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por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

G233 Garmes, Hélder; Siqueira, José Carlos / Cultura e Memória


na Literatura Portuguesa. / Hélder Garmes; José Carlos
Siqueira — Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2009.
200 p.

ISBN: 978-85-387-0784-4

1. Literatura Portuguesa – História e crítica. 2. Movimentos


literários. 3. Portugal – História. I. Título.

CDD 869.09

Capa: IESDE Brasil S.A.


Imagem da capa: IESDE Brasil S.A.

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Saudade e saudosismo
na Literatura Portuguesa

A saudade
Floresce entre os Portugueses a saudade por duas causas, mais certas em nós que em
outra gente do mundo; porque de ambas estas causas têm o seu princípio. Amor e ausên-
cia são os pais da saudade; e como o nosso natural é, entre as mais nações, conhecido por
amoroso, e as nossas dilatadas viagens ocasionam as maiores ausências; de aí vem que
donde se acha muito amor e ausência larga, as saudades sejam mais certas, e esta foi sem
falta a razão por que entre nós habitassem, como em seu natural centro.

Francisco Manuel de Melo

D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666), autor da nossa epígrafe (apud


CAÑADA, 2003, p. 212) é o nome maior do Barroco português (1580-1756).
Ele também é considerado o primeiro teórico desse fenômeno de psicolo-
gia social, mas também uma manifestação cultural e literária, que é a sauda-
de portuguesa. O que deve chamar nossa atenção é que, já no século XVII,
tal característica nacional estava tão bem assentada e consciente por parte
dos portugueses que um de seus mais ilustres poetas decide analisar o fe-
nômeno, buscando suas especificidades e seu valor intrínseco.

E, como que confirmando a antiguidade e a profundidade dessa sau-


dade tipicamente portuguesa, uma das mais célebres definições do sen-
timento da saudade foi feita pelo infante D. Duarte (1391-1438), que foi o
11.o rei de Portugal, um dos principais promotores do início da expansão
marítima lusa, um excelente poeta e um pensador razoável. Em uma de
suas obras – O Leal Conselheiro (1437-1438), uma coletânea de ensaios
sobre assuntos variados –, o rei-filósofo assim descreve a saudade:
A saudade [...] é um sentido do coração que vem da sensualidade,1 e não da razão, e faz
sentir às vezes os sentidos da tristeza e do nojo.2 E outros vêm daquelas cousas que o
homem praz3 que sejam, e alguns com tal lembrança que traz prazer e não pena. E em
casos certos se mistura com tão grande nojo, que faz ficar em tristeza. (apud MOISÉS,
1998, p. 59)

1
Neste caso, sensualidade significa “sensibilidade, sensação”.
2
Neste caso, nojo significa “sofrimento”.
3
Dar prazer.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

O importante nessa definição é o caráter paradoxal de tal sentimento: ele


pode dar prazer ou trazer sofrimento. Mais adiante, D. Duarte faz uma decla-
ração que repercute até hoje: “Parece este nome de saudade tão próprio, que
o Latim nem outra linguagem que eu saiba não é para tal sentido semelhante”
(apud MOISÉS, 1998, p. 59). Por isso é um lugar comum se ouvir que o conceito
saudade só existe na língua portuguesa, o que na verdade é uma imprecisão
linguística, mas que dá a dimensão de o quanto esse sentimento foi apropriado
pela cultura lusitana para definir sua própria identidade.

Voltando a Francisco Manuel de Melo, também ele propõe uma definição de


saudade que ganhou enorme fama e influenciou poetas e artistas posteriores:
“É a saudade uma mimosa paixão da alma, e por isso tão sutil, que equivocada-
mente se experimenta, deixando-nos indistinta a dor da satisfação. É um mal de
que se gosta, e um bem, que se padece” (apud LOURENÇO, 1999, p. 30). Melo
reformula assim a contradição já presente na definição de D. Duarte: simultane-
amente ela é um mal e um bem, dá prazer e dor.

No caso de Portugal, recordando a nossa epígrafe, as causas que deflagram


“tão sutil” e “mimosa paixão da alma” são o amor e a ausência. Segundo o poeta
barroco, os portugueses amam com mais intensidade que os outros povos e,
em razão das grandes navegações, com mais frequência os seus compatriotas
tendem a se afastar de quem tanto amam, em maior distância e por muito mais
tempo, condições que proporcionalmente ampliam a saudade, tornando esse
sentimento levado ao extremo uma marca distintiva do espírito lusíada.

Dessa interlocução forçada entre um rei medieval e um poeta barroco, deve-


mos reter algumas das principais ideias sobre a saudade portuguesa:

 a ênfase no caráter paradoxal desse sentimento;

 sua apropriação como um traço da nacionalidade lusa;

 a surpreendente relação com a expansão marítima; e

 sua ligação com o próprio idioma português.

Com tais concepções em mente, faremos um périplo pela história da litera-


tura de Portugal, que não terá o propósito de esgotar o tema, nem de analisar
todos os autores “saudosistas”, mas sim de procurar entender as permanências e
alterações que esse sentimento vai sofrendo ao longo do tempo.

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Bernardim Ribeiro: a saudade durante o Humanismo


O poeta e prosador Bernardim Ribeiro (1480-1540) é, sem dúvida, um dos
maiores nomes da corrente humanista em Portugal (1418-1527). De sua autoria,
além de alguns poucos versos, sobreviveram o romance (que era um tipo de
poema) Ao Longo de uma Ribeira (1550) e a novela Menina e Moça (1554), que é
um marco da prosa portuguesa e o mais significativo texto do Humanismo.

Menina e Moça é uma longa narrativa em prosa cuja característica mais desta-
cada é o fato de o narrador, em primeira pessoa, ser uma mulher, algo incomum
nas novelas da época. Muitos estudiosos fazem um paralelo entre Menina e Moça
e as cantigas de amigo – da época trovadoresca –, que também apresentavam
um eu poético feminino. Nessa novela de Bernardim – assim como em seus
poemas –, o amor é sempre sinônimo de insatisfação, os desejos se mantêm ir-
realizados e o sofrimento é a tônica da vida. A narradora passa os dias sozinha, à
beira de um regato, a chorar. E é nesse estado que ela conta eventos de sua vida
e as histórias que ouviu contar.

Um dos episódios mais conhecidos em Portugal e que se tornou quase um


símbolo nacional é o do rouxinol:
Não tardou muito que, estando eu assi cuidando, sobre um verde ramo que por cima da água
se estendia, se veio aposentar um rouxinol; e começou tão docemente cantar que de todo me
levou após se o meu sentido de ouvir. E ele cada vez crescia mais em seus queixumes, cada ora
parecia que como cansado queria acabar, senão quando tornava como que começava então.
A triste da avezinha que estando-se assi queixando, não sei como, caio morta sobre a água, e
caindo por entre as ramas, muitas folhas caíram também com ela. (RIBEIRO, 2008, p. 4)

A figura de linguagem que sobressai nesse trecho é a prosopopeia, por


meio da qual o rouxinol se humaniza. Seu canto parece poeticamente refletir
sua solidão, sua saudade e sua tristeza, tão grandes a ponto de transformar
seu canto em um som inebriante, mas também possivelmente a causa de sua
súbita morte. E a moça? “O coração me doeu tanto [...], que não pude ter as
lágrimas” (RIBEIRO, 2008, p. 5).

Pode-se ler nesse episódio uma metáfora da saudade, pois conforme a


definição de Francisco Manuel de Melo, o mesmo sentimento que causa a
beleza do canto da ave é o que acarreta sua dor e leva o rouxinol à morte:
“Mal de que se gosta, e um bem, que se padece”. A história do rouxinol foi
retomada pelas futuras gerações, sendo interpretada como símbolo da sau-
dade portuguesa.

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A saudade romântica de Almeida Garrett


Almeida Garrett (1799-1854) estudou na Uni-

Divulgação Instituto Camões.


versidade de Coimbra, onde estreou nas letras
escrevendo poemas e peças de teatro de gosto
neoclássico. Em 1825, publicou em Paris o longo
poema narrativo intitulado Camões, hoje con-
siderado o marco inaugural do romantismo
português.

Garrett reconstrói o poeta Camões como um


“gênio romântico”, um herói do povo português
e alguém que encerra em sua vida e em sua obra Uma edição do poema Camões,
de Almeida Garrett, com retrato
um dos mais caros traços da nacionalidade: a sau-
do autor na capa.
dade. Nas suas notas ao poema Camões, Garrett
afirma que
A palavra Saudade é porventura o mais doce, expressivo e delicado termo da nossa língua. A
ideia, ou sentimento por ela reportado, certo que em todos os países o sentem; mas que haja
vocábulo especial para o designar, não sei de nenhuma outra linguagem senão da portuguesa.
[...]

De saudade quisera eu dizer ainda alguma coisa. – Saudade, palavra, cuido que vem, por
derivação oblíqua, do latino solitudo. Oblíqua digo, porque direitamente derivaram os nossos
de solitudo, solidão, soidão e depois soledade, soidade, finalmente saudade. De modo que,
por esta síntese (ou pela análise, que é óbvia), se vem a entender claramente que o verdadeiro
sentido de saudade é – os sentimentos ou pensamentos da soledade ou solidão ou soidão; o
desejo melancólico do que se acha na solidão, ausente, isolado de objectos por que suspira,
amigos, amante, pais, filhos etc. – E tanto por saudade se deve entender este desejo do ausente
e solitário, que os Latinos, à míngua de mais próprio termo, o expressavam pelo seu desiderium.
(GARRETT, s/d, p. 189, 191)

Garrett repõe a questão da exclusividade da língua portuguesa em relação à


ideia de saudade, que vinha desde o rei D. Duarte, como já vimos. Em sua análise,
o poeta romântico adiciona mais um traço semântico ao vocábulo: a solidão.

Camões (Canto primeiro, I)


Saudade! gosto amargo de infelizes,
Delicioso pungir de acerbo espinho,
Que me estás repassando o íntimo peito
Com dor que os seios de alma dilacera,
– Mas dor que tem prazeres – Saudade!
Misterioso númen que aviventas
Corações que estalaram, e gotejam

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Não já sangue de vida, mas delgado


Soro de estanques lágrimas – Saudade!
Mavioso nome que tão meigo soas
Nos lusitanos lábios, não sabido
Das orgulhosas bocas dos Sicambros
Destas alheias terras – Oh Saudade!
Mágico númen que transportas a alma
Do amigo ausente ao solitário amigo,
Do vago amante à amada inconsolável,
E até ao triste ao infeliz proscrito
– Dos entes o misérrimo na terra –
Ao regaço da pátria em sonhos levas,
– Sonhos que são mais doces do que amargo,
Cruel é o despertar! – Celeste númen,
Se já teus dons cantei e os teus rigores
Em sentidas endechas, se piedoso
Em teus altares húmidos de pranto
Depus o coração que inda arquejava
Quando o arranquei do peito malsofrido
À foz do Tejo – ao Tejo, ó deusa, ao Tejo
Me leva o pensamento que esvoaça
Tímido e acovardado entre os olmedos
Que as pobres águas deste Sena regam,
Do outrora ovante Sena. Vem, no carro
Que pardas rolas gemedoras tiram,
A alma buscar-me que por ti suspira. (GARRET, s.d., p. 1)

A estrofe de abertura do canto primeiro de Camões surge para nós como uma
síntese de tudo o que até agora discutimos sobre a saudade. Seguindo a forma
épica, esse texto seria a invocação às musas, que no caso não é nenhuma das
deusas gregas, mas sim a Saudade. O narrador é o próprio Garrett que, depois
de anos de ausência de seu país e de muitas aventuras, suplica então à nova
musa Saudade que lhe inspire a dor, o prazer e a beleza causadas pela distância
de Portugal, dos amigos e amados, e pela solidão – para que então possa com
talento cantar Camões, que como ele fora poeta, guerreiro, aventureiro, solitário
etc. e padecera de saudades.

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Todas as características da saudade portuguesa estão presentes aqui:

 o paradoxo da saudade – “Mas dor que tem prazeres – Saudade!”;

 a exclusividade da língua portuguesa – “Mavioso nome que tão meigo soas/


Nos lusitanos lábios, não sabido/ Das orgulhosas bocas dos Sicambros”;

 as longas ausências como causa da saudade – “Depus o coração que inda


arquejava/ Quando o arranquei do peito malsofrido/ À foz do Tejo”;

 a solidão – “Do amigo ausente ao solitário amigo”;

 o intenso amor – “Do vago amante à amada inconsolável”.

É nesse quadro de solidão, ausência e desejo que nosso autor vai enquadrar
Camões: há a saudade de Camões pela pátria (durante sua peregrinação pela
Ásia e a redação de Os Lusíadas) e a saudade dos portugueses oitocentistas pelas
glórias do século XVI, das quais o autor da grande epopeia lusitana se revelaria
o símbolo máximo.

A saudade simbolista de António Nobre


Se a solidão passou a ser um elemento constitutivo da saudade portuguesa
com Garrett, será um poeta do simbolismo português, António Nobre (1867-
1900), que levará essa ideia adiante. Nobre teve uma vida curta e uma obra mais
curta ainda. Morto aos 33 anos de idade, vítima da tuberculose, deixou publi-
cado, em 1892, só um livro de poemas – por sinal intitulado Só –, que teve uma
segunda edição em 1898, com várias alterações, sendo considerada a versão
definitiva. O poeta ainda preparava um outro livro, intitulado Despedidas, que
ficou inconcluso e foi publicado postumamente. De sua autoria ainda se podem
encontrar os Primeiros Versos, com poemas da tenra juventude, compostos antes
do livro Só, reunidos e publicados também postumamente.

Uma das contribuições poéticas de António Nobre foi a utilização do registro


coloquial. Em seus versos encontramos o tom prosaico característico do poeta
decadentista francês Jules Laforgue (1860-1887), mas também da tradição lírica
portuguesa, em especial a de Almeida Garrett. A poesia de António Nobre se volta
para o passado, o paraíso mítico de sua infância. A decadência de Portugal ao final
do século XIX, depois do Ultimatum Inglês (1890), parece atingir todos os setores

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da vida da nação e aparentemente não se vê uma solução possível. O poeta então


procura se afastar desse tédio decadente idealizando um perdido passado mítico.

Os ambientes provincianos e as recordações da infância são registrados em


António Nobre por meio de técnicas do simbolismo, nas quais são frequentes as
sinestesias e as atmosferas vagas ou nebulosas. É um poeta que se insere mais
no decadentismo, comum aos poetas crepusculares, do que propriamente no
Simbolismo.
Soneto
Virgens que passais, ao Sol-poente,
Pelas estradas ermas, a cantar!
Eu quero ouvir uma canção ardente,
Que me transporte ao meu perdido lar.

Cantai-me, nessa voz onipotente,


O sol que tomba, aureolando o Mar
A fartura da seara reluzente,
O vinho, a graça, a formosura, o luar!

Cantai! Cantai as límpidas cantigas!


Das ruínas do meu lar desaterrai
Todas aquelas ilusões antigas

Que eu vi morrer num sonho, como um ai....


Ó suaves e frescas raparigas,
adormecei-me nessa voz... cantai! (NOBRE, 1979, p. 150)

A essa atmosfera crepuscular, Nobre vai adicionar uma visão infantil, vendo
o mundo de uma perspectiva aparentemente ingênua. A seleção de palavras
simples indica uma aproximação com o povo e, o pessimismo dos versos não é
propriamente individual, pois a situação de miséria que se sente nesses versos
tem na verdade um sentido nacional – é de todo o país.
Saudade

Saudade, saudade! palavra tão triste,

E ouvi-la faz bem: Meu caro Garrett, tu

bem na sentiste,

Melhor que ninguém!

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Saudades da virgem de ao pé do Mondego,

Saudades de tudo: Ouvi-las caindo da

boca dum Cego,

Dos olhos dum Mudo!

Saudades de Aquela que, cheia de linhas,

De agulha e dedal, Eu vejo bordando

Galeões e andorinhas

No seu enxoval.
Saudades! e canta, na Torre deu a hora
Da sua novena: Olhai-a ! dá
ares de Nossa Senhora,
Quando era pequena. [...] (NOBRE, 1979, p. 69)

A visão nostálgica do poeta se volta também para a tradição literária portu-


guesa. Trata-se de uma evasão do presente, em que os mitos pátrios são proje-
tados na infância, à moda neogarrettista da época. O poeta recusa a realidade
presente, porque nela encontra o domínio dos ideais burgueses urbanos. Em
António Nobre se destacam assim duas qualidades: seu individualismo na ver-
dade faz eco ao sentimento coletivo de um Portugal amargurado e humilhado;
e ele representa isso com a liberdade formal que só o Simbolismo possibilitou
aos poetas no final do século XIX, mesmo que nem todas as características desse
movimento se apresentem em sua poética.

Saudade e saudosismo no século XX


O saudosismo é uma corrente estética que nasce estreitamente ligada ao mo-
mento político e com um sentido também político. A república acabara de ser
proclamada (1910) e um grupo de intelectuais estabelecido na cidade do Porto
se incumbiu de dar ao novo regime um lastro doutrinário e cultural que eles
acreditavam necessário ao país, a fim de sedimentar a república e possibilitar o
seu sucesso.

Entre esses pensadores e literatos podemos destacar Jaime Cortesão, um


importante historiador; Leonardo Coimbra, renomado educador; e Teixeira de

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Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa

Pascoaes, grande poeta desse período. Junto com outros, eles fundaram uma or-
ganização de cunho sociocultural chamada Renascença Portuguesa (1912). Entre
outras atividades, essa organização publicou uma revista mensal de literatura e
cultura, A Águia, que seria o grande veículo do saudosismo. Sua proposta era:
Dar um sentido às energias intelectuais que a nossa Raça possui: isto é, colocá-las em condições
de se tornarem fecundas, de poderem realizar o ideal que, neste momento histórico, abrasa
todas as almas sinceramente portuguesas: – Criar um novo Portugal, ou melhor, ressuscitar a
Pátria Portuguesa. (apud DAUNT, 2006, p. 225-226)

O regicídio e a Primeira República


O Ultimatum Inglês (1890) gerou uma série de revoltas em Portugal e serviu
para minar ainda mais a já decadente monarquia constitucional portuguesa.
Os problemas nacionais eram numerosos; os descontentamentos, mais ainda; e
a ideia da república passou a ser vista como uma solução adequada ao país. As
coisas pioraram no começo do século XX, principalmente depois do governo do
primeiro-ministro João Franco, que se estendeu de 1906 a 1908, implantando
uma verdadeira ditadura.

Com os ânimos alterados, ativistas ligados ao movimento republicano assas-


sinaram o rei D. Carlos e o príncipe herdeiro D. Luís Filipe em 1908, provocando
um grande abalo institucional. Com a monarquia à deriva, a república foi procla-
mada em 4 de outubro de 1910.

Depois de séculos de monarquia e com uma situação econômica e social bas-


tante problemática, era necessário um grande esforço por parte dos republica-
nos e dos grupos aliados no sentido não apenas de conseguir governar Portugal,
mas também mudar sua mentalidade e sua cultura para os novos tempos que
se inauguravam. Esse foi um dos propósitos, como já dissemos, da Renascença
Portuguesa e sua revista A Águia.

Para se ter uma ideia da validade de tais propósitos, vamos assinalar que, não
obstante todo o esforço desse grupo e de outros empenhados em prol do novo
regime político, a instabilidade social e econômica de Portugal não se resolveu,
possibilitando que partidos e facções conservadores e reacionários ganhassem
força dentro da sociedade lusa e conseguissem dar um golpe de Estado em 1926,
instaurando uma ditadura fascista que durou longos 48 anos. Foi o período do
Estado Novo do ditador António de Oliveira Salazar (1889-1970).

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O saudosismo de Teixeira de Pascoaes


Teixeira de Pascoaes (1877-1952) foi o

Divulgação Revista Brasil Europa.


primeiro editor de A Águia – revista mensal
de literatura, arte, ciência, filosofia e crítica
social e, mais que isso, o principal doutri-
nador da nova era republicana. O espírito
que animou Pascoaes e seus companheiros
a criarem e manterem a Sociedade Renas-
cença Portuguesa e sua revista vinha da
equação entre o novo momento político
nacional e a retomada do passado glorioso
português nos moldes sebastianistas.

Pascoaes vinha de uma abastada família de


linhagem nobre. Estudou Direito em Coimbra
e, muito a contragosto, exerceu a advocacia
O primeiro número de A Águia.
por dez anos. Homem de posses, decidiu aban-
donar a carreira jurídica e se dedicar a suas pro-
priedades em Gatão e a produzir uma poesia de grande qualidade (chegou mesmo a
ser considerado por seus contemporâneos um poeta superior a Fernando Pessoa).

A obra de Pascoaes não se vincula nem ao Simbolismo, escola anterior, nem


aos princípios modernistas que já estavam em efervescência na Europa, po-
dendo por isso ser classificada como pré-moderna – um rótulo que na verdade
acrescenta bem pouco ao nosso estudo.

Antes de ser uma manifestação de cunho literário, cultural e político, o sau-


dosismo é uma doutrina filosófica. Para Teixeira de Pascoaes, o ser – qualquer
ser – manifesta uma condição saudosa. Ou seja, teria havido um estado ideal,
de plena unidade entre todas as coisas, que se perdeu e que deixou nos seres
a “saudade” de tal estado de perfeita harmonia. Nesse ponto, o saudosismo se
vincula a uma conhecida doutrina da filosofia de Platão: O Mundo das Ideias.

O Mundo das Ideias

Segundo Platão, nossa vida na verdade é apenas uma projeção do Mundo


das Ideias, onde os verdadeiros seres existem e fornecem a este mundo a
base da nossa existência. A melhor e mais apreciada exposição dessa dou-
trina platônica é o “Mito da caverna”, que se encontra no livro VII da obra A
República, de Platão.

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Em Pascoaes, da condição saudosa resulta uma condição dolorosa – dor de


privação, dor de saudade, consciência da finitude, de imperfeição, de insuficiên-
cia do ser. Por meio dessa dor, o poeta vai entender o mundo como uma eterna
recordação, com a nossa realidade evocando uma outra realidade, mais verda-
deira. Por consequência, a saudade – ou a condição saudosa – é comum a todos
os homens, pois como “seres” somos participantes dessa saudade. Dessa forma,
o saudosismo é, em princípio, um conceito filosófico ou metafísico, entendendo
a nossa realidade como subordinada a uma outra realidade, que é transcenden-
te (por isso a metafísica – meta-física, “além da física”, além da nossa natureza).

Mas, onde entram os portugueses nessa história? Para Pascoaes, os portugueses


formam uma raça diferenciada das outras nacionalidades europeias. Uma raça que
possui maior sensibilidade para a condição saudosa e, portanto, sofre mais do que
os outras, mas também possui maior afinidade com essa realidade transcendente e
com as possibilidades de melhor se conhecer e de transformar o seu mundo.

Pascoaes explica a “alma portuguesa” afirmando que a saudade


é o próprio sangue espiritual da Raça; o seu estigma divino, o seu perfil eterno. Claro que é a
saudade no seu sentido profundo, verdadeiro, essencial, isto é, o sentimento-ideia, a emoção
refletida, onde tudo o que existe, corpo e alma, dor e alegria, amor e desejo, terra e céu, atinge
a sua unidade divina. (apud MOISÉS, 1980, p. 290-291)

Talvez alguns possam achar tudo isso muito absurdo ou fantasioso, mas essa
reflexão e argumentação estão muito bem calcadas na melhor tradição filosófica
do Ocidente, não podendo ser simplesmente descartadas assim sem mais nem
menos. Só para se ter uma boa ideia disso, o pensamento saudosista seduziu
grandes poetas e pensadores, como Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro,
nomes maiores do modernismo português, e entre os melhores da língua por-
tuguesa. E as bases desse pensamento ainda continuam influenciando a filosofia
e as artes contemporâneas.

O que nos interessa agora é como tal parafernália filosófica vai instrumenta-
lizar a poética saudosista e como será essa poesia. Em uma de suas vertentes,
Pascoaes vai buscar no passado glorioso de Portugal a fonte para revigorar a sua
sociedade. É o próprio poeta que formula essa busca: “A Saudade procurou-se no
período quinhentista, sebastianizou-se no período da decadência, e encontrou-
se no período atual” (apud BELCHIOR, 1973, p. 14).

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Painel
Num cerro do Marão
Estranha luz meus olhos deslumbrou;
E em corpo de lembrança divaguei
Além dos horizontes,
E toda a pátria terra percorri,
E o mar e o céu azul,
Onde os anjos da velha Lusitânia
Voam como através da nossa fantasia. (PASCOAES, 1973, p. 9)

Aqui, na primeira estrofe do poema “Painel”, vamos encontrar uma série de


temas muito caros a Pascoaes. Logo nos versos iniciais, a menção à Serra do
Marão, onde o poeta passou a maior parte de sua vida e que apreciava imen-
samente. Como não poderia deixar de ser, a contemplação da natureza da terra
natal lhe evoca a “saudade” – no caso, codificada pela expressão “corpo de lem-
brança”. Tal condição saudosa leva o eu poético a percorrer a história de Portugal
e suas glórias:
E cidades, vivendo protegidas
Por santos tutelares:
Viana e Santa Luzia e Braga e o Bom Jesus,
E Guimarães aos pés dum Pio IX em pedra,
Católica e Romana.
E o Porto de Herculano,
Como Lisboa é de Garrett.
Lisboa em gesso branco, o Porto em pedra escura. (PASCOAES, 1973, s.p.)

A referência a Alexandre Herculano e Almeida Garrett não são gratuitas. Já


quase um século os separava do autor do poema, e ambos eram considerados
(como o são até hoje) monstros sagrados da literatura lusa e, principalmente,
dos ideais constitucionalistas e liberais. Ou seja, nada mais motivador para os
duros tempos iniciais da república portuguesa do que relembrar dois autores
que encarnavam o compromisso com o estado de direito, a justiça e a igualdade.
Mas, note-se, tudo em razão da saudade que faz a ligação entre o passado e o
presente, e permite projetar esperança sobre o futuro.

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A saudade em Florbela Espanca


Florbela de Alma da Conceição Espanca (1894-1930) nasceu em Vila Viçosa,
no Alentejo, sendo filha de uma família de posses. Deve ficar claro desde já que
ela não participou do Movimento Saudosista, nem do Simbolismo, apesar de
algumas proximidades, e muito menos do Modernismo – ao qual simplesmente
dedicou uma olímpica distância. Mas, o período em que escreveu e alguns dos
temas que elegeu mostram que ao menos ela se afinava com certas problemá-
ticas de seu tempo e de alguns aspectos poéticos do período. A questão da sau-
dade se encontra também em sua poesia, mas não da forma filosófica e orgânica
de Pascoaes, conforme veremos adiante.

Florbela fez parte daquela fantástica geração


de mulheres que ousaram pela primeira vez fre-

Domínio público.
quentar a universidade e assumir profissões até
então exclusivas dos homens. Ela estudou Direi-
to em Lisboa, sendo uma das primeiras mulheres
portuguesas nesse curso. Por esse arrojo e deter-
minação, ela é vista como uma ativista feminis-
ta, o que nem sempre parece ser algo líquido e
certo: a poeta nunca demonstrou muito interes-
se político ou social, mostrando-se, ao contrário,
bem integrada à vida pequeno-burguesa em
Florbela Espanca.
suas condições socioculturais. Semelhante ati-
tude contrasta com o comportamento de uma
ativista do feminismo.

Outra faceta de sua vida que também contribuiria para a imagem de feminis-
ta é o fato de ter se casado três vezes, havendo se divorciado dos dois primeiros
maridos – algo de muito significativo no começo do século XX, e em uma socie-
dade bastante patriarcal e conservadora.

A última nota que dá um toque romântico e radical à sua biografia é a sua


morte: no dia do aniversário de seus 36 anos, ela tomou uma dose excessiva de
calmantes. Tudo indica ser um suicídio, dando fim a uma vida que teve muito de
emancipação feminina, mas também um excesso de desilusões por aquilo que
Florbela Espanca chamava de amor.

Florbela Espanca tem sido considerada a figura feminina mais importante da


Literatura Portuguesa. Produto de uma sensibilidade carregada de fortes impul-

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sos eróticos, sua poesia se apresenta como um verdadeiro relato íntimo. Seria
uma forma de poesia confessional, com a angustiante experiência sentimental
de uma mulher inteligente e emancipada em busca de uma relação amorosa
que transcendesse as convenções sociais de sua época.

Por fim, vamos ver como Florbela se apropria do tema e o transforma em uma coisa
muito própria. Demonstrando sua inserção no mundo saudosista, o título do último
livro publicado em vida o denuncia de forma literal: O Livro de Sóror Saudade.

Sóror Saudade E baixinho, na alma da minh’alma,


Irmã, Sóror Saudade me chamaste... Como bênção de sol que afaga e acalma,
E na minh’alma o nome iluminou-se Nas horas más de febre e de ansiedade,
Como um vitral ao sol, como se fosse
A luz do próprio sonho que sonhaste. Como se fossem pétalas caindo
Digo as palavras desse nome lindo
Numa tarde de Outono o murmuraste, Que tu me deste: “Irmã, Sóror Saudade...”
(ESPANCA, 2005, p. 38)
Toda a mágoa do Outono ele me trouxe,
Jamais me hão de chamar outro mais doce.
Com ele bem mais triste me tornaste...

Esse é o soneto que abre o livro e ele traz de imediato uma forte carga con-
fessional, uma forma autobiográfica. Em seus versos, o eu poético se reporta a
alguém muito querido – tudo indica uma figura masculina – que, EM um mo-
mento de ternura, deu-LHE o apelido de Sóror Saudade. Na vida real, Sóror Sau-
dade foi a designação que um colega da faculdade, o poeta Américo Durão (a
quem o poema é dedicado) havia dado a Florbela em um soneto publicado por
ele um pouco antes.

Sóror é sinônimo de “freira, irmã”.

No caso, a referência é a uma enigmática personalidade literária do Barroco


português, Sóror Mariana Alcoforado. Tudo nessa escritora é misterioso e muito
romântico. Apesar de freira e internada em um convento, Mariana se apaixonou
perdidamente por um oficial francês que cumpria uma missão em Portugal.
Quando o oficial retornou à França, Sóror Mariana lhe escreveu cartas nas quais
expôs abertamente toda sua paixão e entrega ao amante francês. As cartas ori-
ginais se perderam, mas houve uma tradução para o francês que recebeu nu-
merosas edições e, assim, preservou esses textos de grande beleza literária e
revelação de uma alma feminina absolutamente devotada a sua paixão carnal.

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Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa

Em seus poemas, Florbela também expõe sem escrúpulos seus desejos amo-
rosos e eróticos, cuja impossibilidade de realização – em parte pelas restrições
sociais, em parte por não encontrar uma alma gêmea que a satisfizesse – leva
a poeta, em certos momentos de sua obra, a sublimar tais intensos sentimen-
tos em uma nostálgica volta à infância, aos locais de sua meninice (em especial
Évora) e a uma natureza idealizada. Isso tudo é algo muito parecido àquilo que
Teixeira de Pascoaes dizia ser a saudade do ser por uma plenitude passada que
fora perdida.

Vejamos no soneto abaixo, a concretização do conjunto de ideias que aca-


bamos de desenvolver:
Esfinge E à noite, à hora doce da ansiedade
Sou filha da charneca erma e selvagem. Ouviria da boca do luar
Os giestais, por entre os rosmaninhos, O De Profundis triste da saudade...
Abrindo os olhos d’oiro, p’los caminhos,
Desta minh’alma ardente são a imagem. E à tua espera, enquanto o mundo dorme,
Ficaria, olhos quietos, a cismar...
Embalo em mim um sonho vão, miragem: Esfinge olhando a planície enorme...
Que tu e eu, em beijos e carinhos, (ESPANCA, 2005, p. 76)
Eu a Charneca e tu o Sol, sozinhos,
Fôssemos um pedaço de paisagem!

O amor ideal é como relação da planície (“charneca”) com o sol. Durante o


dia, o calor do sol fecunda a terra com amplidão e intensidade, qualidades pelas
quais a planície passa a noite relembrando e ardentemente desejando o seu re-
torno – E isso é o De profundis da saudade.

Precursores do Modernismo
O saudosismo de Teixeira de Pascoes foi o viveiro literário em que grandes
nomes do Modernismo germinaram e se desenvolveram. Fernando Pessoa pu-
blicou vários de seus poemas na revista A Águia, o órgão oficial do movimento.
Mas, não foi só de publicações que se deu a ligação de Pessoa com o saudosismo:
ele foi fortemente tocado por essa doutrina, da qual deriva uma parte inicial de
sua poesia, em especial o conjunto de poemas de Mensagem (1934) o único livro
que o poeta publicou em vida.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

Mensagem é uma espécie de Os Lusíadas modernista. Não é uma epopeia,


mas sim um conjunto altamente orgânico de poemas que se reportam às ori-
gens, ao desenvolvimento e ao futuro do período das grandes navegações por-
tuguesas. Do mesmo modo que Pascoaes, o autor de Mensagem se integrava
ao movimento de resgate dos valores portugueses, com ênfase em uma alma
lusitana capaz de grandes realizações, podendo portanto revitalizar tal espírito e
sair da decadência em que se encontrava:

Prece
Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade. [...] (PESSOA, 1983, p. 17)

Depois das grandes façanhas, a decadência (“a noite veio”), e o que sobrou
foram as marcas deixadas pelas navegações (“o mar universal”) e a saudade dos
grandes tempos. Mas, embaixo das cinzas da decadência ainda há a chama do
heroísmo e da competência, que é a alma lusitana, e pode haver um vento que
espalhe as cinzas e reavi essa brasa:
Dá o sopro, a aragem — ou desgraça ou ânsia —
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistaremos a Distância —
Do mar ou outra, mas que seja nossa! (PESSOA, 1983, p. 17)

A partir do saudosismo, vamos ter três novas vertentes modernistas se de-


senvolvendo, todas elas ligadas a uma revista literária:

 um grupo publicará Orfeu, uma revista da qual Fernando Pessoa fez parte,
e que resultará no movimento Orfismo;

 outros autores comporão a revista Presença; e

 um terceiro grupo publicará a revista Seara Nova, uma dissidência de A


Águia e do saudosimo.

Mas, essas são outras histórias.

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Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa

Texto complementar
Eduardo Lourenço é um dos intelectuais portugueses mais respeitados na
atualidade. Filósofo e ensaísta, boa parte de sua obra é dedicada a uma “psicaná-
lise” da alma portuguesa.

Da saudade como melancolia feliz


(LOURENÇO, 1999, p. 31-34)

Habitados a tal ponto pela saudade, os portugueses renunciaram a defini-la.


Da saudade fizeram uma espécie de enigma, essência do seu sentimento
da existência, a ponto de a transformarem num “mito”. É essa mitificação de
um sentimento universal que dá à estranha melancolia sem tragédia que é
o seu verdadeiro conteúdo cultural, e faz dela o brasão da sensibilidade por-
tuguesa. Mas, será a saudade assim tão intraduzível quanto o pretende essa
mitologia cultural? Podemos aceitar que assim seja, mas apenas na medida
em que nenhum sentimento tem outro conteúdo que não o da sua mani-
festação. O “sentido” está incluído na própria manifestação e, se escutarmos
a voz sem verbo que na saudade aflora, esse silêncio original acaba por se
fazer ouvir. Quem melhor do que os poetas poderia, como Orfeu, descer ao
labirinto do tempo sepultado para aí surpreender a luz não extinta, simulta-
neamente espectral e ofuscante, da felicidade passada?

Revisitemos por instantes a mais célebre descrição dessa descida ao co-


ração do tempo, a de Almeida Garrett, em plena aurora romântica. Todos os
portugueses conhecem de cor o “retrato” que ele nos deixou da Saudade,
gosto amargo de infelizes,

delicioso pungir de acerbo espinho

Esses versos famosos, que caracterizam perfeitamente a contradição da


alma saudosa, nada dizem da saudade. Por que esse “gosto amargo”, por que
esse “delicioso pungir”? Qual a raiz da contradição que assim se exprime e se
redime, como se exprimem e redimem, segundo a nossa mitologia cultural,
a dificuldade ou o mistério da nossa maneira de estar no mundo? Não será
saudade um nome, entre outros, com que se exprime alguma coisa de mais
universal – precisamente a dificuldade para todo o ser, feito de tempo, de
“estar no mundo”?

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

Costumamos dizer que “temos saudades”. Temos saudades da infância,


da escola, de alguém, dum determinado momento. No entanto esse “ter”
em nada se parece com a posse, a apropriação, em suma, com o dispor so-
berana e livremente daquilo que se tem. Também não pode assimilar-se o
sentir saudades, por exemplo, ao sentir-se bem de saúde, apesar de a saúde
também não ser um objeto, mas um estado positivo, tão positivo que nada
mais significa que não estar doente. Podia, quando muito, em bom rigor
comparar-se ou situar no mesmo plano o estar “saudoso” e o estar “triste”,
mas não podemos dizer ter tristeza como dizemos ter saudades. A tristeza
é experimentada como idealmente passageira; a saudade, pelo contrário,
faz do “passageiro” algo de idealmente presente. Na verdade, não temos
saudades, é a saudade que nos tem, que faz de nós seu objeto. Imersos
nela, tornamo-nos outros. Todo o nosso ser ancorado no presente fica, de
súbito, ausente. Sentimo-nos como um rio que deixa de correr e reflui para
a nascente. O aqui onde estamos assemelha-se a um crepúsculo, toda a
“nossa” luz se vai para o lá que nos causa saudades, lugar ou presença, ou
ambos, envoltos pelo mesmo “halo” de irrealidade. Saudade subentende,
naturalmente, memória – é memória em estado de incandescência, que
não se confunde no entanto com ela, nem sequer com a memória prous-
tiana, pura irrupção do passado no presente ou fuga do presente para o
mais antigo de nós mesmos. É por uma outra maneira de ser presente no
passado, ou de ser passado no presente, que a saudade se distingue de
uma simples manifestação “memorial”. Como?

A memória é a autonegação do presente, o seu esquecimento vivido, vo-


luntário ou involuntário, que idealmente nos proporciona um passado (ou o
passado) como tal, idêntico na sua manifestação, na sua relação com a cons-
ciência, ao presente suspenso, apesar do sentimento de irrealidade de que
se acompanha. A memória oferece-nos assim o que passou como se existisse
ainda, a fantasia como pura invenção o que não existe, e a imaginação o
que não existe como se realmente existisse. Mas, tanto a memória como a
fantasia e a imaginação são, como se dizia, uma espécie de “faculdades” da
alma, maneiras de encenar os seus modos de representação. A saudade não
é da ordem da representação, mas da pura vivência. A consciência “saudosa”
não joga consigo mesma, é palco de um jogo. Não é o eu que contempla a
saudade, analisa-a ou joga com ela; é ela que faz dele joguete, que o avassa-
la: o eu converte-se, por inteiro, em saudade. Não estamos aqui no plano da
psicologia, ou mesmo da gnoseologia, mas no plano da ontologia.

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Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa

Como é possível essa estranha confusão de uma modalidade do nosso ser


afetivo com todo o nosso ser? Lembre-se de que não somos seres inscritos,
ou inseridos, como agora se diz, num espaço e num tempo indeterminados,
mas seres espacializantes e temporalizantes, unidos e divididos no espaço
e no tempo que somos e que criamos. Espaço e tempo são para nós reali-
dades com um rosto, o rosto daquilo que amamos, lugar da única, precária
felicidade. Se nos afastarmos desse lugar afetivo que nos pertence e a que
pertencemos, sentimos então aquilo a que chamamos, em sentido próprio,
nostalgia, o estar longe da nossa casa, do nosso lar, do lugar onde nascemos,
na acepção própria e figurada. Costumamos dar a esse afastamento um con-
teúdo, por assim dizer, geográfico, mas não é disso que se trata. Na verdade,
só quando à ausência vivida, física, se acrescenta o sentimento de que se
romperam os laços com esse lugar que fazia parte de nós, sentimos, no seu
sentido pleno, a nostalgia. A evocada por todos os exilados, mistura amarga,
desde Ovídio, de tristeza e de melancolia. A nostalgia, sofrimento por conta
de um bem perdido que era constitutivamente nosso, desvenda-se e reve-
la-se como um sentimento essencialmente negativo, espécie de luto que o
tempo desvanece sem o deixar esquecer. Há alguma possibilidade de con-
tornar esse luto desde dentro e não de fora, transfigurando-o em nostalgia,
por assim dizer, feliz?

Talvez não seja por acaso que devamos a Teixeira de Pascoaes, o poeta
que, melhor do que ninguém, mitificou o sentimento da saudade, a recolha
intitulada Regresso ao Paraíso. Esse “regresso” é obra da saudade, que sub-
trai a nostalgia ao sentimento da pura perda ou ausência, confiando-lhe a
missão de transmudar a perda em vitória de sonho. Muitos duvidam de que
tanto baste para distinguir verdadeiramente a saudade da nostalgia, mas po-
demos compreender onde se situa a linha divisória. No seu sentido primordial,
a nostalgia inscreve-se no horizonte da espacialidade humanizada e nele toma
forma. Nessa medida, pode mesmo findar se reintegrarmos o espaço humano
cujo afastamento a provocou. Só em princípio, porém, porque pode acontecer
(como sempre acontece) que o “tempo” – que é mais, nesse caso, que ação
humana ou medida exterior – tenha desfigurado o lugar de origem de que sen-
timos nostalgia. Se assim for, experimentamos perante o lugar revisitado uma
nostalgia saudosa, o que mostra bem que a saudade se enraíza numa outra
experiência, mais radical ainda que a do espaço afetivo. Experiência que é ao
mesmo tempo a mais universal e a mais pessoal das experiências, porquanto
não tem outro conteúdo que não seja o vivido temporal, nós próprios, nou-
tras palavras, como filhos nascidos no coração do tempo e expulsos do seu

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

lugar de nascimento. É essa sensação-sentimento de ardermos no tempo


sem nele nos consumirmos a que propriamente chamamos saudade. Os que
nunca mudaram de lugar, levados pela mão do acaso ou da necessidade,
não sentem nostalgia dele. Mas, Robinson Crusoé na sua ilha terá saudades
do dia em que encontrou Sexta-feira, como Petrarca da sexta-feira santa em
que viu Laura diante de si. A saudade (que mais podia ser?) é apenas isto:
a consciência da temporalidade essencial da nossa existência, consciência
carnal, por assim dizer, e não abstrata, acompanhada do sentimento subtil
da sua irrealidade.

Talvez só um povo permanentemente distraído da sua existência como


tragédia, ou imbuído e inebriado dela a ponto de a esquecer, pudesse tomar
por brasão da sua alma a figura da saudade. Talvez, simplesmente, porque,
como povo, feliz na sua inconsciência que é a da vida, não se resigne a que
nada fica de nada, como disse Unamuno. Quando nada resta de nada, fica
ainda o tudo desse nada. É isso que vivemos como saudade, unindo numa
só intuição as visões, no fundo semelhantes, dos nossos maiores poetas, de
Camões a Garrett, de Pascoaes a Pessoa. Mas, talvez só a música impregnada
do peso e da lembrança do tempo – a de Bach ou de Beethoven, de Schubert
ou de Mahler – confira a um sentimento que julgamos único a sua real e in-
dizível universalidade.

Dicas de estudo
LOURENÇO, Eduardo. O Labirinto da Saudade. 3. ed. Lisboa: Dom Quixote,
1988.

LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da Saudade: seguido de Portugal como desti-


no. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

Para um amplo estudo sobre o caráter e a cultura de Portugal, sugerimos vi-


vamente essas duas obras do pensador Eduardo Lourenço (nosso Texto comple-
mentar é o capítulo 2 de Mitologia da Saudade).

ESPANCA, Florbela. Poemas. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Florbela Espanca tem uma verdadeira legião de admiradores, que a cultuam de


forma apaixonada, como não poderia deixar de ser. Aos possíveis florbelistas des-
pertados por nosso texto, indicamos a leitura da excelente edição brasileira dessa
grande autora, preparada pela professora e também poeta Maria Lúcia Dal Farra.
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O anticlericalismo na Literatura Portuguesa

Na Literatura Portuguesa vamos encontrar um pouco de cada uma dessas


posições.

Ainda na Idade Média, no período de formação da nacionalidade lusíada, já


se percebe o anticlericalismo nas primeiras obras literárias em português. Na
realidade, estamos falando do galego-português, uma etapa do nosso idioma,
então compartilhado pela Galícia, região que hoje faz parte da Espanha.

Para sermos ainda mais exatos, o galego-português foi a língua franca da li-
teratura em toda a Península Ibérica, sendo utilizada por poetas dos reinos de
Castela, Leão e outros que compõem a Espanha atual.

Foi, portanto, no final da Idade Média, utilizando como língua literária o gale-
go-português, que surgiu o Trovadorismo (1198-1418) na Península Ibérica. Esse
movimento cultural restringiu-se apenas à poesia, que por sinal não era somente
declamada ou lida, mas também cantada. Sua temática favorita – o amor cortês –
desenvolveu-se em duas vertentes líricas:

 cantiga de amor e

 cantiga de amigo.

Mas, nem só de amor viviam os trovadores e seus apreciadores, há ainda uma


linha satírica na poesia trovadoresca: as cantigas de escárnio e as de maldizer,
dando vazão aos baixos instintos – o ódio, as volúpias, as críticas a grupos sociais
e profissionais, bem como ao mundo político e religioso.

É nesse último grupo de poemas (escárnio e maldizer) que vamos encontrar


a primeira manifestação anticlerical da literatura em português, em três cantigas
de um nobre galego chamado Fernão Paes de Tamalancos (séc. XIII). Pouco se
sabe a respeito desse trovador e o fato de ele ser galego, e não português, não
impede que seja estudado no Trovadorismo português, já que a língua utilizada
configurou uma comunidade literária (cf. SARAIVA; LOPES, 2005, p. 49).

As cantigas de números 5, 6 e 7 de Tamalancos, na edição de Graça Videira


Lopes (2002, p. 28-30), referem-se a uma abadessa, prima do poeta, a quem ele
servia de modo cortês, ou seja, ele lhe era dedicado, dando-lhe atenção e pro-
teção, mas sem compensações físicas. Aconteceu que um cavaleiro de posição
inferior ofereceu um presente à freira e assim conquistou o seu afeto. As duas
primeiras cantigas reportam o amor sincero do eu lírico à moça e a forma ingrata
como a abadessa o trocou por alguém de menor valor.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

Mas, o que nos interessa é a cantiga 7, já de caráter satírico, insinuando com


ironia que a freira havia se corrompido, atentando contra a virtude de seus votos
eclesiásticos. Leiamos essa cantiga (do lado direito fizemos uma paráfrase para
melhor compreensão do leitor):

Original Paráfrase
Quand’eu passei per Dormã Quando passei por Dormã (ou Dormea)1
preguntei por mia coirmã, perguntei por minha prima,
a salva e paçãã. a pura e nobre (educada no paço).
Disserom: - Nom é aqui essa, Disseram-me: não está aqui,
alhur buscade vós essa; deveis buscá-la em outro lugar,
mais é aqui a abadessa. mas aqui está a abadessa.

Preguntei: — Por caridade, Perguntei: por caridade,


u é daqui salvidade onde está a moça pura
que sempr’amou castidade? que sempre amou a castidade?
Disserom: - Nom é aqui essa, Disseram-me: não está aqui,
alhur buscade vós essa; deveis buscá-la em outro lugar,
mais é aqui a abadessa. mas aqui está a abadessa.
(apud LOPES, 2002, p. 30)

O leitor deve perceber que, à corrosiva comparação entre a moça pura e a


abadessa, corresponde a sutil insinuação de que a função eclesiástica representa
a perda de valores morais. Tamalancos está assim expressando uma crítica da
época à vida corrupta dos mosteiros e conventos, nos quais a opulência que
haviam angariado em séculos de exploração dava margem a uma conduta dis-
soluta e imoral.

Bem mais grave e ofensiva em seu anticlericalismo é a cantiga de maldizer


composta pelo rei espanhol Afonso X, o Sábio (1221-1284), na qual acusa o papa
de roubo. O trovador Afonso X, rei de Leão e Castela, foi avô de D. Dinis (1261-
1325, o rei trovador de Portugal) e escreveu numerosos poemas, sendo os mais
conhecidos as Cantigas de Santa Maria. O rei Afonso X andou às turras com vários
papas, em especial Nicolau III (1210-1280). O principal problema estava nos pe-
sados tributos exigidos pelo Vaticano. Vamos à cantiga:

1
Segundo a estudiosa Carolina Michaëlis, o poema se refere ao convento de S. Cristóvão de Dormea, na região de Santiago de Compostela, Galícia
(cf. LOPES, 2002, p. 30).

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O anticlericalismo na Literatura Portuguesa

Original Paráfrase
Se me graça fezesse este Papa de Roma! O Papa de Roma poderia me fazer um favor!
Pois que or’os panos da mia reposte toma, Já que está levando os panos da minha casa,
que levass’el os cabos e dess’a mi a soma; que levasse os tecidos e trouxesse as roupas;
mais doutra guisa me foi el vendê’la galdrapa. no entanto leva tudo para vender às escondidas.
Quisera eu assi ora deste nosso Papa Queria portanto que esse nosso Papa
que me talhasse melhor aquesta capa. cortasse melhor esta capa.

Se m’el graça fezesse com os seus cardeaes, Ele e seus cardeais poderiam me fazer um favor,
que me lh’eu dess’e que mos talhasse iguaaes! que me trouxessem as roupas cortadas direito!
Mais vedes em que vi em el[e] maos sinaes: Mas vejam, como eu, os seus maus sinais:
que do que me furtou, foi cobri-l[o] a sa capa. aquilo que me roubou cobriu com a sua capa.
Quisera eu assi ora deste nosso Papa Queria portanto que esse nosso Papa
que me talhasse melhor aquesta capa. cortasse melhor esta capa.

Se cõn’os cardeaes com que fará seus conselhos Se, com os cardeais que formam seus concílios,
posesse que guardasse nós de maos trebelhos, ele nos livrasse de más encrencas,
fezera gram mercêê, ca nom furtar com elhos faria um grande favor se juntos não furtassem
e [os] panos dos cristãos meter só sa capa. e os panos dos cristãos pusessem sob a capa.
Quisera eu assi ora deste nosso Papa Queria portanto que esse nosso Papa
que me talhasse melhor aquesta capa. cortasse melhor esta capa.
(apud LOPES, p. 2002, p. 53)

Previamente, é bom alertar o leitor de que as paráfrases aqui propostas têm


valor apenas didático, pois os filólogos ainda não conseguiram resolver grande
parte dos problemas que as cantigas oferecem (cf. LOPES, 2002). Feita a ressal-
va, não há necessidade de absoluta precisão para entender que o eu poético
do segundo poema considera que o papa e seus príncipes – os cardeais – são
um bando de ladrões. Estamos diante, portanto, de um poema que veicula uma
crítica comum da época, denunciando o achaque que o papado impingia aos
cristãos em geral, em especial aos reis.

Em termos literários, chamaríamos a atenção para os versos finais de cada estro-


fe dos dois poemas analisados: o seu paralelismo e a sua repetição são marcas da
poética trovadoresca. Além do fecho lógico que dão à estância, enfatizando a ideia
central do poema, esses refrões são altamente poéticos e musicais, confirmando a
estreita ligação entre a palavra e a música nas cantigas dessa escola literária.

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O anticlericalismo de Gil Vicente


Gil Vicente (c.1465-c.1537) é o grande nome do movimento literário seguinte
em Portugal, o Humanismo (1418-1527). Sobre a vida desse dramaturgo, é muito
pouco o que sabemos com exatidão. Figura típica do Humanismo, a ele se atribui
uma das obras-primas da ourivesaria portuguesa: a famosa Custódia de Belém.
No teatro, além de autor de peças, foi ainda ator, encenador e músico. É conside-
rado o pai do teatro português e expoente máximo do período humanista.

Antes de falar sobre o aspecto anticlerical da obra de Gil Vicente, seria inte-
ressante retornar às histórias de terremoto em Lisboa. O sismo de 1755 não foi
o único a castigar aquela região. Na verdade, o fenômeno se repete com uma
periodicidade de 200 anos. Os terremotos de que há registro
ocorreram em 1344 (provavelmente ao redor de 7 ou 8 graus na escala Richter), em 1531
(provavelmente de 7 a 9 graus, que também produziu um tsunami), em 1755 (aproximadamente
9 graus, com três abalos posteriores e um tsunami) e, mais recentemente, em 1969 (6 graus).
(MAXWELL, 2003)

No tremor de 1531, com a população ainda muito abalada, os sacerdotes ca-


tólicos tinham a clássica explicação para a catástrofe: era um castigo de Deus
pelos pecados do povo português. A ordem dos jesuítas ainda não havia sido
fundada (o que ocorreria três anos depois, na França), mas os frades de Santa-
rém não deixam por menos e culpam a tolerância aos judeus como motivo da
ira divina.

Já no final de sua vida e muito prestigiado junto à corte, Gil Vicente fez uma
censura pública aos frades de Santarém (alguns estudiosos julgam que se trata
de um auto teatral). Em uma carta ao rei, Gil Vicente manifestou seu desacordo
diante da perseguição aos judeus, e ao que tudo indica o gesto encontrou aco-
lhida no rei D. João III. Essa corajosa manifestação pública do grande poeta em
um momento de grave crise e na defesa de uma minoria odiada pelo povo, em
geral revela o seu espírito humanista.

Certamente, o melhor exemplo de anticlericalismo na obra vicentina se en-


contra em sua peça mais conhecida e encenada – Auto da Barca do Inferno (1517,
quase quinze anos antes do terremoto). Nela, podemos apreciar dois tipos de
personagem:

 os alegóricos – o Anjo e o Diabo, respectivamente alegorias do bem e


do mal;

 os tipos sociais – o Fidalgo, o Frade, a Alcoviteira etc., que funcionam como


representantes dos grupos aos quais pertencem.

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O anticlericalismo na Literatura Portuguesa

O Anjo e o Diabo são os barqueiros que conduzem os recém-desencarnados


aos seus respectivos destinos: céu ou inferno. Veremos passar por esses barquei-
ros um longo rol de pessoas de todas as extrações sociais, tentando, como espe-
rado, escapar da barca diabólica e ser aceitos na barca do Anjo. A peça é engra-
çadíssima e os argumentos dos candidatos ao inferno beiram ao paradoxo, pois
muitas vezes insistem naquilo que os danou: seus vícios e pecados crônicos.

Mas, para os nossos objetivos, interessa o episódio mais divertido, o do Frade,


que não vem sozinho, mas acompanhado de sua amante, uma tal de Florença:

Vem um Frade com uma Moça pela mão, e um broquel e uma espada na outra, e um casco
debaixo do capelo; e, ele mesmo fazendo a baixa, começou de dançar, dizendo:

FRADE Tai-rai-rai-ra-rã; Huhá!


DIABO Que é isso, padre?! Que vai lá?
FRADE Deo gratias! Sou cortesão.
DIABO Sabeis também o tordião?
FRADE Porque não? Como ora sei!
DIABO Pois entrai! Eu tangerei
e faremos um serão.
Essa dama é ela vossa?
FRADE Por minha a tenho eu,
e sempre a tive de meu,
DIABO Fizeste bem, que é formosa!
E não vos punham lá grosa
no vosso convento santo?
FRADE E eles fazem outro tanto! (VICENTE, 1977, p. 40)

Quando o clérigo percebe para onde a barca vai, ele se mostra muito
espantado:

FRADE Pardeus! Essa seria ela!


Não vai em tal caravela
minha senhora Florença.
Como? Por ser namorado
e folgar com uma mulher
se há-de um frade perder,
com tanto salmo rezado?! (VICENTE, 1977, p. 41)

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A crítica a um clero corrupto é também uma marca desse período e desa-


guou na Reforma, com Martinho Lutero (1483-1546) na Alemanha e João Calvi-
no (1509-1564) na Suíça.

Além de criticados pela luxúria, na peça os sacerdotes ainda se mostram vai-


dosos, mundanos e violentos. Há na continuação uma verdadeira aula de esgri-
ma que o Frade dá a pedido do Diabo.

Ao término da peça, vão para a barca celestial apenas os quatro Cavaleiros,


na verdade cruzados que lutaram pela cristandade e por isso são premiados, e
o Parvo.

Nessa peça, o Parvo não é um bobo ou tolo e sim representante do povo, do


homem ingênuo, simples e sem formação.

Por fim, há ainda uma personagem controversa, o Judeu, que não é aceito
nem na barca do Anjo nem na do Inferno, sendo assim condenado a permane-
cer errante. Claro que seu destino parece melhor que o daqueles que vão para o
inferno, mas também representa a falta de lugar dos judeus na sociedade cristã
da época.

Gil Vicente e os trovadores analisados antes são bons exemplos do anticleri-


calismo que focaliza apenas o clero e seus fiéis, poupando a instituição da Igreja.
Vamos agora estudar uma manifestação anticlerical na literatura que radicaliza
sua crítica e ataca tanto a instituição eclesiástica quanto suas doutrinas.

O anticlericalismo radical de Eça de Queirós


Como vimos, com o Iluminismo e a Revolução Francesa (1789), o anticleri-
calismo ganhou novas proporções por toda a Europa. Em Portugal, particular-
mente, isso se deu a partir da figura do Marquês de Pombal. E assim o anticleri-
calismo chegou ao século XIX “como um fenômeno de massa” (AZEVEDO, 1999,
p. 34). Esse será o século da literatura anticlerical por excelência, havendo duas
escolas a destacar nesse sentido: o Romantismo e o Realismo/Naturalismo.

No Romantismo, destacam-se três grandes nomes:

 Alexandre Herculano (1810-1877);

 Almeida Garrett (1799-1854); e

 Camilo Castelo Branco (1825-1890).

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O anticlericalismo na Literatura Portuguesa

O primeiro foi o detonador de uma grave crise com a Igreja Católica: em um de


seus livros de história (História de Portugal, 1846-1850), ele afirmou que o famosíssi-
mo milagre de Ourique havia sido uma grosseira falsificação histórica. O clero portu-
guês moveu uma verdadeira campanha difamatória contra o talentoso romancista
e historiador liberal, mas os ventos haviam mudado com o novo regime constitucio-
nal e, apesar dos dissabores da polêmica, a fúria eclesiástica não deu em nada.

Já Almeida Garrett, em Viagens na Minha Terra – seu mais importante roman-


ce –, compõe no papel de antagonista (mais conhecido como vilão) uma figura
bastante complexa, o frei Dinis. Este franciscano na verdade carregava dois obs-
curos assassinatos em suas costas, consequências de um adultério e um filho
ilegítimo. Tomara o hábito somente na maturidade e, aproveitando-se do status
sacerdotal, mantinha uma estranha ascendência sobre uma pobre família, a qual
sustentava. Assim se expressa o narrador do romance sobre tal tipo de eclesiásti-
co: “Frades... Frades... Eu não gosto de frades. Como nós os vimos ainda os deste
século, como nós os entendemos hoje, não gosto deles, não os quero para nada,
moral e socialmente falando” (GARRETT, 1966, p. 61).

E Camilo Castelo Branco tornou o padre ou frade um personagem essencial


às intrigas de seus numerosíssimos romances e novelas. Nem sempre os clérigos
são corruptos e malévolos nas obras camilianas, mas em boa parte é assim que
o autor os retrata. Em seus livros, vamos encontrar padres glutões, beberrões, ig-
norantes, vingativos, cruéis, violentos, homicidas, lascivos e até incestuosos. Para
Camilo, não só os sacerdotes eram viciosos como também a própria Igreja.

Ao mesmo tempo em que atacava a dissolução do clero e a corrupção da ins-


tituição eclesiástica, o Romantismo (escola a que pertenceram Herculano, Gar-
rett e Camilo) preservou o cristianismo e procurou recuperar os ideais e a utopia
da Igreja primitiva, formada graças à fé e o empenho dos apóstolos. Outra coisa
bem diferente vai ocorrer no Realismo.

Em Portugal, o escritor que inaugurou a estética realista-naturalista e ainda


se tornou o seu mais importante romancista foi José Maria Eça de Queirós
(1845-1900).

Eça de Queirós estudou em Coimbra e fez parte da agitada geração acadêmica


daquele período, entusiasmada com as ideias de Pierre-Joseph Proudhon (1809-
1865) e de Auguste Comte (1798-1857). Foi amigo de Antero de Quental (1842-
1891), Teófilo Braga (1843-1924) e outros envolvidos com a Questão Coimbrã (po-
lêmica que marcou o fim do romantismo), integrando o grupo de intelectuais que
mudou o perfil do pensamento e das letras portuguesas, a geração de 1870.

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

Em 1873, Eça iniciou sua carreira diplomática, exercendo a função de cônsul


em Cuba, na Inglaterra e, por fim, na França.

Seguindo os princípios realistas, seu primeiro romance, O Crime do Padre


Amaro (1875), é de um anticlericalismo extremo. Nesse livro, o escritor portu-
guês delineou um amplo quadro da vida dos clérigos em Leiria, uma pequena
cidade interiorana. Nesse romance, os padres são glutões, avarentos, ambicio-
sos, lascivos e, em suma, corruptos e corruptores. Amaro, um jovem padre que
assume a igreja da sé em Leiria, seduz Amélia, uma moça carola com quem tem
um filho.

Em O Crime do Padre Amaro, nosso autor ataca a Igreja Católica de uma forma
bastante crua e chocante – como mandava o figurino realista. Na verdade,
Amaro, o padre do título, não é o único criminoso da história. Quando o cônego
Dias, um sacerdote mais velho e hierarquicamente superior ao jovem padre, des-
cobre que Amaro seduzira Amélia e a mantinha como amante, desmascara e
acusa Amaro, que se defende:

— Diga-me uma coisa. O que é que o senhor tem com isso?


O cônego pulou.
– O que tenho? O que tenho? Pois o senhor ainda me fala nesse tom? O que tenho é que vou
daqui imediatamente dar parte de tudo ao senhor vigário-geral!
O padre Amaro, lívido, foi para ele com o punho fechado:
— Ah, seu maroto!
— Que é lá? que é lá? exclamou o cônego de guarda-sol erguido. Você quer-me pôr as mãos?
O padre Amaro conteve-se; passou a mão sobre a testa em suor, com os olhos cerrados; e
depois de um momento, falando com uma serenidade forçada:
— Ouça lá, senhor cônego Dias. Olhe que eu vi-o ao senhor uma vez na cama com a S.
Joaneira...
— Mente! mugiu o cônego.
— Vi, vi, vi! afirmou o outro com furor. Uma noite ao entrar em casa... O senhor estava em
mangas de camisa, ela tinha-se erguido, estava a apertar o colete. Até o senhor perguntou:
“Quem está aí?”. Vi, como estou a vê-lo agora. O senhor a dizer uma palavra, e eu a provar-lhe
que o senhor vive há dez anos amigado com a S. Joaneira à face de todo o clero! Ora aí tem!
(QUEIRÓS, 1997, p. 336-337)

Pela óptica de Eça de Queirós, o clero católico da época era irremediavelmente


corrupto, pois seus vícios e crimes contaminavam outras pessoas, que se deixavam
envolver graças à autoridade que os padres dispunham na sociedade portuguesa
– tornando-se assim um dos obstáculos ao desenvolvimento da nação.

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O anticlericalismo na Literatura Portuguesa

Apesar de o caso terminar em tragédia, o final do livro mostra um Amaro,


anos mais tarde, bem posto na carreira eclesiástica, sem remorsos e, tendo como
única lição de todo o infortúnio, a consciência de que só deveria se envolver com
mulheres casadas:
[O padre Amaro se encontra com o cônego Dias no centro de Lisboa. Falam sobre os acontecimentos
da Comuna de Paris:]
Então indignaram-se contra essa turba de maçons, de republicanos, de socialistas, gente que
quer a destruição de tudo o que é respeitável – o clero, a instrução religiosa, a família, o exército
e a riqueza... Ah! a sociedade estava ameaçada por monstros desencadeados! Eram necessárias
as antigas repressões, a masmorra e a forca. Sobretudo inspirar aos homens a fé e o respeito
pelo sacerdote.
— Aí é que está o mal, disse Amaro, é que nos não respeitam! Não fazem senão desacreditar-nos...
Destroem no povo a veneração pelo sacerdócio...
— Caluniam-nos infamemente, disse num tom profundo o cônego.
Então junto deles passaram duas senhoras, uma já de cabelos brancos, o ar muito nobre; a
outra, uma criaturinha delgada e pálida, de olheiras batidas, os cotovelos agudos colados a
uma cinta de esterilidade, pouff enorme no vestido, cuia forte, tacões de palmo.
— Cáspite! disse o cônego baixo, tocando o cotovelo do colega. Hein, seu padre Amaro?...
Aquilo é que você queria confessar.
— Já lá vai o tempo, padre-mestre, disse e pároco rindo, já as não confesso senão casadas!
O cônego abandonou-se um momento a uma grande hilaridade... (QUEIRÓS, 1997, p. 434)

Mas, no caso de Eça, diferentemente dos autores antes analisados, não está
em jogo apenas a conduta do clero e dos fiéis católicos: de forma sutil, mas me-
tódica, por todo o romance o autor vai revelando os mecanismos de doutrinação
e dominação da Igreja romana. De maneira inteligente, o narrador eciano vai
expondo os principais dogmas católicos – a inquisição, o auto-de-fé, a excomu-
nhão etc. – e demonstrando como tais elementos são usados pelo clero como
instrumentos de poder e opressão. De fato, essa estrutura eclesiástica de domi-
nação se ligava fundamentalmente ao Concílio de Trento (1545-1563), respon-
sável pela instauração da Contrarreforma e principal incentivador das atividades
jesuíticas. O concílio e sua legislação são citados repetidamente em O Crime do
Padre Amaro (cf. BUENO, 2005, p. 18-21) como base canônica para os desman-
dos dos padres. Com isso, o autor demonstrava que a própria estrutura da Igreja
trazia em si mesma os fatores corrosivos que desaguavam no comportamen-
to impróprio de sua clerezia. Segundo a estudiosa Fátima Bueno, o romancista
punha em funcionamento literário as ideias expressas por Antero de Quental em
seu seminal ensaio “Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos
três séculos” (1871), uma das Conferências do Casino (série de palestras apresen-
tadas pelos escritores realistas). Nesse ensaio, Antero relaciona a Contrarreforma
como uma das causas da decadência portuguesa (cf. BUENO, 2002 e 2005).

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No entanto, Eça de Queirós não para por aí. Em outro de seus mais importan-
tes textos ficcionais, ele é ainda mais impiedoso e ataca o próprio cerne do cris-
tianismo, a vida de Jesus e os dogmas de sua divindade e ressurreição. Estamos
falando de A Relíquia (1887). Nessa novela, narrada em primeira pessoa por Teo-
dorico Raposo, um burguês abjeto cujo propósito de vida era se passar por um
sincero fiel católico apenas para obter a herança de uma tia riquíssima, o autor
cria um blasfemo paralelo entre a falsificação de relíquias religiosas (objetos que
pertenceram ou tocaram santos cristãos) e a vida de Jesus, conforme transmitida
pela tradição cristã e assumida como dogma pela Igreja.

Em um longo sonho de Teodorico, durante sua peregrinação a Jerusalém (a


fim de obter uma preciosa relíquia para sua rica tia), a história dos últimos dias
de Jesus é revista à luz de diversas perspectivas: líderes judeus ortodoxos, mís-
ticos de seitas judaicas, pessoas do povo etc., e uma figura de Cristo, diferente
da doutrina católica, surge marcada por ambiguidades e falhas. Mas, o pior é a
falsificação sobre sua morte e ressurreição. Membros da seita essênia (judeus
ascéticos e monásticos) teriam drogado Jesus durante a crucificação e, após seu
corpo ter sido levado para o túmulo,
José [de Arimateia] e outro, fiel inteiramente, deviam ir buscar o corpo de Jesus, e com as
receitas que vêm no livro de Salomão, fazê-lo reviver do desmaio em que o deixou o vinho
narcotizado e o sofrimento... (QUEIRÓS, 1997, p. 987)

Entretanto, alguma coisa dá errado:


Estendemos Jesus na esteira. Demos-lhe a beber os cordiais, chamamo-lo, esperamos, oramos...
Mas ai! Sentíamos, sob as nossas mãos, arrefecer-lhe o corpo!... Um instante abriu lentamente
os olhos, uma palavra saiu-lhe dos lábios. Era vaga, não a compreendemos... Parecia que
invocava seu pai, e que se queixava de um abandono... Depois estremeceu; um pouco de
sangue apareceu-lhe ao canto da boca... E, com a cabeça sobre o peito de Nicodemus, o Rabi
ficou morto! (QUEIRÓS, 1997, p. 988)

Apesar do abatimento que se apodera dos seguidores essênios, “era necessá-


rio, para bem da terra, que se cumprissem as profecias”, e assim a farsa continua:
o corpo do Mestre é enterrado em uma caverna, “talhada na rocha, por trás do
moinho...” (QUEIRÓS, 1997, p. 988). Um colega de viagem de Teodorico, o ilus-
tre historiador alemão Topsius – que no sonho funciona como uma espécie de
Virgílio da Divina Comédia, guiando o narrador através da Jerusalém antiga –,
apresenta uma conclusão de sabor amargo:
Depois de amanhã, quando acabar o sabá, as mulheres de Galileia voltarão ao sepulcro de
José de Ramata [José de Arimateia], onde deixaram Jesus sepultado... E encontram-no
aberto, encontram-no vazio!... “Desapareceu, não está aqui!...” Então Maria de Magdala [Maria
Madalena], crente e apaixonada, irá gritar por Jerusalém – “ressuscitou, ressuscitou!” E assim o
amor de uma mulher muda a face do mundo, e dá uma religião mais à humanidade! (QUEIRÓS,
1997, p. 989)

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O anticlericalismo na Literatura Portuguesa

Mas, se o anticlericalismo de Eça em A Relíquia chega a ponto de denunciar


o cristianismo como fundado em uma falsificação histórica, assim como as ig-
nominiosas relíquias que eram despudoradamente comercializadas por todo o
mundo, mas principalmente na Europa católica, em outros textos o romancista
português propõe ainda um outro novo retrato de Jesus Cristo. Nos contos “A
morte de Jesus” (1870) e “O suave milagre” (1898), Eça, ignorando a divindade de
Cristo, apresenta-o como uma personalidade comprometida com o combate à
opressão e a preocupação com os mais pobres, alguém que veio ao mundo com
a missão de pregar e lutar por uma sociedade mais justa e equânime (cf. BUENO,
2007). Em suma, a obra queirosiana representa o anticlericalismo do segundo e
do terceiro tipo, conforme classificação proposta anteriormente.

O anticlericalismo contemporâneo
de Saramago
Com o final do século XIX, assistimos a uma grande mudança na relação entre
os Estados e as igrejas no Ocidente. O término da maioria das antigas monar-
quias na Europa, a consolidação dos regimes democrático-liberais e do princí-
pio de separação entre Estado e religião exigiram das lideranças religiosas maior
flexibilidade em sua relação com a sociedade civil e uma sensível diminuição na
interferência eclesiástica em assuntos políticos, econômicos e sociais. Diminuin-
do a tensão entres esses dois polos, a atitude e a literatura anticlericais perderam
proporcionalmente sua intensidade e sua aspereza.

O que não quer dizer que nos países ocidentais as diversas igrejas tenham dei-
xado totalmente de tentar interferir na vida secular. Numerosas questões que não
faziam parte da pauta do século XIX e início do XX surgiram com intensa urgência
e gravidade depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Assuntos polêmicos
como o aborto, a eutanásia, os anticoncepcionais, os direitos das mulheres (em
especial nas igrejas), o casamento entre homossexuais, as políticas públicas em
relação às doenças sexualmente transmissíveis, o ensino religioso nas escolas, o
ensino das doutrinas evolucionistas, o uso científico de embriões humanos etc.
colocaram mais uma vez as igrejas no primeiro plano do debate público.

Como se isso não bastasse, a ação de lideranças religiosas mulçumanas na or-


ganização e doutrinação de grupos extremistas antiocidentais trouxe de volta o
fantasma da inquisição e das guerras santas medievais. Certamente alimentado
por semelhante estado de coisas, assistimos ainda ao renascimento de movimen-

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tos carismáticos (católicos e protestantes) propondo a interferência religiosa na


política em geral, bem como uma visível mudança na política papal, que agora
pretende retomar seu perdido papel de protagonista na política internacional.

Eis que de forma até surpreendente, a questão religiosa volta a ser o centro das
atenções no final do século XX e início do novo milênio. Tanto é assim que José Sa-
ramago (nascido em 1922), prêmio Nobel de literatura de 1998, escreveu um polê-
mico artigo em seu blog com o instigante título de “Deus como problema” (2008),
que transcrevemos na íntegra na seção Texto complementar, desse capítulo.

Esse escritor português é dono de uma obra que dialoga incessantemente


com a história de seu país e, mais especialmente, com a ideia de Deus e a religião
cristã. Preocupado em entender o mundo humano e sua impressionante capaci-
dade de produzir o mal, Saramago tem usado tanto Portugal quanto o cristianis-
mo como metáforas da natureza humana e de sua forma de organização social,
as quais, apesar de discursos e instituições que pregam a paz, o amor e a beleza,
parecem estar destinadas a reproduzir a miséria e a opressão.

É nesse sentido que o romancista português retoma a vida de Jesus Cristo


(e, sem dúvida, o estímulo eciano de A Relíquia) para fazer um acerto de contas com
os fundamentos da doutrina cristã – uma das tradições formadoras do Ocidente –,
escrevendo O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Se em A Relíquia Eça de Queirós
desconstrói o mito fundador do cristianismo propondo que a verdade histórica
foi falseada, em seu romance publicado em 1991 Saramago humaniza por com-
pleto a figura de Jesus e cobra dele, e dos homens que ele idealmente repre-
senta, a responsabilidade e a decisão de assumir seu próprio destino e mudar
positivamente o nosso mundo.

O Jesus saramaguiano nasce e cresce sob o signo de um crime do qual ele


não foi o autor, mas foi o motivador: a matança dos inocentes.2 Só que nesse
novo evangelho o grande culpado não é Herodes e sim José, pai do menino
Jesus, conforme o julgamento do anjo que fala com Maria pouco depois do mas-
sacre e com Jesus já em segurança:
Disse o anjo, [...] Faltavam estas mortes, faltava, antes delas, o crime de José. Disse Maria, O
crime de José, meu marido não cometeu nenhum crime, é um homem bom. Disse o anjo, Um
homem bom que cometeu um crime, não imaginas quantos antes dele os cometeram também,
é que os crimes dos homens bons não têm conta, e, ao contrário do que se pensa, são os únicos
que não podem ser perdoados. Disse Maria, Que crime cometeu meu marido. [...] Disse o anjo,
Foi a crueldade de Herodes que fez desembainhar os punhais, mas o vosso egoísmo e cobardia
foram as cordas que ataram os pés e as mãos das vítimas. Disse Maria, Que podia eu ter feito.

2
O Evangelho de Mateus relata que o rei Herodes, avisado pelos magos do Oriente de que em Belém havia nascido o rei dos judeus, manda
matar todos os meninos com menos de dois anos que fossem encontrados naquela cidade, a fim de que seu reino não viesse a ser usurpado (cf.
Mt 2:13-18).

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Disse o anjo, Tu, nada, que o soubeste tarde de mais, mas o carpinteiro podia ter feito tudo,
avisar a aldeia de que vinham aí os soldados a matar as crianças, ainda havia tempo para que
os pais delas as levassem e fugissem. [...] Disse Maria, Perdoa-lhe. Disse o anjo, Já te disse que
não há perdão para este crime, mais depressa seria perdoado Herodes que o teu marido, mais
depressa se perdoará a um traidor que a um renegado. (SARAMAGO, 1999, p. 115-116)

O anjo de Saramago não perdoa a omissão e a covardia do homem comum,


o tal “homem bom”. E Jesus, durante sua juventude e maturidade, também não
se perdoará por ter sido a causa dessas mortes e, principalmente, porque a sua
única morte teria poupado a vida de todos os demais meninos. Sua missão evan-
gélica será em parte motivada pela tentativa de reparar tamanho crime. E a culpa
de Jesus será instrumentalizada por um Deus brutal, que se servirá do sacrifício
daquele homem para expandir sua adoração até os confins da terra. Respon-
dendo a Jesus, que perguntará se Ele não estaria satisfeito com a adoração dos
judeus, Deus responde que:
Estou e não estou, ou melhor, estaria se não fosse este inquieto coração meu que todos os
dias me diz Sim senhor, bonito destino arranjaste, depois de quatro mil anos de trabalho e
preocupações, que os sacrifícios nos altares, por muito abundantes e variados que sejam,
jamais pagarão, continuas a ser o deus de um povo pequeníssimo que vive numa parte
diminuta do mundo que criaste com tudo o que tem em cima, diz-me tu, meu filho, se eu
posso viver satisfeito tendo esta, por assim dizer, vexatória evidência todos os dias diante dos
olhos, Não criei nenhum mundo, não posso avaliar, disse Jesus, Pois é, não podes avaliar, mas
ajudar, podes, Ajudar a quê, A alargar a minha influência, a ser deus de muito mais gente,
Não percebo, Se cumprires bem o teu papel, isto é, o papel que te reservei no meu plano,
estou certíssimo de que em pouco mais de meia dúzia de séculos, embora tendo de lutar, eu
e tu, com muitas contrariedades, passarei de deus dos hebreus a deus dos que chamaremos
católicos, à grega, E qual foi o papel que me destinaste no teu plano, O de mártir, meu filho,
o de vítima, que é o que de melhor há para fazer espalhar uma crença e afervorar uma fé.
(SARAMAGO, 1999, p. 369-370)

Uma vaidade muito humana e cruel é o que leva Deus a sacrificar aquele a
quem diz ser seu próprio filho. Mas, o pior ainda estava por vir: a fim de expandir
essa religião, milhares de outros homens seguidores do Cristo martirizado serão
torturados e mortos por seus opositores, ou serão martirizados por suas próprias
mãos, acreditando estar fazendo a vontade divina, ou ainda irão torturar e matar
outros milhares pelo mesmo motivo (cf. SARAMAGO, 1999, p. 377-389). Assim,
o jovem judeu, torturado pela culpa de dezenas de crianças mortas por ele não
haver dado sua vida em troca das vidas dessas crianças, iria morrer de forma
cruel e infame a fim de que muitos outros milhares de homens, por gerações e
gerações, viessem a se matar e morrer em seu nome, em nome de Jesus. Eis a
síntese da cruel ironia que Saramago põe em movimento em seu romance.

A reflexão que Saramago pede a seu leitor é sobre a responsabilidade indi-


vidual e a ação consciente de cada homem, sabendo que, apesar das imensas
forças de controle social a que estão submetidos os indivíduos, ainda há um
espaço de ação pessoal e coletiva capaz de alterar o curso da história.
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Um ano após a publicação desse romance, Saramago foi indicado para con-
correr a um prêmio europeu de literatura, mas sua indicação foi revogada pelo
governo português, pois, segundo a avaliação oficial, o livro ofendia a religião
católica e, portanto, não deveria representar a nação lusitana. Em resposta a essa
proibição governamental, o escritor se retirou de Portugal, mudando sua resi-
dência para as Ilhas Canárias (Espanha). Foi sua forma de protesto pela volta da
censura a Portugal. Como se vê, a literatura anticlerical mostra sua necessidade
e agudeza quando é capaz de despertar reações como essas por parte de uma
sociedade que se diz livre e tolerante.

Texto complementar
Deus como problema
(SARAMAGO, 2009)

Não tenho dúvidas de que este arrazoado, logo a começar pelo título, irá
obrar o prodígio de pôr de acordo, ao menos por esta vez, os dois irredutíveis
irmãos inimigos que se chamam islamismo e cristianismo, particularmente
na vertente universal (isto é, católica) a que o primeiro aspira e em que o
segundo, ilusoriamente, ainda continua a imaginar-se. Na mais benévola das
hipóteses de reacção possíveis, clamarão os bem-pensantes que se trata de
uma provocação inadmissível, de uma indesculpável ofensa ao sentimento
religioso dos crentes de ambos os partidos, e, na pior delas (supondo que
pior não haja), acusar-me-ão de impiedade, de sacrilégio, de blasfémia, de
profanação, de desacato, de quantos outros delitos mais, de calibre idênti-
co, sejam capazes de descobrir, e portanto, quem sabe, merecedor de um
castigo que me sirva de escarmento para o resto da vida. Se eu próprio per-
tencesse ao grémio cristão, o catolicismo vaticano teria de interromper os
espectáculos estilo cecil b. de mille em que agora se compraz para dar-se
ao trabalho de me excomungar, porém, cumprida essa obrigação discipli-
nária, veria caírem-se-lhe os braços. Já lhe escasseiam as forças para proezas
mais atrevidas, uma vez que os rios de lágrimas choradas pelas suas vítimas
empaparam, esperemos que para sempre, a lenha dos arsenais tecnológicos
da primeira inquisição. Quanto ao islamismo, na sua moderna versão funda-
mentalista e violenta (tão violenta e fundamentalista como foi o catolicismo
na sua versão imperial), a palavra de ordem por excelência, todos os dias

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insanamente proclamada, é “morte aos infiéis”, ou, em tradução livre, se não


crês em Alá, não passas de imunda barata que, não obstante ser também
ela uma criatura nascida do Fiat divino, qualquer muçulmano cultivador dos
métodos expeditivos terá o sagrado direito e o sacrossanto dever de esma-
gar sob o chinelo com que entrará no paraíso de Maomé para ser recebido
no voluptuoso seio das huris. Permita-se-me portanto que torne a dizer que
Deus, sendo desde sempre um problema, é, agora, o problema.

Como qualquer outra pessoa a quem a lastimável situação do mundo


em que vive não é de todo indiferente, tenho lido alguma coisa do que se
tem escrito por aí sobre os motivos de natureza política, económica, social,
psicológica, estratégica, e até moral, em que se presume terem ganho raízes
os movimentos islamistas agressivos que estão lançando sobre o denomi-
nado mundo ocidental (mas não só ele) a desorientação, o medo, o mais
extremo terror. Foram suficientes, aqui e além, umas quantas bombas de
relativa baixa potência (recordemos que quase sempre foram transporta-
das em mochila ao lugar dos atentados) para que os alicerces da nossa tão
luminosa civilização estremecessem e abrissem fendas, e ruíssem apara-
tosamente as afinal precárias estruturas da segurança colectiva com tanto
trabalho e despesa levantadas e mantidas. Os nossos pés, que críamos fun-
didos no mais resistente dos aços, eram, afinal, de barro.

É o choque das civilizações, dir-se-á. Será, mas a mim não me parece. Os


mais de sete mil milhões de habitantes deste planeta, todos eles, vivem no
que seria mais exacto chamarmos a civilização mundial do petróleo, e a tal
ponto que nem sequer estão fora dela (vivendo, claro está, a sua falta) aque-
les que se encontram privados do precioso “ouro negro”. Esta civilização do
petróleo cria e satisfaz (de maneira desigual, já sabemos) múltiplas necessi-
dades que não só reúnem ao redor do mesmo poço os gregos e os troianos
da citação clássica, mas também os árabes e os não árabes, os cristãos e os
muçulmanos, sem falar naqueles que, não sendo uma coisa nem outra, têm,
onde quer que se encontrem, um automóvel para conduzir, uma escavadora
para pôr a trabalhar, um isqueiro para acender. Evidentemente, isto não sig-
nifica que por baixo dessa civilização a todos comum não sejam discerníveis
os rasgos (mais do que simples rasgos em certos casos) de civilizações e cul-
turas antigas que agora se encontram imersas em um processo tecnológico
de ocidentalização a marchas forçadas, o qual, não obstante, só com muita
dificuldade tem logrado penetrar no miolo substancial das mentalidades

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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa

pessoais e colectivas correspondentes. Por alguma razão se diz que o hábito


não faz o monge…

Uma aliança de civilizações poderá representar, no caso de vir a concre-


tizar-se, um passo importante no caminho da diminuição das tensões mun-
diais de que cada vez parecemos estar mais longe, porém, seria de todos os
pontos de vista insuficiente, ou mesmo totalmente inoperante, se não inclu-
ísse, como item fundamental, um diálogo inter-religiões, já que neste caso
está excluída qualquer remota possibilidade de uma aliança… Como não há
motivos para temer que chineses, japoneses e indianos, por exemplo, este-
jam a preparar planos de conquista do mundo, difundindo as suas diversas
crenças (confucionismo, budismo, taoísmo, hinduísmo) por via pacífica ou
violenta, é mais do que óbvio que quando se fala de aliança das civilizações
se está a pensar, especialmente, em cristãos e muçulmanos, esses irmãos ini-
migos que vêm alternando, ao longo da história, ora um, ora outro, os seus
trágicos e pelos vistos intermináveis papéis de verdugo e de vítima.

Portanto, quer se queira, quer não, Deus como problema, Deus como
pedra no meio do caminho, Deus como pretexto para o ódio, Deus como
agente de desunião. Mas, desta evidência palmar não se ousa falar em ne-
nhuma das múltiplas análises da questão, sejam elas de tipo político, econó-
mico, sociológico, psicológico ou utilitariamente estratégico. É como se uma
espécie de temor reverencial ou a resignação ao “politicamente correcto e
estabelecido” impedissem o analista de perceber algo que está presente nas
malhas da rede e as converte num entramado labiríntico de que não tem
havido maneira de sairmos, isto é, Deus. Se eu dissesse a um cristão ou a um
muçulmano que no universo há mais de 400 mil milhões de galáxias e que
cada uma delas contém mais de 400 mil milhões de estrelas, e que Deus, seja
ele Alá ou o outro, não poderia ter feito isto, melhor ainda, não teria nenhum
motivo para fazê-lo, responder-me-iam indignados que a Deus, seja ele Alá
ou o outro, nada é impossível. Excepto, pelos vistos, diria eu, fazer a paz entre
o islão e o cristianismo, e, de caminho, conciliar a mais desgraçada das espé-
cies animais que se diz terem nascido da sua vontade (e à sua semelhança),
a espécie humana, precisamente.

Não há amor nem justiça no universo físico. Tão-pouco há crueldade.


Nenhum poder preside aos 400 mil milhões de galáxias e aos 400 mil milhões

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O anticlericalismo na Literatura Portuguesa

de estrelas existentes em cada uma. Ninguém faz nascer o Sol cada dia e a
Lua cada noite, mesmo que não seja visível no céu. Postos aqui sem sabermos
porquê nem para quê, tivemos de inventar tudo. Também inventámos Deus,
mas esse não saiu das nossas cabeças, ficou lá dentro como factor de vida
algumas vezes, como instrumento de morte quase sempre. Podemos dizer
“Aqui está o arado que inventámos”, não podemos dizer “Aqui está o Deus
que inventou o homem que inventou o arado”. A esse Deus não podemos
arrancá-lo de dentro das nossas cabeças, não o podem fazer nem mesmo
os próprios ateus, entre os quais me incluo. Mas, ao menos discutamo-lo. Já
nada adianta dizer que matar em nome de Deus é fazer de Deus um assassino.
Para os que matam em nome de Deus, Deus não é só o juiz que os absolverá,
é o Pai poderoso que dentro das suas cabeças juntou antes a lenha para o
auto-de-fé e agora prepara e ordena colocar a bomba. Discutamos essa in-
venção, resolvamos esse problema, reconheçamos ao menos que ele existe.
Antes que nos tornemos todos loucos. E daí, quem sabe? Talvez fosse a ma-
neira de não continuarmos a matar-nos uns aos outros.

Dicas de estudo
MAXWELL, Kenneth. Lisboa reinventada. Folha de S. Paulo, 12 jan. 2003.

Para aqueles que desejarem conhecer um pouco mais da história do terremo-


to de Lisboa de 1755, sugerimos esse brilhante ensaio do historiador britânico.

MARQUES, José Oscar de Almeida. Voltaire e um Episódio da História de Por-


tugal. Disponível em: <http://www.unicamp.br/~jmarques/pesq/VoltaireHist-
Port.pdf>.

Esta é uma excelente análise a respeito da avaliação de Voltaire sobre a histó-


ria de Portugal, sobre a sociedade portuguesa.

BUENO, Fátima. A ínclita geração. Estudos Portugueses e Africanos, Campinas,


n. 39, jan./jun. 2002, p. 33-52.

Para um quadro ampliado do anticlericalismo na literatura da geração de 70,


indicamos este ensaio.

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