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Como avaliar suspeita de deficiência intelectual


ANNELISEJÚLIQ-COSTA
JÚLIA BEATRIZ LOPES-SILVA
RICARDO MOURA
BARBRARfO-LIMA
VIÍORGERALDIHAASE

CONCEITO a aspectos ecológicos e funcionais, visando


não só à classificação, mas também à pro-
Deficiência intelectual visão de apoio especializado. Atualmente, a
definição mais influente é a que foi propos-
A deficiência intelectual (Dl) é uma catego- ta pela AAIDD em 2007, que define retardo
ria diagnostica de etiologia, caracterização mental como ".. . uma incapacidade carac-
e avaliação bastante complexas. Â comple- terizada por importantes limitações, tanto
xidade do quadro clínico da Dl se reflete na no funcionamento intelectual quanto no
série de definições já estabelecidas, A pri- comportamento adaptativo, e se expressa
meira definição foi proposta ern 1908 pela nas habilidades adaptativas conceituais, so-
Associação Americana de Retardo Mental ciais e práticas. Essa incapacidade tem iní-
(American Association of Mental Retar- cio antes dos 18 anos" (AA1DD, 2010).
dation [AAMRJ, 2006). Desde então, essa A definição de Dl engloba, portanto,
definição foi atualizada diversas vezes, le- dois componentes básicos principais, que
vando, inclusive, à mudança do nome da serão abordados em detalhes mais adian-
associação para Associação Americana de te: a inteligência (ou funcionamento inte-
Transtornos Intelectuais e do Desenvolvi- lectual) c a adaptação a um determinado
mento, cm 2007 (American Association on contexto. Apesar da aceitação desses com-
Intellectual and Developtncntal Disabilities ponentes como os fundamentos básicos
[AAIDD],2010). para o diagnóstico de Dl, ainda há disso-
Essa mudança na nomenclatura se deve nâncias sobre sua operacionalização. Além
tanto ao estigma gerado pelo termo "retar- da inteligência e do comportamento adap-
do*1 quanto às divergências sobre a defini- tativo, a AA1DD também estabelece outros
ção do quadro observado nessa população. três componentes que vão garantir o cará-
Tradicionalmente, as definições de Dl en- ter ecológico do diagnóstico:
fatizam o rebaixamento acentuado no fun-
cionamento intelectual, acompanhado de a. participação, ínterações e papéis sociais
um déficit no comportamento adaptativo. b. saúde física e mental
Em 1992, a definição foi atualizada e ex- c. ambiente e cultura - por não deman-
pandida de forma a dar uma ênfase maior darem uma avaliação padronizada, tais
1 34 '• Malloy-DJniz, Mattos, Abreu & Fueníes (orgs.)

componentes não serão abordados em As próprias medidas de Ql também


mais detalhes neste capítulo são alvo de críticas. Inicialmente, a preci-
são das medidas de QI na avaliação de es-
cores extremamente baixos (extremidade
Inteligência inferior da distribuição) é "encarada com
desconfiança. Muitos autores argumentam 9
A inteligência é um dos construtos psicoló- 'que os testes de inteligência convencionais
9
gicos cajá avaliação é mais bem validada pe- são muitas vezes projetados para aplica-
la literatura científica. No -que diz respeito ção em crianças de funcionamento normal.
à Dl, a baixa inteligência é considerada urn Em alguns casos, portanto, a falha de crian-
critério necessário, mas não suficiente para ças com Dl poderia ser explicada por difi-
o diagnóstico, ou seja, o quadro típico de Dí culdades em persistir na mesma tarefa por
deve ser acompanhado de outros prejuízos. longos períodos e também pelo fato de es-
Apesar de o déficit intelectual ser o ses testes não despertarem .sua motivação
critério diagnóstico de operacionalização ou se apoiarem fortemente sobre suas ha-
mais claro, a aplicação desse constmto na bilidades verbais, geralmente prejudicadas
diagnose e definição de Pi não está livre de '(Walsh et ai., 2007). Assim, a produção de
controvérsias. A discordância entre os es- uma medida válida da capacidade intelec-
pecialistas começa já na abordagem teórica tual das pessoas com Dl exige que os pro-
sobre inteligência, Ainda que algumas das cedimentos de testagern acomodem suas
principais teorias tragam evidências favo- dificuldades na comunicação e na aten-
ráveis a um modelo multifatorial, compos- ção. Isso foi comprovado recentemente em
to por inteligências múltiplas (Almeida et um estudo conduzido por Bello> Goharpey,
ai., 2010), existe a crítica de que o diagnós- Crewther e Crewther (2008), que mostrou
tico de Dl atribui o mesmo peso a habilida- que crianças com dificuldades intelectuais
des intelectuais muito diversas, tais como severas apresentam desempenho melhor
velocidade de processamento» raciocínio 'no Teste de Matrizes Progressivas Coloridas
verbal e raciocínio não verbal, sendo que, de Raven quando os estímulos são concre-
na prática, o foco dê avaliação do funcio- tos e podem ser manuseados por elas. Além
namento intelectual recai quase exclusiva- disso, existe ainda uma discussão em rela-
mente sobre o quoeficiente intelectual (QI) ção ao ponto de corte estatístico a ser con-
total. O problema com o QT total é que, por siderado para a classificação de limitações
ser uma medida muito genérica, ele acaba intelectuais significativas.
perdendo uma série de informações rele-
vantes sobre o funcionamento das popu-
lações clínicas (Piorello et ai., 2007). Isso Comportamento arfaptativo
é extremamente prejudicial, por exemplo,
nos casos de inteligência limítrofe ou trans- O segundo ponto mais importante para o
tornos de aprendizagem, nos quais é mais diagnóstico de Dl é a presença de prejuí-
provável encontrar padrões importantes de zos no comportamento adaptativo. Este é
dissociação entre habilidades deficitárias urn construto essencialmente multifato-
e habilidades preservadas (Alloway, 2010; rial e pode ser definido como o conjunto
Cornoldi, Gíofrè, Orsini, & Pezzuti, 2014). de habilidades qxie permite uma inserção
Desse .modo, o diagnóstico acaba não pre- funcional nas atiyidades diárias de ca-
vendo a existência de pontos fortes e fracos sa, escola e trabalho (Oakland & Harrí-
no funcionamento intelectual, son, 2008). De acordo com a definição de 9
9
9
;NeufGpsit:0!ogla'-« 135

Dl estabelecida pela AAIDD (2010), o pré- ' Severidade e níveis de funcionamento


juízo no comportamento adaptativo afe-
ia habilidades conceituais, sociais e práti- As definições de Dl sempre enfatizaram a
cas, e ao menos uma dessas três áreas deve variabilidade existente entre as pessoas que
estar comprometida para que o diagnósti- recebem o diagnóstico. A quantificação
co seja confirmado. A presença de dificul- dessa heterogeneidade ganhou força com
dades no comportamento adaptativo, ain- o surgimento dos testes de inteligência) no
da que não seja o critério central na Dl, é início do século XX, quando os diferentes
de grande importância para o diagnóstico, níveis de Dl passaram a ser determinados
uma vez que reduz a possibilidade de falsos a partir da identificação da idade mental.
positivos. Desse modo, é possível que exis- ' Na década de 1950, o Manual diagnóstico
tam casos de desempenho alterado em tes- e estatístico de transtornos mentais (OSM-1)
tes de avaliação da inteligência de sujeitos (American Psydyatríc Assocíation [APA],
que são funcionais no dia a día, o que não 1952) buscou classificar os níveis de seve-
configuraria DL ridade a partir de medidas de QI. Na déca-
Assim corno na inteligência, o papel da de 1980, a AAIDD definiu que o erro-
dos déficits no comportamento adaptativo -padrão dos testes deveria ser considerado
para o diagnóstico de Dl também é cercado para a classificação do grau de Dl (AA1DD>
de discordâncias. Uma delas diz respeito à 2010). Dessa forma, para Dl leve, foi consi-
relevância desses déficits para o diagnósti- derado o intervalo de 50-55 a 70-75> e pa-
co. Existem opiniões em favor do compor- ' ra moderada, de 35-40 a 50-55. No entan-
tamento adaptativo como o ponto central to, a associação defende que, mais que os
no diagnóstico de Dl, uma vez que as limi- pontos de corte de QI, deve ser considerado
tações adaptativas teriam um impacto mais o tamanho da diferença entre o valor obti-
danoso na vida das pessoas do que as limi- do e a média populacional, o qual deve ser
tações intelectuais. Esse argumento apre- de, no mínimo, 2 desvios-padrão, para evi-
senta algumas restrições. A primeira delas é tar diagnósticos falsos positivos.
que, de maneira geral» as medidas de men- Mais recentemente, a partir da defi-
suracão do comportamento adaptativo não nição de 1992, a AAIDD se esforçou em
têm as mesmas qualidades psicométricas reduzir a aplicação dos escores de QI na
que as medidas de avaliação da inteligência, ' classificação dos níveis de severidade,
gerando desconfiança em relação à valida- mantendo-os apenas para o diagnóstico
de desse construto (Thompson, McGrew, (AAÍDD, 2010). Desde então, os níveis de
& Bruininks, 1999). Além disso, correla- funcionamento na Dl passaram a ser defi-
ções altas entre comportamento adaptati- nidos a partir da quantidade de suporte de-
vo e medidas de QI são comumente obser- mandada para a realização de atividades do
vadas, o que contribui para a desconfiança cotidiano.
em relação à validade desses testes e ainda
levanta a suspeita de que a maior parte da
informação utilizada para o diagnóstico de SISTEMAS DE CLASSIFICAÇÃO
Dl seja oriunda da capacidade intelectual. ' NOSOLOGIGA
Á variabilidade na natureza das medidas
geralmente empregadas para avaliação do Atualmente, existem três grandes sistemas
comportamento adaptativo (escalas e en- principais de classificação de deficiência in-
trevistas com pais, por exemplo) também telectual; o modelo proposto pela Classifi-
é alvo de críticas. cação internacional de doenças e problemas
1 36/*:'Mâ!loy-Dim21;Mattbs,Ab're.u & Fuentes-.(orgsÇ)

relacionados à saúde (CiD-10)> elaborado de transtornos planejada para a CID-11, a


peia Organização Mundial da Saúde (OMS, qual preconiza uma proposta de capítulos
2008); o da American Psychiatric Associa- fundamentada na abordagem cronológi-
tion (APÁ, 2013), sistematizado no DSM; e ca do ciclo vital. Dessa forma, atualmente,
o sistema da ÁAiDD (20 10). * a Dl está inserida na seção de Transtornos
A CID teve sua 10a revisão aprovada do Neu r o dês envolvimento, com o título de
pela OMS em 1990. Atualmente, o retar- "Deficiências intelectuais" Suas principais
do mental 1 está dentro da seção de Trans- .características clínicas referem-se a défícits
tornos Mentais e Comportamentais e tem em capacidades mentais genéricas, como
como principal característica diagnosti- raciocínio, solução de problemas, planeja-
ca a parada do desenvolvimento ou desen- mento, pensamento abstraio, juízo, apren- 9
volvimento incompleto do funcionamen- dizagem académica e aprendizagem pela 9
to intelectual. Cabe ressaltar que a CID- 10 experiência. Cabe ressaltar que o DSM en-
considera a possibilidade de o retardo fatiza a importância do prejuízo funcional
mental acompanhar algum outro trans- e adaptativo para a formalização do diag-
torno, o qual também deverá ser especifi- nóstico. Além disso, é interessante a sub-
cado. Sua classificação abarca as categorias classíficação mais detalhada que o DSM-
F7Q-F79, sendo: F70.- Retardo mental le- 5 faz em relação ao nível de gravidade do 9
ve; F7L- Retardo mental moderado; ¥72.- prejuízo nos domínios conceituai, social e
Retardo mental grave; F73.- Retardo men- prático, a qual contribui para uma melhor •
9
tal profundo; F78.- Outro retardo mental; compreensão do quadro e, consequente-
e F79.~ Retardo mental não especificado. mente, para um melhor planejamento de
Além disso, a CID- 1 0 preconiza a utiliza- estratégias de intervenção.
ção das seguintes subdivisões para especi- A AA1D.D sugere uma classificação que
ficação da extensão do comprometimento se caracteriza fortemente pela perspectiva
comportamental: (0) Menção de ausên- multirnodal e descrição do nível de gravi-
cia de ou de comprometimento mínimo dade. De forma semelhante à da Classifica-
do comportamento; (1) Comprometimen- cão internacional de funcionalidade, incapa-
to significativo do comportamento, reque- cidade e saúde (CIF, 2001), a AA1DD utiliza
rendo vigilância ou tratamento; (8) Outros o conceito de funcionamento humano pa-
comprometimentos do comportamento; ra definir a Dl, baseando-se na interação da
(9) Sem menção de comp cometi mento do pessoa com o ambiente. Além disso, existe
comportamento. a valorização do aspecto dinâmico do diag-
No DSM-IV-TR, desenvolvido pela nósticojbem como do reconhecimento das 9
APA (2000), o retardo mental2 encontra- limitações e das potencialidades do indiví- 9
va-se dentro da seção de "Transtornos Ge- duo (AAMR, 2006).3 A AAIDD define Dl
ralmente Diagnosticados pela Primeira vez como um quadro caracterizado por limita-
na Infância ou na Adolescência" A nova es- ções significativas tanto no funcionamen-
trutura de organização presente no DSM-5 to intelectual quanto no comportamento
(APA, 2013) aproxima-se da organização adaptativo, as quais afetam várias habili- 9
dades sociais e práticas no cotidiano e têm «
1 A 10a versão da CID ainda mantém a nomencla-
início antes dos 18 anos de idade. O prejuí-
tura "retardo mental". A 11a versão tem previsão de zo no funcionamento adaptativo pode ser •
publicação para o ano de 2015.
- O DSM-IY-R também utiliza a nomenclatura 3 Em 2007, a American Association of Mental Re-
"retardo mental" A atualização para "deficiência tardation passou a se chamar American Association
Intelectual" se deu a partir do DSM-5. on Tntelíectual and Developmental Disabilities.
.'".''Mèurópsicologia * 137

explorado dentro dos seguintes domínios, pode haver coocorrência de Dl e TNC


segundo a AAIDD (2010): devido à doença de Alzheimer.
b. Transtornas da comunicação e trans-
a. habilidades conceituais: linguagem e tornos de aprendizagem: para o diag-
letramentOj dinheiro, tempo, conceitos nóstico desses transtornos, é impor-
numéricos tante que o sujeito tenha inteligência
b. habilidades sociais: habilidades de con- normal Paradoxalmente, o DSM-5 su-
tato interpessoal, responsabilidade so- gere que pode haver diagnóstico co-
cial, autoestíma-, ingenuidade, solução mórbido entre esses transtornos e Dl.
de problemas sociais, habilidade de se- A comorbidade seria investigada me-
guir regras e evitar vitimização diante o critério de discrepância: no
c. habilidades práticas: atividades coti- caso de transtornos de aprendizagem,
dianas (cuidado pessoal), habilida- por exemplo, isso ocorre quando o ní-
des ocupacionais, cuidados de saúde, vel de desempenho do indivíduo em
transporte, estabelecimento de rotinas, determinada área do conhecimento es-
uso de telefone tá significativamente abaixo do que se-
ria esperado pelo seu nível de Qí.
c. Transtorno do espectro autista (TEA):
Diagnostico diferencial a Dl é frequente em indivíduos com
TEA, havendo instabilidade do Qí ao
De acordo com o DSM-5 (APA, 2013), o longo da primeira infância. Para que o
diagnóstico de Dl não deve ser pressupos- paciente seja diagnosticado com TEA
to em razão de determinada condição ge- e comprometimento intelectual con-
nética ou médica. No caso, por exemploj de comitante, é cruciai que também exis-
uma síndrome genética associada à Dl (co- ta a presença das outras característi-
mo a síndrome de Do\sm), deve haver o re- cas clínicas do autismo, corno déficits
gistro da síndrome como um diagnóstico na comunicação e na interação social e
concorrente. padrões restritos e repetitivos de com-
Os principais diagnósticos diferenciais portamento. O diagnóstico comórbi-
aos quais o neuropsicólogo deve atentar são: do de TEA e Dl também se baseia no
critério de discrepância: o nível de co-
a. Transtornos neurocognitivos (TNC) municação social deve estar abaixo do
maiores e leves: TNCs têm como prin- esperado para seu nível geral de desen-
cipal característica clínica o déficit na volvimento.
função cognitiva. Diferentemente da Dl, d. Atraso global do desenvolvimento:
esse grupo de transtornos é adquirido,' apesar de as características da Dl se-
havendo declínio de um nível de fun- rem frequentemente observadas desde
cionamento que já foi alcançado ante- a primeira infância, antes dos 5 anos, as
riormente. Exemplos de TNCs incluem crianças recebem o diagnóstico de atra-
TNC devido à doença de Alzheimer, so global do desenvolvimento. Crian-
TNC devido a lesão cerebral traumáti- ças até essa faixa etária dificilmente po-
ca e TNC induzido por substância. Ca- dem ser submetidas à avaliação com
be ressaltar que pode ocorrer o diagnós- testes padronizados. É conium que o
tico simultâneo de Dl e TNC: no caso da curso de desenvolvimento dessas crian-
síndrome de Down, na qual os sujeitos ças evolua para um quadro de Dl, sen-
apresentam envelhecimento precoce e' do importante a realização de reavalia-
maior risco de Alzheimer (Mann, 1988), ções para acompanhamento.
138 « Málloy-Diniz, Mattos,'Atíreu âfUEntfis-(orgs.)

ETIOLOGIA etiologia precisa da Dl, especialmente no


caso da Dí leve. A AAIDD (2010) sugere a
A prevalência de Dl leve e grave em paí- subdivisão de quatro principais fatores de
ses ocidentais é estimada entre 1,5 e 2% e risco, os quais podem se manifestar no pe-
0,3 e 0,5% da população,'respectivamen- ríodo pré, peri ou pós-natal:
te (Leonard & Wen, 2002). A prevalência
é ainda maior quando são investigados es- 1. biomédicos, como prematuridade e
pecificamente países em desenvolvimento distúrbios genéticos
(Durkin, 2002). Já a prevalência de Dl gra- 2. sociais, relacionados à interação social,
ve é mais estável, sendo aproximadamente como pobreza e falta de estimulação
de 3 a 4 a cada 1,000 nascidos vivos, tanto 3. comportamentaisj como uso de drogas
em países desenvolvidos corno ern desen- pelos pais ou abandono
4. educacionais, associados à presença de
o
volvimento (Leonard & Wen, 2002). Ob-
viamente, é importante considerar que os recursos que favorecem o desenvolvi-

estudos variam, em relação às coortes estu- mento, como serviços de saúde e inter- •
dadas, critérios e instrumentos diagnósti- venção
cos. Além disso, várias outras hipóteses po-
dem explicar essa diferença de prevalência Stremme (2000) realizou uma investi-
entre os países, como défícits nutricionais, gação etiológica em pacientes da Noruega
privações relacionadas a aspectos culturais e concluiu que a maior parte dos fatores de
e qualidade dos serviços de saúde. Segun- risco estava presente no período pré-natal,
do Srremme (2000), a incidência de Dl leve tanto nos casos de Dl leve quanto de grave.
tem diminuído devido à melhora de condi- Entre os 35 pacientes avaliados com Dl le-
coes sociais e educacionais. ve, 32 deles não tinham etiologia biológi-
Durante a avaliação nêuropsicológica, ca bem definida, sugerindo que faziam par-
é importante que seja investigada a etiolo- te da extremidade inferior da curva normal
gia da Dí por diversos motivos. É crucial a de acordo com a qual a inteligência é dis-
compreensão mais abrangente do fenótipo tribuída.
cognitivo associado, o qual pode estar re- Em relação às principais causas gené- 9
lacionado a um perfíi específico de dificul- ticas associadas, aberrações cromossôraicas 9
dades. Além disso, desvelar a etiologia do estão relacionadas a quase 15% dos casos
déficit intelectual ê fundajnental para os (Leonard & Wen, 2002). Defeitos genéti-
planejamentos de estratégias de interven- cos relacionados ao X são fatores impor-
ção e familiar. tantes e explicam aproximadamente 10% O
Ern relação a sua etiologia, a Dl pode dos casos de Dl em meninos, o que não é
ser subclassifícada em sindrômica e não suficiente para explicar a maior prevalên-
sindrôniica. Na primeira, é comum que cia ern sujeitos do sexo masculino (Ropers,
pacientes apresentem pontuações de Qí 2008). Heranças ligadas ao X são a princi-
mais baixas do que ern casos de inferiori- pal causa molecular relacionada ao déficit
dade psicossocial (ÂAMR, 2006; Strorn- intelectual Mutações em genes ligados ao
me, 2000). De modo geraí, menores níveis X são responsáveis por aproximadamente
de Ql são associados a algum evento catas- 30% dos casos de Dl não sindrômica (Ro-
trófico, como hipoxia perinatal ou infec- pers, 2008). A síndrome do X frágil é a causa
ções pré-natais, além de síndromes genéti- mais comum de herança genética associada
cas (Ropers, 2008). à Dl, afetando l a cada 4 mil homens e l a
É importante destacar que, na maior cada 8 mil mulheres (de Vries, Halley, Oos-
parte dos casos, é impossível estabelecer a tra, ScNiermeijer, 1998; Kooy, Willesden, &
. NeuropsjcQíogia • 139,

Oostra, 2000). O fenótipo cognitivo dessa se tenha um bom atlas das síndromes à dis-
síndrome é bastante heterogéneo, entretan- posição e, quando houver suspeita da pos-
to a Dl é uma das suas principais caracterís- sibilidade, incluir no aconselhamento a ne-
ticas, ocorrendo em mais de 70% dos indi- cessidade de uma consulta com médico
víduos (Mazzocco & Ross, 2007). Meninos geneticistapara melhor investigação do caso.
com X frágil geralmente apresentam Dl de Em casos de Dl, além das síndromes
moderada, a grave (Skinner et ai., 2005), genéticas, é importante destacar o impac-
enquanto meninas apresentam um per- to de uma síndrome ambiental: a síndrome
fil mais heterogéneo: apenas dificuldades fetal alcoólica (SFA). A incidência de SFA é
de aprendizagem ou até mesmo Dl grave estimada em 1-2 a ca.da 1.000 nascidos vi-
(Bennetto & Pennington, 2002). Essa causa vos, e sintomas mais brandos relacionados
molecular de Dl tem recebido atenção nos à ingestão de álcool durante a gravidez po-
últimos anos e tem sido amplamente estu- dem estar presentes em até 3-5 a cada 1.000
dada (Chelly, Kheífaoui, Francis, Chérif, Sc nascidos vivos (Abel & Sokol, 1987). As con-
Bienvenu, 2006; Raymond & Tarpey, 2006; sequências de uso de álcool na gravidez po-
Ropers, 2006). dem variar de morte perinatal a prejuízos
A prevalência de Dl nas síndromes ge- cognitivos leves (Mattson & Riley, 1998).
néticas é muito superior quando com- O Qí médio de crianças com SFA é de
parada à da população como um todo 70, mas a faixa pode variar entre 20 e 100
(Winnepenninckx:, Rooms, & Kooy, 2003). (Mattson & Riley, 1998). Acredita-se que o
A causa genética mais comum de deficiên- QI verbal é mais prejudicado que o QI exe-
cia intelectual é a tríssomia do cromossomo cutivo, perfil semelhante ao do transtorno
21, ou síndrome de Down (Verri, Nespoli, não verbal de aprendizagem (Dou Sc Rour-
Franciotta, & Burgio, 2008). Em média, es- ke, 1995), mas esses resultados não são con-
se grupo apresenta redução de 50 pontos de sensuais (Mattson & Riley, 1998). A Dl não
QI quando comparado à população em ge- é um critério diagnóstico específico da sín-
ral (Kittler, Krinsky-McHale, Sc Devenny, drome, mas é bastante prevalente: é comum
2004). Apesar de a síndrome de Down ser que as crianças apresentem Dl mesmo na
uma das mais conhecidas, existem milha- ausência dos traços faciais característicos
res de outras síndromes que também se as- (Mattson et ai, 1997). Cm casos de crianças
sociam à Dl. Averiguar a origem etiológica que foram adotadas, nas quais a etiologia da
da deficiência intelectual é útil para o di- Dl não pode ser claramente especificada, o
recionamento das intervenções. Por exem- neuropsicólogo deve estar atento a essa pos-
plo, ao finalizar a avaliação de um paciente sibilidade diagnostica.
com Dl, levanta-se a hipótese diagnostica
de síndrome de Williams-Beuren. Caso seja
confirmado o diagnóstico genético, aconse- AVALIAÇÃO
lha-se que a família procure um cardiolo-
gista, dada a alta prevalência de problemas Entrevista
cardíacos nesses indivíduos.
Em casos de Dl, o neuropsicólogo pre- A entrevista clínica é uma etapa crucial
cisa estar especialmente atento à possibili- em casos de suspeita de retardo mental.
dade de urna etiologia genética. Caracterís- Na maioria dos casos, ela é feita com os
ticas físicas, cognitivas e comportarnentais pais, uma vez que esse tipo de diagnósti-
marcantes e presentes ern um mesmo in- co acontece majoritariamente antes dos 18
divíduo podem ser um indício de síndro- anos. Em primeiro lugar, precisamos con-
me genética. Portanto, é recomendável que siderar que nem sempre há suspeita clara
*
*
1 40 * .'MaUpy-Eliniz;. Má.ttõSs: Abreu & f úériteé' (ofgs-) -
*

de retardo mental. Frequentemente, a fa- 4. Quando a criança conseguiu controlar


mília chega ao consultório reclamando de os esfincteres (diurno e noturno)?
dificuldade de aprendizagem, problemas 5. Qual o tipo de brincadeira favorito?
de interação social e de comportamento. Gosta de brincar com crianças mais
As queixas não necessariarnéhte se desta- novas, da mesma idade ou mais velhas?
cam no início do desenvolvimento, em es- 6. Comporta-se adequadamente nos dife-
pecial nos casos de Dí mais leves. Para esse rentes ambientes que frequenta?
tipo de diagnóstico, precisamos considerar 7. Consegue compreender o que falam
9
o ambiente no qual o indivíduo está inse- com ele? 9
rido. Em contextos com baixa demanda, as 8. Seus trabalhos escolares são fracos
dificuldades de uma pessoa com deficiên- quando comparados aos dos colegas? •
9
cia intelectual podem demorar a aparecer, 9. Comporta-se de maneira infantil para 9
enquanto para pessoas imersas em ambien- a idade?
9
tes enriquecidos, as limitações cognitivas e
coniportarnentais serão precocemente no- É importante que o neuropsicólogo 9
tadas. Assim, como neuropsicólogo, não há considere os diagnósticos diferenciais (ver
necessidade de espanto diante de casos de seção anterior) e que tenha ciência de que a
suspeita de retardo mental em adolescen- maioria dos casos que chegam para avalia-
tes. É possível que, até o momento, as de- ção com suspeita de retardo mental cons-
9
mandas que surgiram para o indivíduo não titui, na verdade, casos de inteligência li-
tenham sido complexas o suficiente para mítrofe, deficiência leve ou, no máximo,
salientar as dificuldades do paciente. deficiência moderada. Os casos rnais graves *
9
A anamnese na suspeita de retardo são identificados pelos médicos e não de-
mental não se diferencia das demais, entre- pendem de uma avaliação neuropsicológi-
tanto dá-se destaque para os pontos cruciais ca para diagnóstico diferencial Alérn disso,
dessa hipótese diagnostica. Existem carac- os casos de Dl leve são os mais frequentes:
terísticas que são marcantes em indivíduos cerca de 85% dos diagnósticos de deficiên-
com déficits intelectuais e que devem ser cia intelectual (ÁPA, 2013).
investigadas durante a construção da histó- Durante a entrevista, é necessário in- 9
ria clínica. Normalmente, indivíduos com vestigar também se há algum fator de ris- 9
retardo mental apresentam algum atra- co para o retardo mental, tais como uso de
so no desenvolvimento ^iesde o nascimen- álcool ou substâncias tóxicas na gravidez,
to. Os principais domínios afetados são: presença de sofrimento fetal agudo na hora
motor, de comunicação, cognitivo, social e do parto, doenças infecciosas (congénitas 9
até mesmo atividades cotídianas (Shevell, ou não), tentativas de aborto, subnutrição, 9
2008). Quanto maior e mais extenso o atra- entre outros (APA, 2013; Durkin, 2002). As 9
so, maior deve ser o grau de retardo mental. principais doenças congénitas associadas a
Dessa fornia, podemos citar algumas per- déficit intelectual são: toxoplasmose, rubé-
guntas essenciais durante a anamnese: ola, sífilis, citomegalovírus, herpes e Hl V/
aids (livanainen &Lahdevírta, 1988). 9
1. Com quantos meses o bebé firmou a A funcionalidade do sujeito é um tópi- 9
cabeça? co relevante a ser detalhado durante a en- 9
2. Quando começou a balbuciar? Falar as trevista, já que, por definição, existe pre-
primeiras palavras? Formar frases? juízo nesse aspecto na Dl (AAMR, 2006).
3. Como foi o desenvolvimento psicomo- A criança ou adolescente com deficiên-
tor? ' cia intelectual apresenta dificuldades em
9
9
9
141

realizar as tarefas escolares de forma in- de opções, urna vez que viabiliza a seleção
dependente, prefere conviver com pesso- de instrumentos rnais adequados às carac-
as mais novas, tem dificuldades para exe- terísticas individuais e permite a confirma-
cutar tarefas rotineiras de maneira eficaz ção dos resultados por meio da testagem
e para compreender contextos, porta-se com outras medidas semelhantes. A seguir,
de maneira socialmente inadequada, por serão apresentados alguns dos testes mais
vezes é falante, mas com conteúdo pobre. utilizados ria avaliação da inteligência, jun-
Para entender sobre a funcionalidade do tos de uma discussão sobre o impacto das
paciente é necessário investigar sua adap- características de cada um deles no diag-
tação em todos os ambientes que frequen- nóstico de Dl.
ta: casa, escola, grupos sociais, etc. Os pre-
juízos relevantes para a clínica do paciente
aparecem em mais de um contexto da vi- Escalas de Inteligência Wechsler
da do sujeito. para Crianças ou Adultos (WISC e WAIS)
Por fim, esse tipo de entrevista deve
conter dados sobre a estrutura familiar do As escalas Wechsler estão entre as medidas
ponto de vista físico, económico e emocio- mais completas do funcionamento intelec-
nal, sobre a escola que a criança frequenta e tual. São instrumentos de aplicação indivi-
sobre todos os outros ambientes. Tais infor- dual e relativamente longa (cerca de uma
mações são relevantes para a formulação da hora e meia), compostos por uma série de
hipótese etiológica dos déficits do paciente. subtestes. O WiSC é destinado à avaliação
de pessoas com idade cronológica entre 6 e
16 anos, enquanto o WAIS abrange dos 16
Avaliação da inteligência aos 89 anos. Ambos os testes produzem três
escores de QI (total, verbal e de execução),
As controvérsias em torno da avaliação da além de quatro escores fatoriais (Wechsler,
inteligência e do comportamento adaptati- 1991; Wechsler, 2008), permitindo, assim,
vo não inviabilizam o uso dessas ferramen- uma avaliação de pontos fortes e fracos do
tas no diagnóstico de Dl. Pelo contrário, a funcionamento intelectual. Os manuais de
avaliação objetiva dessas habilidades forne- ambos os testes indicam que as escalas po-
ce informações indispensáveis para a va- dem ser utilizadas no diagnóstico de Dl e
lidação do diagnóstico de Dl no contexto transtornos neurológicos) apesar de não se-
clínico. rem apresentados dados que confirmam tal
possibilidade.
Uma prática bastante comum na clíni-
Instrumentos para ca é a utilização apenas dos escores de QI
avaliação da inteligência oferecidos peias escalas Wechsler para in-
terpretar os resultados. A vantagem dessa
Para a avaliação da inteligência, há ampla prática é que esses escores são de fácil com-
disponibilidade de medidas psicornétricas. preensão tanto para a família quanto para o
Existe grande variação nos aspectos da in- psicólogo, íuém de requererem a aplicação
teligência avaliado s p elos testes disponíveis, de menos subtestes. Entretanto, isso com-
alguns focando em apenas um aspecto da promete a validade do diagnóstico, por não
inteligência, enquanto outros fazem uma oferecer uma visão mais ampla das carac-
avaliação mais detalhada. O profissional terísticas intelectuais dos indivíduos ava-
pode se beneficiar bastante dessa variedade liados.
142 • Malloy-Dink, Mattos, Abreu .& Fuentes (prgs.-j

Matrizes Progressivas de Raven de crianças com déficits mais acentuados


*
9
nesse domínio cognitivo.
O teste Matrizes Progressivas de Raven é
uma das ferramentas mais difundidas pa-
ra a rnensuração da inteligência^em crian- Escala de Maturidade Mental Golumbia
ças e adultos. O teste avalia a inteligência
A Escala de Maturidade Mental Colum-
9
fluida por meio de tarefas que demandam
raciocínio dedutivo e a capacidade de fa- bia fornece informações sobre a capacida- 9
zer analogias e comparações, sem reque- de de raciocínio geral de crianças de 3 anos
rer nenhum tipo de conhecimento declara- e 6 meses até 9 anos e 11 meses. É um tes-
tivo (Ángelini, Alves, Custódio, Duarte, & te indicado para avaliação de crianças mais
Duarte, Í999; Raven, 2003). Atualmente, o novas (pré-escol ares) ou mesmo crianças
teste está disponível no Brasil em duas ver- mais velhas que apresentam dificuldades
sões: Matrizes Progressivas Coloridas de na execução de escalas de inteligência mais
Raven - Escala Especial, para crianças de 4 complexas (como o Raven). O fato de não
anos e 9 meses a 11 anos e 8 meses, e Ma- exigir uma resposta verbal torna o teste es-
trizes Progressivas de Raven ~ Escala Geral, pecialmente adequado para a avaliação de
que apresenta normas para avaliação a par- crianças com paralisia cerebral ou outra le-
tir de 11 anos. são qualquer, deficiência intelectual e défi-
Apesar de ser uma tarefa que exige ra- cits na -aquisição da linguagem.
ciocínio abstraio bastante complexo, al-
guns autores defendem que o Raven se-
ria uma alternativa melhor que as escalas Escalas de comportamento adaptativo 0
Wechsler para a avaliação de crianças corn
Dl, urna vez que não apresenta restrição A avaliação do comportamento adaptati-
de tempo para resolução dos problemas, vo é bem rnais flexível que a avaliação da
tampouco exige respostas verbais elabora- inteligência» podendo ser feita por meio de
das (Belio et ai,. 2008). Um estudo condu- entrevistas clínicas corn os familiares ou
zido por Dawson, Soulières, Gernsbacher e cuidadores, questionários e escalas de com-
Mottron (2007) mostrou que o WISC-III portamento ou, mesmo, por meio da ob- 9
servação clínica. Essa avaliação é bastante
subestima a inteligência de crianças diag-
nosticadas com autismo e pi. Eles mostra- importante para o diagnóstico de Dl, esti-
a
ram uma diferença de até 30 pontos per- mação de sua severidade (nível de suporte 9
centííicos entre os escores obtidos por essas demandado) e planejamento de interven- 9
crianças no WISC-III e no Raven, enquanto ção. No entanto, nenhuma escala de com- 9
crianças com desenvolvimento típico não portamento adaptativo é capaz de abranger 9
apresentaram tal discrepância. completamente todos os três domínios des-
No entanto, assim como aconte- sa dimensão (conceituai, social e prático), 9
ce quando se emprega apenas o QI total, o que torna necessária a realização de uma
as matrizes de Raven também constituem investigação mais ampla. Uma limitação
urna medida rnonptónica da inteligên- importante das escalas de comportamento
cia, uma vez que avaliam apenas um com- adaptativo em relação às de avaliação da in- 9
ponente específico, no caso, a inteligência teligência é a escassez de instrumentos va-
fluida. Ademais, as matrizes de Raven se lidados para a população brasileira. Essa li- 9
apoiam unicamente em habilidades vísioes- mitação compromete, por exemplo, o uso 9
paciais, o que pode subestimar a inteligência de critérios objetivos para interpretação da

1 9
jNeurQpsieologia. • 143

pontuação (pontos de corte, cálculo dos es- e até nos casos em que o diagnóstico já foi
cores percentílicos, etc.)- confirmado. Apesar dos déficits globais, es-
ses indivíduos podem apresentar uma va-
riabilidade de desempenho nas diferentes
Escalas de Comportamento funções cognitivas. A avaliação pode ser
Adaptativo Vineland feita a partir de um modelo nomotético
considerando as normas para a população
As Escalas de Comportamento Adaptati- em geral ou, ainda, por meio de um mo-
vo Vineland (Sparrow, Baila, & Gicchitte, delo idiográfico que considera o indivíduo
1984) são uma série de escalas de entrevis- 1 como parâmetro para ele mesmo (Haase,
tas s em Í estrutura das realizadas com os pais Gauer, & Gomes, 2010). Por exemplo, uma
ou cuidadores. A Vineland é voltada para a criança com retardo mental pode apresen-
investigação das capacidades de autossufi- tar desempenho abaixo do esperado em to-
ciência na comunicação, habilidades de vi- das as habilidades cognitivas avaliadas, en-
da diária, socialização e habilidades moto- tretanto, caso seja feita uma análise mais
ras em pessoas de até 18 anos e 11 meses de minuciosa, é possível que se verifique que
idade. AtuaJmente, existe uma adaptação as habilidades de linguagem são melhores
da Vineland para a língua portuguesa, mas que as habilidades visioespacíais, e devem
os estudos de validação ainda estão sendo ser o foco das intervenções. Evidentemen-
conduzidos. te, para esse tipo de interpretação, o profis-
sional deve considerar a história clínica e as
observações do comportamento.
Escala de Avaliação A primeira etapa de uma avaliação
de Traços Autísticos (ATA) neuropsicológica é a entrevista, momen-
to em que o neuropsicólogo formula su-
A ATA (Assumpcão Jr,, Kuczynski, Rego, & as hipóteses diagnosticas a serem testadas
Rocca, 1999) é urna escala composta por 23 posteriormente. No caso de suspeita de Dl,
questionários que avaliam diferentes aspec- exisle uma peculiaridade que diz respeito
tos do comportamento autista, como difi- aos profissionais não psicólogos: a restrição
culdade de interação social, resistência à 1 de aplicação dos testes de inteligência. En-
mudança, entre outros. Ainda que não seja tendemos (e acreditamos) que o diagnósti-
voltada especificamente para a Dl, o diag- co neuropsicológico é alicerçado na clínica,
nóstico diferencial de autismo é uma eta- Entretanto, para as suspeitas de Dl, medi-
pa bastante importante da avaliação, uma das psicornétricas de QI são extremamen-
vez que há sobreposição significativa nas te importantes do ponto de vista clínico e
características comportamentais de ambos de prognóstico, em especial para os casos
os quadros. A versão atualmente disponí- de Dl leve. Assim, quando houver hipótese
vel da ATA é fundamentada nos critérios de de Dl, é sugerido que uma avaliação da in-
diagnóstico de Dl estabelecidos pelo DSM- teligência seja solicitada para a continuida-
-iv CAPA, 2000). de do processo.
A melljor maneira para se planejar a
avaliação de um indivíduo com deficiên-
Avaliação das funções cognitivas cia intelectual é escolher os procedimen-
tos com base ern seu nível de funcionamen-
A avaliação das funções cognitivas é muito to intelectual, que pode ser indicado pela
útil nos casos de suspeita de retardo mental idade mental (Jakab, 1990). Idade mental
144 * Malfoy-DÍnÍz,MattoS,'Abreu;&Fuentes,(orgs.).

diz respeito ao desempenho intelectual que toda avaliação neuropsicológica precisa


uma criança tem em comparação com o ser voltada para o aconselhamento. Uma
desempenho intelectual médio para crian- vez que a avaliação objetiva traçar o perfil 0
ças com aquela idade cronológica (Gerrig, & cognitivo, psicológico e social do paciente
ZimbardOj 2002). O cálculo da icjacle mental (Strauss, Sherman, & Spreen, 2006), o acon-
é feito a partir da fórmula (Johnson, Poteat, selhamento precisa ser feito com o intuito de
&Kushnick I l98ó); direcionar o indivíduo e sua família na bus-
,. .
ca por procedimentos ou intervenções que
(idade mental/idade cronológica) x 100 = QI , possam minimizar suas fraquezas e desen-
volver ao máximo suas potencial idades.
Exemplo: uma criança de 11 anos de Nos casos de suspeita de Dl, o acon-
idade com Q T total de 63 tem idade men- selhamento se faz ainda mais importante.
tal de aproximadamente 7 anos. O indiví- Quando o diagnóstico é descartado, o acon-
duo é avaliado conforme seu funcionamen- selhamento deve ser voltado para o desta-
to intelectual, em vez de conforme a idade que da inteligência normal e como essas
cronológica, com o intuito de investigar dé- habilidades cognitivas gerais são preditivas
ficits específicos. Atenção: usamos essa es- de desfechos positivos (Gottfredson, 1998).
tratégia com o objetivo de nortear nossa ava- Nesses casos em que a deficiência intelec-
liação de maneira mais objetiva; entretanto, , tual não é confirmada^ mas existe uma de-
profissionais mais experientes fazem tal esti- manda da família ern relação a dificuldades
mativa com base apenas na clínica. escolares, sociais ou ainda outras queixas,
A avaliação deve ser interpretada den- é preciso discutir sobre quais são os domí-
tro de um todo, considerando observações nios mais afetados do paciente, facilitan-
do comportamento, história clínica e os re- do a proposição de intervenções. Por exem-
sultados da testagem, caso seja possível o plo, para crianças com défidls acentuados
uso de instrumentos. Em nossa prática, ob- nas funções executivas, a melhor proposta
servamos que, na avaliação da deficiência é uma reabilitação neuropsicoiógica com
intelectual, a testagem neuropsicológíca só foco compensatório. A finalidade é a utili-
é possível para crianças com um funciona- , zação de estratégias externas que servirão
mento compatível a pelo menos 6 anos de para compensar os déficits de atenção, or-
idade. ganização e planejamento do indivíduo. Já
nos casos de problemas comportamentais
graves, a primeira coisa a se fazer é procurar
Aconselhamento um médico especialista (psiquiatra).
Quando há a confirmação do diagnós-
Apesar de não ser um atendimento volta- tico de retardo mental (F70-F79), o aconse-
do para a intervenção, a avaliação neuro- lhamento precisa ser ainda mais amplo. Em
psicológica se reveste de um componente nossa prática clínica, deparamo-nos fre-
terapêutico, que é mais bem caracterizado , quen temente com casos clinicamente tipi-
crmico-psicologícameote como aconselha- cos de retardo mental, mas sobre os quais
mento. Quando há demanda por avaliação, nenhum dos profissionais que jã-atende-
já existe um problema ou dificuldade em ram a família se sentiu confortável o su-
relação ao indivíduo. Assim, dar somen- ficiente para repassar o diagnóstico. Se a
te um diagnóstico nosológico para famí- família procura ajuda, normalmente é por-
lia não resolve a questão trazida. Portanto, que já está minimamente preparada para
. Neúropsicologia • 145

um diagnóstico, o que, no entanto, não sig- acordo com a Lei Federal n° 9.394, art. 58
nifica que não haverá surpresas. Nos ca- (Brasil, 1996), a escola deve oferecer servi-
sos de Dl, a maneira mais ética de fazer o ço especializado conforme a demanda da
aconselhamento é explicando para a famí- criança ou adolescente, preferencialmen-
lia o que é a deficiência intelectual e que as ' te na escola regular. O atendimento pode
dificuldades são relativas a todo desempe- ser um tutor com formação adequada e/ou
nho, comportamento e habilidades do in- Atendimento Educacional Especializado
divíduo. É importante lembrar à família (AEE). A Resolução da Câmara de Educa-
que comportamentos que a princípio pa- ção Básica do Conselho Nacional de Edu-
reçam desafiadores ou inoportunos podem cação n° 4 (Brasil, 2009) diz que o AEE é
surgir em virtude de uma dificuldade de li- garantido ás pessoas com deficiência inte-
dar e compreender o ambiente e até mes- lectual e não deve ser compreendido como
mo de fazer generalizações de regras ou co- reforço escolar, mas corna uma atividade
nhecimentos anteriores. A aprendizagem complementar ou" suplementar à formação
de indivíduos com Dl acontece no nível do ' do aluno, visando eliminar barreiras no seu
concreto, logo, técnicas comportamentais processo de aprendizagem. Para requerer
com treinamentos e repetições exaustivas os direitos, a família precisa ir até a Secre-
das habilidades desejadas são mais eficazes taria de Educação do município com o re-
(AAMR, 2006). Tal instrução é válida tanto latório em mãos. Além disso, existem as leis
para atividades de vida diária, como tomar federais, estaduais e municipais que garan-
hanho, quanto para o aprendizado da leitu- tem transporte público gratuito a essas pes-
ra, por exemplo. soas, descontos em atividades culturais, en-
A família deve ser conscientizada da tre outros benefícios. Portanto, ao preparar
importância de investir ao máximo na esti- o aconselhamento de um indivíduo com
mulação e independência (mesmo que mi- ' diagnóstico de retardo mental, procure in-
nima) desse indivíduo. Não existem regras formações sobre os direitos do paciente e o
para afirmarmos que um indivíduo com que precisa ser feito para que o sujeito te-
valor n de Qí vai conseguir se desenvolver nha acesso a eles. Em casos de famílias com
até tal ponto. Na verdade, os avanços das baixo nível socloeconômico, há até a possi-
crianças e adolescentes com retardo mental bilidade de recebimento de Um salário mí-
dependem da variação interindividual do nimo mensal de forma continuada (Benefí-
perfil neuropsicológico e do grau de inves- cio de Prestação Continuada - BPC-LOAS
timento da família, que varia desde aspectos ~ Lei Federal n" 8.742) (Brasil, 1993).
de estimulação cognitiva e treinos compor-
tamentais até investimento afetivo. O neu- '
ropsicólogo precisa "calibrar" as expec- REFERÊNCIAS
tativas da família ern relação ao paciente,
buscando evitar uma sobrecarga de ativi- Abel, E. L., & Sokol, R. J. (1987). (ncidencc of fetal
dades e demandas que culminarão em sen- aícohol syndrame and economia írrtpact of FA.S-
timentos de frustração por parte de quem -related anomalies. Drug and Aícohol Dependence,
investiu e por parte do paciente, que não /?(]), 51-70. o
conseguirá atingir o que é esperado dele. Alloway,T. P, (2010). Working memory and cxecu-
Por fim, é nosso dever como neuropsí- tive function profíles of individuais with borderli-
cólogos informar a família dos direitos dos ne intcllectual functioning. Journal af Intellectual
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146 • Malloy-Diniz, Maftps, Abreu.& Fuentes íorgs.)

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