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Aula 03 - A Evolução Humana como um Processo Biocultural

Nesta aula, os personagens Maria e Pedro continuarão te conduzindo na exploração do conhecimento


antropológico. Aqui, você vai ver a discussão sobre a relação entre Antropologia e evolução humana e refletir
sobre a importância do ‘sagrado’ na definição de ‘humanidade’. Boa aula!

3.1 Antropologia e Evolução Humana

Manhã de terça-feira, Maria caminhava apressada para o encontro presencial da disciplina Antropologia da
Religião na modalidade virtual. Nos corredores do Bloco C, encontrou-se com Pedro. Cumprimentaram-se
jovialmente, e Maria o convidou a participar desse encontro, que teria, no primeiro momento, a palestra de
uma renomada professora de uma Pontifícia Universidade Católica. O tema da palestra era “o ser humano a
partir de uma perspectiva antropológica”. Pedro aceitou o convite e caminhou com ela para o Auditório
Central.

Os estudantes, em grande parte, já se encontravam no auditório quando nossos amigos chegaram e se


acomodaram nas cadeiras do fundo. O burburinho no ambiente deixava transparecer a inquietação curiosa da
calourada, que em diferentes grupos distinguia-se e se misturava, criando uma pluralidade desafiante e
encantadora. A palestra da antropóloga, professora Dra. Margareth Benedict já ia começar.

Maria abriu sua mochila, retirou um bloco e começou a organizar sua anotação. A professora, após as
saudações iniciais, introduziu seu objetivo na exposição: apresentar em grandes linhas como a antropologia
explica a evolução humana como um processo biocultural.

Vamos acompanhar a palestra? Atenção! A professora já iniciou a explicação!

A antropologia teve início, enquanto ciência moderna, com o estudo de grupos e sociedades tribais que “o
processo de expansão do capitalismo trouxe para a esfera do mundo ocidental. Foi a partir do contato com
esses grupos que novos problemas foram sendo colocados frente à reflexão dos intelectuais da época, exigindo
tratamento específico” (CONSORTE, 1984, p. 43).

Esse contato com o diferente, com o ‘estranho’, foi o berço da construção do pensamento antropológico. As
diferenças de costumes, hábitos, língua, organização social etc. levaram os primeiros antropólogos a se
perguntarem se esses povos tinham uma origem comum ou não. A partir daí, a antropologia colocou para si a
necessidade de desvendar a humanidade.

Para Saber Mais

Assista ao ilustrativo filme O Elo Perdido, do cineasta francês Régis Wargnier. Este filme apresenta uma
aventura antropológica de um grupo de estudiosos e de um casal de pigmeus na inexplorada África Equatorial
e na promissora Edimburgo (Escócia) em 1879. O filme abriu o Festival de Berlim em 2005.

A questão central colocada para os antropólogos era por que esses povos se apresentavam tão diferentes, tanto
do ponto de vista físico, quanto do ponto de vista cultural. Não se tratava apenas de uma diferença na
diversidade de modos de ser, dos costumes. Para os europeus daquela época, era uma diferença também física:
a cor da pele, dos olhos, a textura do cabelo, a altura etc. Foi nesse contexto de busca de respostas para
compreender essas diferenças que foram elaboradas teorias, pensamentos antropológicos de explicação da
humanidade.

É importante destacar que foi também aí que os antropólogos iniciaram os estudos sobre as manifestações
religiosas. O interesse por essas manifestações, nos estudos antropológicos, é tão antigo como o interesse por
outras manifestações culturais da espécie humana. O comportamento religioso dos grupos tribais foi tomado
como ponto de partida para a construção de teorias que tentavam explicar a própria evolução do ser humano.
Um dado importante para contextualizar esse período é lembrarmos que o pensamento hegemônico entre os
cientistas daquela época, século XIX, era de que a civilização ocidental era o modelo de desenvolvimento da
humanidade, que tinha chegado ao ápice da evolução e, assim, deveria servir de parâmetro para toda a história
humana. A teoria que respaldou essa perspectiva foi o evolucionismo, que tentou explicar essa diversidade
como fruto de um processo evolutivo natural, em que haveria etapas de evolução inferiores e superiores.

Para justificar o interesse dos antropólogos pelas manifestações religiosas, lembremos que até hoje não se
encontrou nenhum grupo humano que não apresentasse alguma forma de manifestação do sagrado. Para a
Antropologia, o comportamento religioso é considerado como um dos universais da cultura, ou seja, está
presente em todos os grupos humanos estudados.

3.2 A Humanidade e o Sagrado

Nesse momento da palestra, Pedro cutucou Maria e disse:

- Ela começou a colocar a questão da religião no meio, mas não percebo a relação entre religião e o tema da
palestra.

A palestrante fez uma breve pausa para um gole d’água. Ao retomar sua exposição, começou indagando:

- Por que estou mencionando essa questão das manifestações religiosas nesse momento? Qual é sua relação
com o processo evolutivo do ser humano? Certamente alguns de vocês devem ter se perguntado. A professora
fez, intencionalmente, uma pausa, e perscrutou os estudantes no auditório.

Maria sorriu discretamente e sussurrou para Pedro: “parece que ela adivinhou sua dúvida”. Pedro, com um
olhar um pouco surpreso, sorriu em resposta.

A palestrante, após a pausa, disse:

- Para compreendermos cientificamente essa relação, devo fazer um breve resgate da evolução humana, a fim
de observarmos como a religião se coloca dentro desse contexto especificamente humano. Para tanto,
permitam-me fazer uma breve leitura. Nesse momento, a professora abriu uma pasta e retirou um livro. Após
localizar a página desejada, iniciou a leitura:

Todos parecemos convencidos, hoje, de que o homem evoluiu de outras formas, de formas não humanas.
Tendo evoluído de formas não humanas, isso significa que a vida é algo contínuo. Existe uma continuidade
na vida; se houve uma continuidade, deve ter havido aquilo que, em antropologia, chamamos de transição para
a humanidade. Essa transição, para os antropólogos, é marcada pela emergência de alguma coisa nova,
qualitativamente nova, que se chama capacidade de simbolização. Essa capacidade parece inexistente entre os
animais, pelo menos da forma como é conhecida ou no grau em que é possuída pelos humanos; essa
capacidade é que nos permite formular concepções, representar, ou seja, falar de alguma coisa na ausência
dela. Essa capacidade de simbolização é nosso apanágio. É também aquilo que marcou o nosso aparecimento
no cenário da vida. Essa capacidade permitiu aos seus portadores iniciar todo um processo de criação de
comportamentos até então inexistentes no mundo animal. O desenvolvimento desta capacidade, ao longo do
tempo, permitiu aos seus portadores aquilo que eu chamarei de “produzir a sua existência”, ou seja, realizar
uma adaptação do meio ambiente não mais estritamente em termos biológicos, mas através de coisas
inventada, criadas, coisas que os antropólogos chamam de “cultura”. (CONSORTE, 1984, p. 48)
A professora interrompeu a leitura e, mais uma vez, fez uma pausa. Reflexivamente, convidou os estudantes
a mergulharem na lógica da evolução humana que está expondo: na transição para a humanidade, a
explicitação da insuficiência do fator biológico é evidenciada.

Então disse, enfaticamente:

- Não somos humanos apenas porque biologicamente nos constituímos nessa espécie. Diferentemente dos
outros animais, nós humanos não nascemos ‘prontos’, acabados. Somente o componente biológico não nos
torna humanos. Temos de nos constituir humanos, ou, em outras palavras, temos de passar por um processo
de hominização.

A capacidade de simbolização propiciou aos humanos a possibilidade de criarem, alterarem, produzirem algo
novo. Consequentemente, iniciou-se a construção de modos de vida que não estavam inseridos em sua dotação
genética, ou seja, não estavam programados geneticamente. Por força do exercício dessa capacidade, “nossa
programação biológica foi deixando de ser uma programação específica; os comportamentos daqueles seres
em processo se tornaram comportamentos do homo sapiens, cada vez menos instintivos e cada vez mais
culturais” (CONSORTE, 1984, p. 49).

Uma obra referencial do pensamento sociológico e antropológico escrita por Peter Berger e Thomas
Luckmann (1978), respectivamente professores de universidades estadunidenses e alemãs, menciona
explicitamente esse aspecto que quero destacar, de distinção entre o ser humano outros animais. Eles advogam
que “o homem ocupa uma posição peculiar no reino animal. Ao contrário dos outros mamíferos superiores
não possui um ambiente específico da espécie, um ambiente firmemente estruturado por sua própria
organização instintiva.” Atente para esses termos: “um ambiente específico da espécie” e “ambiente
firmemente estruturado por sua própria organização instintiva”. O que isso quer dizer? Berger e Luckmann
explicam que:

Não existe um mundo do homem no sentido em que se pode falar de um mundo do cachorro ou de um mundo
do cavalo. Apesar de uma área de aprendizagem e acumulação individuais, o cachorro ou o cavalo individuais
têm uma relação em grande parte fixa com seu ambiente, do qual participa com todos os outros membros da
respectiva espécie. Uma consequência óbvia deste fato é que os cachorros e os cavalos, em comparação com
os homens, são muito mais restritos a uma distribuição geográfica específica. A especificidade do ambiente
desses animais, porém, é muito mais do que uma delimitação geográfica. Refere-se ao caráter biologicamente
fixo de sua relação com o ambiente, mesmo se for introduzida uma variação geográfica. Nesse sentido, todos
os animais não humanos, enquanto espécies e enquanto indivíduos, vivem em mundos fechados, cujas
estruturas são predeterminadas pelo equipamento biológico das diversas espécies animais. Em contraste, a
relação do homem com seu ambiente caracteriza-se pela abertura para o mundo. (BERGER & LUCKMANN,
1978, p. 69-70).
3.3 À Guisa de Conclusão

Muitos dos estudantes no auditório ouviam com admiração e curiosidade a exposição. Maria, avidamente,
anotava as ideias em seu bloco.

Já encaminhando a conclusão de sua exposição, a palestrante, num gesto de arremate com as mãos, solicitou
ao funcionário de áudio-visual que projetasse um esquema-síntese baseado em sua exposição (CONSORTE,
1984, p. 50-51).

Na primeira tela de projeção, os alunos viram:

O interesse pela diversidade da humanidade sempre esteve presente na Antropologia.

É aí que se coloca a necessidade de se entender as manifestações religiosas, que sempre foram objeto de estudo
da Antropologia.

Todavia, como a Antropologia surgiu no século XIX, em plena hegemonia do evolucionismo, a diversidade
de outros grupos humanos (e suas manifestações religiosas) foi vista a partir do referencial da “civilização
europeia”. Consequentemente, os ‘diferentes’ eram vistos como ‘inferiores’.

A Antropologia se aprisionou, nesse momento,

em uma visão etnocêntrica.

Na segunda tela de projeção, Maria e Pedro aprenderam:


Na transição para a humanidade, o ser humano adquiriu algo qualitativamente novo:

A capacidade de simbolização

Permitiu formular concepções, representar,

ou seja, falar de algo em sua ausência.

Aqui surgiu a cultura = o ser humano realizou uma adaptação do meio ambiente não mais estritamente em
termos biológicos, mas por meio de coisas inventadas, criadas.

Com o ‘homo sapiens’, os comportamentos humanos passaram a ser cada vez menos instintivos e cada vez
mais culturais. A relação do ser humano com a natureza caracterizou-se por uma abertura para o mundo,
diferentemente dos outros animais, para os quais tudo está ‘fechado’ (programado).

Isso deu ao ser humano a condição de criar o seu próprio modo de existir.

Em lugar de uma programação biológica (algo já dado), com o ser humano aconteceu exatamente o oposto.

O que advém como programação biológica é algo muito mais amplo e genérico, nada de específico; o
específico, ele precisa criar.

Para concluir a apresentação, a palestrante projetou mais uma tela:

Como criar esse ‘específico’?

Como o ser humano não tinha modelos, referências fixas, deparou com o imperativo de criar, criar-se. Se tudo
é criado pelo próprio ser humano (modelos e regras), onde está a verdade, a legitimação, o absoluto? Qual o
melhor modo de vida? Qual o perfeito?

É aqui que se abre a reflexão para o campo religioso: para alguma coisa que possa oferecer um sentido a toda
essa criação.

Para construir sua vida pessoal e social, o ser humano depara com a dimensão da própria liberdade: foram-se
nossas certezas, sobraram-nos as dúvidas, porque passou a ser totalmente nossa a responsabilidade de
encontrar um sentido para os modos de vida que construímos, um sentido para o nosso absoluto, para a nossa
verdade.

No espaço aberto por essa liberdade de criar é que se inseriu o sagrado.

Essa dimensão, para os antropólogos, é algo que constitui o ser humano, na medida em que essa dimensão faz
parte integrante do seu modo de vir a ser.

A dimensão do sagrado tem-se manifestado sob formas e com intensidades extremamente variáveis ao longo
da história da humanidade.

As transformações que o ser humano realizou na natureza, por meio da cultura – como os instrumentos para
caça, as formas de organização familiar e, posteriormente, as artes, as religiões – moldaram-no
“somaticamente, sendo, portanto, necessários não só para sua sobrevivência, mas também à sua realização
existencial. É verdade que, sem o homem, não haveria formas de cultura; mas também é verdade que sem
formas de cultura não haveria o homem” (GEERTZ, 1966, p. 41).
Assim, a professora encerrou sua exposição, e abriu-se o debate no auditório. Alguns estudantes veteranos
iniciaram as perguntas para a palestrante. Blocos de questões foram feitos, a fim de que muitos pudessem
expor suas dúvidas e comentários sobre a exposição e o tema da palestra.

Pedro e Maria estavam surpresos e encantados pelas possibilidades apresentadas pela disciplina Antropologia
da Religião. Retiraram-se do auditório e decidiram almoçar no restaurante do Bloco L. Logo mais, às 14h,
teriam aula e estudo em grupo na biblioteca. Lá, encontraram João e Laura, com quem conversaram sobre a
palestra e suas primeiras leituras da disciplina. Estavam todos muito animados!

Aqui, termina esta aula. Antes de prosseguir, porém, leia o texto de TIM Ingold, “Humanidade e animalidade”.

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