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Reticências psicológicas

Confrontando o próprio ser


Profa. Maria Leolina Couto Cunha

Centro de Combate à Violência Infantil (Cecovi)

Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) – PUCweb

Copyright - PUCPR - Versão 1.0 - junho 2009


Reticências psicológicas 2

O que mais chamou a atenção do


pesquisador é que só 3% dos entrevistados
Confrontando o próprio se consideraram vítimas de maus-tratos,
ser enquanto os demais acharam que foram
apenas disciplinados normalmente por seus
pais.
O que você sentiu ao ler os casos concretos
de maus-tratos e abuso sexual doméstico? Essa postura é extremamente preocupante,
Que tipo de sentimentos afloraram em seu pois se os futuros profissionais não
coração? Foram sentimentos de ódio, consideram tais práticas abusivas quando
vingança, indignação ou indiferença? vivenciadas por eles próprios, também não
as considerarão erradas em relação a seus
A forma como reagimos quando nos próprios filhos e clientes.
deparamos com a violência doméstica
cometida contra crianças e adolescentes Às vezes, trazemos dentro de nós conflitos e
dependerá, em grande parte, das angústias que nos atormentam mais do que
experiências pessoais por nós vivenciadas estamos dispostos a admitir. Entretanto, se
ao longo da vida, principalmente em família. quisermos ser bons profissionais,
Se a história do profissional é marcada, na precisaremos ter coragem para assumir
infância, por dor e humilhação e ainda não nossas fraquezas, nos recusando a ocultá-
encontrou cura para suas feridas interiores, las debaixo do tapete.
com certeza terá muitas dificuldades para
lidar com a dor e humilhação de outras Cukier (1998), em seu livro Sobrevivência
pessoas. Emocional, diz que as dores da infância
Essa fragilidade de enfrentar fatos revividas no drama adulto nos mostram a
envolvendo cenas de sofrimento é correlação que pode vir a existir entre os
chamada de reticências psicológicas. É problemas vivenciados por uma pessoa
preciso ter muito cuidado com sentimentos adulta que, quando criança, foi vítima de
dessa natureza, pois eles podem maus-tratos.
condicionar de forma extremamente
prejudicial nosso comportamento diante da Veja a seguir os quatro casos de pacientes
violência contra crianças e adolescentes. que sofreram violência doméstica na
infância e, depois, um paralelo das sequelas
Segundo Newell (1989), em 1988, nos dessa violência na vida atual de cada um
Estados Unidos, foi realizada uma ampla deles:
pesquisa com estudantes universitários em
que tinham que descrever sua experiência Paciente A
com a punição corporal: 80% haviam sido
espancados, sendo que 43% tiveram Empresário bem sucedido, 34 anos,
fraturas ósseas; 35 a 38% sofreram deprimido por problemas no casamento.
queimaduras, ferimentos na cabeça, tiveram Queixa-se que desde o nascimento do seu
dentes fraturados; e 10% deles primeiro e único filho a esposa não lhe dá
apresentaram quadro de equimoses. toda a atenção que ele quer. Tem acessos
de violência física e não consegue contê-
los. Arrebenta objetos da casa e chega a
Equimoses são manchas na pele, de bater na esposa. Numa das cenas que
coloração variável, promovida por frequentemente traz com suas
extravasamento de sangue. associações, é madrugada, tem cinco
anos, ouve o pai bater na mãe; em outra
cena, tem quatro anos, a mãe está
cozinhando e ele fica atrás dela, querendo
colo. Os irmãos mais velhos riem dele,
chamando-o de “maricas”.

Profa. Maria Leolina Couto Cunha


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Paciente B Em outra cena, o paciente tem entre cinco


e seis anos, aceita um brinquedo de um
“E.” é uma mulher extremamente bonita, 25 porteiro que cuida de uma obra em frente à
anos, que vive num isolamento social sua casa e acaba sendo manipulado
quase total, queixando-se de depressão e sexualmente. Só mais tarde entende o
perseguição por parte dos colegas, que significado do fato, arrependendo-se
rivalizam com ela. Profissionalmente está profundamente e com medo de ser menos
sempre mudando de emprego, pois sente “homem” que os outros meninos.
compulsão de namorar os chefes e, pouco
tempo depois, é mandada embora. Diz que Paciente D
quer se casar e ser rica. Dentre as cenas
nucleares que ela traz, destaco duas: na Importante executiva de uma multinacional,
primeira, tem seis anos, mora com os avós bonita, 35 anos, entretanto se queixava de
maternos, e sua mãe, que é mãe solteira e solidão, vazio existencial e problemas de
empregada doméstica, vem visitá-la aos relacionamento social. Costuma ter
domingos. Estão todos almoçando e a mãe namorados por pouco tempo e nunca
se põe a querer lhe ensinar bons modos à entende porque seus namoros sempre
mesa, modos que ela aprende na casa dos terminam. Acha que os homens não
patrões. A paciente sente-se inferiorizada prestam. Dentro da própria família e no
diante dessas pessoas que a mãe admira. trabalho é tida como encrenqueira,
Na segunda cena, tem cinco ou seis anos e estúpida e acha-se profundamente
vai pedir a bênção para o avô, antes de injustiçada por essas críticas porque
dormir. Sabe que o avô não lhe daria a ”sempre faz tudo para ajudar todo mundo”.
benção, pois ele sempre dizia que jamais Uma das cenas recorrentes em suas
abençoaria a filha bastarda de uma mãe associações é a despedida dos pais, que
que não prestava. Nessa cena, o avô emigraram da Europa quando tinha sete
novamente a humilha, repetindo o mau- anos. Queria chorar, mas não podia porque
trato. sua mãe estava muito sensibilizada e
Paciente C choraria também. Comportou-se como uma
pequena adulta “equilibrada”. Em outra
Um homem de 27 anos, há cinco em cena, tem sete ou oito anos e ouve
terapia, apresenta dificuldades confidências íntimas da avó, que tem um
generalizadas de contato social, levando casamento infeliz e insiste que todos os
uma vida restrita à casa e ao trabalho. homens são mulherengos e infiéis.
Possui poucos amigos e nunca teve
namorada, apesar de já ter se apaixonado Analisando esses relatos, encontramos algo
e ter interesse pelo sexo feminino. É em comum: todos os pacientes sofreram
frequentemente acometido de raiva contra formas variadas de abuso infantil. O
as pessoas que, por alguma razão, o paciente A via seu pai bater na mãe; a
desconfirmam, dizendo que admira o poder paciente B ouviu durante toda a infância que
que Adolf Hitler tinha de se vingar de quem sua mãe não prestava, e ela tampouco; o
não gostava. Numa das cenas que se paciente C apanhava até se dobrar de
repetem em suas associações, tem entre humilhação, além de ter sofrido abuso
quatro e cinco anos, a mãe está brigando sexual; a paciente D era obrigada a ouvir,
com ele (não se lembra a razão). Ele se sem compreender, confissões em que sua
tranca no banheiro e, de raiva, morde a avó expunha sua intimidade afetiva e sexual.
cortina de plástico. Quando a mãe o
alcança, bate violentamente em suas
pernas com uma vara de marmelo, até que
ele se curve e peça desculpas, jurando
nunca mais fazer algo que a desagradasse.
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Essas quatro pessoas também repetem,


Como um disco avariado, que gira em falso e
cada uma a seu modo, o drama infantil: ‘A’
entoa sempre a mesma parte da canção,
bate na esposa; ‘B’ tornou-se “a mulher que parece existir atrás do drama atual e real das
não presta”; ‘C’ é, no seu delírio esquizoide, pessoas adultas um drama interno que repete
um Hitler com poderes ilimitados e que pode o drama infantil, porém frequentemente com
manipular as pessoas ao seu bel-prazer; a papeis trocados. Quem agora abusa do poder
vida amorosa da paciente ‘D’ confirma a que tem, impinge humilhação e vergonha aos
opinião da avó de que “nenhum homem outros é o próprio paciente.
presta”.
Poderíamos comparar aquele que sofre
É interessante observar a inversão de calado seus traumas e lembranças a uma
comportamento que se dá nos casos pessoa acometida de um grande tumor na
relatados. Crianças que na infância foram perna. Esse indivíduo padecerá de febre e
vitimizadas, quando adultas podem assumir dores por todo o corpo. Tocar no tumor
o papel de vitimizadoras. doerá terrivelmente, mas se ele quiser ficar
curado terá que espremer o abscesso com
Cukier (1998), de forma brilhante, aborda toda firmeza a fim de que todo o pus e
essa questão quando diz: demais impurezas venham para fora.

Essa analogia pode ser aplicada a


O conteúdo do drama que trazem é, qualquer um de nós. Às vezes não
frequentemente, o de uma criança sendo queremos tocar nem confrontar nossos
frustrada e/ou punida por algum desejo, tumores existenciais e prosseguimos a
travessura e/ou uma criança vendo alguém
caminhada doentes e psicologicamente
em casa sendo desrespeitado, violentado por
um adulto que exerce e abusa do poder que febris. É preciso refletir sobre isso e tomar
tem. Existe um enorme desequilíbrio de uma atitude a fim de expulsar de nossas
forças, e tudo o que a criança pode fazer é vidas os males que nos consomem.
assistir passivamente à cena e se submeter
ao poder do adulto. A criança percebe que o Mas como fazer isso? Em primeiro lugar,
adulto está sendo injusto ou abusivo, sente admitindo, se for o caso, que temos
raiva, mas nada pode fazer a não ser dificuldades e questões mal resolvidas. E
submeter-se, gerando, por sua vez, em segundo lugar, buscando ajuda. Essa
sentimentos de vergonha, humilhação e ajuda pode ser através de um desabafo
inferioridade que jamais serão esquecidos, feito a um amigo, um aconselhamento
apesar de todos os esforços que fizer para
pastoral ou um tratamento psicológico. O
negá-los, disfarçá-los e/ou modificá-los.
essencial é que não continuemos
Nesses momentos de tensão, a criança decide guardando dentro de nós mágoas de um
algo secretamente, como se fosse uma passado que há muito tempo já se foi e
espécie de juramento consigo mesma, e que que só nós ainda não percebemos, nem
consiste basicamente num pacto de vingança nos libertamos.
e/ou de resgate da dignidade perdida. Algo
como: “Quando eu crescer e tiver o poder
(físico) que os adultos têm, nunca mais vou
permitir que façam isso comigo ou com as
pessoas que amo”. Em suma, por trás das
dificuldades dos meus clientes adultos,
comecei a perceber a existência quase
sistemática de uma criança com seus projetos
de vingança e resgate da dignidade perdida, e
que, exatamente pela perseverança do projeto
infantil, acabava criando as dificuldades
adultas atuais.

Profa. Maria Leolina Couto Cunha


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, M. A. e GUERRA, V. N. A. Telecurso de Especialização na Área da Violência


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BENEVIDES-PEREIRA, A. M. T. Burnout: quando o trabalho ameaça o bem-estar do


trabalhador. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002.

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CUKIER, Rosa. Sobrevivência Emocional: as dores da infância revividas no drama


adulto. São Paulo: Agora, 1998.

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comprehensive assessment. 2. ed. London: Stationery Office Books, 1988.

FREUDENBERGER, H. J. Staff burnout. Journal of Social Issues, Washington,


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KOBASA, S. C. Stressful life events, personality and health: an inquiry into hardiness.
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MASLACH, C., JACKSON, S. The Maslach Burnout Inventory. Palo alto: Consulting
Psychologists Press, 1981/1986.

NEWELL, P. Children Are People Too: the case against physical punishment. Londres:
Bedford Square Press, 1989.

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