando vista de forma mais foca-
referidos valores, os autores relatam uma gran- lizada, qualidade de vida em saúde coloca sua
de concordância intercultural de profissionais centralidade na capacidade de viver sem doen-
de vários países do mundo, na arbitragem ou ças ou de superar as dificuldades dos estados
nas negociações para consenso de graus de se- ou condições de morbidade. Isso porque, em
veridade e outras implicações das escolhas de geral, os profissionais atuam no âmbito em
quantidade e qualidade de vida. Essas opções que podem influenciar diretamente, isto é, ali-
afrontam o que seria moralmente aceitável, viando a dor, o mal-estar e as doenças, inter-
porém são praticadas implicitamente nos sis- vindo sobre os agravos que podem gerar de-
temas de atenção à saúde em todo mundo. O pendências e desconfortos, seja para evitá-los,
16
Minayo, M. C. S. et al.

seja minorando conseqüências dos mesmos Dentro do mesmo pensamento, Castiel (1995)
ou das intervenções realizadas para diagnos- comenta que um julgamento apenas econô-
ticá-los ou tratá-los. mico como o que domina o debate da quali-
Assim, ainda que reconheça que podero- dade de vida em saúde não pode ser ético.
sos determinantes estejam freqüentemente si- Tampouco seria ético desconsiderar o econô-
tuados fora do setor e bastante ligados ao que mico no processo das escolhas, sobretudo em
se consideraria, no senso comum, como com- saúde, onde a tendência dos custos é sempre
ponentes da qualidade de vida, o sistema de crescente.
saúde não intervém sobre eles; sente-se impo- Nos últimos dez anos, a utilização dos
tente ou simplesmente passa ao largo de tais QALY vem sendo intensamente discutida, por-
relações. Na maioria das vezes, adota uma po- que o problema dos custos tem que ser encara-
sição exclusivamente retórica quanto aos cha- do, já que representam sacrifícios impostos a
mados determinantes extra-setoriais que são, outros que não poderão ser tratados. Por ou-
em grande parte, os mais relevantes compo- tro lado, os que julgam ser imoral arbitrar o
nentes da qualidade de vida e também de uma valor da vida de outros e preferem deixá-la ao
vida saudável. Até mesmo o papel de media- azar da oferta de serviços assumem a pragmá-
ção intersetorial e entre a população sob ris- tica idéia de que o primeiro a chegar é o pri-
co ou em situação de vulnerabilidade e o po- meiro a ser servido.
der público – bastante preconizado como es- Maynard & Bloom (1998) reiteram o con-
tratégia para a promoção da saúde – tem sido senso entre especialistas de que a escassez, em
pouco acionado pelo setor, na maior parte dos sua ubiqüidade, implica sempre a escolha de
países do mundo. que qualquer prestação de serviço envolve a
Por outro lado, é preciso assinalar também decisão de não oferecer um outro. Reconside-
que, embora se saiba que o estado de saúde de rando o problema das escolhas individuais de
indivíduos e coletividades, assim como o siste- utilidade coletiva, duas hipóteses se colocam:
ma de saúde, influenciam e são influenciados a) todos os indivíduos do grupo social têm as
pelo ambiente global, há que se reconhecer mesmas preferências e assim se tenta determi-
que nem todos os aspectos da vida humana nar a utilidade atribuída a cada estado de saú-
são, necessariamente, uma questão médica ou de e b) as preferências diferem e a agregação
sanitária. A ação governamental ou comuni- escolhida deve ser claramente justificada, ad-
tária sobre os mesmos está compartimentali- mitindo-se que alguns impõem suas preferên-
zada em setores econômicos e sociais e distri- cias como ditadores invisíveis.
buída entre diferentes grupos de interesse e Partindo das idéias anteriores e corrobo-
organizações. Desse modo, pode-se dizer que rando a afirmativa de Rameix (1997), de que a
a questão da qualidade de vida diz respeito ao medida da qualidade de vida no universo da
padrão que a própria sociedade define e se mo- saúde é irreversível, torna-se fundamental uma
biliza para conquistar, consciente ou incons- precaução para que sua utilidade, ao definir
cientemente, e ao conjunto das políticas pú- prioridades no racionamento de recursos, não
blicas e sociais que induzem e norteiam o de- seja confundida com a máquina de triturar
senvolvimento humano, as mudanças positi- oposições, com que Cevasco (1999) rotula uma
vas no modo, nas condições e estilos de vida, das características eficazes do neoliberalismo.
cabendo parcela significativa da formulação e Por outro lado, torna-se necessário investir
das responsabilidades ao denominado setor muito ainda no aprofundamento do conceito
saúde. e da mediação de promoção da saúde para que
Dentro da perspectiva médica, autores co- signifique mais do que uma idéia de senso co-
mo Bausell (1998) julgam que, dada a grande mum, programa ideológico, imagem-objetivo
abundância das atuais medidas de qualidade e possa nortear o sentido verdadeiramente po-
de vida, essas deveriam ser consideradas o sitivo de qualidade de vida.
ponto de partida para as políticas de atenção.
Dechamp-Le Roux (1997) considera que a ava-
liação de qualidade de vida dá alma à tecno-
logização excessiva do setor. Porém, na medi-
da que não leva em conta fatores sociais e eco-
nômicos, seu alcance passa a ser muito restri-
to, reproduzindo a lógica apenas biomédica.
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Ciência & Saúde Coletiva, 5(1):7-18, 2000


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