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Introdução

Os fenômenos de transmídia tem


povoado os produtos da cultura das mídias
gerando práticas de segunda tela, onde o
consumo de um meio, eletrônico ou não, se
torna mediado e mediável através das telas de
dispositivos eletrônicos portáteis capazes de
conexão com a internet e de leitura ou captação
de dados visuais impressos. Estas novas
estratégias de consumo atingem as audiências
esportivas, programas de TV e filmes, a leitura
de jornais, revistas e livros entre outro grande
número de produções audiovisuais e literárias.
Aqui pretendemos melhor compreender
esse fenômeno no que ele tange a leitura de
histórias em quadrinhos, em específico, através
da iniciativa da editora norte-americana
Marvel Comics com seu aplicaticavo Marvel
AR (ou Marvel Augmented Reality), que
possibilita ao leitor, armado de um telefone
celular ou tablet, com sistemas operacionais
Google Android ou Apple iOS e com
câmera digital e acesso à internet, acessar
conteúdos adicionais que poderiam possibilitar
a expansão da experiência de leitura das
histórias em quadrinhos.
Objetivamos analisar edições da editora
- especificamente da série mensal Captain
America (2013) e da mini-série Age of Ultron
(2013). Essas publicações figuram como carros-
chefe do portifólio da editora e apresentam-se
como veículos privilegiados para o uso da
nova ferramenta de leitura Marvel AR. A
hipótese de trabalho que guiará a interpretação
desses usos é a de que o aplicativo Marvel
AR é uma manifestação da "culturalização da
mercadoria" que aumenta a transparência da
relação leitor/produtor e contribui para que
"as tecnologias da informação, as indústrias
culturais, as marcas e o próprio capitalismo
[construam] uma cultura [...] [e] um sistema de
valores, de objetivos e mitos" (LIPOVESTKY
e SEROY, 2010, p.15) ao redor de seus
produtos, títulos e personagens, assim como
de seus produtores.

Marvel, Intertextualidades e Transmídia


A construção do universo das histórias
em quadrinhos da editora Marvel Comics

54 9ª Arte  São Paulo, vol. 4, n. 2, 2º semestre/2015


A relevância das cores na
geração do sentido em
histórias em quadrinhos
 Dr. Rafael G. Lenzi
Centro de Pesquisas Sociossemióticas (CPS, PUCSP)

Resumo: Operando sobre o âmbito do cromatismo em história em quadrinhos, este artigo visa 1 Este trabalho se apoia no processo
2010/10435-6, financiado pela
evidenciar sua articulação interna na graphic novel Ramayan 3392 A.D., para expor a importância Fundação de Amparo à Pesquisa do
da observação desta questão em análises de textos que exploram o cromatismo, particularmente Estado de São Paulo (FAPESP).
de histórias em quadrinhos. Como principais considerações levantadas tem-se a associação de
cada cor presente a algum tema, e a possibilidade de uma leitura outra operada pelas cores. Como
base teórica utiliza-se a semiótica discursiva, incluindo seus desdobramentos sobre a plasticidade.
As conclusões ressaltam um “sentido cromático”, que é a princípio apreendido na relação com
os demais componentes visuais para depois se estabelecer como dotado de um sentido próprio,
que não deixa de ser correlacionado com o sentido geral do texto.

Palavras-chave: Cromatismo. História em quadrinhos. Narratividade. Semiótica discursiva.

Abstract: Working on the chromatic sphere of comic books, this paper aims to point out its
inner articulations in the graphic novel Ramayan 3392 A.D., in order to expose the importance
of this question’s observation in analyses that explore chromatism, particularly of comic books.
As main raised considerations there is the association of each given color to some theme, and
the possibility of another reading operated by colors. As theoretical basis the discursive semiotics
is used, including its unfoldings on plasticity. Conclusions show a “chromatic sense” which is
firstly apprehended in its rapports with other visual elements to then establish itself as endowed
of a sense of its own, that does not cease to be correlated with the text’s general meaning.

Keywords: Comics. Chromatism. Discursive Semiotics. Narrativity.

Analisa-se neste artigo1 o âmbito do Relacionando então essas cores e suas funções
cromatismo em história em quadrinhos, com o sentido previamente levantado sobre o
com ênfase em suas as articulações internas. texto, é possível observar como este sentido
Inicialmente é levantado o sentido dado exclusivo dado pela composição cromática
pelo cromatismo no texto a partir de suas se conecta com o percurso gerativo de
correlações com os outros elementos da sentido que emerge do texto como um todo.
visualidade, incluindo o texto verbal. Isso se Considerando a estruturação das cores no
desenvolve na posterior marcação e pontuação objeto, busca-se evidenciar a importância
sobre a leitura fornecida pelo cromatismo, de análise sobre os componentes cromáticos
por meio da associação das cores a temas como dotados simultaneamente de significação
específicos, conforme o semi-simbolismo. correlacionada aos demais componentes

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da visualidade e também relativamente como um todo. Somando isto ao fato de que
independentes, ao menos por um momento, foi encontrado pouco conteúdo que tratasse
cujo grau de independência pode variar de desta relação, faz-se aqui esta contraposição
acordo com o objeto observado. para ressaltar a possibilidade e importância
Com isso em vista tomam-se alguns de uma observação aprofundada no que diz
exemplos da história em quadrinhos Ramayan respeito ao cromatismo em textos coloridos.
3392 A.D. (CHOPRA; KAPUR, 2007; O texto adotado como objeto apresenta
2008), uma obra “policromática”, buscando uma nova versão para o épico mítico Ramaiana
relacionar então a configuração cromática à (VALMIQUI, 1993), logo essa graphic novel
composição do sentido dado pela totalidade retraz um exemplar da mitologia indiana,
dos formantes visuais e verbais. Utiliza-se a cuja cultura e religiosidade têm o cromatismo
teoria semiótica discursiva como metodologia como uma marca importante. Para efeito
de análise, com ênfase nos desenvolvimentos de constatação, nessa nova versão trazida
plásticos propostos por Greimas (2004) e nos quadrinhos a narrativa do Ramaiana é
explorados por Floch, com a abordagem situada em um tempo futuro, considerando
semi-simbólica (1985; 1997), e Oliveira (2004; a temporalidade circular de acordo com a
2009). O percurso de análise adotado se dá cosmogonia do hinduísmo. Nessa cosmogonia
a partir do objeto, conforme apontado por o tempo, infinito, é composto por fases
Oliveira (2004, p. 155): sucessivas de emanações e absorções, de
[...] são as perguntas que a obra forma que a marca do fim de um período
nos impulsiona a lhe inquirir que de absorção, caracterizado pela degradação
delineiam os primeiros e os últimos do mundo, é a vinda de um avatar divino
caminhos de nossa exploração de (PIANTELLI, 2002, p. 73; 85-86). É isso
seu terreno de ação. Tornando-se que constitui o enredo do texto analisado,
uma metodologia de trabalho, com o herói-divindade encarnada Rama,
esse procedimento exige respostas majoritariamente marcado pela cor azul, sendo
que afirmativa ou negativamente exilado e posteriormente buscando resgatar sua
respondem as nossas questões ou companheira Seeta, marcada pela cor verde,
porque não, também respostas que sequestrada pelo vilão Ravan, marcado pelas
nos levam a outras interrogações. cores cinza e vermelho.
O encontro dessas respostas está Utilizando-se dos recursos gráficos da
no interior da própria obra na sua atualidade, o texto tem como característica
organização semiótica que nos resta acentuada a expressão cromática, que é
então explorar. explorada com uma grande quantidade de
tons e subtons em suas páginas. Mantendo,
Assim, tomando como ponto de partida portanto, o elemento policromático da
análises prévias da história em quadrinhos mitologia hindu em suas representações
Ramayan 3392 A.D., (LENZI, 2014) percebe- originais da Antiguidade, e ao mesmo tempo
se uma possibilidade outra de interpretação enriquecendo-a com os recursos gráficos atuais,
gerada pelo cromatismo. Deve-se dizer que o a revista constitui-se como modelo para a
texto como um todo e o plano cromático não observação de formantes cromáticos e suas
são considerados como âmbitos de significação significações. Nota-se que, nesta nova versão,
separados, mas antes como o último sendo os acontecimentos mitológicos se dão em
englobado pelo primeiro. Entretanto, o outra temporalidade, futura, e neste sentido,
papel do cromatismo na composição do até condiz com a nova versão a tomada de
percurso gerativo de sentido desta história um suporte midiático diferenciado e típico
em quadrinhos se mostra decisivo, além de da temporalidade atual, que neste caso é o
concomitante, para a constituição do sentido formato história em quadrinhos.

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As cores no texto pode-se verificar a variação de cores trazida
O texto traz um amplo leque de tons pela narrativa; abaixo é disposta a primeira
e subtons cromáticos. Em três imagens delas (Fig. 1):

Figura 1 - Imagens de Pluralidade cromática da revista. Fonte: Chopra; Kapur (2007).

Como a imagem acima corresponde à assim uma figuratividade (COURTÉS;


segunda página da narrativa da revista, a esta GREIMAS, 1979, p. 184-186), ou a conceitos,
altura nada em relação ao sentido das cores representando temas (COURTÉS; GREIMAS,
poderia já estar certificado. A análise então 1979, p. 453-454). Neste procedimento, em
parte para as correlações na busca de elementos um constante correlacionamento, a análise
invariáveis. Em uma análise minuciosa cada permite levantar as reiterações e assim,
cor pode ser associada a outros elementos gradualmente, o sentido geral do texto
da configuração da página, como formas observado. Como o foco aqui é o cromatismo,
(eidético), disposição (topológico) e ao discurso pode-se decompor a imagem acima como um
verbal presente nas falas. Da mesma forma amarelo esbranquiçado luminoso que perpassa
cada um desses elementos pode ser associado o cinzento do alto. Sendo que este amarelo é
a elementos do mundo natural, representando proveniente do dourado da torre, ligada ao

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conjunto de construções que por sua vez traz Para efeito de constatação, a cidade descrita
diversos subtons presentificados, destacando corresponde à terra natal dos heróis, que
o sombreamento da margem inferior direita se constitui como um refúgio das névoas
que se conecta ao discurso verbal do canto2. venenosas que cobrem o mundo da narrativa.
Também se tem um subton entre o verde e o Tomando então outro exemplo, mais adiante no
amarelo na centralidade horizontal da torre. texto, tem-se outro conjunto de cores (Fig.2):

Figura 2 - Pluralidade cromática da revista, segundo grupo. Fonte: Chopra; Kapur (2007).

2 A impressão em papel couché,


conforme a publicação original da
Nesta página tem-se no primeiro quadro da espada com o marrom do solo, destacando
revista, altera parcialmente as cores. A o fundo verde-acinzentado sendo preenchido também o azul do herói. Neste último também
análise se apoia na impressão original. pelo branco, e em primeiro plano, o tom estão presentes o preto, o branco e o dourado.
avermelhado deste vilão sendo cortado pelo rosa Outra consideração relevante sobre o quadro
da espada. O segundo quadro reitera alguns tons superior, policromático, é como a luminosidade
e traz o vermelho intenso, pelo qual se destaca é figurativizada na espada e nas entranhas
o amarelo da parte interna do vilão. Por fim, amarelas do próprio vilão ou antissujeito,
o último quadro enfatiza a conjunção do rosa mantendo-se no quadro abaixo e denotando o

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fazer do sujeito, rosa, e o ser do antissujeito, cores presentes no texto – embora não sejam
amarelo. exauridas as possibilidades de subtons que o
Com a figura abaixo completam-se as texto engloba (fig. 3):

Figura 3 - Pluralidade cromática da revista, terceiro grupo. Fonte: Chopra; Kapur (2007).

Esta página corresponde à conclusão cores principais da página, estando presente


de um dos segmentos da Graphic Novel de forma realçada em uma dimensão entre
analisada. Vê-se como na maior parte da o “mundo” da narrativa e o do leitor, com
página as cores se encontram mais “libertas” os detalhes dos cantos inferior esquerdo
do delineamento dado pelo plano eidético. e superior direito. Também há o preto, o
Tem-se aqui reiterado o verde dos exemplos vermelho amarelado e as formas púrpuras
anteriores, porém aqui ele aparece destacado indefinidas. Acima o verbal do narrador, que
em total definição (embora também haja também é um dos personagens, indica: “ela é a
subtons esverdeados). O azul do herói recebe chave para a salvação deste mundo miserável”
maior destaque, constando também na parte sobre a luminosidade branca vertical, e “seu
superior esquerda. O branco é outra das irmão [o herói mostrado aqui] deve ser seu

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protetor” sobre o fundo azul mais intenso, o Ressaltando que, conforme se dão as
que coloca esta personagem, chamada Seeta, correlações, um mesmo tema pode aparecer
também como protagonista da narrativa representado tanto pela cor quanto por um
em uma associação ao fazer branco, além tipo de traço (reto, sinuoso, grosso, fino,
de instaurar o novo dever do herói Rama. etc.), e também pela posição na configuração
A moldura branca e sinuosa dos cantos da página (alto, baixo, central, periférico,
representa o fechamento desta sequência etc.), de forma que nessa contextualização,
textual, mantendo o cromatismo branco uma agressividade pode estar presente sem
deste fazer ligado à salvação, e fortalece o necessariamente haver o vermelho vivo; nesses
efeito de sentido estésico da página de quadro casos, porém, haveria um subtom do vermelho.
único, assim como os sujeitos prostrados. A Também em relação aos planos eidético e
centralidade é ocupada por Rama que olha, topológico, a partir das análises tomadas
sem compreender a isotopia da heroína. como base, verifica-se que essa quantidade,
Próximo a ele, de fato entre os dois, uma considerável, de temas emerge apenas do
mancha amarelo avermelhada retraz o seu plano cromático, atribuindo-lhe uma grande
fazer prévio de malícia ou violência – temas importância no percurso gerativo de sentido
estes já ratificados, neste ponto, pela correlação da narrativa.
respectiva aos tons amarelo e vermelho – de A par tir dessa classificação, são
forma que esta mancha opera aqui como retomadas as imagens anteriores. Assim, no
impedimento para esta compreensão da primeiro caso (fig. 1), o feixe vertical amarelo
heroína pelo herói. O efeito desfocado sobre representa a ação astuciosa que avança sobre
toda a espacialidade também contribui para o o destino disfórico (cinza) englobante. Além
fator cognitivo do trecho. Sob a personagem disso, a pluralidade cromática dessa cidade
caída tem-se a cor púrpura, já presentificada se centraliza sobre essa ação, de forma que
em trechos anteriores da narrativa, tendo sua os outros temas – cores, dessa cidade são
interpretação confirmada como um destino ofuscados pelo fazer central, perdendo
além da vida. Igualmente o preto neste definição. As sombras da página, que até certo
personagem se associa à patemização, neste grau podem ser associadas à cor preta, neste
caso de um luto, por parte da heroína. caso trazem por sua vez a inteligibilidade e
Após a apresentação dos tons cromáticos patemização que se opõem à centralidade
do texto e de algumas das subtonalidades, traz- da cidade. Note-se que, no caso do preto,
se a associação, em última instância temática, não há ação, permanecendo o conjunto de
das cores a partir de suas correlações nesta possibilidades trazidas pela inteligibilidade e
narrativa, conforme explorado em Lenzi patemização. De forma que a inteligibilidade
(2014). Considerando então os formantes e a patemização (preto) pode incluir um fazer
cromáticos e suas tematizações tem-se: astuto ou malicioso (amarelo) que seria de se
esperar de um vilão que é inserido desde o
Amarelo = malícia início como “sombrio”, porém, sem se limitar
Azul = transformação a esta forma de ação. Na configuração deste
Branco = sensibilidade tipo de fazer citado, a definição seria dada no
Cinza = destino disfórico cromatismo pelos subtons, especificamente o
Marrom = simplicidade preto-amarelado. É precisamente assim que é
Preto = inteligibilidade e patemização articulado o sentido de uma malícia sobre a
Púrpura = destino além, incognoscível criação, ou criativa, pelo amarelo esverdeado
(sem forma) da centralidade horizontal da torre.
Rosa = manutenção da vida, vida No segundo caso (fig. 2), depreende-
Verde = criação, natural se uma ação do herói conectada à vida (rosa)
Vermelho = violência sobre a simplicidade agressiva do vilão

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(marrom avermelhado), cujo conteúdo é inteligibilidade e patemização (preto), com
malicioso (amarelo). O subtom de fundo nuances de simplicidade (marrom), que
verde-acinzentado, pela mesma lógica por sua vez se desdobram em algo além
das subtonalidades como combinações (púrpura), presentificado na base da página.
temáticas, remete a uma mistura, de um Pois ainda no plano inferior, o mesmo preto
destino disfórico sobre a criação. A mesma da inteligibilidade é dado repousando sobre o
ação prossegue no quadro central, destacado púrpura, como intermediando ou conectado
pelo vermelho forte que realça a violência a este destino além, possivelmente oriundo
da cena. No quadro inferior há a conjunção dele. Acrescentando que, com uma diluição
entre a vida (rosa) e a simplicidade (marrom), cada vez mais intensa, esse mesmo púrpura
de forma que o agente dessas ações é um se expande ao alto até onde está o herói,
herói da transformação (azul). Também indicando, ao contrário do vermelho, algo
estão bastante visíveis o branco e o preto, nas que os une ou engloba.
duas extremidades desse herói, a cabeça e as
pernas. Neste caso a correlação se dá com o A configuração interna do plano cromático
texto verbal à esquerda, que traz um discurso O que se tem a partir deste cenário é,
associável aos temas representados por essas em princípio, a possibilidade de associação
duas cores (sensibilidade e inteligibilidade e de alguns personagens a cores específicas.
patemização). Isto se dá com os personagens principais.
Já no terceiro caso (fig. 3), há uma Por exemplo, o herói é marcado pelo azul
segmentação entre o âmbito da transformação e o arquivilão pelo cinza, enquanto os
(azul) e o da criação (verde), com interferência personagens adjuvantes são mais complexos
de uma sensibilidade (branco) mais definida no âmbito cromático. Nesta possibilidade
no âmbito da criação, e mais esparsa no de associação vê-se uma simplificação que
âmbito da transformação. De fato, como auxilia na concepção que o leitor venha
as análises demonstraram, a personagem a ter dos personagens. Entretanto, no
do plano inferior, Seeta, é aquela que tem relacionamento das cores entre si, pode-se ir
como uma das principais características a mais além e estabelecer um panorama geral do
sensibilidade, auxiliando o herói, no plano cromatismo no texto. Inserindo estas cores em
superior, neste sentido. De forma semelhante, uma escala que evidencia as passagens de um
o tom avermelhado da violência é dado no a outro, percurso que é indicado no texto por
plano superior em formas indefinidas, ao meio do laranja, por exemplo, intermediário
passo que no plano inferior é o púrpura do entre o vermelho e amarelo que tematiza
incognoscível que emerge como significação justamente uma mediação entre a malícia e a
complementar. Em outras palavras, a violência violência, propõe-se um esquema cromático-
e malícia repousam como obstáculo entre os temático baseado na relação entre os temas
dois, uma vez que a heroína se volta para a desdobrada da relação entre as cores:

destino disfórico
inteligível e patêmico –––––– sensibilidade dimensão cognitiva

simplicidade vida trajetória de englobante a englobado

criação
transformação malícia – violência dimensão pragmática

incognoscível

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Neste sentido deve-se acrescentar principais de cada elemento.
que embora alguns personagens principais Em relação a um dos cromatismos
apresentem temas/cores canônicos, esses mais complexos nesta análise, o púrpura
temas não são estanques nem exclusivos a do incognoscível, percebe-se por meio do
determinados personagens. Ao contrário, os gráfico como esta cor reitera e ratifica uma
temas circulam tanto entre sujeitos quanto condição paradoxal desta instância além, na
cenários, e mais importante do que a cor intermediação dos dois temas que se opõem
que determinado personagem ou cenário diretamente na dimensão pragmática, cujas
apresente, é a cor com que cada elemento presentificações apresentam com frequência
é pintado em cada cena particular. Sendo o ser do herói e o fazer do vilão principal
que há também diálogo com a luminosidade (fig. 4): o azul e o vermelho, bem como
apresentada em cada caso, com a posição enuncia a violência como parte integrante
topológica e com a figuratividade. No da vida.Também fica marcada a trajetória do
caso da topologia, as principais dualidades vilão, cuja presentificação do ser, destacada
levantadas são alto-baixo e centro-margens, pelo cinza do destino disfórico, é aqui
já em relação à figuratividade a principal realçada como uma interpretação cognitiva,
segmentação é aquela que associa uma cor a entre o sensível, o patêmico e o inteligível
um ser ou a um fazer. Assim, de acordo com – posteriormente desdobrada na narrativa
a posição e o entorno em que determinado em um fazer violento. Acrescenta-se que
personagem ou cenário é mostrado, uma em uma das passagens do texto, na qual o
cor que antes havia sido confirmada como vilão em um papel temático de mediador
ligada a certo elemento visual pode não se conjunge à espacialidade de mediação
aparecer mais em outra página que apresente eufórica, o lugar do incognoscível, uma
uma imagem similar, ou aparecer como alteração de disfórico a eufórico é impedida
um subtom da cor original. Logicamente devido à conjunção do antissujeito ao cinza
as reiterações indicam as características (fig. 5 e 6).

Figura 4 - O vermelho vivo associado ao fazer usual do arquivilão. O cinza correspondente ao ser do personagem
permanece manifesto em seu rosto. Fonte: Chopra; Kapur (2007).

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Figura 5 -O arquivilão, se passando por um dos personagens, narra um acontecimento que teria ocorrido em
uma espacialidade “além”. Note-se o cinza em dois momentos: acima, na extremidade do “tecido” e no canto
inferior direito, nos cabelos grisalhos. Neste disfarce, o cinza substitui um subtom entre vermelho e marrom
do personagem emulado – o que marca com maior intensidade o ato de disfarçar-se, ao ocultar um vermelho
presente reiteradamente em seu próprio fazer e também no ser do personagem emulado. Ou seja, o fazer é
ocultado, mas não o ser. Fonte: Chopra; Kapur (2008).

Figura 6- O personagem original emulado pelo arquivilão. Fonte: Chopra; Kapur (2007).

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Outro desdobramento relevante é que acordo com o texto; neste caso particular
a escala cromática preto-branco representa a há por vezes regência significativa do verbal,
dimensão cognitiva, ao passo que as cores por vezes do cromático, além do topológico
propriamente ditas se expressam na passagem e do eidético; sendo que na maioria das
entre as dimensões e na própria dimensão vezes é evidenciado o equilíbrio entre estes
pragmática, associando a ação de dar cor à elementos, característico do sincretismo das
dimensão pragmática. A partir disso chama histórias em quadrinhos. Conforme abordado
a atenção como, considerando a dimensão acima, em alguns pontos as cores chegam
pragmática como centralidade englobada a ser apresentadas sem marcas explícitas
pela dimensão cognitiva, e simultaneamente, em seus constituintes eidéticos, e até sem
em uma dimensão outra, pelo incognoscível, indicativos textuais. Nestes pontos as cores
o destino disfórico sobressai deste esquema dialogam entre si na constituição do sentido,
que separa centro de margens, instaurando mantendo-se o topológico como organizador
a separação entre alto e baixo. Existe uma dessa configuração; por esses trechos o texto
possibilidade de regência cognitiva da observado não se inseriria no que poderia
dimensão pragmática feita por este destino ser denominado como “núcleo duro” das
disfórico, situado na dimensão cognitiva histórias em quadrinhos, o sincretismo. Em
englobante, e é o que ocorre na narrativa, no uma última fase, ocorre uma nova correlação
caso do arquivilão. Considerando o cinza entre essa significação cromática e o texto
ao mesmo tempo como um desdobramento como um todo.
da dimensão cognitiva, é evidenciada no De qualquer for ma, em algumas
esquema sua relação com a dualidade ocasiões o cromatismo se põe como o
topológica designada como do parecer fator visual no qual repousa um diálogo de
(alto-baixo), em uma oposição ao púrpura- significação de páginas inteiras. Ratifica isso
incognoscível (relacionado à dualidade o fato que nessa mesma história analisada,
estabelecida como do ser, centro-margens). sem as cores não haveria, ao menos da mesma
Por outro lado, os quatro temas da dimensão maneira, a colocação em discurso de temas
pragmática têm sua ligação à dimensão como destino disfórico, transformação,
cognitiva por meio da simplicidade, no incognoscível, etc., temas que não são
inteligível e patêmico (do preto ao vermelho), fornecidos pelo texto escrito, bem como da
e por meio da vida, ou manutenção da vida relação estabelecida entre diversas figuras
no âmbito sensível (do branco ao vermelho), que trazem estes temas pelo cromatismo,
subtons entra as duas escalas. além dos subtons responsáveis pelos temas
Em linhas gerais, não há apenas a intermediários do ponto de vista cromático.
correlação das cores com outros elementos, Na observação que se faz sobre o
como eidéticos e linguagem verbal, mas sentido cromático e do texto como um
também a sistematização dos formantes todo, em uma espécie de paralelo, percebe-
cromáticos entre si. O resultado final define se uma nova escala de significação dada
por consequência um sistema complexo pelas cores, sempre em correlação com o
de significação na associação entre cores, texto em que se insere. Nota-se assim como,
formas e posições. A respeito deste sistema, iniciando pela percepção do sentido operada
pode-se dizer que ele opera em três fases, inicialmente nas associações entre cores e
independente de a leitura se dar por análise outros elementos em um primeiro momento,
ou fruição do texto. A primeira corresponde chega-se a um segundo momento, com as
a uma fase de correlações, na qual é necessário reiterações e as significações apreendidas,
associar determinada cor a determinada em que se pode visualizar como as cores
for ma, posição, etc.. Na segunda fase, dialogam entre si, especialmente por meio
com significações já ratificadas, o sistema dos subtons. De certa forma, neste segundo
cromático adquire certa autonomia, de momento da apreensão há uma relativa

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independência do cromatismo, ao gerar ______. Une lecture de Tintin au Tibet. 1.ed.
significações particulares que o texto verbal Paris: Presses Universitaires de
não dá. Ou seja, o cromatismo vai além do France, 1997.
enriquecimento visual da narrativa. Por fim, GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário
este sentido cromático é reintegrado ao texto de semiótica. Tomo I. São Paulo: Cultrix, s/d,
sincrético que o comporta, em um diálogo 1979.
de significações. Significações que são dadas ______. Semiótica figurativa e semiótica
pela obra pronta, independente de ter havido plástica. In: OLIVEIRA, A.C. De (org.).
qualquer esforço ou intenção dos autores em Semiótica Plástica. São Paulo: Hacker, 2004.
inseri-las. P. 75-96.
Devido ao procedimento inicial LENZI, R. G. Narrativas de constituição
adotado de associação entre cores e do sujeito na antiguidade e atualidade em
outros elementos, que dita a forma que as Bhagavad-gita e Ramayan 3392 AD. 2014.
correlações são feitas, cada texto apresenta 247 f. Tese (Doutorado em Comunicação e
uma organização cromática particular, em Semiótica) - Pontifícia Universidade Católica
padrões diferenciados. Porém, a própria de São Paulo, São Paulo, 2014.
presença das cores se relaciona ao sentido OLIVEIRA, A. C. de. A plástica sensível da
do texto como um todo, e elas podem expressão sincrética e enunciação global. In:
até se mostrar como principal meio na OLIVEIRA, Ana Cláudia de e TEIXEIRA,
propagação deste sentido, portanto sua Lúcia. (orgs). Linguagens na comunicação:
apreciação deve ser considerada. Embora desenvolvimento de semiótica sincrética. São
aqui seja tomada como exemplo apenas Paulo: Estação das Letras e Cores, 2009.
uma história em quadrinhos específica, a P.79-140.
mesma possibilidade de investigação existe _____. As semioses pictóricas. In: OLIVEIRA,
em diversos outros textos, que mantêm A. C. de (org.). Semiótica
sentidos e significações agregadoras no plano plástica. São Paulo: Hacker Editores, 2004.
cromático, podendo estar em concordância ou P.115-158.
discordância com o sentido geral dos textos. PIANTELLI, M. Lo hinduismo I: Testi
No caso abordado aqui há um acréscimo e dottrine. In: FILORAMO, G. (Org.).
particularmente interessante, convergente Hinduismo. Bari: Laterza, 2007. cap. 2. P.
com o sentido geral do texto e ao mesmo 61- 170.
tempo revelador de outras possibilidades. Em VALMIQUI. O Ramáiana. São Paulo:
conclusão, espera-se que este tipo de estudo Paumape, 1993.
possa abrir possibilidades de interpretação
e pesquisa sobre textos coloridos no que
tange à observação do cromatismo como
meio comunicativo propriamente, a partir
do semi-simbolismo, considerando também
suas articulações internas.

Referências
CHOPRA, D.; KAPUR, S. Ramayan 3392
AD. New York: Virgin Comics, 2007.
______; ______. Ramayan 3392 AD
Reloaded: the Tome of the Wastelands. New
York: Virgin Comics, 2008.
FLOCH, J-M. Petites Mythologies de l’oeil
et de l’esprit: pour une sémiothique plastique.
Paris-Amsterdam: Hadès-Benjamins, 1985.

9ª Arte  São Paulo, vol. 4, n. 2, 2º semestre/2015 65

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