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esde o início do século XX, inú­

D meras teorias desenvolvidas


em diferentes áreas do conheci­
mento científico têm-se apoiado, direta ou
indiretamente, em pressupostos - episte-
mológicos, teóricos e mesmo empíricos
- pertinentes à perspectiva sistêmica. A
adoção do paradigma sistêmico, porém,
tem gerado um amplo debate e muita con­
trovérsia entre pesquisadores.
Na moderna história da abordagem
científico-sistêmica, principalmente du­
rante o século recém-passado, a noção
de sistema apresentou diferentes enfo­
ques epistemológicos que, de certa forma,
foram desenvolvidos com o objetivo de
acompanhar a complexidade crescente,
identificada no mundo empírico através
de descobertas científicas, tanto nas cha­
madas ciências duras como nas ciências
sociais.
Nesta coletânea, os autores procuram
apresentar as potencialidades analíticas
atinentes ao novo pensamento sistêmico e
a sua possibilidade de diálogo com a teoria
do discurso. Ambas as perspectivas teóri­
cas inscrevem-se numa matriz complexa
pós-fundacionista e têm em Niklas Luh-
mann e Ernesto Laclau seus dois principais
expoentes nesta contemporaneidade.
Se tomadas as trajetórias intelectuais
de Laclau e Luhmann, num primeiro mo­
mento, pode parecer difícil estabelecer
estritas comparações entre ambos. Entre­
tanto, verifica-se que, apesar das distintas
trajetórias desses autores, é possível que
a teoria do discurso e a teoria dos siste­
mas sociais dialoguem entre si, uma vez
que apresentam pontos de convergência
extremamente profícuos que neste traba­
lho serão revelados.
ERNESTO LACLAU
E
NIKLAS LUHMANN
PÓS-FUNDACIONISMO,
ABORDAGEM SISTÊMICA
E AS
ORGANIZAÇÕES SOCIAIS
P ontifícia U niversidad e C atólica do R io G rand e do Sul

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Daniel de Mendonça
( o r g a n iz a d o r e s )

Emesto Laclau
e
Niklas Luhmann
PÓS-FUNDACIONISMO,
ABORDAGEM SISTÊMICA
E AS
ORGANIZAÇÕES SOCIAIS

BDIPUCRS

Porto Alegre, 2006


© EDIPUCRS
1“ edição: 2006
Capa: Sam ir Machado
Preparação de originais: Eurico Saldanha de Lcmos
Revisão: dos organizadores
Revisão técnica: Liziane Zanotto Staevie
Editoração e com posição: Suliani Editografia
im pressão e acabamento: G ráfica EPECE

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

E71 Em esto Laclau e N iklas Luhmann : pós-fundacionism o,


abordagem sistêm ica e as organizações sociais / Léo
Peixoto Rodrigues, Daniel de Mendonça
(organizadores.) - Porto Alegre : EDIPUCRS, 2006.
172 p.

ISBN 85-7430-590-1

1. Luhmann, N iklas - Critica e Interpretação.


2. Laclau, Em esto - Crítica e Interpretação.
3. O rganizações Sociais. 4. Ciências Sociais.
I. Rodrigues, Léo Peixoto. II. M endonça, Daniel de.

CDD 301.04

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SUMÁRIO

I n tr o d u ç ã o
Léo P eixoto Rodrigues e D aniel de M en don ça............................................... 7

1 Olhar além do fundamento


Eduardo L u ft............................................................................................................ 15

2 A (des)estruturação das estruturas e a (re)estruturação


dos sistemas: uma revisão epistem ológica crítica
Léo Peixoto R o d rig u es..........................................................................................35

3 O construtivismo sistêm ico nas ciências humanas e sociais


M arcelo A rnold C athalifaud e Fernando R obles S a lg a d o ........................ 68

4 Laclau e Luhmann: um diálogo possível


D aniel de M endonça e Léo Peixoto R odrigu es............................................. 87

5 Política e subjetividade no pensamento de Ernesto Laclau


M irta G iacaglia .....................................................................................................100

6 Sem objetivo? Movimentos sociais vistos como sistema social


Emil A lbert S o b o ttk a ........................................................................................... 115

7 Estado e Direito como sistemas autopoiéticos:


uma abordagem da teoria de sistemas de Niklas Luhmann
R odrigo Ghiringhelli de A zeved o .................................................................... 129

8 A condensação do imaginário popular oposicionista


num significante vazio: as “diretas já ”
D an iel de M en d on ça........................................................................................... 146

Conheça os autores....................................................................................................... 170


Introdução

Léo Peixoto Rodrigues e Daniel de Mendonça

------------------------ ♦ -------------------------

Desde o início do século XX, inúmeras teorias desenvolvidas em diferen­


tes áreas do conhecimento científico têm-se apoiado direta ou indiretamente
em pressupostos - epistem ológicos, teóricos e mesmo empíricos - pertinentes
à perspectiva sistêmica. A adoção do paradigma sistêmico, porém, tem gerado
um amplo debate e muita controvérsia entre os pesquisadores.
Na moderna história da abordagem científico-sistêmica, principalmente
durante o século recém-passado, a noção de sistema apresentou diferentes en­
foques epistem ológicos que, de certa forma, foram desenvolvidos com o obje­
tivo de acompanhar a complexidade crescente, identificada no mundo em pí­
rico através de descobertas científicas, tanto nas chamadas ciências “duras”
como nas ciências sociais.
Uma outra dificuldade que chama a atenção quanto à adoção de um qua­
dro de referência sistêmico para as pesquisas científicas, desta vez, mais vin­
culado à teorização em ciências sociais, é o fato de que tanto a noção de sis­
tema como a noção de estrutura - como conceito, método, e fundamentação
epistem ológica - foram utilizadas de forma equivalente em diferentes esfor­
ços teóricos interdisciplinares. A (suposta?) comensurabilidade de tais con­
ceitos não parece ter dependido desta ou daquela disciplina; fora aplicada de
maneira transdisciplinar e, muitas vezes, equivocadamente. Fato é que a ca­
pacidade de tais conceitos em dar came a esqueletos teóricos (ou vice-versa)
fez com que as noções de sistema e de estrutura tenham sido utilizadas como
sinônimos sem qualquer reflexão mais ampla.
A utilização sinônima de estrutura e sistema, de forma tão sim plificada e
direta, realizada por algumas disciplinas do conhecim ento científico, dentre
elas as ciências sociais, não persistiu além da década de 1970. A partir de en­
tão, a noção de sistema - que já vinha se tomando mais “refinada” desde o
surgimento da cibernética e do concomitante aparecimento da noção de auto-
organização - apresentou-se mais complexa, incorporando incrementos epis­
tem ológicos, muitas vezes aparentemente paradoxais, como as noções de sis­
tema aberto, de sistemas auto-referidos e de sistemas autopoiéticos, oriundas

Introdução 7
tanto da Cibernética com o da Biologia, além de várias outras disciplinas co ­
adjuvantes, numa intrincada cooperação interdisciplinar.
O estruturalismo, após sua crise com o movimento que se esforçava para
aglutinar determ inados interesses teóricos, sobretudo nas ciências huma­
nas, pulverizou-se em diferentes direções teóricas e epistem ológicas, produ­
zindo enfoques analíticos muito distintos uns dos outros. Aqueles que, mesmo
pertencendo a disciplinas de diferentes domínios, mas que adotaram elem en­
tos de uma mesma matriz estrutural tais com o Barthes, Foucault, Lacan, De-
leuze, Derrida - inclusive aqueles mais detidos à teoria social, com o Pierre
Bourdieu, Anthony Giddens, Jeffrey Alexander e outros - migraram para di­
m ensões teóricas de matizes tão distintas, que acabaram ficando acolhidos
num grande “guarda-chuva” denominado, genericamente, de pós-estrutu-
ralismo, embora muitos não se reconheçam nem com o estruturalistas, nem
com o pós-estruturalistas.
Em contraposição, a noção de sistema, principalmente se considerarmos
o que passou a ser chamado de “N ovo Pensamento Sistêm ico”, tem dem ons­
trado ter percorrido, transdisciplinarmente, um caminho inverso àquele per­
corrido pelo conceito de estrutura. A história do pensamento sistêm ico, no
decorrer do século X X , principalmente a partir da sua segunda metade - nos
anos 60, com a Teoria Geral dos Sistemas, de Ludwig von Bertalanffy e, nos
anos 70, com a noção de autopoiésis de Maturana e Varela - tem atestado
um deslocam ento epistem ológico e teórico em direção a uma crescente con­
vergência. Essa convergência teórico-conceitual se traduz na admissão de que
sistemas são entidades- auto-referidas e que se distinguem do entorno em que
se encontram acopladas, possibilitando teorizar a diferença.
O paradigma sistêm ico, através da incorporação dos “giros epistem ológi-
cos” apresentados pelo desenvolvimento do conceito de sistema, no âmbito
de diferentes disciplinas, possibilitou renovadas abordagens sistêmicas con­
temporâneas que passaram a ser paulatinamente adotadas por muitas discipli­
nas do conhecimento científico tais com o Ciências Sociais, Psicologia, Peda­
gogia, Biologia, Química, Física, Economia, dentre outras.
Como avisa o próprio título deste livro, a maioria dos trabalhos busca di­
alogar com as teorias de Niklas Luhmann e de Ernesto Laclau. Estes dois au­
tores, de renome internacional, de forma muito criativa, buscam não apenas
apresentar teorias bem estruturadas para responder a inquietações contem po­
râneas no campo das ciências sociais, mas também oferecem ricas ferramen­
tas epistem ológicas e m etodológicas para o enfrentamento de uma com plexi­
dade sempre crescente nas sociedades contemporâneas.
Niklas Luhmann, considerado por alguns com o um dos sociólogos ale­
mães mais criativos desde M ax Weber, em suas inúmeras obras, foça_a_noção
de_sislexna_comp_unidade.disctÊla, isto é, circunscrita a seus limites e,_portan-
to, uma unidade auto-referida, com o estratégia epistêm ico-m etodológica para

8 Léo Peixoto Rodrigues e Daniel de Mendonça


reduzir a com plexidade do sistema mundo. Luhmann adota com o ponto de
partida, principalmente em suas últimas obras, a necessidade de superação de
enfoques epistem ológicos tradicionais das ciências sociais (a linearidade do
positivism o clássico, o marxismo e o neomarxismo), evocando a possibilida­
de de que seja delineada uma teoria que dê conta de explicar a atual com ple­
xidade dos fenômenos sociais.
E neste sentido que a introdução de conceitos tais com o os de auto-
referência, autopoiésis, acoplamento estrutural, circularidade operativa, etc.
vinculados'ãTeoni^sistêm ica interdisciplinar, são utilizados com o poderosos
instrumentos de análise dos sistemas sociais, gerando a possibilidade de um
enfoque não-determinista - contraditando muitos de seus críticos - , mas apre­
sentando possibilidades de se colocarem no âmbito de uma epistem ologia
construtivista dada à interação entre observador, sistema e entorno. Outro as­
pecto importante na obra de Luhmann, e freqüentemente mal interpretado, é o
de que embora a sua teoria tenha pretensões total izantes, generalizantes - à
maneira das grandes teorias sociológicas, com o as de Marx e Parsons, acerca
dos sistemas sociais - ela abre espaço para a construção de possibilidades ex ­
perimentais; ela permite ao investigador ir para a empiria de forma que este
tenha - diferentemente das teorias tradicionais - de assumir o seu papel de
observador, principalmente na identificação (fenom ênica) dos sistemas ou,
ainda, na identificação da auto-referência de cada um deles. O pesquisador,
na teoria sistêmica autopoiética, é parte integrante do conhecimento que daí
advém.
Ernesto Laclau, teórico argentino há décadas radicado no Reino Unido,
ingressou no círculo de debates pós-estruturalistas a partir da publicação, em
companhia de Chantal M ouffe, em 1985, da já clássica H egem ony a n d S ocia-
list Strategy: tow ards a radical dem ocratic politics. A partir deste trabalho,
Laclau rompe definitivamente com seu projeto anterior - presente em P olítica
e Ideologia na Teoria M arxista - de criar bases para um marxismo científico,
inspirado, sobretudo, em Louis Althusser. Em H egem ony, Laclau elabora uma
teoria política inovadora que articula categorias da tradição marxista com ou­
tras oriundas dos pensamentos de Foucault, Derrida, Lacan, dentre outros.
O prqjeto_te_óriço de Laclau parte da noção central de discurso, articulan­
do esta categoria com um com plexo arranjo de conceitos tais como; prática
articulatória, momentos, elementos, exterior constitutivo,, antagonismo, he­
gemonia e significantes vazios, para citarmos os mais importantes. A lém dis­
so, apresenta com o características peculiares das formações discursivas, e
conseqüentemente das organizações político-sociais, a contingência e a preca-
riedade. A contingência, por um lado, refuta o potencial explicativo da reali­
dade social que detém, no marxismo, a clássica noção do determinismo eco­
nômico em última instância. Por outro lado, a utilização do conceito de con­
tingência pela Teoria do Discurso, por uma questão de opção epistem ológica

Introdução 9
de Laclau, infere também a negação de um outro estatuto do marxismo: aque­
le que afirma ser um privilégio da classe operária a liderança da sociedade em
direção à sua própria emancipação. Assim, ambas as categorias marxistas são
fortemente abaladas pela noção de contingência, tendo em vista que só as
condições políticas e sociais reais e contingentes podem apontar qual é o gru­
po político capaz de ser o ponto nodal mobilizador de outros grupos, forman­
do-se, assim, uma situação de hegemonia. Já a noção de precariedade aponta
para a inexorável finitude de toda e qualquer constituição hegem ônica, uma
vez que a hegemonia de determinado grupo político está sempre tendente a
perder à suà força, tendo em vista que uma das essências da política reside
justamente êrri considerar que toda vitória política é sempre uma vitória par­
cial e finita.
Se considerarmos as trajetórias intelectuais de Ernesto Laclau e Niklas
Luhmann, num primeiro momento, até porque estes autores nunca dialogaram
entre si, toma-se efetivamente muito difícil estabelecermos possíveis compa­
rações entre ambos. O primeiro tem sua origem fundada no marxismo, princi­
palmente althusseriano e gramsciniano, e que, num certo momento, mesmo
empregando ainda muitas categorias de origem marxista, abandonou o cem e
desta proposta teórica, filiando-se ao pós-estruturalismo, com o o próprio au­
tor em muitos momentos afirma, utilizando-se, a partir daí, um cabedal con­
ceituai oriundo das ciências sociais, da lingüística, da psicanálise, etc. Luh­
mann, por outro lado, tem sua origem intelectual, pode-se dizer, numa corren­
te teórica muito distinta da de Laclau, seja do ponto de vista epistem ológi-
co, seja do ponto de vista político: o autor de Sistem as Sociais construiu seu
arcabouço teórico na lógica própria da Teoria Sistêmica, primeiramente com
Parsons, mas após, com o desenvolvimento do próprio conceito de Sistema,
filiou-se epistem ologicam ente às noções mais contemporâneas deste debate,
mormente a partir das revolucionárias contribuições de Maturana e Varela.
Entretanto, a partir de intensos debates travados entre os organizadores
deste volume, verificou-se que, apesar de trajetórias teóricas tão distintas, a
Teoria do Discurso e a Teoria dos Sistemas Sociais podem dialogar entre si,
uma vez que apresentam pontos de convergência extremamente profícuos. N o
capítulo “Laclau e Luhmann: um diálogo p ossível”, buscamos estabelecer al­
guns desses pontos de convergência entre tais projetos teóricos.
Assim , a presente obra tem por objetivo colocar à disposição do público
uma coletânea de contribuições de autores nacionais e estrangeiros, familiari­
zados com a trajetória do pensamento sistêm ico e discursivo e com o trabalho
de teóricos que utilizam concepções sistêmicas e discursivas para pensar a re­
alidade. N este sentido, este livro busca reunir as seguintes características: (a)
discutir a utilização jlc . uma_matriz sistêm ico-com plexa para a produção de
conhecimento fílosófico-científico; (b) problematizar a questão da fundamen-
i, dim ensões estas, vinculadas a uma matriz

10 Léo Peixoto Rodrigues e Daniel de Mendonça


epistem ológica linear (não-com plexa), pretendendo ressaltar as possibilidades
do paradigma sistêm ico contemporâneo para dar conta da atual complexidade
do conhecimento e das manifestações sociais; (c) verificar as potencialidades
teóricas da noção de Discurso, assim com o o seu próprio potencial heurístico;
(d) estabelecer um diálogo"entre as perspectivas discursiva e sistêmica com o
pertencentes à tradição teórica pós-estnituralista; (e) partir, através da seleção
dos diferentes textos, de uma abordagem teórico-conceitual em direção à uti­
lização das perspectivas teórico-sistêmicas e discursivas para a análise de di­
ferentes organizações sociais tais como: Estado, sistema jurídico, campanha
das “diretas já”, política e sujeito, hegemonia, m ovimentos sociais, partidos
políticos, etc.
N esse sentido, num texto eminentemente filosófico que busca não apenas
problematizar questões sobre o fundamento, mas também encaminhar algu­
mas possibilidades para o avanço dos debates desta (sempre atual) questão fi­
losófica, Eduardo Luft, em Olhar Além do Fundamento, partindo dos m ode­
los fundacionalistas em epistem ologia propõe a universalização do criticismo
(em oposição ao ceticism o) com o alternativa aos m odelos fundacionalistas.
Sua proposta de universalização do criticismo, entretanto, vincula-se ao con­
texto da elaboração de uma epistem ologia circular e autodeterminante. Luft
utiliza-se de três m odelos filosóficos com o referência central para a universa­
lização do criticismo: o falibilism o popperiano, a dialética hegeliana plenifi-
cada na Ciência da Lógica e a hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gada-
mer. Para ele, um exame atento da dialética hegeliana convida à superação da
abordagem linear ainda presente no falibilismo popperiano em direção a uma
epistem ologia circular. Por sua vez, a hermenêutica gadameriana oferece uma
alternativa eficaz ao impasse que termina por minar a proposta hegeliana e
sua exigência de conciliar o inconciliável: a criticidade da dialética e a pre­
tensão de um saber absoluto. Propondo a superação do idealismo hermenêuti­
co, o artigo de Luft propõe seis notas para uma filosofia da natureza capaz de
reunificar a razão cindida entre a verdade (razão teórica) e o bem (razão prá­
tica).
Léo Peixoto Rodrigues, um dos organizadores deste livro, em seu artigo
“A (Des)estruturação das Estruturas e a (Re)estruturação dos Sistemas: uma
revisão epistem ológica crítica” tem a preocupação central, a partir de uma
consistente revisão bibliográfica, de diferenciar as noções de estrutura e de
sistema, não raramente utilizados com o sinônimos, para então, caracterizar no
interior do debate sistêm ico, principalmente durante o século X X , as diferen­
tes acepções epistem ológicas da noção de sistema. O texto também busca re­
fletir sobre a utilização da noção de sistema, com o princípio epistêm ico-
teórico que, nas últimas três décadas do século passado, convergiu para um
maior consenso (entre os pesquisadores) quanto a sua capacidade, com o sis­
temas auto-referentes, de dar conta de problemas de ordem mais complexa,

Introdução 11
advindos da realidade atual. Por fim, Rodrigues destaca as potencialidades do
pensamento sistêm ico, principalmente nos seus aspectos epistem ológicos, de­
senvolvidos principalmente a partir dos estudos cibem eticistas e, posterior­
mente, com a revolucionária noção de autopoiésis, com o responsável pelo de­
senvolvimento de uma teoria geral dos sistemas sociais, por Niklas Luhmann,
em que, diferentemente dos esforços pós-estruturalistas, tem por objetivo dar
conta da com plexidade dos fenômenos sociais.
N o instigante artigo de Marcelo Arnold Cathalifaud e Fernando Robles
Salgado, os autores estão preocupados em abordar os principais problemas
vinculados à atividade científica nas sociedades contemporâneas e com o estes
problemas renovaram o interesse pelas reflexões epistem ológicas. Para isto,
Arnold e Robles destacam as contribuições e conquistas do construtivismo,
argumentando que o construtivismo, ao contrário de suas principais críticas,
não abandona suas pretensões científicas no âmbito do que é relativo, frágil,
apontando que sua tarefa consiste em registrar distinções, identificando os ní­
veis emergentes, e sempre dinâmicos, da com plexidade que se reduz através
dos conhecimentos. Em “O Construtivismo Sistêm ico nas Ciências Humanas
e Sociais” seus autores vão além dos debates meramente construtivistas; eles
se valem do paradigma sistêm ico-autopoiético, mais particularmente, de sis­
temas sociais autopoiéticos, para descreverem com o o construtivismo propor­
ciona respostas consistentes para indicar de onde emergem os conhecimentos
da realidade social. Em verdade, Arnold e Robles, buscam colocar em desta­
que as principais características de um programa sistêmico-construtivista.
O artigo “Laclau e Luhmann: um diálogo p ossível”, dos autores Daniel
de Mendonça e Léo Peixoto Rodrigues, organizadores desta obra, foi apre­
sentado, primeiramente, no Seminário Internacional de Ciência Política - Po­
lítica desde el Sur, em 2001, em Porto Alegre. O artigo, bem com o muito des­
ta obra, foi fruto de uma intensa interlocução entre os dois autores que à épo­
ca, com o ainda o fazem, dedicavam suas pesquisas (respectivamente) sobre
Ernesto Laclau e Niklas Luhmann. N os debates que se travaram entre os dois
autores, eram flagrantes as congruências teóricas percebidas a partir da pers­
pectiva do então chamado “novo pensamento sistêm ico”, sobretudo discutido
na Teoria dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann e muitos elem entos da es­
trutura conceituai da Teoria do Discurso de Ernesto Laclau. A partir de uma
sistematização mais pormenorizada de tais congruências, os autores procura­
ram, através da demarcação do campo da discussão acerca do pensamento sis­
têm ico contemporâneo, colocar os "giros" epistem ológicos de uma tradição
fundacionalista para o chamado pós-fundacionalismo. Assim , M endonça e
Rodrigues apontaram possíveis relações, e mesmo comensurabilidades con­
ceituais, de alguns conceitos-chave no âmbito da Teoria do Discurso de Er­
nesto Laclau e da Teoria dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann.

12 Léo Peixoto Rodrigues e Daniel de Mendonça


O capítulo “Política e subjetividade no pensamento de Ernesto Laclau”,.
da professora Mirta Giacaglia, apresenta e discute as categorias-chave da T e­
oria do Discurso de Laclau. A autora articula, a partir da noção central de dis­
curso, a constituição dos com plexos, contingentes e precários arranjos hege­
mônicos, dando especial ênfase à discussão da im possibilidade de emancipa­
ção, visando desconstruí-la com o esta é comumente pensada nos marcos de
perspectivas teóricas fundacionalistas. “O futuro é certamente indetermina­
do”, afirma Laclau. Contudo, tal indeterminação, longe de ser ameaçadora, é
a chave para a proposição de novos projetos políticos, permitindo-se, assim, a
constituição de ações políticas inovadoras e criativas.
O professor Emil Albert Sobottka no capítulo “Sem objetivo? M ovim en­
tos sociais vistos com o sistema social” apresenta uma instigante discussão a-
cerca das potencialidades da Teoria dos Sistemas Sociais de Luhmann para a
análise dos movimentos sociais. Analisa, ao longo do trabalho, o papel do D i­
reito e dos m ovimentos sociais com o antídotos à ameaça de desintegração do
Sistema Social, buscando, sobretudo, municiar o leitor do material teórico
disponível, no contexto de uma proposta teórica que se pretende universal,
para a análise dos movimentos sociais.
“Estado e Direito com o sistemas autopoiéticos: uma abordagem da teoria
de sistemas de Niklas Luhmann” é o tema abordado pelo professor Rodrigo
Ghiringhelli de A zevedo. O autor parte da apresentação das categorias mais
gerais da Teoria dos Sistemas Sociais com o autopoiésis, com plexidade, con­
tingência e evolução, para, então, discutir mais pormenorizadamente o fun­
cionamento do Estado e do Sistema Jurídico de acordo com esta perspectiva
teórica.
Por fim, Daniel de Mendonça em “A condensação do imaginário popular
oposicionista num significante vazio: as diretas já”, utiliza as categorias analí­
ticas da Teoria do Discurso de Ernesto Laclau para analisar um dos episódios
finais do regime autoritário brasileiro: -a campanha popular das “diretas já ”
que teve palco entre janeiro e abril de 1985. Inicia seu trabalho apresentando
a noção de significante vazio, passando por uma reconstituição histórica dos
principais fatos e movimentos que emergiram no final da década de 1970 no
Brasil que constituíram o que o autor nomeou de “imaginário popular oposi­
cionista”, sentimento anti-regime autoritário responsável pelo sucesso da
campanha das “diretas já”. Ao final do trabalho, M endonça caracteriza o m o­
vimento das “diretas” com o um significante vazio democrático.
Aquilo que fundamenta a teoria, que propicia a sua construção, que serve
de substrato para que ela seja armada, servindo de esqueleto no qual a teoria
vai se fazer carne e se articular de forma harmoniosa com ele, é o que deve
ser compreendido com o objeto da Epistemologia. Em outros termos, a Epis-
tem ologia preocupa-se com o bom (ou mau) uso da Heurística (conjunto de
normas, regras, métodos e m odelos lógicos) que orienta a produção do co-

Introdução 13
nhecimento científico. As diferentes teorias concorrentes no campo científico
para a representação abstrata de uma determinada “realidade”, portanto, po­
deriam ser comparadas a imagens, a desenhos que retratam, expressam essa
realidade; imagens, essas, que se fossem m odelos teóricos tridimensionais,
poderiam ser estudadas pela Estética, com o a ciência da arte e do belo. No
seu sentido mais refinado, a Epistemologia confunde-se, metaforicamente,
com a Estética.
A Epistemologia, compreendida numa perspectiva filosófica coerentista,
pode ser vista com o uma disciplina que se preocupa, com o a harmonia do
conjunto de pressupostos, com a coerência interna da articulação lógico-
instrumental de termos e conceitos, em detrimento de um sólido e irrefutável
fundamento. Sendo assim, a teoria toma-se o “desenho”, a expressão modelar
qualitativa de uma realidade coletiva, com o objetivo de compreendê-la e ex­
plicá-la (por vezes somente contemplá-la). A Epistemologia tem por finalida­
de falar sobre a “estética” desse desenho, dessa representação.
Esta obra, pois, está voltada para uma reflexão teórico-epistem ológica
sistêmica, cuja preocupação, neste particular, está mais voltada para a coerên­
cia dos argumentos que propriamente para o fundamento de uma verdade to-
talizante-, no que se refere aos diferentes enfoques da sociedade e de suas or­
ganizações sociais. A lente (ou a arquitetura) que, de certo modo, é proposta
pelo conjunto dos autores para o conhecimento das múltiplas formas de com o
se organiza a sociedade é aquela que não permite o reducionismo a um fun­
damento. Essa não-redução a uma fundamentação última, o pós-fundacio­
nismo - título propositalm ente provocativo - em verdade, busca chamar a
atenção para a necessidade de que as organizações sociais sejam conhecidas a
partir de uma perspectiva de maior complexidade. Acreditamos que a Sistê­
mica - em seus aspectos epistem ológicos, teóricos, e m etodológicos - possa
contribuir efetivamente para isto.

Outono de 2006.

14 Léo Peixoto Rodrigues e Daniel de Mendonça


1

Olhar além do fundamento

Eduardo Luft

------------ ♦-------------

In tro d u ção
O autor investiga posições filosóficas de destaque em epistem ologia que
poderiam ser agrupadas sob o título de criticism o, em oposição ao dogm a-
tism o e ao ceticism o . E xpõe os m éritos e os lim ites do racionalism o cri­
tico inaugurado por K. Popper: apesar de revolucionar o m odo com o conce­
bemos o conhecimento, Popper não levou às últimas conseqüências pressu­
postos centrais de sua própria epistemologia; o privilégio dado às sentenças
de base no contexto da justificação crítica do conhecimento mantém sua pers­
pectiva refém de postulados positivistas. A constatação, aceita pelo próprio
Popper, de que as sentenças de base (ou protocolares) estão sempre condicio­
nadas por pressupostos teóricos conduz ao natural a uma compreensão da es­
trutura circular do sistema de nossas convicções teóricas. O que poderíamos
denominar o caráter autárquico da linguagem teórica toma inevitável o diálo­
go com o idealismo (intersubjetivo). H egel sabia disso, e propõe uma episte­
mologia circular assentada na tese da possibilidade de uma autofundamenta-
ção absoluta do conhecimento. Todavia, os impasses na proposta hegeliana
exigirão um diálogo ainda mais franco com posições idealistas, particular­
mente com o idealismo intersubjetivo que caracteriza a hermenêutica filosófi­
ca. O presente trabalho termina com um breve esboço de uma possível supe­
ração do idealismo intersubjetivo no contexto de uma nova metafísica.

O p ro b lem a da fu n d am en taç ão do co n h ecim en to


Segundo Platão, “conhecimento é opinião verdadeira - acompanhada de
razão” (Theai., 202c). Quem pretende possuir conhecimento de algo deve
cumprir pçlo m enos três exigências: (a) emitir uma opinião; (b) a opinião
emitida deve ser verdadeira; (c) a opinião verdadeira deve estar fundada em

Olhar além do fundamento 15


razões. Por outro lado, quem vê questionada a sua pretensão de possuir um
conhecimento legítimo sob a acusação de não cumprir com alguma das exi­
gências elencadas tem todo direito de perguntar o que entendemos por “opi­
nião”, “verdade” e “razão”.
Platão compreende a opinião com o a decisão de um indivíduo pró ou
contra certo ponto de vista, após a realização de um diálogo interior contra­
pondo posições antagônicas. Opinar é eminentemente uma atividade discursi­
va (Theai., 190a). Podemos concluir que o lugar privilegiado onde se dá a
verdade é o discurso. Mas o que vem a ser “verdade”? D efinim os “verdade”
com o a propriedade de uma sentença decidida afirmativamente, ou seja, con­
siderada instância do sistema geral de nossas convicções teóricas. Ao inverso,
“falsidade” é a propriedade de uma sentença decidida negativamente e, por­
tanto, excluida do mesmo sistema. Ora, nossas convicções teóricas são con­
vicções acerca do que é ou existe. O problema da verdade conduz ao grande
enigma da epistemologia: com o se dá a relação entre sentença e fato, entre
linguagem e realidade?
Dando continuidade às exigências platônicas, afirmamos que a decisão
positiva ou negativa de uma sentença precisa estar ancorada em razões, em
argumentos, ou seja, ela não pode ser arbitrária, ao m enos se e enquanto pre­
tendemos obter conhecimento. Podemos determinar a verdade de uma senten­
ça apelando a outras sentenças, fornecendo argumentos. Temos, então, os três
elem entos exigidos: a opinião, a verdade e as razões. Mas de fato possuímos
conhecim ento? Se a verdade de uma sentença (digam os, p ) foi obtida, por
exem plo, mediante uma dedução lógica supondo-se com o verdadeiras dadas
premissas (digamos, q e se q, então p), um interlocutor descontente com a
nossa estratégia poderia indagar se as premissas são verdadeiras. A possível
falsidade das premissas determinaria a possível, embora não necessária, falsi­
dade da conclusão. Ou seja, precisaríamos responder ao adversário mediante
a oferta de novas razões. Mas novas perguntas conduziriam a novas razões,
em um regressus a d infinitum.
N o intuito de estancar o processo aparentemente infindo da busca de ra­
zões, podemos cair na tentação da fundamentação última: se a verdade de cada
uma das sentenças mencionadas é sempre condicionada, buscamos a sentença
ou sentenças fundantes e incondicionadamente verdadeiras capazes de garantir a
verdade de todas as demais sentenças de nosso sistema de convicções. A pro­
cura por um fundamento último norteou toda a epistemologia clássica (Albert:
1991, p. 24 segs.). Podemos buscar o fundamento último em sentenças parti­
culares - as assim chamadas P rotokollsâtze no Círculo de Viena, as sentenças
protocolares, sentenças observacionais que compõem os registros dos cientistas
durante suas pesquisas empíricas. “O único fundam ento último de meu reconhe­
cimento de uma sentença como verdadeira encontra-se naquelas experiências

16 Eduardo Luft
simples que podem ser consideradas como o passo definitivo para a comparação
entre sentença e fato disse M. Schlick (1986, p. 228).
Os empiristas dogmáticos procurarão encontrar nas sentenças protocola-
res fundamentos seguros do conhecimento, tomando-se reféns de pelo menos
duas dificuldades. Primeiramente, deve-se salientar que o passo definitivo pa­
ra o encontro da verdade é, segundo Schlick, a “comparação entre sentença e
fato”. O autor entende “verdade” com o a propriedade de uma sentença en­
quanto corresponde a um fato.1 Ao defender o realismo direto, a relação dire­
ta e não problematizável entre sujeito cognoscente e objeto conhecido, S c­
hlick precisará indicar quais as condições epistêmicas para a aferição da rela­
ção entre sentença e fato. Tal aferição só pode ser realizada do exterior da lin­
guagem, pois os eventos constatados do interior da linguagem são fenôm enos,
ocorrências lingüisticamente mediadas. Todavia, podem os transcender a lin­
guagem? Como enfatiza O. Neurath, “sentenças somente podem ser compara­
das com sentenças, e não com a ‘realidade’, com ‘coisas’” (1981, p. 618). O
sistema da linguagem é epistemicamente autárquico: não há um dentro ou fo­
ra da linguagem, um dentro ou fora da razão enquanto discurso, do ponto de
vista teórico. Em segundo lugar, mesmo se supuséssem os possível a realiza­
ção do píojeto de Schlick, determinando a verdade das sentenças protocolares
mediante o apelo direto aos fatos, como poderíamos transferir a sua verdade pa­
ra as sentenças universais pressupostas por todo e qualquer saber que se preten­
da ciência, ou seja, com o é possível a indução (Popper, 1994, p. 3 segs.)?
Diante do impasse, poderíamos propor o caminho inverso: se as senten­
ças protocolares não garantem um conhecimento seguro, procuramos o fun­
damento nas sentenças não-protocolares ou universais. Podem os encontrar
um exem plo dessa abordagem racionalista na filosofia de Platão: o fundamen­
to último não reside na identidade entre uma sentença protocolar e um fato
empírico, mas é instaurado por um conhecimento direto de princípios eviden­
tes por si m esm os.2 M esm o postulando a evidência com o critério de justifica­
ção, a epistem ologia platônica não deixa de incorporar a noção de correspon­
dência no contexto da definição de “verdade”. O discurso falso “[...] diz de ti
como se fosse distinto o que é idêntico, e com o não sendo o que de fato é
[...]” (Soph., 263d). O discurso falso está ancorado em uma confusão entre as
formas supremas m esmo e outro, se r e não-ser. falamos do se r com o se fosse

1 Temos aqui pressuposta a clássica noção de verdade como adaequniio rei et intellectus, se­
gundo a expressão de Tomás de Aquino (J. Mittelstrass, Enz., v . 4, p. 584).
2 Para D. Ross, Platão recorre a uma forma de “[...] apreensão direta: a apreensão do primeiro
princípio não hipotético, que não se pode deduzir de nenhum outro, pois é superior a todos
os demais” (1993, p. 87). Do mesmo modo, Manfredo A. de Oliveira afirma que, “para os
gregos, o pensamento é concebido como uma espécie de visão, ou seja, a visão intelectual, a
contemplação do ser verdadeiro. O olho do espírito era capaz de captar a ordem objetiva, a
verdadeira ordem das coisas, e essa ordem percebida era, por sua vez, a medida, a norma de
retidão da linguagem" (1996, p. 19).

Olhar além do fundamento 17


nâo-ser, e do m esmo com o se fosse outro. Ao inverso, o discurso verdadeiro
respeita a dialética das formas, a sua conexão lógica adequada. D esse modo, a
relação de correspondência não se dá entre o discurso e a realidade empírica,
com o ocorria na abordagem empirista de Schlick, mas entre o discurso e a re­
alidade não-empírica das formas.3 Portanto, também os defensores da pers­
pectiva platônica terão o ônus de provar com o podemos ter garantia da corre­
lação precisa entre a dialética das formas e a dialética do discurso: com o po­
demos extrapolar cognitivamente a esfera do discurso e tematizar as formas
nelas mesmas, e não apenas refletidas na linguagem.
O apelo à evidência com o critério de justificação marcará época na H is­
tória da Filosofia, sendo seguido por Aristóteles (Anal. Seg. 100b) e aprofun­
dado na noção de “intuição intelectual” no Idealismo Alemão, cm Fichte (cf.
W L -1797, p. 528) e Schelling (cf. FD Syst., p. 112). Tendo conhecim ento
imediato dos princípios poderíamos, partindo deles, estabelecer dedutivamen­
te e com segurança a verdade das demais sentenças do sistema teórico. D eve-
se enfatizar, contudo, que a perspectiva racionalista mencionada não oferece
propriamente uma alternativa para a solução dos problemas detectados dentro
dos marcos da definição platônica de conhecimento inicialmente sugerida. O
que ocorre é uma verdadeira subversão da proposta inicial. Se conhecimento
é “opinião verdadeira acompanhada de razões”, somente uma prova baseada
em m ediações ou argumentos poderia ter legitimidade. Apelar, ao fim, a um
tipo de acesso imediato a princípios é defender o não-conhecimento com o
fundamento último de todo conhecimento possível. Kierkegaard tem razão ao
encontrar na pura crença, na decisão arbitrária o fundamento último da pers­
pectiva fundacionalista em Epistemologia. Como dirá o filósofo dinamarquês,
toda ciência deve ter um com eço e, se e enquanto as demais sentenças do sis­
tema teórico somente conquistam a sua verdade mediante relação com o co ­
m eço lógico (com os princípios), então “o com eço só pode ser realizado se a
reflexão for interrompida, e a reflexão só pode ser interrompida por [...] uma
decisão” (Nachschr., 13, p. 106). Destacada das devidas m ediações, tal deci­
são só pode ser arbitrária. Não há conhecimento sem aferição intersubjetiva, e
o que aferimos intersubjetivamente não é uma sentença isolada, nem entendi­
da com o com eço nem com o resultado da pesquisa racional. Aferimos inter­
subjetivamente um resultado ou um princípio apenas enquanto inserido com o
instância do processo de m ediações cognitivas: nem o com eço nem o resulta­
do podem ser compreendidos senão à luz do caminho; conhecer é conhecer o
método. Abstrair do método em prol do encontro de um fundamento incondi-
cionado é substituir o conhecimento pela fé cega.

3 Como dizem W. Kneale e M. Kneale: “Platão parece manter que uma frase é verdadeira se o
arranjo das suas partes reflete ou corresponde à relação entre as formas” (1991, p. 22).

18 Eduardo Luft
D ificu ld ad es do criticism o no con texto
d e um a e p istem o lo g ia linear
Por outro lado, Platão era também o filósofo do diálogo, o herdeiro de
uma tradição capaz de abordar o problema do conhecimento não por m eio de
uma teoria da fundamentação última, cujas dificuldades acabaram de ser
mencionadas, mas através de uma abordagem crítica. O conhecimento não
deve estar ancorado em certezas inabaláveis, mas na atividade dubitativa ca­
paz de evitar o erro: filósofo não é o sábio mas quem está em busca da sabe­
doria. A criticidade é o elemento norteador não apenas do método dialógico
de Platão mas de uma antiga tradição dialética, cujas origens remontam a Ze-
não de Eléia e suas tentativas de provar indiretamente, mediante redução ao
absurdo, a tese parmenídea da existência exclusiva do Uno (cf. Enz., v .3,
p .5 16) e cujo ápice podem os encontrar no élenchos socrático, a refutação de
pontos de vista falsos mediante diagnóstico de incompatibilidade entre afir­
mações opostas (Soph., 230 c-d). A postura de quem duvida é contrária ao
comportamento dogmático, seja de origem empirista ou racionalista: justa­
mente porque desconfiam os da capacidade humana de atingir verdades inaba­
láveis, não podem os permitir o estancamento do diálogo, permanecendo sem ­
pre dispostos a novos riscos. A s afirmações mais sólidas podem perder a fir­
meza. Começam os a mirar além do fundamento.
Essa vigorosa tradição encontrou guarida na Filosofia da Ciência de Karl
Popper. A perspectiva popperiana visa abalar as tentativas tradicionais de
fundar o conhecimento em pressupostos certos e indubitáveis. A ciência dife­
rencia-se da pseudociência não por fornecer certeza mas por sua abertura a
possíveis refutações. Quanto maior o conteúdo empírico de uma teoria, quan­
to mais ela tem a dizer acerca da realidade empírica, tanto maior a sua vulne­
rabilidade à refutação, e tanto mais determinado o seu caráter científico: as
“leis da natureza”, as sentenças científicas universalíssimas, dizem “[...] tanto
mais quanto mais elas proíbem” (Popper, 1994, p. 15). O falsificacionism o
popperiano permite ainda explicar a relação entre as sentenças protocolares e
as sentenças universalíssimas que sustentam a ciência. A indução não pode
realizar a esperada ponte, pois não som os capazes de estabelecer com rigor
lógico a transferência da verdade das sentenças singulares às sentenças uni­
versais. Mas podem os estabelecer a falsidade de sentenças universais a partir
da detecção da falsidade de alguma sentença singular que, embora deduzida
daquelas, não foi corroborada empiricamente. A ciência está ligada à experi­
ência negativamente, e não positivamente, com o pensava a tradição empirista.
Todavia, a universalização do criticismo não é isenta de dificuldades.
Crítica é atividade de julgar, de diferenciar o verdadeiro do falso. Quem criti­
ca deve partir de algum lugar, tem de carregar consigo alguns pressupostos,
pois a crítica pela crítica, ancorada em um suposto vazio, é antes um tipo de
ceticism o arbitrário, uma forma velada de dogmatismo (Luft, 2001, p. 23). A o

Olhar além do fundamento 19


depender de uma justificacão de seus próprios pressupostos, a atividade críti­
ca não terminaria refém, indiretamente, dos mesm os problemas apontados na
perspectiva fundacionalista? Enfim, o criticismo pode aplicar-se a si mesmo
sem cair refém do Trilema de Münchhausen, sem que a justificação de suas
próprias pressuposições termine em circularidade, regresso ao infinito ou
dogmatismo (Albert, 1991, p. 13 segs.)?
Entre os pressupostos do falibilism o popperiano há um muito singelo
mas de grandes conseqüências: a criticidade inerente à atividade científica es­
tá sustentada no apelo à base empírica: “Somente denominamos uma teoria de
falsificada se podemos reconhecer as sentenças de base [sentenças protocola­
res, na terminologia positivista] que a contradizem” (Popper, 1994, p. 54).
Sendo assim, qualquer teoria só assume a condição de científica se estiver an­
corada em sentenças protocolares. De onde advém a seguinte questão: qual a
razão do privilégio das sentenças protocolares? Entre o imenso rol de senten­
ças inerentes ao sistema teórico, há sentenças protocolares e não-protoco-
lares; há sentenças universalíssimas cuja função é não apenas funcionar com o
premissas em argumentos dedutivos mas também orientar o estabelecimento e
escolha de sentenças protocolares, com o o próprio Popper admite: “[...] ob­
servação é sempre obsen>açào à luz de teorias [...]” (1994, p. 31n). Se esse é
o caso, então por que teríamos de confiar nas sentenças protocolares com o
instâncias de legitimação do caráter científico de certas teorias? Por que não
confiar em sentenças não-protocolares com o elemento determinante para o
estabelecimento da crítica? Por que não escolher o diálogo intersubjetivo ou o
apelo a m odelos teóricos alternativos com o o método mais adequado para a
falsificação de certas idéias? O que motiva Popper a privilegiar as sentenças
observacionais?
Segundo Popper, o reconhecimento das sentenças de base com o pressu­
postos do criticismo depende de decisões que, observadas logicamente, são
“determinações arbitrárias” [wiUkürliche F estsetzu ngen]. Mas o caráter arbi­
trário das decisões não toma justamente o criticismo refém do dogmatismo?
A s sentenças de base não são, assim, decididas sem qualquer justificativa?
Popper está consciente da dificuldade, e oferece pelo menos duas soluções.
Primeiramente, Popper enfatiza que as sentenças de base estão ancoradas nas
próprias sentenças universais (as nossas observações são orientadas por teori­
as) que, por sua vez, serão julgadas criticamente mediante o apelo às senten­
ças de base: “A determinação [F estsetzung] das sentenças de base ocorre por
ocasião de uma aplicação da teoria e é uma parte desta aplicação, através da
qual nós p ro v a m o s a teoria; assim com o a aplicação em geral, tam bém a
[aquela] determinação é uma ação metodicamente guiada por considerações
teóricas” (Popper, 1994, p. 70). Levando-se tal perspectiva às últimas conse­
qüências, seria inevitável a adoção de uma epistem ologia circular: as senten­
ças de base estão ancoradas em sentenças universais, que, por sua vez, anco­

20 Eduardo Luft
ram-se nas sentenças de base, ou seja, o sistema de nossas convicções suporta
a si mesmo. Veremos que o maior dos problemas a ser enfrentado por uma
perspectiva desse tipo é a má circularidade. E, mais decisivo para Popper,
uma epistem ologia circular aproximaria o falibilismo da posição idealista.
Um dos intuitos fundamentais do falibilism o popperiano é justam ente
evitar tal conseqüência. Não devem os subestimar a importância do confronto
com o convencionalism o para a construção da filosofia popperiana. Os con-
vencionalistas consideram a ciência, dirá Popper, não “[...] uma imagem da
natureza, mas uma pura construção conceituai; não são as propriedades do
mundo que determinam a construção, mas esta determina as propriedades de
um mundo conceituai produzido, artificial [...]” (1994, p. 48). D evem os des­
tacar este ponto: o que diferencia o falibismo do convencionalism o é, segun­
do Popper, o interesse pelo encontro da verdade: “Podemos, seguindo o con­
vencionalismo, dizer: o destaque dado à teoria desse m odo privilegiada de­
pende da ação prática. Mas tal ação prática é para nós aplicação da teoria e
determinação [F estsctzu n g] das sentenças de base em conjunto com essa
aplicação (com o motivo do encontro da verdade), enquanto para o conven­
cionalismo estão em jogo m otivos estéticos [por exemplo: uma teoria é deci­
dida com o mais adequada do que outra por sua sim plicidade]” (1994, p. 74).
Popper mantém a teoria da verdade com o correspondência, com o suporte da
tese de que uma teoria melhor corroborada estaria mais “próxima da verdade”
do que sua rival. Se uma nova teoria t l é capaz de resolver os m esm os pro­
blemas já passíveis de resolução por uma teoria tO anteriormente aceita e,
além disso, permite a realização de novas previsões e, portanto, fornece res­
posta a novos problemas cognitivos desconhecidos do ponto de vista de tO,
resistindo a novas provas empíricas, então t l está mais próxima à verdade do
que tO (cf. 1994, p. 428 segs.).
Ora, a tese da aproximação da verdade, aliada ao privilégio das sentenças
de base, só faz sentido sob a pressuposição de alguma forma de realismo in­
gênuo (embora Popper pretenda o contrário), ou seja, a tese de que as senten­
ças de base - e não as sentenças universais - fornecem o acesso à realidade
externa, correspondendo com fatos: “[...] uma teoria é verdadeira se ela con­
corda com os fatos; ela está mais próxima da verdade do que uma teoria con­
corrente quando concorda melhor com os fatos (ou concorda com mais fa­
tos)” (1994, p. 433). Mas com o se dá a relação entre sentenças e fatos, ou
mesmo se ela é possível, permanece uma incógnita.4 O criticismo popperiano,

4 Já em Logik der Forschung Popper estabelece que a dualidade sentença/observação e o ape­


lo a um sujeito observador (metafisicamente considerado) são a condição para o cumprimen­
to da exigência material para o estabelecimento de uma sentença de base: “Além destas exi­
gências formais que devem ser cumpridas por todas as sentenças singulares ‘Existe x, tal
que...’, precisamos expor as sentenças de base também a uma exigência material: os aconte­
cimentos por elas afirmados como ocorrendo cm um lugar k são acontecimentos ‘observá­
veis’; sentenças de base precisam ser passíveis de averiguação intersubjetiva mediante ‘ob­

Olhar além do fundamento 21


ao ancorar-se em uma epistem ologia linear - as sentenças universais suporta­
das por sentenças protocolares, e estas ancoradas por uma concepção de rea­
lismo ingênuo tom a-se refém do dogmatismo (entendido aqui não com o
uma abordagem centrada na idéia de um conhecimento certo e indubitável,
mas com o uma filosofia ancorada em suposições arbitrariamente estabeleci­
das).

O p ro b lem a do co m eço tra n sm u d ad o no enigm a


do fim : a falê n cia do criticism o em Hegel
Uma proposta de criticismo que conduziria ao extremo oposto dos resul­
tados alcançados por Popper - se de todo m odo passível de realização - po­
demos encontrar na Ciência da Lógica de Hegel. O filósofo dialético concor­
da com Popper ao menos em um ponto: se a concepção centrada na tese de
que todo saber deve iniciar de um princípio inquestionável toma a ciência re­
fém da fé cega, então devem os questionar justamente a exigência de dotar o
conhecimento de princípios considerados por si mesm os evidentes, ou seja,
considerados im ediatam ente certos. "Womit muss d er Anfang der IVissens-
chaft gem ach t w e rd en ? ” intitula-se o capítulo sem número que inaugura a
Doutrina do Ser, na Ciência da Lógica. “Com o que deve ser feito o com eço
da ciência”? Quem argumenta deve partir de alguma posição, deve carregar
consigo algum pressuposto. O problema do com eço é incontomável: se toda
argumentação tem o seu ponto de partida, com o justificá-lo?
Também a Ciência da Lógica de H egel tem um ponto de partida, a cate­
goria “ser”. A função da L ógica é constituir um sistema das categorias, de­
terminações universais do pensamento que são também determinações univer­
sais do ser. Seria “ser” o fundamento do sistema das categorias? Mas a cate­
goria “ser” considerada assim, isoladamente, não pode ser fundamento, pois o
fundamento de um sistema de convicções deve possuir uma determinação, ou
mesmo a mais nobre das determinações, e “ser” é, nela mesma, indetermina­
da. Uma categoria possui determinação semântica quando posso diferenciar o
seu sentido do significado de outras categorias, inserindo-a em um dado cam­
po semântico. D o mesmo m odo, poderíamos dizer: uma sentença somente
pode ser determinada inserindo-a em um sistema de convicções. Determina­

servação’. Como elas são sentenças singulares, esta exigência naturalmente só pode referir-se
àqueles ‘sujeitos que averíguam’, [sujeitos] que se encontram em uma correspondente pro­
ximidade espaço-temporal [...]” (Popper, 1994, p. 68). O caminho para a metafísica dos três
mundos está aberto. Para o Popper de Objective Knowlecige, o mundo dos estados mentais é
o elemento mediador entre o mundo das teorias e o mundo dos estados físicos. Dito de outro
modo: a esfera dos atos observacionais realiza a mediação entre a esfera das sentenças e a
realidade física extramental (1989, p. 154). Mas nessas alturas a filosofia popperiana já está
distante demais da abordagem falibilista inicial para ainda poder sequer ser considerada uma
forma de criticismo.

22 Eduardo Luft
ção é uma propriedade relacionalmente instaurada. Se e enquanto considera­
mos “ser” de modo isolado, o seu sentido se desfaz: queremos dizer algo mas
não dizem os nada.
O com eço revelou-se problema e não solução. Realizamos a crítica da
categoria “ser” enquanto concebida com o com eço absoluto. Para Hegel, a
transição pela atividade crítica é a primeira condição para legitimar qualquer
pressuposto. E certo que todo conhecimento parte de pressupostos. O próprio
Hegel, por exem plo, pressupõe certas categorias descobertas pela tradição de
pesquisa à qual ele pertence, com o “ser”, “devir”, “substância”, “sujeito”.
Mas, ao testá-las criticamente no decorrer da investigação, o filósofo não as
deixa com o estavam. Trata-se, na L ógica, não da construção de categorias a
partir de um postulado tomado com o certo e evidente nele mesmo, mas da re­
construção crítica de seu sentido com o intuito de instaurar um sistema cate-
gorial coerente, livre de contradições. Hegel pretende realizar “[...] a trans­
formação daquilo que é encontrado ou tomado por certo com o um fato ou
como uma afirmação da ciência ou com o filosofia ingênua, em uma recons­
trução na forma de necessidade racional ou na forma a priori" (Hartmann,
1976, p. 103). A criticidade é a primeira característica da ciência. Evitá-la
significa tomar a ciência refém de uma pressuposição cega, com o bem viu
Kierkegaard.
Sendo assim, a ciência não pode estar orientada pela idéia de um com eço
evidente nele mesmo. Mas a ciência estaria orientada para onde? Para lugar
algum? Se a evidência do com eço não pode ser o fundamento que buscamos,
como podem os legitimar as nossas convicções? A resposta de Hegel: o siste­
ma de nossas convicções deve ser legitimado por ele m esm o, deve ser auto-
justificado criticamente. Tudo o que podemos realizar é constituir um sistema
das categorias e investigar a sua coerência intema. A s diversas m ediações que
realizamos no decorrer do processo de elaboração do sistema são mutuamente
consistentes? A resposta positiva à questão deve ser suficiente para apaziguar
as nossas dúvidas, ao menos de modo provisório. Retomando ao problema de
Popper: se a determinação de certas sentenças com o verdadeiras (por exem ­
plo, as sentenças de base) depende do apelo a outras sentenças (por exem plo,
as sentenças universais que com põem uma dada teoria), então não tem os ou­
tro recurso senão admitir o caráter autofundante e circular do sistema de nos­
sas convicções - convicções são suportadas por convicções.
M as a estrutura circular da epistem ologia hegeliana não foi elaborada
apenas para enfrentar o problema do com eço. Ela deve responder a uma outra
indagação crucial. Podem os supor que a resistência do sistema das categorias
aos testes críticos sirva para apaziguar provisoriamente as nossas dúvidas.
Mas justamente a constante reatualização crítica do sistema não possibilita a
sua reconfiguração? A descoberta de novas categorias, de novas relações ca-
tegoriais, não exigiria a reproblematização das nossas convicções, talvez for­

Olhar além do fundamento 23


çando-nos a conceber de m odo diverso o sistema das categorias? Não revela­
ríamos, desse modo, o caráter condicionado de todo e qualquer sistema de
convicções? H egel poderia ter concebido o processo de autojustificação com o
processo de autoproblematização inacabado: nem o com eço nem o fim deve­
riam ser privilegiados, e sim o sistema com o um todo no seu processo de au-
toconstituição e autoproblematização. Mas não o fez.
Ocorre que o processo de autoconstituição, se e enquanto permanece
processo, só pode ser compreendido com o o movimento de reestabilização
contínua de nossas convicções, sempre de novo postas em risco e sempre no­
vamente reintegradas, embora possivelm ente não sem alterações. O fato de
que o sistema de convicções possa ser alterado toma o saber por definição
saber condicionado, mesmo que autocondicionado. Hegel busca o saber ab­
soluto ou incondicionado. A sua posição não envolve a perda do domínio
pleno sobre o com eço, não envolve a autonomia parcial e, portanto, a relativi-
zação do com eço, mas a sua recuperação integral na imanência do sistema de
categorias construído pela Ciência da Lógica. O círculo da Idéia é, para H e­
gel, o movimento de reposição definitiva e imanente à Lógica de tudo o que
ao início era pressuposto com o externo ao sistema das categorias. Trata-se da
lógica da pressuposição e da reposição, o movimento que parte da imediação
do início, transita pelas instâncias mediadoras, e termina em uma nova ime-
diaticidade, diferente da primeira porque mediada e plenificada.5
Analisem os mais a fundo a concepção hegeliana tematizando o seguinte
exem plo. Se alguém me põe às mãos um livro desconhecido, com o intuito de
que eu venha a conhecer o seu conteúdo, a minha relação primeira com o ob­
jeto não comporta problemas. Sei que se trata de um livro. Mas o esforço de
compreensão do que me é estranho, o seu conteúdo informativo, traz consigo
o início de um processo de dúvida. O que me era banal surge agora com o
problema. M ediação pressupõe, diz Hegel, o trabalho da negação, da dúvida.
O processo será bem realizado se, ao final, eu puder de fato reconstruir inter­
namente o conteúdo do livro, dominá-lo. A s informações contidas no livro fo­
ram interiorizadas. Claro que poderíamos supor que esse processo não tem
fim, restando no livro um resíduo ainda não compreendido ou novas possibi­
lidades de interpretação. Todavia, se e enquanto pretendemos a instauração
de um saber absoluto, resíduos não são bem-vistos: a posição hegeliana é de
que o com eço aparece com o problema, mas o fim, o resultado, pode plenifi-
car o processo cognitivo de tal m odo que não restem resíduos. O saber pro­
blem ático do com eço é elevado a saber incondicionado. O saber plenificado é
a meta do m odelo cognitivo hegeliano: o fim é o fundamento do sistema das
categorias e, em um m ovimento circular autofundante, libera o com eço de sua
problematicidade constituindo-o com o o único com eço possível: “O último, o

5 Sobre a lógica da pressuposição e da posição em Hegel, cf. D. Henrich,1975, p. 117 segs.


Cf. tb. E. Luft, 2001, p. 171 segs.

24 Eduardo Luft
fundamento, é pois aquele a partir do qual o primeiro surge [...]” (WL, 5, p.
70). O com eço problemático, meramente pressuposto, é agora posto e prova­
do integralmente no interior da L ógica, absolutizando-se mediante a plenifí-
cação do fim: “O essencial para a ciência não é tanto que o início seja imedia­
to, mas que a sua totalidade seja um círculo voltado sobre si mesmo, no qual
o primeiro é também o último e o último o primeiro” (WL, 5, p.70). D esse
modo, Hegel pretende ter resolvido ao mesmo tempo o problema da suposta
arbitrariedade do início - pois agora o início absoluto não surge com o mera­
mente imediato, mas com o o resultado do próprio movimento lógico de cons­
tituição do sistema de categorias com o totalidade acabada e as dificuldades
em tom o da fundamentação última da ciência. N esse sentido, H egel toma o
caminho exatamente inverso de Popper, terminando por privilegiar não as
“sentenças de base” (ou protocolares, segundo os positivistas), mas as senten­
ças (ou categorias) universalíssimas que constituiriam a p rio ri o saber verda­
deiro acerca das estruturas ontológicas últimas constituidoras de toda a reali­
dade.6
Argumentamos em outra ocasião que a perspectiva hegeliana é autocon-
traditória, pois supõe a eliminação de uma das dimensões da própria dialética,
a sua face crítica (Luft, 2001). A crítica de um sistema de convicções somente
é viável se é possível - embora não necessária - a sua m odificação futura: o
que se supõe com o verdade e, portanto, se considera com o instância do siste­
ma atual pode ser compreendido com o falso em nova circunstância, seja por­
que novas construções teóricas tenham sido propostas, seja porque novas sen­
tenças protocolares estejam agora à nossa disposição. Em um sistema plenifi-
cado todas as sentenças aparecem com o (supostamente) verdadeiras, e a con­
traposição a ele não é mais possível. A Idéia Absoluta, o princípio último do
sistema hegeliano, precisaria realizar ambos os momentos, contendo em si
tanto o processo crítico quanto a exigência de uma plenificação do sistema
das categorias, o que é im possível. A realização da Idéia é sua autodissolu-
ção. Isso não significa que H egel tenha realizado efetivamente o que preten­
dia - pois um saber absoluto é, diante de tudo o que conhecem os sobre o pró­
prio conhecimento humano, inviável - , mas significa que, se o empreendi­
mento pudesse ser realizado, ele teria de ser inconsistente.
Hegel, portanto, não realiza propriamente um m odelo alternativo ao fún-
dacionalismo. N o sistema hegeliano o fundamento absoluto é o fim desde
sempre predeterminado pelo processo, o que levará, na Ciência da Lógica, ao
impasse mencionado e, na Filosofia da História, a uma concepção de progres­

6 Só podemos concordar com V. Hõste, quando afirma enfaticamente: “[...] que Hegel (com
Fichte c Schelling) é o mais radical apriorista da História da Filosofia, isto é, do ponto de
vista filológico, evidente [...]” (1988, p. 80, n. 50).

Olhar além do fundamento 25


so sem retrocessos possíveis na marcha do espírito pelo mundo.7 Em Hegel o
problema do com eço é transmudado no enigma do fim.

B oa c ircu larid a d e na h erm en ê u tica filo só fica


Analisem os novamente o resultado da universalização do criticismo. Se
toda crítica inicia de pressupostos, então a auto-aplicação do criticismo pres­
supõe a possibilidade de revisão desses mesm os pressupostos. Logo, o conhe­
cimento absoluto ou incondicionado e ao mesmo tempo crítico é impossível,
o que vim os na abordagem do finalismo hegeliano. O que não significa a ade­
são ao ceticismo: a dúvida generalizada, aplicada de uma vez a toda e qual­
quer sentença, inviabiliza qualquer apelo a pressupostos, o que desemboca em
uma posição dubitativa arbitrária ou dogmática. Mas pelo menos duas ques­
tões permanecem sem resposta. Se sentenças somente podem estar ancoradas
em outras sentenças e o sistema de nossas convicções é autofundante, então
com o evitar a má circularidade? E, por outro lado, sendo a linguagem um sis­
tema autárquico, estamos inevitavelmente reféns do idealismo, seja idealismo
subjetivo (tudo o que temos são apenas nossas próprias palavras (se isso for
de todo m odo possível)) ou intersubjetivo (tudo o que temos são as palavras
compartilhadas em uma comunidade de falantes)?
U m debate com a hermenêutica filosófica de H.-G. Gadamer fornecerá
argumentos para responder à primeira das questões e deixará explícitos pro­
blemas só passíveis de resolução mediante a superação do idealismo inerente
à própria hermenêutica. Para a hermenêutica filosófica conhecer é compreen­
der. A compreensão se dá na linguagem. N asce daí a primeira tese de Gada­
mer: a linguagem é autárquica. Não podemos buscar em qualquer fator alheio
à linguagem os elementos necessários para efetivar o conhecimento. Se a rea­
lização da compreensão verdadeira dependesse da afirmação de uma relação
de correspondência entre linguagem e algum elemento a ela extem o, o encon­
tro da verdade seria im possível. A compreensão correta não resulta da com ­
paração entre sentença e fato, e sim do estabelecimento da coerência entre o
todo e as partes na imanência da linguagem: “O acordo de todas as singulari­
dades com o todo é o critério para a correta com preensão. A ausência do
acordo significa o fracasso da compreensão” (1990, p. 296).
Como compreender, nesse contexto, a dialética do todo e das partes? Ca­
da indivíduo que participa dos diálogos em uma comunidade é a p a rte em
questão. Já o todo deve ser considerado a totalidade de sentido enraizada na
história da própria comunidade (quando a história de mais de uma comunida­
de está em jogo pode ocorrer a fu são de horizontes, o alargamento de hori­

7 “Enquanto a Providência de Vico, mais falível, é obrigada de quando em quando a voltar ao


início para pôr-se à prova de novo, o espírito universal hegeliano procede infalivelmente por
seu caminho, seguro de si, sem necessidade de olhar para trás” (Bobbio, 1991, p. 172).

26 Eduardo Luft
zontes restritos em uma totalidade mais abrangente). Temos uma situação
singular: a totalidade de sentido funda-se na fala dos indivíduos, pois resulta
do diálogo concreto a própria constituição do sentido partilhado; mas também
ao inverso, pois cada indivíduo entra em diálogo pressupondo uma totalidade
de sentido previamente dada. Dirá Gadamer: “A antecipação de sentido, na
qual o todo é afirmado, vem a ser explicitamente compreendida na medida em
que as partes, que se determinam a partir do todo, determinam, por sua vez, o
próprio todo” (W M , p. 296). A autarquia da linguagem conduz à circularida­
de da compreensão.
A dialética fundante/fundado solapa as premissas do fundacionalismo
clássico, com o aliás já havia ocorrido com Hegel. Todavia, Gadamer radica­
liza o processo de superação do pensamento tradicional, recusando a noção
hegeliana do saber absoluto e inaugurando uma perspectiva só agora franca­
mente antifundacionalista. Papel decisivo nesse contexto desempenha a tese
da finitude imanente da compreensão. A compreensão resulta de um processo
- a dialética entre o todo e as partes - banhado no tempo histórico. N isso re­
side a novidade introduzida por Gadamer, seguindo as pegadas de M. Hei-
degger em Sein im d Zeit, no movimento circular já aventado por H egel.8
D evem os destacar sobretudo a concepção não-linear do tempo histórico
introduzida por Gadamer. A compreensão não se dá orientada pela noção de
um fim último do diálogo, nem no sentido de um esgotamento (a im possibili­
dade de continuidade de qualquer diálogo) nem no sentido de um acabamento
(o encontro de um acordo definitivo entre os que dialogam). Pressupor uma
tal noção de fim seria introduzir, na outra ponta da cadeia do discurso, a idéia
de um início absoluto da compreensão. D esse modo, teríamos de pressupor,
ao início e ao fim, um momento onde não haveria mais nada a compreender.
Introduziríamos a noção insustentável de um com eço e um fim absolutos da
atividade de compreensão, o que é, do ponto de vista de quem já desde sem ­
pre está inserido na atividade de compreensão, uma impossibilidade. Gada­
mer quer justamente superar o saber incondicionado proposto por H egel, ou
seja, o m odelo segundo o qual a problematicidade do com eço pode ser “re­
solvida” na plenificação do fim: “[...] a hermenêutica não pode conhecer
qualquer p roblem a do com eço, com o a lógica hegeliana conhece o problema
do com eço da ciência. O problema do com eço, seja posto onde for, é na ver­
dade um problema do fim. [...] Sob a pressuposição do saber infinito, a pres­
suposição da dialética especulativa, isso pode conduzir ao seguinte problema,
por princípio insolúvel: com o que devem os começar” (Gadamer, 1990, p.
476).
A finitude gadameriana está sustentada na própria estrutura do m ovimen­
to circular da compreensão: nenhum acordo, estabelecido por esta ou aquela

Para a explicitação dos vinculos do pensamento gadamcriano com a tradição dialética platô-
nico-hegeliana, cf. C.L.S. de Almeida (2000).

Olhar além do fundamento 27


comunidade neste ou naquele momento histórico, pode ser entendido com o
definitivo. D esse m odo o círculo da compreensão abre-se a sempre novas
possibilidades de realização da coerência, e o sabido põe-se novamente em
risco. Ser finito significa estar na imanência de um processo dialógico inaca­
bado, inesgotável - significa estar orientado não para a idéia de um acaba­
mento do diálogo, mas para o próprio movimento do compreender e para a
sempre renovada tarefa da coerência. A hermenêutica deixa de estar orientada
pela noção de um fim, e, solapando os fundamentos da dialética hegeliana,
pode mirar além do fundamento em geral.
D esse modo superamos a objeção de má circularidade. Comumente en­
tendemos por circular o argumento que tem por conclusão uma sentença já
contida entre as premissas. O argumento pressupõe de início o que deveria ser
provado pelo próprio argumento. A má circularidade é causada pela iteração
ou repetição do mesmo. Não se trata de uma falha lógica, pois um argumento
tautológico do tipo “Se p, então p; p; então, p” é, muito pelo contrário, uma
verdade lógica. O argumento iterativo é rejeitado por razões pragmáticas e
não-lógicas: ele não é capaz de realizar o objetivo primordial de um diálogo
frutífero no contexto da busca do conhecimento, ou seja, ele não fom ece no­
vas informações. M esm o no contexto da atividade crítica, o que esperamos de
nosso adversário é a abertura a possíveis m odificações de suas convicções e
não a mera reiteração de sentenças que já sabemos por ele aceitas. A o estabe­
lecer o m ovimento circular da compreensão com o um m ovimento aberto a
possiveis m odificações, porque condicionado por suposições não-
dogmatizadas, Gadamer transforma a má circularidade da iteração eterna do
lógico na dialética hegeliana em uma boa circularidade, embora o m odelo co-
erencialista transmitido por H egel permaneça vivo na hermenêutica filosófica.

Im p asses do idealism o in tersu b jetivo


Mas não oferecem os ainda a resposta à segunda questão anteriormente
tematizada: tudo o que temos são palavras? Tendo em vista a tese geral da au­
tarquia da linguagem e o célebre lema gadameriano - "Sein, das verstanden
werden kann, ist Sprache" (1990, p. 478) - , podem os afirmar que a herme­
nêutica filosófica somente reconhece a presença de um mundo mediado lin-
güisticamente. A ontologia gadameriana é ontologia subjetivista, com o o é a
teoria kantiana dos fenômenos. Mas, ao contrário desta, a hermenêutica pôde
superar de vez o idealismo subjetivo em um idealismo intersubjetivo: diferen­
temente dos fenômenos da consciência, núcleo especulativo das m etafísicas
modernas, o mundo da linguagem é desde sempre um ambiente compartilha­
do por uma comunidade de indivíduos. O problema do idealismo em suas va­
riadas vertentes e, especificamente, da posição gadameriana, diz respeito ao
não-esclarecim ento de uma questão crucial: por que há em geral um mundo

28 Eduardo Luft
de objetos, ou, dito de outra forma, por que nos movemos no mundo fazendo
uso da linguagem teórica?
Traduzindo-a à linguagem do idealismo fichteano, poderíamos expressar
a questão da seguinte forma: por que há em geral natureza? A natureza é
compreendida por Fichte com o um subsistema no todo da subjetividade, um
dos modos de configuração do próprio eu universal. Mas por que a subjetivi­
dade se autodiferencia em um eu conhecido - o eu-objeto - e um eu conhece­
dor - o eu-sujeito? Qual a gênese em mim mesmo dessa sensação de estar di­
ante de uma esfera de objetos que não fazem parte da minha própria subjeti­
vidade, m esm o se sustentarmos a idéia de que tal sensação seja, ao fim, ilusó­
ria? Ainda assim reside a sensação: qual a sua proveniência? Fichte poderia
argüir que a gênese de todas as nossas representações é o princípio da auto-
consciência. Todo o ato de conhecer é um movimento em direção ao autoco-
nhecimento, e para que a autoconsciência possa se realizar é imprescindível a
mediação de uma consciência de objetos. Logo, a consciência de objetos tem
de ser produzida - sendo com ela produzida toda sensação de uma esfera de
objetos posta diante de nós - para a realização plena da autoconsciência (e,
ao final, para Fichte, um movimento na direção da auto-realização do eu co ­
mo sujeito livre). Como ela não pode ser pressuposta anteriormente à ativida­
de do próprio eu, a consciência de objetos deve ser produzida pelo eu com o
condição para a realização da autoconsciência. Ocorre que a situação é exa­
tamente inversa: por ser a autoconsciência im possível sem o acompanhamen­
to da consciência de objetos, um idealismo centrado na noção de autocons­
ciência não pode responder à pergunta pela gênese da consciência de objetos,
antes a pressupõe com o dada.
N ão é hora para analisarmos a fundo o idealismo fichteano, mas um pro­
blema equivalente podem os encontrar na hermenêutica filosófica. D ois con­
ceitos são decisivos para o estabelecimento da noção de “objetividade” em
Gadamer, Welt e Sache. O mundo gadameriano é mundo de sentido. M esm o o
que consideramos o mundo de objetos é apenas uma das dim ensões de uma
realidade constituída lingüisticamente. Podemos dizer que a linguagem assu­
me em Gadamer o papel que o eu desempenhava no idealismo fichteano. O
importante é que, por ser constituído lingüisticamente, o mundo não aparece
ao homem com o uma totalidade fixa e imutável, mas com o o processo cir­
cular da dialética do todo e da parte, com o vim os anteriormente, uma realida­
de passível de assumir novas configurações, embora as mudanças não sejam
jamais arbitrárias. N isso o mundo humano (Welt) se distingue do m eio am­
biente (Um welt) dos animais: “Animais podem abandonar o seu m eio ambien­
te e vagar por toda a terra sem, desse modo, destacar-se de sua relação com o
meio am biente. A o contrário, para os homens a elevação sobre o mundo é
elevação p a ra o mundo e não significa um abandono do m eio ambiente mas o

Olhar além do fundamento 29


estabelecimento de uma nova posição frente a ele, um comportamento livre,
distanciado, cuja realização é sempre lingüística” (Gadamer, 1990, p. 448).
A abertura do mundo a novas configurações possíveis, núcleo da liberda­
de humana, possibilita o distanciamento que, por sua vez, permite a realiza­
ção do discurso teórico, objetificante: “Da relação da linguagem ao mundo
segue a sua objetividade [Sachlichkeit: a sua propriedade de referir-se a co i­
sas], O que vem à linguagem são estados de coisa. Uma coisa que se compor­
ta desse ou daquele modo - nisso reside o reconhecimento da alteridade inde­
pendente, que pressupõe a distância de quem fala com relação à coisa” (Ga­
damer, 1990, p. 449). Embora a configuração do mundo possa ser alterada, a
nossa relação com o mundo não é arbitrária, pois o interesse pela coisa m es­
ma limita o campo de interpretações possíveis: “[...] no interior dessa multi­
plicidade do ‘opinável’, ou seja, daquilo que o leitor considera com sentido e,
portanto, pode esperar, nem tudo é possível [...]. A tarefa herm enêutica p r o ­
cede ela mesma de uma indagação objetiva [sachliche F ragestellung], e é
desde sempre co-determinada por essa tomada de posição” (Gadamer, 1990,
p. 273). O interesse pela coisa mesma revela-se, de um lado, com o o reconhe­
cimento de configurações de sentido já estabelecidas - o sentido de um texto
que se deve interpretar - , de outro com o a exigência do acordo (a coerência
entre o todo e as partes) na interpretação.
Todavia, uma ontologia centrada em uma filosofia da linguagem não p o­
de dar conta da pergunta: por que temos ou devem os ter o interesse pela coisa
mesma? Se a linguagem tem por característica decisiva a possibilidade de
inaugurar novas interpretações, o seu caráter criativo, imaginativo, por que
precisaríamos restringir e limitar as pretensões da imaginação preocupando-se
com a coisa ela mesma, com a tarefa da objetividade? Podem os diferenciar o
discurso teórico por seu caráter heterônomo, o interesse pela coisa mesma
(nas palavras de Gadamer): uma sentença não apenas mostra a si mesma mas
revela algo outro; ou mais: a sentença mostra algo outro e se oculta. O inte­
resse de quem propõe algo com o “Há um livro à sua frente”, não é chamar .
atenção do ouvinte para a própria sentença, mas para o livro à sua frente. Mas
nem todo o discurso se realiza desse modo. Há linguagens que podem perfei­
tamente se bastar na função de mera exposição ou auto-exposição: um poema
pode apenas mostrar-se a si mesmo, e mostrar-se de múltiplas formas dispen­
sando certas exigências cruciais ao discurso teórico com o a manutenção do
caráter unívoco dos conceitos utilizados na argumentação, com o o próprio
Gadamer salienta: “A afirmação poética é especulativa não por figurar uma
realidade já existente, não por reproduzir o aspecto da espécie na ordem da
essência, mas por apresentar o novo aspecto de um novo mundo no m eio
imaginário da invenção poética” (1990, p. 475).
Uma ontologia centrada na autarquia última da linguagem não pode res­
ponder a esta dúvida crucial, pois não podemos explicar a gênese da lingua­

30 Eduardo Luft
gem teórica a partir de linguagens diversas, com o a linguagem poética, e não
podemos explicar a sua gênese a partir dela mesma, pois todo discurso teórico
se realiza desde sempre sob a égide do interesse pela coisa mesma e, especifi­
camente no contexto da filosofia gadameriana, sob a égide da pressuposição
do mundo com o totalidade de sentido. Como bem viu Gadamer, “não apenas
o mundo é mundo enquanto vem à linguagem - a linguagem tem sua existên­
cia própria apenas enquanto apresenta nela mesma o mundo” (1990, p. 447).
Há um déficit de refiexividade na hermenêutica filosófica porque, a partir do
recurso único e exclusivo à própria linguagem com o fundo ontológico de toda
concepção de mundo, é im possível explicar os pressupostos mais básicos da
própria linguagem enquanto discurso teórico.

P en sam en to e ser
O déficit de refiexividade detectado na hermenêutica filosófica chama a
atenção a um outro problema crucial: as teorias da verdade centradas inte­
gralmente na idéia da coerência na imanência do sistema da linguagem (teóri­
ca) não são capazes de dar conta de elementos importantes da noção clássica
de verdade com o correspondência. Se não podemos falar de uma relação en­
tre sentença e qualquer evento extralingüístico, não podem os tampouco aban­
donar a função de apresentação própria ao discurso teórico, e o m odelo coe-
rencial intralingüístico é incapaz de dar conta do problema. Tudo o que se
exige no m odelo coerencialista mencionado é avaliar a coerência entre as sen­
tenças que com põem um sistema de convicções, mas nada se diz sobre a fun­
ção do sistema de convicções com o um todo enquanto discurso teórico. Po­
demos pensar em um sistema de afirmações baseado no m esm o m odelo coe­
rencialista, supondo-se cada uma das suas sentenças coerentes entre si, e, con­
tudo, com função eminentemente estética: o seu intuito é somente expor-se a
si mesmo.
D evem os, portanto, recuperar o diálogo com Popper no sentido de res­
guardar o elemento produtivo do m odelo correspondencialista sem cair em
seus mencionados erros. Isso é possível se considerarmos o sistema da lin­
guagem teórica não com o sistema em última instância autárquico, mas com o
subsistema de sistemas mais abrangentes que, ao fim, devem ser tratados no
contexto de uma teoria geral da inteligibilidade, uma teoria da razão objetiva
que pervade e dota de sentido a totalidade do que é, e faz do universo um
cosmos, um mundo ordenado. É preciso superar o idealismo hermenêutico em
uma nova m etafísica concebida com o cosm ologia crítica,9 uma abordagem
apenas implícita no esboço a ser realizado nas notas que seguem.

9 Quer dizer, uma verdadeira cosmologia, uma teoria do universo como um todo e, portanto,
uma teoria que envolva também a tcmatizaçüo do próprio sujeito cognoscente.

Olhar além do fundamento 31


1. A primeira questão que surge é: a construção de uma nova metafísica
não exigiria o im possível, ou seja, o acesso cognitivo do filósofo a uma posi­
ção exterior ao sistema da linguagem? A pergunta tem dois aspectos que pre­
cisam ser diferenciados. Ela pode se desdobrar na seguinte questão: se a lin­
guagem é essencial ao conhecimento humano, poderíamos conhecer algo sem
o uso da linguagem? Ou nesta outra: podemos falar de algo que não seja lin­
guagem? A resposta negativa à primeira questão não implica uma resposta
igual à segunda. Não podem os explicar a gênese e a função da linguagem teó­
rica sem a pressuposição da vigência ontológica de eventos não-lingüísticos,
mas não precisamos o apelo a qualquer conhecimento não-lingüístico para
explicitar tais pressupostos: a linguagem têm vigência epistêmica universalís-
sima, sendo inteiramente autárquica do ponto de vista teórico, tendo contudo
vigência ontológica restrita - é apenas um dos sistemas no sistema do universo.
2. Tendo em vista o modelo coerencialista até aqui esboçado e a necessi­
dade de preservação da função de apresentação das concepções tradicionais
acerca do que vem a ser “verdade”, podemos rever a definição de conheci­
mento estabelecida por Platão, propondo a seguinte definição alternativa:
“Conhecimento (teórico) é opinião coerente em um sistema de sentenças de­
cidido afirmativamente após reatualização crítica”. As sentenças têm função
de apresentação e a decisão do sistema significa seu fechamento provisório, a
sua aceitação com o convicção teórica norteadora das presentes e futuras
ações práticas até o momento em que novas convicções venham a exigir a sua
alteração. A decisão do sistema de sentenças tem um impacto sobre as nossas
ações no ambiente que, embora somente possa ser tematizado teoricamente na
imanência da linguagem, extrapola os limites de nosso mundo lingüística e in-
tersubjetivamente mediado. O que está em jogo, daqui para frente, não é ape­
nas a coerência ou não de nossa visão de mundo, mas a compatibilidade ou
não entre nossas convicções teóricas e nossas condutas socialm ente incorpo­
radas e, por último, a estabilidade ou não de nossas condutas levando-se em
conta sua inserção no meio ambiente mais amplo. O discurso teórico só pode
ser adequadamente compreendido quando percebemos a necessidade de sua
extensão em um discurso prático acompanhado por ações efetivas (um ponto
salientado sobretudo por Fichte, embora em outros termos, condizentes com
seu sistema de idealismo subjetivo).
3. A tematização teórica de todo o com plexo movimento que se estabele­
ce entre os três níveis de coerência - intrateórico, entre o sistema de sentenças
e as condutas, e entre estas e o ambiente - é toda realizada na imanência do
sistema da linguagem, pois, com o já dissem os anteriormente, a linguagem é
um sistema epistemicamente autárquico. Mas a sua realização efetiva se dá
também em âmbitos mais abrangentes do m eio ambiente, sendo o sistema da
linguagem apenas um dos subsistemas no todo do universo (objetivo): o m o­
vimento para a coerência é um processo intrínseco não apenas ao sistema da

32 Eduardo Luft
linguagem, mas a todos os eventos no universo que se apresentam com o sis­
temas ou instâncias de sistem as.10 “Coerência” vem do latim "cohaerentia ”,
significando “união”, “ligação”, “proporção das partes com o todo”. Por sua
vez, o conceito “sistema” tem a sua origem no grego: system a consta da jun­
ção do advérbio syn - “todos juntos”, “juntamente” - com o verbo hístem í -
“colocar”. “Sistem a” significa, portanto, “colocar junto”, “dar unidade”. Co­
mo vemos, os termos “coerência” e “sistema” têm, em sua origem etim ológi-
ca, significados muito próximos. Um sistema cognitivo ou sistema teórico
(sistema de linguagem teórica) é o conjunto de relações que unifica sentenças
em um todo. Um sistema prático (sistema ético) é o conjunto de relações que
unifica as condutas de vários indivíduos em suas relações mútuas e com o
ambiente, as normas por todos pressupostas e suas convicções teóricas.
4. Estas relações unificadoras e estáveis são justamente a manifestação
da coerência inerente ao sistema. Se e quando estas relações forem perturba­
das, a unidade do sistema estará em risco. Tudo o que permanece, permanece
em um sistema, e a perturbação das relações que constituem um dado sistema
implica a sua instabilidade e tendência à dissolução. Poderíamos dizer que
não há propriamente coerência mas a coerência está sendo constantemente
reatualizada no interior de cada sistema estável.
5. D e tudo o que foi dito se segue que não podem os saber de fato se o
presente esboço, e m esm o a possível teoria abrangente que se possa dele de­
rivar, é verdadeiro. D o ponto de vista epistêm ico, nos m ovem os praticamente
às cegas. E, ainda assim, nos movemos.

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10 Para maior desenvolvimento deste tema, cf. E. Luft (2003).

Olhar além do fundamento 33


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34 Eduardo Luft
2

A (des)estruturação das estruturas


e a (re)estruturação dos sistemas:
uma revisão epistemológica crítica

Léo Peixoto Rodrigues

------------ ♦-------------

Intro d u ção
M esm o a noção de sistema tendo despontado - e de certa forma se de­
senvolvido - dentro das ciências em geral antes da noção de estrutura, foi o
termo estrutura (e seus derivativos) que ganhou uma “coesa” adesão, nas Ci­
ências Sociais, além da lingüística, com o movimento, no final da primeira
metade e início da segunda do século passado. A s noções de estrutura e de
sistema têm sido utilizadas, muitas vezes, principalmente até o início dos anos
70 recém-passados, de forma sinônima. N ão raramente, a noção de sistema é
utilizada nos textos estruturalistas para reforçar, complementar e até m esm o
explicar o próprio conceito de estrutura. Piaget, por exem plo, em O estrutura-
lismo (1979), no item das definições, argumenta: “Em uma primeira aproxi­
mação, uma estrutura é um sistem a de transformações que comporta leis en­
quanto sistem as..." (grifos nossos) (p. 8). Bastide (1971), em sua Introdução,
que visa mostrar as diferentes acepções do termo estrutura diz: “A noção de
estrutura poderia, então, ser assim definida: Sistema integrado, de m odo que
a mudança produzida num elemento provoca uma mudança nos outros ele­
mentos [...] Mas esse sistema (o que distingue da organização) está ‘latente’
nos objetos” (grifos nossos) (p. 9). D o mesmo m odo, o termo estrutura tam­
bém tem sido, muitas vezes, utilizado para o entendimento da noção ou do
conceito de sistema; isso vai depender da época, da disciplina e do tipo enfo­
que - estrutural ou sistêm ico - adotado no texto. Capra (1990), ao se referir
sobre as características de um sistema, assevera: “U m outro aspecto importan­
te dos sistemas é a sua natureza intrinsecamente dinâmica. Suas formas não
são estruturas rígidas, mas manifestações flexíveis, embora estáveis de pro­
cessos subjacentes” (grifos nossos) (p. 261).

A (des)estruturação das estruturas e a (re)estruturação dos sistemas 35


Se a definição de estrutura constitui numa tarefa complicada de ser exe­
cutada, mesmo durante o período em que este termo esteve em franca evidência,
a definição de sistema oferece dificuldades ainda maiores. A utilização do ter­
mo, como uma noção-chave para as explicações científicas, parece ser tão anti­
go quanto a própria ciência: na Física, poder-se-ia falar em sistema solar, mode­
lo de sistema atômico, sistema de forças; na Biologia, o termo representava uma
coleção, um conjunto articulado de componentes: sistema classificatório dos se­
res vivos (filogenia/taxiologia), sistema respiratório; o mesmo ocorreu na Socio­
logia, em que sistema social passou a ser freqüentemente utilizado para denotar
conjuntos articulados ou transformáveis, (mutáveis), tais como grupos sociais,
instituições diversas, incluindo o próprio Estado, etc. Morin (1987) afirma que
“todos os objetos-chave da Física, da Biologia, da Sociologia, da Astronomia;
átomos, moléculas, células, organismos, sociedades, astros e galáxias consti­
tuem sistemas” (p. 96). D e fato, numa primeira análise, parece que a noção de
sistema traduz qualquer coleção, cujas partes se articulam em um todo nclo-
estático. Sua trajetória, porém, e os revezes epistemológicos que sofreu em dife­
rentes contextos, não se apresentam assim tão simples.
Estrutura e sistema, com o conceitos, métodos, e fundamentações episte­
m ológicas têm apresentado muitas semelhanças durante os seus usos e aplica­
ções em diferentes esforços teóricos, de forma interdisciplinar. A comensura-
bilidade de tais conceitos não parece depender desta ou daquela disciplina: é
transdisciplinar. A s suas capacidades em dar carne a esqueletos teóricos (vi­
ce-versa) também não respeitam - pelo menos não têm respeitado - as fron­
teiras da divisão disciplinar do conhecimento científico. Sistema e estrutura
chegaram a ser utilizados, sem qualquer constrangimento ou crítica, com o si­
nônimos. Saussure, por exemplo, embora nunca tivesse falado em estrutura,
mas, sim, em sistema, desencadeou um movimento denominado de estrutura-
lismo, inclusive nas Ciências Sociais. Piaget (1979) utilizava o conceito de
sistema com o complemento do conceito de estrutura e vice-versa; se o objeti­
vo fosse o de dar mais mobilidade à estrutura, se falava em sistema, cujo con­
ceito, por sua própria origem clássica, com o veremos, parecia apresentar
maior sinergia entre os seus elementos, quando comparados às estruturas. De
forma análoga, quando se desejava dar maior estática a qualquer organização,
falava-se em estrutura, cujos componentes transmitiam a idéia de perenidade,
constância, maior coagulação, coalescência.
Este estado de comensurabilidade conceituai, de forma tão simplificada e
direta, realizada por algumas disciplinas do conhecimento científico, durou
até a década de 70. A partir de então, a idéia de sistema —que já vinha se tor­
nando mais refinada desde o surgimento da cibernética e do concom itante
aparecimento da nação de auto-organização - apresentou-se mais complexa,
incorporando incrementos epistem ológicos, muitas vezes aparentemente pa­
radoxais, com o as noções de sistema aberto e de sistemas auto-referidos,

36 Léo Peixoto Rodrigues


oriundos tanto da Biologia com o dos estudos cibem eticistas numa intrincada
cooperação interdisciplinar.
Este artigo, portanto, está estruturado em dois momentos muito distintos.
No primeiro, trata-se de um esforço revisional dos conceitos de estrutura.
Nossa abordagem está estruturada sempre a partir de uma perspectiva episte-
m ológica, sobre o termo estrutura e seus derivativos (estruturalismo e pós-
estruturalismo). Advertimos, porém, que o tema é amplo, com muitas contro­
vérsias e, assim sendo, não pretendemos ter, nem de longe, esgotado um estu­
do sobre estrutura, estruturalismo e pós-estruturalismo.
N o segundo momento, buscamos igualmente realizar uma revisão crítica
do conceito de sistema desenvolvido, principalmente, durante o século XX,
no âmbito da Ciência. Buscamos apresentar as diferentes acepções do concei­
to, cujas características inovadoras desenvolvidas a partir dos estudos ciber-
neticistas e, posteriormente, com a revolucionária noção de autopoiésis, pro­
piciaram o desenvolvim ento de uma teoria sistêmica: a Sistemática.
O objetivo de tal revisão é o de oferecer ao leitor uma introdução aos
principais aspectos do debate que tem sido travado, durante o século X X , so ­
bre o termo estrutura e, sobretudo, sobre o termo sistema (origens, congruên­
cias, discrepâncias, m odificações sofridas ao longo do tempo, expectativas
quanto à fertilidade explicativa e transformações de enfoques epistem ológi­
cos). M uitos teóricos contemporâneos, centralmente vinculados às ciências
humanas, não acompanharam a “evolução epistem ológica” interdisciplinar da
teoria sistêmica. É neste sentido que este artigo pretende contribuir, oferecen-
do-lhes um “mapa”, para posterior aprofundamento do conceito.
Concluímos o artigo, na forma de um terceiro m omento, buscando carac­
terizar o pós-estruturalismo com o uma corrente de pensamento polissêm ica
que se caracteriza, por vezes, mais num “anti” estruturalismo que propriamen­
te num “p ós”. Sobretudo, destacamos a total fragmentação do conceito de es­
trutura no pós-estruturalismo, ressaltando que o termo “pós-estruturalismo”
constitui-se num rótulo que abarca os mais diversos esforços contemporâneos
de reflexão teórica. Em contraposição, buscamos demonstrar que o conceito
de sistema, diferentemente do conceito de estrutura, converge para um maior
consenso no que se refere aos incrementos epistem ológicos importantes tais
com o a idéia de clausura operacional, auto-referência, auto-organização e au­
topoiésis, renovando o fôlego da reflexão teórica nas ciências e, em parti­
cular, nas ciências sociais.

O te rm o estrutura: m éto d o ou nova ab o rd ag em


ep is te m o ló g ic a nas ciên cias sociais
O uso do termo estrutura, pouco freqüente na segunda metade do século
XIX, embora constante do prefácio à C rítica da econom ia p o lítica , de Marx,
publicado em 1859, foi de fato consagrado com o formalização teórica, no

A (des)estruturação das estruturas e a (re)estruturaçào dos sistemas 37


âmbito da Sociologia, com Durkheim, em As regras do método sociológico,
de 1895. Conforme Bastide1 (1971), num primeiro momento foi Spencer
quem empregou o termo, abrindo o caminho que vai da B iologia à Sociologi-
a, com a construção analógica entre um organismo biológico e um organismo
social. M esm o salientando as diferenças existentes entre um e outro domínio,
Spencer não deixa de tomar da B iologia a expressão “Estrutura Social” m es­
mo estando ela comprometida com o pensamento organicista. Esta é a “trilha”
que vai nos levar a Durkheim e, mais tarde, a Radcliffe-Brown quanto à utili­
zação do termo. Para Lévi-Strauss (1971, p. 165), porém, “não há filiação di­
reta desde Spencer e Morgan até as investigações estruturais contemporâneas.
D esde 1830, até a época atual, a palavra ‘estrutura’ conhece uma difusão ex­
traordinária, mas tem sido mais redescoberta que transmitida”; e acrescenta:
A s pesquisas estru tu rais e a palavra e strutura aparecem quase ao m esm o tem po,
m as não nos m esm os autores. S pencer (cerca d e '1860-1865) seria o pai e sq u eci­
do do term o estrutura, afirm a G urvitch nos ‘C ahiers Intem ationaux de S ociologi-
e ’. R adcliffe-B row n tam bém diz o m esm o; entre os precursores cita M ontesqui-
eu, S pencer e D urkheim : rem onta, portanto, m ais atrás que G urvitch (ao sistem a
d e M ontesquieu). M as se na distinção que S pencer faz entre a estru tu ra e a fun­
ção no organism o social, distinção esta tirada da B iologia, e ncontram os a pala­
vra, o objeto está ausente. Q uase sim ultaneam ente, existe o objeto, m as não a pa­
lavra em L ew is M organ, nos seus estudos sobre os iroqueses [...] em que ele faz
um a análise estru tu ralista em pregando ainda o term o sistem a (L évi-S trauss,
1971, p. 165).

O fato de o termo estrutura poder significar, ao mesmo tempo, um conjun­


to, as partes desse conjunto e as relações dessas partes entre si, explica o porquê
da fácil adoção do termo tanto por anatomistas (do grego ana = separação, corte
e tomo = parte) como pelos gramáticos. Na lingüística, o uso do termo estrutura,
segundo Fages (1969), apareceu no primeiro congresso dos filólogos eslavos,
em Praga, em 1929, num manifesto anônimo, cujos três principais inspiradores
foram os lingüistas russos Jakobson, Karcevsky e Trubetzkoy.
Durante a breve história do estruturalismo, o termo estrutura desencade­
ou muitos debates, concordâncias e discordâncias em tom o de seu significa­
do. Para Saint-Semin (1998), que recupera o significado latino do termo es­
trutura, é a partir da raiz struo, construir, que se forma a structura, estrutura, e
o strues, acúmulo. Estructura, em latim, tem o sentido primeiro de arquitetu­
ra, de construção arquitetônica; sendo esse significado estendido, posterior­
mente, à gramática e à retórica no sentido de construção de textos e de senti­
dos, através do uso da palavra.

1 Bastide (1971) foi o organizador da publicação Os Usos e Sentidos do Termo "Estrutura",


fruto de um Colóquio realizado entre 10 e 12 de janeiro de 1959, em Paris, para tratar justa­
mente, como se refere o Coordenador, “do esclarecimento, do enquadramento, e se possível
também de uma síntese do termo estrutura” (Bastide, 1971, p. 2).

38 Léo Peixoto Rodrigues


Estrutura sempre tem sugerido a idéia contrária à de caos; tem remetido à
percepção de referência, de organização, de ordem, de forma. A forma é um
“primeiro estado” de ordem geométrica e, neste sentido, toda a extensão de
matéria (em termos da Física), seja ela de que substância for, se não se revelar
totalmente amorfa, apresentará uma primeira estrutura arquitetônica. Pouillon
(1967, p. 3), em Uma tentativa de definição, artigo esse publicado na revista
Les Temps M oden ies,' numa edição dedicada “aos problemas do estrutura-
lismo”, afirma:
E strutura é, antes dc m ais, a m aneira com o o edifício está construído, depois, por
extensão, o m odo com o as partes de um todo q u alq u er [...] são ‘disp o sta s’ entre
si. O dicio n ário de L alande acrescenta a idéia da solidariedade d o s elem entos,
m as ela já está c ontida na definição precedente: o edifício d esm oronar-se-ia, o
discurso não teria sentido se as partes de um todo não fossem solidárias. A estru­
tu ra é, p ortanto, aquilo que nos revela a análise in te m a de um a totalidade: ele­
m entos, relações entre elem entos e o arranjo, o sistem a dessas m esm as relações.

Merquior (1991) reconhece a primazia etim ológica do sentido arquitetô­


nico do termo estrutura, mas aponta, também, a importância do seu sentido
orgânico, destacando que nessa acepção é importante a idéia de vinculação
entre componentes, com o nos corpos e em outras formas vivas. Lembra, ain­
da, o seu sentido matemático, em que o uso do termo estrutura “significa um
conjunto de relações abstratas definidas de m odo formal e subentende um
modelo válido para vários conteúdos diferentes, sendo estes ditos isomórficos
exatamente porque compartilham da mesma estrutura” (Merquior, 1991, p. 19).
A partir dessas definições, o conceito, tem apresentado a noção de orga­
nização entre seus elem entos e, decorrente disso, uma possibilidade hierár­
quica entre esses elementos; ou seja, aqueles elem entos que podem se revelar
como essenciais e aqueles que não comprometem o cerne estrutural. Isso
também nos revela o caráter positivo da concepção estrutural; positivism o,
esse, que está na própria origem do m ovimento estruturalista, com o a antro­
pologia de Lévi-Strauss. A o mencionar essa positividade, Piaget (1979, p. 8)
faz referência ao “ideal de inteligibilidade intrínseca fundada no postulado de
que uma estrutura se basta a si própria e não requer, para ser apreendida, o
recurso a todas as espécies de elem entos estranhos à sua natureza”; Piaget
(1979, p. 10) chega mesmo a falar em leis: “Uma estrutura é, por certo for­
mada de elem entos, mas estes estão subordinados às leis que caracterizam o
sistema [estrutural] com o tal.” Outro aspecto marcante que denota o funda­
mento positivo da concepção estrutural nas teses de Lévi-Strauss é a busca
por características gerais em diferentes estruturas, visando à possibilidade de

2 Trata-se do número 246, publicado em novembro de 1966 (Paris), e foi integralmente tradu­
zido para o português, pela Zahar (Rio de Janeiro) em 1968. Nossa citação, entretanto, refe-
re-se ao mesmo artigo publicado em uma antologia de textos teóricos sobre o estruturalismo,
ver Coelho, E. P. 1967.

A (des)estruturação das estruturas e a (re)estruturação dos sistemas 39


generalizações - mesmo que muitas vezes precárias - através da identificação
de regularidades (leis) inerentes a diferentes estruturas; e isto ele irá buscar
realizar através da lingüística, com o ciência positiva, aplicada às Ciências So­
ciais. Em A ntropologia estrutural de 1970, ele diz:

N o c o njunto das C iências Sociais ao qual pcrtcncc indiscutivelm ente, a lingüísti­


ca ocupa, entretanto, um lugar excepcional: ela não c um a ciência social com o as
outras, m as a que, de há m uito, realizou os m aiores progressos: a única sem d ú ­
vida, que pode reiv in d icar o nom e de ciência e que chegou, ao m esm o tem po, a
form ular um m étodo positivo e a con h ecer a natureza dos fatos subm etidos à sua
análise (L évi-S trauss, 1970, p. 47).

Da estru tu ra ao estru tu ralism o


Foi o lingüista dinamarquês Louis Hjelmslev quem reivindicou o empre­
go do termo estruturalism o, derivando-o da já conhecida palavra estrutura,
com o fundamento epistem ológico e método de abordagem científica. Segun­
do D osse (1993), em H istória do estruturalism o, Hjelmslev fundou, em 1939,
a revista A cta Lingüística, em que constava um primeiro artigo referindo-se à
lingüística estrutural. A partir de então, o termo passou a ser utilizado, cada
vez mais, na academia, lugar em que seus significados se proliferaram. Esse
polissemantismo, não raramente, gerava a necessidade de a academia buscar
entre seus pares uma univocidade para o termo. Lefebvre (1967, p. 81, grifo
do autor), ao se referir sobre o conceito diz: “Vários colóquios e numerosos
seminários não conseguiram conferir ao conceito estrutura um sentido preci­
so. N o entanto, a palavra tom ou-se de uso corrente. Não há nenhum artigo,
nenhuma exposição, que tocando de perto ou de longe as Ciências Humanas,
não o contenha várias vezes.”
Como bem salienta Saint-Semin (1998, p. 89), “há um descompasso de
mais de dois milênios entre a palavra ‘estruturalismo’, surgida na década de
20 e 30, e o vocábulo ‘estrutura’ que existe desde a Antigüidade”. Para ele, o
termo estruturalismo passa a ser utilizado, com o um neologism o, justamente
quando nas décadas de 20 e 30, a noção de estrutura, existente com o “séries
independentes” em outras áreas do conhecimento científico, entram em conta­
to umas com as outras.3 Saint-Semin (1998, p. 89), menciona ainda que:
“desses encontros muito contingentes, iria emergir a esperança, ou a ilusão,

3 Gostaríamos de advertir que o estudo das estruturas, denominado de estruturalismo a partir


do século XX, foi desenvolvido em diferentes disciplinas do conhecimento científico (Ma­
temática, Física, Biologia, Psicologia Economia, Lingüística, Filosofia, etc), de certa forma
seu amplo desenvolvimento tem a ver com a crise do mecanicismo newtoniano no final do
século XIX e início do XX. Neste trabalho, entretanto, nos ocupamos de alguns aspectos re­
ferentes ao estruturalismo nas Ciências Sociais. Sobre uma abordagem estruturalista inter­
disciplinar ver principalmente: Bastide (1971); Bertalanffy (1975); Piaget (1979); Dosse
(1993); Mari (1995); Saint-Semin (1998).

40 Léo Peixoto Rodrigues


de uma teoria geral da descrição, classificação e explicação das estruturas, à
qual se daria o nome de ‘estruturalismo’.”
Com relação ao “estatuto do estruturalismo” no escopo de uma taxiono-
rnia epistem ológica parece, com exceção da lingüística moderna, em geral,
que mesmo os seus apoiadores e defensores mais argutos não sabem bem co­
mo classificá-lo. Piaget (1979, p. 111) argumenta que: “[...] se a história do
estruturalismo científico já é longa, a lição, a se tirar daí, é que ele não pode­
ria se tratar de uma doutrina ou de uma filosofia [...] mas essencialmente de
um método, com tudo que este termo implica.” Giddens (1999, p. 282), na es­
teira de Piaget, lembra-nos de que: “Foucault, Lacan, Althusser e Derrida di­
vergem radicalmente tanto entre si quanto das idéias capitais de Saussure e de
Lévi-Strauss [não havendo, assim], a homogeneidade necessária para se falar
de uma tradição filosófica [...]”. Já Merquior (1991, p. 13, grifo do autor),
neste mesmo sentido, comenta que “o estruturalismo, apesar da semelhança
entre as teorias dos seus fundadores, não é na verdade um m ovimento unifi­
cado, muito menos uma escola. E, mais exatamente, um estilo de pensam ento
no lado humanístico do conhecimento”. Barthes (1967, p. 19-20, grifo do au­
tor), um dos mais importantes estruturalistas afirma que o: “[estruturalismo]
não é uma escola nem mesmo um movimento [...] porque a maior parte dos
autores [...] não se sentem ligados entre si por uma solidariedade de doutrina
ou de combate. [...] o estruturalismo é essencialmente uma atividade
O fato de o estruturalismo não ser considerado, com o apontamos, nem fi­
losofia, nem doutrina, nem escola, tampouco movimento, cabe questionar, en­
tão: qual a finalidade do sufixo “ism o” à raiz estrutura? Parece que a resposta
está na própria origem do termo. E consenso o fato de que o termo estrutura­
lismo e outros conceitos, forjados pela teoria lingüística, foram, a partir de en­
tão, apropriados por diferentes disciplinas, dando ao termo estrutura um sufi­
xo conotativo de escola. N este sentido, Broekman (1979, p. 10) argumenta:

A atividade estruturalista se apóia na idéia de que os mencionados conceitos


[língua, palavra, significante, significado, código] e outros análogos que têm sido
tomados da lingüística, não apenas servem aos problemas lingüísticos, mas tam­
bém a questões filosóficas, literárias, sociais e epistemológicas [...]

D eleuze (1982, p. 271-272, grifo do autor), nesta mesma linha, argumen-


tativa vê a legitimidade do emprego dessa sufixação dada a diversidade de
domínios e de teóricos que utilizam o termo; diz ele:

Cada um encontra problemas, métodos, soluções que têm relações de analogia,


como que participando de um ar livre do tempo, de um espírito do tempo, mas
que se mede com as descobertas e criações singulares de cada um desses domí­
nios. As palavras em -ismos, neste sentido, são perfeitamente fundadas.

O movimento estruturalista ganhou adesão a partir da Segunda Grande


Guerra, atingindo o seu apogeu entre as décadas de 50 e 60, do século recém-

A (des)estruturação das estruturas e a (re)estruturação dos sistemas 41


passado. Foi Claude Lévi-Strauss quem, influenciado por Roman Jakobson,
de maneira muito surpreendente, transpôs o fundamento epistem ológico da
perspectiva estrutural, desenvolvida no seio da lingüística m odema, para o es­
tudo da Antropologia. A necessidade de superar as explicações funcionalistas
dadas aos estudos sobre o incesto (M alinowski), por um lado, e, as m etodolo­
gias excessivam ente descritivas e empiristas (Radcliffe-Brown), por outro la­
do, fizeram com que Lévi-Strauss, em As estruturas elem entares cio p a ren tes­
co (1982) e, em A ntropologia Estrutural (1970), afirmasse que a estrutura
não era o “núcleo do objeto”, mas, sim, “o sistema de relações latentes no ob­
jeto”; ou seja, segundo as suas palavras:
N o estudo dos problem as de parentesco [...] o sociólogo sc vê num a situação
form alm ente sem elhante à do lingüista fonólogo: com o os fonem as, os term os de
p arentesco são elem entos de significação; com o eles só adquirem esta sig n ifica­
ção sob co n d içõ es de se integrarem em sistem as; os “sistem as de p aren tesco ”
(L évi-S trauss, 1970, p. 51).

D essa forma, para Lévi-Strauss, o mesmo sistema de relações poderia ser


transposto para o conhecimento de outros objetos distintos em outras áreas do
conhecimento, possibilitando a unificação de disciplinas afins. Com isto, as
Ciências Sociais, diferentemente do que tem sido afirmado a respeito do con­
ceito de estrutura, têm adotado uma perspectiva - mais que m etodológica -
epistem ológica para os seus estudos. Com a adoção do estruturalismo foi bus­
cado, ao mesmo tempo, um maior estatuto de cientificidade para as ciências
humanas, no que diz respeito à possibilidade de generalização dos fenômenos
sociais e escapar das explicações funcionalistas que ficavam circunscritas a
fenômenos particulares.
O nascimento e a incorporação do paradigma4 estruturalista, com o possi­
bilidade epistêm ico-m etodológica para investigação no âmbito das Ciências
Sociais, têm a mesma data do nascimento da antropologia estruturalista, com
o trabalho de Lévi-Strauss, As Estruturas elem entares do parentesco (1982).
M esmo tendo Lévi-Strauss filiado-se a uma orientação durkheimiana, sua de­
rivação dá-se pelo fato de que a perspectiva estrutural em Durkheim privile­
giava um escopo teórico historicista em detrimento de qualquer pesquisa et­
nográfica. A partir de sua interação intelectual com Roman Jakobson, em N o ­
va York, Lévi-Strauss, entra em contato com os trabalhos fonológicos que
buscavam conhecer além dos simples fenômenos lingüísticos conscientes; ou
seja, pretendiam apreendê-los em suas relações intemas, estruturais. Com a
utilização do estruturalismo lingüístico no âmbito dos fenômenos das Ciên­
cias Sociais, Lévi-Strauss, vê a possibilidade de uma revolução nesta discipli­
na; diz ele: “A Fonologia não pode deixar de desempenhar, perante as Ciên­

4 Seria, no sentido kuhniano, exagerado o uso do termo para expressar o estruturalismo?

42 Léo Peixoto Rodrigues


cias Sociais, o mesmo papel renovador que a física nuclear, por exem plo, de­
sempenhou no conjunto das ciências exatas” (1970, p. 49). Acrescenta, ainda:
E o ilustre m estre da fonologia, N. T rubetzkoy5, quem nos fornecerá a resp o sta a
esta questão [...] a fonologia passa do estudo dos fenôm enos lingüísticos co n s­
cientes ao estudo de sua infra-estrutura inconsciente; ela se recusa a tratar os ter­
m os com o entidades independentes, tom ando ao contrário, com o base de suas
análises as relações entre os term os; introduz a noção de sistem a (L évi-Strauss,
1970, p. 49-50).

O caráter epistêm ico-m etodológico estrutural decalcado da teoria lingüís­


tica para o estudo da Antropologia teve com o princípio a própria inovação
teórica naquela disciplina realizada por Ferdinand de Saussure e apresentada,
inicialmente, em seus cursos de lingüística geral, ministrados na Universidade
de Genebra, entre 1906 e 1911. Saussure colocava em relevo a inovadora e
fundamental distinção entre langue (língua) e p a ro le (fala). Para ele, a língua
poderia ser entendida com o uma “instituição social”, ao passo que a fala
constituía-se em um ato de cada indivíduo, cujos arranjos (atos de fala) não
poderiam fugir dessa “estruturação social”. A língua constituía-se, assim, em
um sistema6 organizado por sinais e à lingüística, com o ciência, caberia en­
carregar-se do estudo da lógica “interna” desses signos. N a perspectiva antro­
pológica estruturalista, o significado poderia desempenhar o papel de estrutu­
ra e o significante o de sentido produzido por essa (ou nessa) estrutura.
O estruturalismo, porém, não floresce nas Ciências Sociais somente co ­
mo uma possibilidade epistêm ico-m etodológica capaz de satisfazer, pelo m e­
nos em parte, o “desejo de cientificidade” das ciências humanas. Esse m ovi­
mento, quase que genuinamente francês, emerge também com o uma feroz crí­
tica ao existencialism o, tanto de cunho humanista com o historicista. Em ver­
dade, o estruturalismo é um movimento de contraposição ao cogito cartesia-
no, numa versão contemporânea, com o salientou José Guilherme Merquior
(1991); ou seja, em sua derivação fen om en ológica de Edmund H usserl, o
existencialismo partiu de uma doutrina da consciência em que a primazia da
existência - em termos de Ciências Sociais, a primazia do sujeito - deveria
triunfar sobre qualquer outra perspectiva filosófica e epistem ológica.7 Mer­
quior (1991, p. 15), nesta mesma linha, comenta:

5 Lévi-Strauss está se referindo ao artigo de Trubetzkoy La phonologie actualle publicado em


Psychologie du langage em Paris, 1933.
6 Segundo Fages (1969, p. 20, grifo do autor) “[...] Ferdinand de Saussure nunca falou em ‘es­
trutura’. Contentou-se com o termo sistema para designar as regras internas segundo as quais
uma língua se organiza” .
7 É neste sentido que argumentamos que o estruturalismo vai além de uma mera perspectiva
metodológica. Quando contraposto ao existencialismo - e Lévi-Strauss é um grande critico
de Sartre; ver “O pensamento selvagem”, Cap. 9: História e Dialética (1989) - o estrutura­
lismo parece reivindicar mais um estatuto epistemológico que propriamente metodológico.

A (des)estruturação das estruturas e a (re)estruturação dos sistemas 43


O ra, os d o is prin cip ais objetivos do estruturalism o, ou de um a crítica da ideolo­
g ia ex istencialista, seriam ju stam e n te os tem as conjuntos do h um anism o c histo-
ricism o; o estruturalism o firm ou-se no m eio intelectual com o um anti-
h um anism o e um anti-historicism o.

E stru tu ralism o : p recisan d o um p ou co m ais o co n ceito


É dessa forma que, buscando situar a gênese daquilo que optamos cha­
mar por m ovimento estruturalista, destacando, de um lado, o sentido etim oló-
gico do vocábulo estrutura e, de outro, a incorporação teórica deste vocábulo
pela Lingüística e posteriormente pela Antropologia de Lévi-Strauss e, logo
em seguida, em outras áreas, por outros destacados estruturalistas tais como:
Barthes, Lacan, Althusser, Foucault (em seus primeiros escritos), etc., cabe
perguntar: afinal, o que é o estruturalismo?
O estruturalismo, em sua perspectiva epistem ológica, rejeita ao mesmo
tempo o atomismo, ou seja uma compreensão dos fenômenos a partir de uma
perspectiva puramente analítica stricto sensu, e uma teoria da ação (uma filo­
sofia existencialista). O estruturalismo privilegia uma visão de unidade, uma
perspectiva de um todo integrado, interdependente, com as características
acrescidas por Piaget (1979) de auto-regulação e transformação. Na perspec­
tiva lingüística, alguma “coisa” seria o significante, algo perceptível, visível,
audível; o significado seria parte desta “coisa” escondida, imperceptível (pelo
m enos à primeira vista) e o signo, o todo formado pelo significante e pelo
significado. Portanto, o estruturalismo percebe a realidade com o composta
por estruturas (todo interconectado) que se apresentam “no mundo” em forma
de signos ou, ainda, sím bolos.8 Para os estruturalistas (a maioria deles) co ­
nhecer a realidade seria conhecer os signos, as estruturas; ou seja, as suas in-
ter-relações e articulações entre significado (leis estruturais) e significante (as
manifestações “perceptíveis” e possivelm ente aparentes) da estrutura.9
Deleuze (1982), num artigo de 1967, buscando responder à pergunta: o que
é o estruturalismo, argumenta que a pergunta deveria ser outra; qual seja: em
que se p o d e reconhecer o estruturalism o(?). N esse artigo, ele parece ir mais
além na explicação estruturalista, argumentando que é com razão que o estrutu­
ralismo tenha nascido na lingüística não apenas saussuriana, mas também nas
escolas de M oscou e de Praga e que o estruturalismo adentra outras disciplinas
do conhecimento científico porque estrutura é linguagem-, nas suas palavras:

Conforme Fages (1969, p. 189-190) Símbolo é “o signo no qual as relações entre significan-
tes e significados encerram uma certa analogia. Signo no qual o significado ultrapassa o sig­
nificante, donde o uso freqüente do termo para caracterizar a atividade literária” .
9 Para Lacan - estruturalista porque concebia o inconsciente como uma linguagem estruturada
- , o significado constituía-se em algo hermeticamente fechado, impossível de ser acessado
de forma denotativa, ou seja, pela linguagem objetiva.

44 Léo Peixoto Rodrigues


N a verdade só há estrutura naquilo que é linguagem , nem que seja um a lingua­
gem esotérica ou m esm o não-verbal. Só há estrutura no inconsciente na m edida
em que o inconsciente fala e é linguagem . Só há estrutura nos corpos na m edida
em que se ju lg a q u e os corpos falam com um a linguagem que é a dos sintom as.
As p róprias coisas só tem estrutura na m edida em que m antem um discurso silen ­
cioso, que é a linguagem dos signos. E ntão a questão ‘Q ue é e stru tu ra lism o ? ’
transform a-se cm: cm que se reconhecem aqueles que cham am os de estruturalis-
tas? (D elcuzc, 1982, p. 272).

D eleuze determina alguns critérios para o reconhecimento do estrutura­


lismo. Em seu primeiro critério, o sim bólico, ele argumenta que todos nós es­
tamos acostumados com duas categorias de percepção e de entendimento: o
real e o im aginário e que todo o nosso pensamento movimenta-se, dialetica-
mente, nessas duas dimensões. O real, de certa maneira, contrapõe-se ao ima­
ginário, mas que, em certos movimentos criadores, tais com o o romantismo,
simbolismo, surrealismo, etc., transcendentemente, o real e o imaginário se
interpenetram, se mesclam, se unem. M esm o assim, continua existindo a opo­
sição e a complementaridade entre o real e o imaginário. Para ele, portanto, o
primeiro critério do estruturalismo é justamente a descoberta e o reconheci­
mento de uma terceira ordem , de uma terceira possibilidade diferente tanto
do real com o do imaginário', o reino do sim bólico.
O sim bólico, na perspectiva de D eleuze (1982), não seria nem o real nem
o imaginário. Ele argumenta que o lingüista descobre um elemento que se co ­
loca além da palavra em realidade e em suas partes sonoras; além das ima­
gens e dos conceitos associados às palavras; argumenta que o lingüista estru­
turalista identificou um componente de natureza completamente diferente: o
objeto estrutural. Em suas palavras:

[...] em Lacan, e tam bém em outros estruturalistas, o sim bólico com o elem ento da
estrutura está no princípio de um a gênese: a estrutura se encarna nas realidades e
nas im agens segundo séries determ ináveis; m ais ainda, ela se constitui encarnando-
se, m as não deriva delas, sendo m ais profundas que elas, subsolo para todos os so­
los do real com o para todos os céus da im aginação (D eleuze, 1982, p. 274).

Acrescenta:

O ra o estruturalism o é agressivo: q u ando d en u n cia o d esconhecim ento geral d e s­


ta últim a categ o ria sim bólica, para além do im aginário e do real. O ra ele é inter-
pretativo: q u a n d o renova nossa interpretação das obras a p artir d esta categoria, e
preten d e d esc o b rir um pon to original onde se faz a linguagem , elaboram -se as
obras, unem -se as idéias e as ações. R om antism o, sim bolism o, m as tam bém freu-
dism o, m arxism o, to m am -se, assim , o objeto de reinterpretações pro fu n d as (D e­
leuze, 1982, p. 275).

Para esse autor é mais fácil apontar aquilo que o sim bólico não é do que
propriamente no que vem a se constituir. O sim bólico não é redutível à ordem

A (des)estruturação das estruturas e a (re)estruturação dos sistemas 45


do real ou à ordem do imaginário; não apresenta forma sensível, ou pode ser
reduzido a uma figura da imaginação; tampouco corresponde a uma essência,
uma vez que em si mesmo, com o produto de uma combinação de elementos
contingentes, não apresenta forma, significação, representação, conteúdo, rea­
lidade empírica ou um m odelo funcional hipotético.

A s d iferen tes acep çõ es do co n ceito de sistem a


e resp ectivo s en fo q u es ep istem o ló g ico s nos co n textos
d e seus des en vo lvim en to s
Se o conceito de sistema apresenta uma história repleta de meandros e
afluentes durante o desenvolvimento da ciência moderna, não menos sinuoso
tem sido ele na história da filosofia moderna. Inegavelmente, falar em ciência
moderna e em filosofia moderna é falar em lados distintos de uma mesma
moeda, sobretudo quando nos aproximamos do campo epistem ológico. D es­
cartes desenvolveu, embora não completamente, uma idéia de sistema. O sis­
tema cartesiano fundamentou-se na própria certeza do sujeito que conhece a
si mesmo e que se expressa no surn cogitans. Uma vez que o princípio que
não admite nenhum outro fundamento anterior é o “sou pensante”: a idéia de
sistema está posta na radicalização máxima da idéia de fundamento.
Em Kant, na D ialética transcendental a idéia de sistema constituía-se
em “um todo de conhecimento ordenado segundo princípios e cuja arquitetura
era definida com o a arte de construir sistemas” (Ferrater, 1967, p. 687). Em
Kant, a própria razão humana, com o dimensão arquitetônica, pode ser vista
com o um sistema a p rio ri que encerra em si a idéia de ordem. A idéia de or­
dem está contida em Kant, para quem o conceito determina a p rio ri não só o
conteúdo, mas também as posições recíprocas das partes, de m odo que se po­
de obter uma unidade organizada (articulatio) e não um mero agregado (co a -
cervatio), é possível, inclusive, obter-se uma ordem que se desenvolve de
dentro para fora (per intus susceptionem ) e não somente mediantes sucessivas
agregações (per oppositionem ). Assim, da mesma forma que em Descartes, a
autoconsciência se apresenta com o um ponto axial do sistema, uma vez que
se trata sempre de se pôr o sistem a de sab er ante o sa b er com o sistem a. Em
Hegel, temos uma distinção radical da idéia de sistema; uma vez que para es­
se pensador somente o total (totalidade) é verdadeiro, sendo o parcial o “m o­
mento falso da verdade”, a verdade passa a se constituir apenas na articulação
de cada momento com o todo; e é o todo mesmo quem expressaria o sistema
dessas articulações. E por isso que, a partir de Hegel, foi possível falar, com
pleno sentido, em “sistema de filosofia” (Ferrater, 1967; Krings, 1979).
Segundo Krings (1979) a palavra grega aú oir||ia deriva da palavra
(TuvioxT](ii que significa a com posição, o estar composto. Em sua primeira
significação, são possíveis duas interpretações, quais sejam: (a) qualquer

46 Léo Peixoto Rodrigues


combinação de quaisquer elementos, desde um simples amontoado até a co ­
nexão entre as partes; e, (b) a ação de incluir cada elemento particular em
uma determinada ordem de um todo qualquer, cujo local dessa inclusão já es­
teja predeterminado. N ão raramente defrontamo-nos com a ausência da defi­
nição do conceito de sistema utilizado em diferentes disciplinas. Também os
múltiplos usos do termo não se referem à mesma idéia, à mesma significação,
ao mesmo conceito. Krings (1979) acusa que:
[...] não reina qualquer unidade na teoria da ciência que reflete sobre eles [os siste­
mas], em conseqüência pode-se duvidar se em geral, além dessas diferenças, é pos­
sível indicar-se algo com um que justifique o nom e de ‘sistem a’ em todos os casos
[...] C ham a a atenção, porém , que, apesar da m ultiplicidade das diferenças estabele­
cidas no conceito de sistem a, apesar do esboço e análise de sistem as e do trabalho
com eles, o próprio conceito que está com o base não é subm etido à reflexão.

Observação semelhante, em momento distinto, fez Morin (1987) ao afir­


mar que o termo sistema é uma espécie de “palavra-envelope” uma vez que
parece aderir totalmente à matéria que o constitui. Aponta a Sociologia com o
a ciência que “usa e abusa” do termo, mas que nunca o elucida adequadamen­
te: “explica a sociedade com o sistema sem saber explicar o que é um sistema”
(Morin, 1987, p. 98). Argumenta, ainda, que von Bertalanffy, durante os anos
50, elaborou uma Teoria Geral dos Sistemas, mas que embora essa teoria - da
qual falaremos mais adiante - tenha apresentado aspectos “radicalmente ino­
vadores omitiu aprofundar o seu próprio fundamento e refletir sobre o concei­
to de sistema. A ssim o trabalho preliminar está ainda por ser feito: interrogar
a idéia de sistema” (Morin, 1987, p. 98).
A idéia de m ovimento, de processo associada à noção de sistema é uma
acepção contemporânea do termo. Foi o biólogo Bertalanffy (1975, 1987,
1992) quem, na década de 30, enfatizou o caráter p ro cessu a l do pensamento
sistêmico. N o entanto, a noção sistêmica com o movimento ordenado, ritma­
do, pro cessu al, parece sempre ter estado latente na intenção do uso deste ter­
mo. N ão foi por acaso que a perspectiva sistemática ou o(s) “pensamento(s)
sistêm ico(s)”, nas ciências, iniciou pelas Ciências Naturais - sistemática
(classificação) vegetal e animal, sistema newtoniano, sistema orgânico, etc. O
termo, em sua origem grega, traz em si a idéia de ordem, de colocar em or­
dem, de classificar: à natureza subjaz uma ordem, já afirmavam os positivis­
tas. N este caso, a noção de sistema parece comportar uma conotação idêntica
à do termo grego physis, não apenas em seu sentido simplificado de natureza,
mas na plenitude e importância com que os pré-socráticos o utilizavam; ou se­
ja, com o “fonte originária das coisas”; ou ainda, “aquilo a partir do qual se
desenvolve e pelo qual se renova constantemente o seu desenvolvim ento”.
Sobre o termo ph ysis, Bom heim (1989, p. 12, grifo nosso) acrescenta: “A pa­
lavra physis indica aquilo que por si brota, se abre, emerge, o desabrochar
que surge de si pró p rio neste desdobramento, pondo-se no manifesto. Trata-

A (des)estruturação das estruturas e a (re)estruturação dos sistemas 47


se, pois, de um conceito que nada tem de çstático, que se caracteriza por uma
dinamicidade profunda, genética”.
Também não foi por acaso que a noção de movimento, de processo, sali­
entada no termo sistema, por Bertalanffy, tenha sido, posteriormente, incorpo­
rada e mais amplamente desenvolvida pelos cibemeticistas, a partir da década
de 40. Foi com von Bertalanffy que o termo sistema passou a ser objeto de
maior reflexão e a apresentar diferentes classificações (aberto, fechado, auto-
organizado, autopoiético, etc.). Podemos mesmo falar em uma teoria sistêmi­
ca, a partir da década de 30. Foi a antevisão de uma Epistemologia Complexa
proposta por von Bertalanffy, que, nas primeiras décadas do século XX, são
constatadas e apresentadas as “lacunas mecanicistas da B iologia vigente”.
Posteriormente, os cibemeticistas, incorporando essa perspectiva de com ple­
xidade, conseguiram construir os fundamentos de uma teoria da informação e
da mensagem. Poderíamos afirmar que o chamado “N ovo pensamento sistê­
m ico”, desenvolvido a partir dos anos 70, com o conceito de autopoiósis,
construído por Maturana e Varela (1979), teve as suas raízes primárias no
conceito de sistema aberto e na Teoria geral dos sistem as, cujo idealizador
principal fora von Bertalanffy (1975).

D esd o b ram en to s ep istem o ló g ico s do con ceito


de sistem a: da física à biologia o rg an ísm ica
Um dos pontos de partida para a discussão do conceito de sistema, a par­
tir de uma perspectiva científica, pode ser a noção implícita no conceito de
entropia, formulada pela Física, em meados do século XIX. Para tanto, é im­
portante que compreendamos o significado da Segunda Lei da Termodinâmi­
ca clássica, esboçada pelo matemático francês Sadi Camot, em 1824 e, poste­
riormente, aprimorada pelo físico e matemático alemão, R udolf Clausius, em
1850, formulador do conceito de entropia. Para não entrarmos numa defini­
ção matemática desse conceito, da forma com o foi proposta por seus ideali-
zadores, por não ser necessária para o nosso propósito, apresentamos o co­
mentário realizado por Capra (1996, p. 153):

C lausius definiu a en tropia gerada num processo térm ico com o a energia d issip a ­
da div id id a p ela tem peratura na qual o processo ocorre. D e acordo com a seg u n ­
da lei, essa en tro p ia se m antém aum entando à m edida que o processo térm ico
continua; a energia d issip ad a nunca pode ser recuperada; e esse sentido em d ire­
ção a um a e n tro p ia sem pre crescente define a flecha do tem po.

Isso significa dizer que todo sistem a físic o isolado ou “fech a d o ” (má­
quinas térmicas, com o denominou Carnot) tenderá espontaneamente a dissi­
par calor de forma sempre crescente. Esta dissipação de energia (calor) do
sistema passou a se r associada com desordem do sistem a. A quantidade de

48 Léo Peixoto Rodrigues


desordem; ou seja, da dissipação de energia foi denominada entropia. Portanto,
a entropia (desordem) de um sistema físico, teoricamente fechado, sempre seria
progressiva e, com esta progressão, haveria uma relação de proporcionalidade
com o grau de desordem do sistema. Esta desordem, inexorável a qualquer sis­
tema (por isto, lei), definiria também uma chamada flecha (imaginária) de tem­
po apontada sempre para um mesmo sentido. Isto significaria dizer que o siste­
ma aumentaria a sua desordem em função de um tempo que “passa”.
A noção temporal descrita em termos de “flecha do tempo”; indicaria a
irreversibilidade de todo o processo entrópico sistêm ico. Em termos macros­
cópicos o conceito de entropia poderia ser estendido ao universo que, conce­
bido com o um sistema, tenderia a um irreversível processo de desordem con­
tínua ou, com o m encionou Capra (1997, p. 54), “toda a máquina do mundo
está deixando de funcionar, e finalmente acabará parando”. Entretanto, a idéia
de desordem de um sistema, central para o entendimento do significado de
entropia, colocava-se na contram ão da teoria evolucionista clássica e com
seus ulteriores desdobram entos. A questão se colocava da seguinte forma:
como poderia um mundo tender a uma contínua desorganização de forma ir­
reversível, enquanto os seres vivos (sistemas vivos) tendiam a uma evolução,
ou seja, a um aumento de com plexidade lógica e, conseqüentemente, de ordem?
Von Bertalanffy (1975) comenta que mesmo antes da década de 20 já
reivindicava por uma B iologia organísmica10 em detrimento da concepção
mecanicista vigente. Percebia os organismos com o totalidades ou sistemas e
advogava que o principal objetivo das Ciências B iológicas deveria ser a des­
coberta dos princípios da organização dos seres vivos em seus diversos ní­
veis, não apenas na dimensão físico-química dos fenômenos vitais. A percep­
ção de organismo com o sistema," entretanto, colidia com a visão de sistema
proposta pela termodinâmica; a fórmula encontrada por Bertalanffy, para a
resolução deste paradoxo teórico, foi a de propor que os organismos vivos
fossem considerados sistem as a bertos12 e, portanto, que não poderiam ser
descritos nos termos da termodinâmica clássica. Nas suas palavras:
C om preendem os im ediatam ente porém que pode haver sistem as em e q u ilíb rio no
organism o, m as que o organism o e nquanto tal não pode ser co n sid erad o um sis­
tem a em e q uilíbrio. O o rg a n ism o não é um sistem a fe c h a d o , m a s aberto [grifos

10 No sentido empregado por Bertalanffy (1975), constitui-se num neologismo, inclusive man­
tido no português. O termo constante em dicionários de Biologia e de Filosofia é “organi-
cismo”, cujo sentido em que está sendo utilizado tanto por Bertalanffy, como por nós, é o da
doutrina biológica que rejeita a explicação dos fenômenos biológicos meramente mecanicis­
ta. Entretanto não adere ao vitalismo; ou seja, a admissão de um “principio vital” ; uma força
que não pode ser reduzida aos processos fisico-químicos dos organismos.
11 A formalização matemática da concepção sistêmica, em Bertalanffy, pode ser vista em: Ber­
talanffy (1975, p. 82-122).
12 A formalização físico-química dos processos sistêmicos abertos, em Bertalanffy, pode ser
vista em: Bertalanffy (1975, p. 166-189).

A (des)estruturação das estruturas e a (re)estruturação dos sistemas 49


nossos]. D izem os que um sistem a é “ fechado” se nenhum m aterial entra nele ou
sai dele. E cham ado d e ‘a b e rto ’ se h á im portação e exportação de m atéria (B erta­
lanffy. 1975, p. 167).

A noção de abertura do sistema resolveria, teoricamente, a contradição en­


tre a visão sistêmica da Termodinâmica, aceita como lei e provada matematica­
mente, e a visão dos organismos vivos como sistemas. Porém, na visão de Ber­
talanffy, tais organismos manter-se-iam, sistematicamente, trocando matéria e
energia com o meio ambiente, mantendo-se como um sistema “quase em equilí­
brio”, o que não causaria problemas com a idéia de evolução. A intuição de
Bertalanffy, quanto à percepção sistêmica dos organismos vivos foi muito valio­
sa. Porém, a noção de organismos vivos como sistemas abertos, trouxe (e tem
trazido) muita confusão para importantes avanços epistemológicos, no âmbito
do pensamento sistêmico que estavam sendo gerados no interior de outras ciên­
cias. Ludwig von Bertalanffy, publicou a sua obra mais conhecida, a Teoria g e­
ral dos sistemas, em 1968. Ela era composta, segundo o seu próprio prefácio,
por diferentes capítulos escritos e publicados em momentos distintos que com­
preendem as décadas de 40 a 60. Em 1943, data “oficial” do nascimento da Ci­
bernética, como veremos, o problema do “fechamento” ou da “abertura” do sis­
tema ficou resolvido com o importante conceito de retroalim entação. Em se­
guida retomaremos a esse conceito, para explicar, de forma pormenorizada,
porque a idéia de um sistema aberto é imprópria.
A teoria Geral dos Sistemas, proposta por Bertalanffy, constitui-se, no nos­
so entender, de uma visão precoce da necessidade de uma epistemologia da
complexidade atualmente tão propalada por Morin (1984, 1987, 1999, 2000).
Entretanto, apresenta um fio condutor que parte da contestação do mecanicismo
e do vitalismo biológico em defesa da abordagem organísmica, em que advoga
em favor de uma perspectiva sistêmica para a análise dos organismos vivos. O
próprio Bertalanffy (1987, p. 33) reconhece que os seus textos escritos, na dé­
cada de 20, constituem-se no “gérmen do que mais tarde seria conhecido como
teoria geral dos sistemas”. Se a concepção de uma teoria geral dos sistemas tem
início nos primeiros estudos organísmicos, a teoria dos sistemas abertos de Ber­
talanffy não prosperou. O caminho na análise sistêmica parece ter tomado um
outro rumo com a Cibernética, que incorporou elementos da Fisiologia. Berta­
lanffy, com o ele mesmo menciona, passou a se preocupar, de fato, com uma te­
oria geral dos sistemas, que envolvesse todos os sistemas, pertencentes a dife­
rentes disciplinas (teoria dos conjuntos, teoria das redes, cibernética, teoria dos
autômatos, teoria dos jogos, etc.). Nas suas palavras:

U m passo nessa direção foi a cham ada teoria dos sistem as abertos e dos estados es­
táveis, que é essencialm ente um a extensão d a físico-quím ica, d a cinética e d a ter­
m odinâm ica convencionais. A conteceu, porém que não pude deter-m e no cam inho
que havia tom ado e assim fui conduzido a um a generalização ainda m ais am pla, a
que dei o nom e de ‘T eoria Geral dos Sistem as.’ Esta idéia rem onta h á m uito tem po

50 Léo Peixoto Rodrigues


atrás. A presentci-a pela prim eira vez em 1937 no Sem inário de Filosofia de C harles
M orris na U niversidade de C hicago (Bertalanffy, 1975, p. 127).

Bertalanffy (1975) afirma que a teoria dos sistemas, num sentido amplo,
deve ter um caráter de ciência e que os motivos que postulam a necessidade de
uma teoria geral dos sistemas podem ser resumidos nos seguintes itens: (a) cons­
truir uma direção contrária ao reducionismo, e generalizar os conceitos científi­
cos; (b) superar a noção clássica de sistema e introduzir, dada a necessidade do
aumento de complexidade do conhecimento, novas categorias analíticas não
contempladas, tais com o organização, autoconservação, direção e teleologia; (c)
superar a perspectiva linear da ciência clássica e introduzir uma perspectiva
complexa; nesse caso, considerando sempre um número crescente de variáveis
implicadas no fenômeno; (d) possibilitar a construção de novos modelos concei­
tuais nas ciências biológicas, sociológicas e psicológicas, e preterir, assim, os
modelos hegemônicos (principalmente o mecanicismo) propostos pela Física;
(e) contemplar modelos isomórficos em diferentes ciências, e ampliar o campo
interdisciplinar da pesquisa e do conhecimento científico.
A perspectiva sistêmica, na teoria dos sistemas de Bertalanffy, sem que
tivesse incorporado a visão desenvolvida pela Cibernética, ficou, então, assim
colocada: se por um lado a termodinâmica concebia os sistemas fisico-
químicos, com o sistemas que não podiam permanecer fechados, pois tendiam
à dissipação contínua, por outro lado, Bertalanffy (1975) trouxe o conceito de
sistemas abertos, para enfocar os organismos vivos (sistemas vivos), uma vez
que estes “trocavam” matéria/energia com o meio e tendiam a manter, por al­
gum tempo, um determinado estado de ordem; com o ele m esm o denominou,
constituíam-se em sistemas “quase-estáveis”.

A cib ern ética e a necessária noção de sistem a


para o seu d es en vo lvim en to
A partir do final da Segunda Guerra Mundial, Norbert W iener desenvol­
via suas pesquisas ligadas à Teoria da Mensagem. Dentro do campo teórico
do estudo da m ensagem encontravam-se temas tais como: a transmissão da
mensagem, o estudo da linguagem e imbricações teóricas entre m ensagem e
transmissão da m ensagem com o forma de controle para o desenvolvim ento de
máquinas e diferentes tipos de autômatos. Tais reflexões estavam intimamente
ligadas aos estudos do sistema nervoso e da Psicologia, e consideravam os re­
centes desenvolvim entos no campo da probabilística, com os trabalhos de
Willard Gibbs (Wiener, 1984). Era necessário, pois, a criação de um nome
para essa nova ciência, que, não obstante ao seu caráter interdisciplinar, tinha
como preocupação com um o desafio de descobrir os m ecanism os neurais sub­
jacentes aos fenômenos mentais e expressá-los em linguagem matemática ex ­
plícita, para a compreensão de com o se estabelecia o controle com unicacio-

A (des)estruturação das estruturas e a (re)estruturação dos sistemas 51


nal. A palavra cibernética tem sua origem no grego: kubernetes, que significa
timoneiro; ou seja, aquele que tem o timão; aquele que pilota, que controla.
Norbert Wiener, filósofo e matemático, formulador do termo, definiu a Ci­
bernética com o a ciência do “controle e da comunicação no animal e na má­
quina”; nas suas palavras:
A té recentem ente, não havia palavra específica para desig n ar este com plexo de
idéias, e, para ab arcar todo o cam po com um único term o, vi-m e forçado a criar
um a. Daí ‘C ibernética, que derivei da palavra grega K ubernetes' ou ‘p ilo to ’ a
m esm a p alavra q u e ev entualm ente derivam os nossa palavra ‘g o v e rn a d o r’. D es­
cobri casualm ente, m ais tarde, que a palavra j á havia sido usada por A m père com
referência à ciência p o lítica, e que fora inserida cm outro contexto, por um c ie n ­
tista polonês; am bos os usos d atavam dos prim órdios do século X IX (W ciner,
1984, p. 15).13

Em outras palavras, e, para utilizar o sentido etimológico do termo criado


por Weiner, poderíamos dizer que quando uma embarcação é naturalmente tira­
da do seu curso, pelo movimento das águas, o timoneiro o corrige, realimen-
tando a embarcação com a informação da rota correta. A neurofisiologia, com o
auxílio da matemática, buscava compreender os movimentos humanos nestes
termos; isto é, num movimento com o braço, o cérebro e o sistema nervoso tro­
cam informação (realimentadas) quanto à trajetória que segue o braço. O siste­
ma nervoso tem de informar o cérebro, para esse corrigir, (re)informando o sis­
tema nervoso, sobre as distorções da rota, considerando aquela mais racional,
apresentada pelo movimento do braço para alcançar um objeto qualquer. A Ci­
bernética tem sob seus pés o solo “fértil” da Guerra, problema semelhante foi
enfrentado para encontrar solução na defesa antiaérea, necessitando o desenvol­
vimento de uma teoria probabilística da predição. Por isso, o objetivo da Ciber­
nética era o de conhecer, através de uma generalização de modelo matemático,
como os sistemas (animais e máquinas) conseguiam estabelecer certo nível de
informação e retroalimentação dessa informação (auto-informação), de forma a
obterem a manutenção de sua homeostase (equilíbrio) - meta do sistema - , co-
locando-se fora do processo entrópico “natural” de dissipação, conforme defen­
dia a Termodinâmica. A o se referir às pretensões da Cibernética, Dupuy (1996,
p. 44) afirma que o seu “projeto teórico, ideológico e técnico moldou a nossa
época com o nenhum outro”; acrescenta:
E la, sem o rdem e sem preo cu p ação de exaustividade, introduz a conceitu ação e o
form alism o ló gico-m atem ático nas ciências do cérebro e d o sistem a nervoso;
concebeu a organização das m áquinas de processam ento de inform ação e lançou os

13 Silva (1974), resgatando o uso clássico do termo, afirma que: “[...] Norbert Wiener exumou
e lançou em circulação [o termo cibernética] com roupagem nova. A palavra cibernética
[foi] usada por Platão, cerca de 26 séculos antes, e, mais tarde, em 1843, por André Ampère,
o famoso físico francês [...] Platão empregou-a no sentido de ‘a ciência utilizada pelo timo­
neiro para pilotar o navio’.”

52 Léo Peixoto Rodrigues


fundam entos da inteligência artificial; produziu a ‘m etaciência’ dos sistem as a qual
deixou sua m arca no conjunto das ciências hum anas e sociais, d a terapia fam iliar, à
antropologia cultural; inspirou fortem ente inovações conceituais na econom ia, na
pesquisa operacional, na teoria da decisão da escolha racional, na teoria dos jogos,
na Sociologia, nas ciências do político c cm m uitas outras disciplinas.

Embora, von Bertalanffy (1975) aponte que a idéia de uma teoria geral dos
sistemas tenha sido, pela primeira vez, introduzida por ele antes mesmo do sur­
gimento da Cibernética e da Engenharia dos sistemas, incluindo campos afins,
foi a Cibernética que de fato deu uma resposta definitiva para o problema da
“abertura” e do “fechamento” do sistema, levantado anteriormente. A Cibernéti­
ca teve sua data de nascimento em 1943, conforme nos relata Latil (1959, p. 8),
“sua certidão de nascimento foi um artigo publicado em 1943, sem que a pala­
vra Cibernética nele figurasse, em Phylosophy o f Science, por Rosenbluetli, W i­
ener e Bigelow, sob o título: Behaviour, purpose and teleology. Jean-Pierre Du-
puy (1996), um dos principais pesquisadores da história da Cibernética, ao se
referir sobre o nascimento dessa disciplina, aponta o surgimento de dois artigos
no ano de 1943, com o os precursores da nova ciência; diz ele: “Estabelecer uma
origem é sempre arbitrário, mas neste caso, menos do que em outros. Neste ano
[de 1943] fasto para a ciência da mente, eram publicados, independentemente,
dois artigos cujos autores, três no caso do primeiro, dois no outro caso, constitu­
irão o núcleo duro do movimento cibernético.” O segundo artigo, a que se refere
Dupuy, intitulava-se A logical calculus o f the ideas immanent in nervous acti-
vity, publicado em 1943, por Warren McCulloch e Walter Pitts, neurocientista e
matemático respectivamente.
A primeira Conferência de M acy14 aconteceu em março de 1946 e o seu
título era F eedback mechanisms and circular cau sai system s in b iological
and so cia l system s; a segunda, aconteceu em outubro do m esm o ano, com o
título Teleological mechanisms an d circular cau sai system s. Foi a partir des­
tas reuniões que o termo feedback, também proposto por Norbert Wiener,
consolidou-se na ciência Cibernética. Esta concepção de retroalimentação,
que eqüivale ao próprio termo cibernética, ambos propostos por Norbert W i­
ener, trouxe à luz a noção de “circularidade alimentativa”; ou seja, “um m e­
canismo que faz retroagir um efeito sobre uma de suas causas e permite, as­
sim, a esse efeito, atingir um fim determinado” (Latil, 1959, p. 6); ou, mais
detalhadamente, com o define Capra: “um laço de realimentação é um arranjo
circular de elem entos ligados por vínculos causais, no qual uma causa inicial
se propaga ao redor das articulações do laço, de m odo que cada elem ento te­

14 Constituíram-se em dez reuniões organizadas pela fundação filantrópica Josiah Macy Jr., de
1946 a 1953, em Nova York (nove delas) e a última em New Jersey, cuja pretensão de seus
idealizadores - matemáticos, lógicos, engenheiros, neurofisiólogos psicólogos, antropólogos,
economistas - era a de fundar a ciência geral do funcionamento da mente. Este grupo fecha­
do foi chamado de Cibernética.

A (des)estruturação das estruturas e a (re)estruturação dos sistemas 53


nha um efeito sobre o seguinte, até que o último ‘realimenta’ o efeito sobre o
primeiro elem ento do ciclo” (Capra, 1996, p. 59).
Os revolucionários conceitos de f e e d b a c k e a u to - o r g a n iz a ç ã o , confun-
dem -se com o próprio nascimento da Cibernética, pois foi no artigo publicado
por Rosenblueth, W iener e B igelow , B e h a v io u r , p u r p o s e a n d te le o lo g y , de
1943, mencionado anteriormente, que está presente uma das primeiras abor­
dagens acerca de sistemas-feedback (realimentação ou retroalimentação).15
Esse artigo não trazia apenas a noção de causalidade circular, mas também
apresentava a realimentação com o um mecanismo essencial para os processos
de hom eostase16 e auto-regulação. Dupuy (1996), revela que W iener e B ige­
low apresentaram a Rosenblueth a possibilidade da construção de uma analo­
gia, entre os processos de retroalimentação existentes nos m ovimentos volun­
tários de um sujeito, e o conceito de defesa antiaérea e que “as reflexões dos
três amigos levaram ao artigo de 1943” (Dupuy, 1996, p. 4 6 ).17
A noção de f e e d b a c k c o n tr o l contém em si a idéia de estabilidade, equi­
líbrio; de circularidade operacional e de manutenção sistêmica. Essa idéia de
estabilidade de um sistema conduz à fundamental noção de p a d r ã o ; padrão
de comportamento ou de um tipo de organização de um determinado sistema.
O fato de um padrão qualquer ser mantido numa unidade sistêmica nos leva,
conseqüentemente, à idéia de (auto)manutenção. Não é por acaso que tanto a
noção de feedback e de auto-organização vieram à tona no mesmo momento,
no mesmo ano e oriundas do mesmo caldo intelectual.
Feedback, retroalimentação ou servomecanismo, termos utilizados na li­
teratura Cibernética, podem ser descritos, genericamente, com o um s is te m a
qualquer (uma máquina mecânica, eletrônica, ou um organismo vivo) em que
a alimentação do sistema, um input, constitua-se em parte da resposta do sis­

15 Esta noção, segundo Idatte (1972, p. 11-12), “fora posta em evidência na Biologia, desde
1867, por dois fisiologistas franceses de origem russa, os irmãos Scyon, numa comunicação
à Academia de Ciências apresentada por Claude Bemard. No ano seguinte, agora no plano
da mecânica, o célebre físico Maxwell publicava uma nota sobre os sistemas de retomo [...]
Já antes disso, em 1810, Watt munira a máquina a vapor com o seu famoso regulador”.
16 Embora o termo homeostase tivesse sido desenvolvido por Cannon (1939) uma década antes,
em seu livro The wisdom o f the body, a noção de retroalimentação não estava presente na
descrição de seus diversos processos bioquímicos. Homeostase, nos termos definidos por
Cannon, traz a idéia de uma adaptação tendo em vista a sua finalidade (uma dimensão teleo-
lógica). Posteriormente, é redefinido de diferentes formas, mas sempre apresentando as no­
ções de adaptação, equilíbrio, reequilíbrio. Weiner (1984, p. 94) elabora e amplia a defini­
ção, afirmando que “o processo pelo qual nós, seres vivos, resistimos ao fluxo geral de cor­
rupção e desintegração [...] em que a vida é uma ilha, aqui e agora, num mundo agonizante”.
Para um exame mais profundo sobre o conceito ver Ashby (1960, p. 58-70), que amplia e
discute o conceito proposto por Cannon.
17 Dupuy (1996, p. 46-47) adverte, entretanto, que o exame detalhado do artigo mencionado,
surpreende “pelo acanhamento da terminologia, que resulta do fato de que as categorias de
informação, de comunicação e de organização ainda não haviam sido esclarecidas. O feed­
back é descrito como um retomo de energia do output sobre o input

54 Léo Peixoto Rodrigues


tema. Em outras palavras, um output ou uma resposta, será convertido pelo
próprio sistema numa nova alimentação, ou um novo input18. Posteriormente
o conceito de feedback foi melhor precisado por Norbert Wiener, em seu li­
vro T h e h w n a n u s e o f h u m a n b e in g s de 1948.19 N esse trabalho, após apresen­
tar alguns exem plos de m ecanismos (máquinas com o elevador e apontador de
artilharia), W iener (1984, p. 24, grifo do au tor)20 define a retroalimentação
como sendo:
[...] o controle dc m áquinas com base no seu desem penho efetivo em vez de no
seu desem p en h o esperado c conhecido com o realim en ta çã o (feedback) e e nvol­
ve m em bros sensórios que são acionados por m em bros m otores e desem penham
a função de d e tecto res ou m onitores; isto é, de elem entos que indicam um d e ­
sem penho. A função desses m ecanism os é o de c o n tro lar a ten d ên cia m ecânica
para a desorganização; em outras palavras, de p ro d u z ir um a inversão tem porária
e local da direção norm al da entropia.

O outro artigo considerado também precursor da Cibernética, A l o g ic a l


c a lc u lu s o f th e id e a s i m m a n e n t in n e r v o u s a c tiv ity , publicado em 1943, por
Warren M cCulloch e Walter Pitts, pode ser considerado o responsável direto
pelo surgimento, posterior, da noção de a u t o - o r g a n i z a ç ã o . A concepção de
auto-organização delineada nesse artigo busca construir m odelos matemáticos
que conseguissem traduzir a lógica matemática existente nas redes neurais. O
mencionado artigo demonstra que a lógica de qualquer processo fisiológico,
por mais com plexo que possa ser, incluindo a visão e o comportamento com o
processo fisiológico, pode ser demonstrada através de uma rede neural for­
mal. Tal fato colidia com uma conhecida lei da fisiologia que afirmava que a
complexidade do sistema nervoso humano não poderia ser descrita em termos
Mecânicos. Singh (1972, p. 168) afirma que “a teoria de M cCulloch-Pitts
termina com isto, e prova que tudo que pode ser escrito ou dito com palavras
de m odo exaustivo e sem ambigüidade é ipso facto realizável numa rede neu­
ral infinita”. Ainda sobre o artigo de Warren M cCulloch e Walter Pitts, Capra
(1997, p. 78) explica que:
O s autores m ostravam que a lógica de q u a lq u e r processo fisiológico, d e q u a lq u e r
co m portam ento, p o d e ser transform ada em regras para a construção de um a rede
[...] os autores intro d u ziram neu rô n io s idealizados, rep resen tan d o -o s p o r elem en ­
tos co m u tad o res b in ário s [ligado e desligado] e m odelaram o sistem a nervoso
com o redes com plexas desses elem entos com utadores binários.

Sobre esse m esm o artigo e a subjacente noção de auto-organização à que


remete, Dupuy (1996, p. 59), ressalta a existência de uma equivalência entre
uma máquina lógica “que pode ser considerada em sua estrutura e em seu

18 Para um modelo teórico-matemático simplificado ver Epstein (1986, p. 34-38);


19 Utilizamos a ediçào brasileira (1984), que foi reeditada em 1954.
20 Recomendamos, também a leitura do Capítulo 111, “Os milagres do 'feedback"', Latil, 1959.

A (des)estruturação das estruturas e a (re)estruturação dos sistemas 55


comportamento uma idealização da anatomia e da fisiologia do cérebro” e a
de uma máquina de Turing.21 É daí que decorre a nascente cognitivista que
busca dar uma efetiva resposta para a questão do cérebro (estrutura) e mente
função. Dupuy (1996, p. 59) argumenta que “é assim que o cibernético julga
resolver o velho problema da alma e do corpo, ou em seus próprios termos,
do e m b o d i m e n t o f m in d . O cérebro e a mente são um e outro uma máquina, e
a mesma máquina, portanto um só”. Evidentemente que essa concepção de
auto-organização teve posteriores desdobramentos - mencionaremos alguns
deles - interdisciplinares, em diferentes décadas da segunda metade do século
XX. Estes dois conceitos, feedback e auto-organização, todavia, irão revolu­
cionar os estudos teóricos que darão origem não apenas à Cibernética, mas à
Teoria da M ensagem (negentropia22) e à Teoria da Informação.
Tais noções ou conceitos n ã o p o d e r ã o s e r c o m p r e e n d id o s d e f o r m a d is ­
t a n c ia d a d o c o n c e ito d e s is te m a ; em outras palavras, as concepções de feed­
back e de auto-organização trazem sempre de forma implícita, a idéia de sis­
tema. A o considerarmos assim, e levando em consideração os principais as­
pectos epistem ológicos da discussão sobre as noções de sistemas realizadas
até então, temos que: essa nova forma de conceber um sistema (feedback ou
auto-organizado) admite a tr o c a d e m a té r ia e d e e n e r g ia apontada por Berta­
lanffy, porém, c o n c e b e o s is te m a d e f o r m a f e c h a d a e m te r m o s d e o p e r a c io n a -
lid a d e . O avanço teórico, em termos sistêm icos, desenvolvido pela Cibernéti­
ca, com os conceitos de feedback e auto-organização é que o f e c h a m e n t o d o
s i s t e m a , não se trata do e s ta n c a m e n to d e q u a l q u e r tip o d e tr o c a c o m o m e io
(incorporação de matéria/energia), mas um f e c h a m e n t o o p e r a c io n a l (infor-
macional) em te r m o s d a d in â m ic a d e s e u s c o m p o n e n te s .
A noção de auto-organização fez com que a própria compreensão do
conceito de sistema avançasse. Se antes, sistemas podiam representar qual­
quer combinação entre elementos, desde um simples amontoamento até a co ­
nexão entre as partes, indicando uma ordem, a idéia de auto-organização pas­

21 Em termos simplificados, constitui-se numa máquina que a partir dc informações lógicas


simples, pode devolver informações lógicas complexas. Como diz Singh (1972, p. 203) “a
idéia básica nas máquinas de Turing c a negação daquilo que parece, à primeira vista, plau­
sível. [...] se um autômato possui a habilidade de construir outro, deve haver uma diminui­
ção da complexidade [...], porém a complexidade no caso de Turing, pode ser aumentada e
produzir outro autômato mais complexo que o progenitor". Para um estudo mais detalhado
ver Singh (1972, cap. 13) e Dupuy (1996, p. 28-38).
22 Negentropia é um termo cunhado pela Teoria da Mensagem e se opõe ao termo entropia. Se
a entropia é uma medida de desordem do sistema, a negentropia é uma medida de ordem do
sistema. Nas palavras de Weiner (1984, p. 21): “as mensagens são, por si mesmas, uma for­
ma de configuração e organização. E possível, realmente, encarar conjuntos de mensagens
como se fossem dotados de entropia, à semelhança de conjuntos de estados do mundo exte­
rior. Assim como a entropia é uma medida de desorganização, a informação conduzida por
grupos de mensagens é uma medida de organização. Na verdade, é possível interpretar a in­
formação conduzida por uma mensagem como sendo, essencialmente, o negativo de sua en­
tropia e o logaritmo negativo de sua probabilidade”.

56 Léo Peixoto Rodrigues


sou a implicar, obrigatoriamente na idéia de uma u n id a d e s is tê m ic a . A auto-
organização pressupõe uma unidade definida em termos de suas fronteiras
com o ambiente em que está inserida e também faz com que esta unidade não
possa ser vista em termos não-sistêmicos. Em outras palavras, ao se pensar
em auto-organização som os levados a pensar em termos de u n id a d e d i s c r e ta ;
quem se auto-organiza não pode ser um amontoado - ou mesmo uma estrutu­
ra - que agrega elem entos e x te r n o s ; o prefixo a u to , m esmo indicando p o r s i
só , remete a uma percepção de interioridade, i n fe r io r id a d e d e a lg u m p r o c e s s o
e x is te n te e p r o v e n ie n te d e c o m p o n e n te s s e m p r e p r e - e x is te n te s . Ora, se temos
a idéia de unidade, agregada a ela a idéia de movimento e de organização
como processo interno, temos a idéia de sistema. N as palavras de Flickinger e
Neuser (1994, p. 21, grifo do autor):
A teoria de A uto-O rganização exige, portanto, um a concepção alterada de seus
m étodos devido à concepção alterada de seu objeto de con hecim ento: o objeto,
dinâm ico, c onstitui-se apenas por seu ser o rganizado e corre o risco de ser p e r­
turbado; o que, de fato, acontece. Sendo assim , o objeto [sistem a] tem que ser
c onsiderado na sua totalidade, não sendo suficiente a m era análise dos co m p o ­
nentes; m uito pelo contrário, a organização do objeto to m a -se elem ento perm a­
nente de investigação científica. As exigências referentes ao m étodo ultrapassam ,
pois, aquelas do Ilum inism o que possibilitam , por sua vez, o procedim ento a n alí­
tico. T ransform ações no objeto e na natu reza deveriam ser c ontem pladas com o
sendo tra n siçõ es d in â m ica s de sistem a s dinâm icos.

Da au to -o rg a n iza ç ã o e au to -referên cia à noção


de sistem a au to p o iético
Da noção de auto-organização à idéia de auto-referência chegou-se ao
conceito de “autopoiésis”.23 Ele foi desenvolvido no início da década de 70,
pelos b iólogos chilenos Maturana e Varela (1995a, 1997). Maturana douto­
rou-se na Universidade de Harvard, nos anos de 1958 e 1959 e, posteriormen­
te, tendo trabalhado no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (M IT), esse
biólogo teve contato direto com os estudos da Cibernética e com os principais
pesquisadores da época. Conta Maturana e Varela (1995a, 1997), seu ex-
aluno e posteriormente colega, que o antecedente direto da gestação do con­
ceito de autopoiésis foi um texto escrito por Maturana, em meados de 1969,
originalmente intitulado N e u r o p h y s io lo g y o f c o g n itio n . N este trabalho e, pos-

23 A palavra “autopoiésis” tem sua origem do grego: auto (por si só) + poiesis (produção). Este
termo foi proposto por Humberto Maturana e Francisco Varela. A história de sua concepção,
como conceito e como neologismo, encontra-se contada pelos próprios autores em Maturana
e Varela (1979, 1995, 1997). Os autores conservaram, em espanhol, os dois termos gregos:
autopoiésis; em inglês, da mesma forma: autopoiésis; em português, encontramos grafadas
de duas formas: autopoiese e autopoiésis, optamos pela segunda.

A (des)estruturação das estruturas e a (re)estruturação dos sistemas 57


tenormente, quando participou de uma reunião internacional, da Wenner
Green Foundation, a convite de Heins von Foerster - ocasião em que, segun­
do Varela, pela primeira vez, Maturana expressa claramente suas idéias - Ma-
turana referia-se à concepção autopoiética, palavra ainda não existente, utili­
zando-se do termo auto-referido, auto-referente para designar não apenas os
seres vivos, mas, também, para se referir ao sistema nervoso, com o um siste­
ma fech a d o auto-referenciado.
A o relatar a história de com o chegaram ao conceito de autopoiésis, Ma­
turana, em um prefácio individual, faz referência a V on Bertalanffy e a sua
noção de organismos vivos com o sistemas abertos. D iz ele: “eu, no entanto,
pensava que o principal ou central para compreender os seres vivos era levar
em conta sua condição de entes separados, autônomos, que existiam como
unidades independentes” (Maturana, 1997, p. 11). Por outro lado, quando se
reportava ao período em que esteve no MIT, acrescentou: “[...] o discurso bi­
ológico dessa época era um discurso funcional, propositivo, e se falava dos
fenômenos biológicos com o se eles ficassem de fato revelados ao se falar da
função que se lhes atribuía” (Maturana e Varela, 1995a, p. 13). Esses argu­
mentos são especialmente importantes porque o conceito de autopoiésis, de­
senvolvido mais tarde, constituir-se-á paradigmático não apenas na Biologia,
mas para todo um novo enfoque sistêm ico, com uma renovada dimensão epis-
tem ológica em sua abordagem; qual seja: Maturana e Varela passaram a afir­
mar que os sistemas vivos são sistemas operacionalm ente fech a d o s e entida­
des auto-referidas. Vejamos porque os sistemas voltaram a ser vistos como
sistemas fechados embora, dessa vez, de forma muito diferente da concepção
de fechamento, implícita nos sistemas apresentados pela Termodinâmica.
A tentativa de superação da perspectiva positivista-funcionalista na B io­
logia levou Maturana e Varela a buscarem a dinâmica operacional, não-
funcional, que leva o ser vivo a ser um ente auto-referido. Na tentativa de
buscar compreender com o o A D N 24 participava da síntese de proteínas, uma
vez que, curiosamente, as proteínas também participavam da síntese de A D N
(naquela época ainda não eram conhecidos os retrovírus), constataram que:
“[os organismos vivos] eram unidades discretas que existiam com o tais na
contínua realização e na conservação dessa dinâmica produtiva, que os defi­
nia e os constituía em sua autonomia” (Maturana e Varela, 1979, p. 14). A
partir desta constatação acrescentam, na passagem a seguir - um tanto longa,
mas indispensável - um dos trechos de sua obra que melhor define a auto-
referência, conceito este, antecessor direto do conceito de autopoiésis:
Neste momento também me dei conta de que não é o fluxo de energia como flu­
xo de matéria ou energia, tampouco qualquer componente particular como com­

24 ADN: Ácido Desoxirribonucléico, macromoléculas orgânicas que fazem parte fundamental


da estrutura de um gene, mas que também se encontram presentes em determinados organói-
des celulares que se auto-reproduzem, como as mitocôndrias.

58 Léo Peixoto Rodrigues


ponente com propriedades especiais que de fato fazem e definem os seres vivos
como tal. Um se r vivo ocorre e consiste na d inâm ica d e realização d e um a rede
de tra n sfo rm a çõ es e de p ro d u ç õ e s m oleculares, ta l que to d a s as m o lé cu la s p r o ­
du zid a s e tra n sfo rm a d a s no o p era r desta rede fo rm a m p a rte da re d e , de modo
que, com as suas interações: a) geram a rede de produções e de transformações
que as produziu ou as transformou; b) dão origem às fr o n te ir a s (bordersj e à ex ­
tensão d a rede com o p a rte d e seu o p era r com o rede, de m odo que esta fic a d i­
na m ica m en te fe c h a d a sobre si m esm a, fo r m a n d o um ente m o le cu la r discreto que
surge sep a ra d o do m eio m olecu la r que o contém p o r seu p ró p rio o p era r m o le cu ­
lar; c) configuram um fluxo de moléculas que, ao incorporar-se na dinâmica da
rede, são partes ou componentes dela, c ao deixar de participar da dinâmica da
rede deixam de ser componentes e passam a ser parte do meio (Maturana e Vare­
la, 1995a, p. 14-15, grifo nosso).

Esta passagem representa um importante avanço na concepção de siste­


ma. Repercutiu diretamente em diferentes áreas e disciplinas do conhecim en­
to científico; nas ciências humanas, por exem plo, sustentou e consolidou ten­
dências teóricas acerca dos estudos cognitivos tanto na Psicologia com o na
Pedagogia; na Sociologia tom ou-se um conceito-chave para o entendimento
da teoria dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann.
A partir da percepção de organismo vivo com o sistema aberto, proposta
por Bertalanffy - fato, este, que se constituiu num avanço teórico com relação
aos sistemas fechados, propostos pela Termodinâmica a auto-referência de
um organismo vivo dava-se a partir de sua própria circularidade informacio-
nal (ou fechamento operacional) independentemente do fato desse organismo
(ou sistema) trocar matéria/energia com o meio. A troca de matéria/energia a
qual se referia Bertalanffy na sua noção de sistema aberto, na perspectiva sis­
têmica de Maturana e Varela, alimentava o sistema em termos meramente
energéticos. Isto não significa uma alim entação inform acional e qualquer
mudança na circularidade (portanto fechamento) operativa no agir, na rotina
dos componentes internos do sistema. Caso não houvesse esta circularidade
referenciada em si mesma, o fluxo de matéria e energia advinda do m eio am­
biente, portanto externo ao sistema, transformaria o sistema em ambiente;
corromperia suas estruturas operacionais que o caracterizam com o unidade
discreta. Contrariamente, a matéria/energia oriunda do ambiente externo ao
sistema vai adequar-se à operacionalidade informacional do mesmo, tendo
tão-somente a função de supri-lo energeticamente.
Maturana e Varela (1979), explicam que sistemas autopoiéticos são sis­
temas fechados que se auto-referenciam. Tal fechamento, com o já m enciona­
mos, não significa um total isolamento com o meio ambiente, mas sim, um fe­
chamento operacional recursivo. A auto-referência, neste caso, no inovador
conceito de autopoiésis, não significa simplesmente a noção de feedback - es­
ta foi a grande contribuição do conceito trazido pela Teoria de Santiago. Na
idéia de feedback existe uma informação circular que “nasce” e “morre” num

A (des)estruturação das estruturas e a (re)estruturação dos sistemas 59


m esm o ponto sempre do mesmo modo, ou seja, ao considerarmos o conheci­
do exem plo do termostato, com o um feed b a ck sistem , temos que: um dado
ambiente aquece, a cápsula do termostato dilata com o calor, controlando o
fluxo de gás, o gás diminui, diminuindo a chama, a cápsula esfria e se contrai,
ativando, assim, o aumento de fluxo de gás. N este caso, o termostato é um f e ­
edback sistem , mas não um sistema autopoiético. A autopoiésis requer produ­
ção, transformação, adaptação do sistem a em relação às transform ações do
seu meio (entorno). M esmo sendo a sua operacionalidade fechada com o uma
rede (ou anéis) de interação sobre si própria, ela é plástica no sentido de que
as suas interações se auto-produzem recursivamente caso haja m odificações
no ambiente em que o sistema está acoplado,25 com o forma de manutenção do
próprio sistema (adaptação). A autopoiésis requer sempre uma interpretação
sem ântica do sistem a em relação às alterações do meio am biente, no sentido
de o sistema auto-organizar-se semanticamente - e isto bem caracteriza a auto­
poiésis. Esta é a diferença de uma mera circularidade informacional repetitiva.
A noção de autopoiésis consiste, assim, que um dado sistema só pode de-
terminar-se (constituir-se e modificar-se) lançando mão apenas de suas p r ó ­
p ria s estruturas. Porém, ao mesmo tempo, não se pode negar que esta espécie
de autonom ia operativa pressupõe uma cooperação, uma acomodação ao en­
torno, ao ambiente em que está acoplado. A vida não pode existir em qual­
quer contexto fisico-químico; assim, de acordo com Maturana e Varela, o
meio mantém uma relação com a autopoiésis do sistema. N ão podem os pen­
sar, porém, que é o meio ambiente ou entorno que tem a capacidade de repro­
duzir o sistema; na concepção de autopoiésis o sistema só pode ser produzido
a partir de suas próprias estruturas (ou pré-estruturas, sempre recursivas). O
entorno, porém suscita irritações no sistema, perturbando-o de maneira tal
que pode disparar significativas alterações - semânticas com relação à quali­
dade da irritação externa - nas características do sistema. Essa perspectiva as-
semelha-se muito aos conceitos piagetianos de assimilação/acomodação.
Conceitualmente, podemos dizer então que um sistema autopoiético: (a)
é um sistema porque seus componentes manifestam-se de m odo processual;
(b) é um sistema fechado porque existe uma circularidade necessária e sufi­
ciente de seus componentes, para que toda e qualquer operacionalização com
vistas à manutenção do próprio sistema se realize; além disso que, (c) seu li­
mite, (a sua fronteira), ou ainda, as suas “bordas” diferenciam-se do meio
ambiente (entorno) em que está acoplado, “anichado”; e que, (d) é um sistema
autopoiético porque produz e reproduz a si próprio de forma semântica, ou
seja, mesmo sendo um sistema operacionalmente fechado, responde às trans­

25 Este conceito foi introduzido por Humberto Maturana e tem a missão de indicar como é pos­
sível que sistemas autopoiéticos, operativamente fechados, possam manter-se dentro de um
entorno (meio ambiente) que, por um lado é precondição da autopoiésis do sistema e, por
outro lado, não intervém nesta autopoiésis.

60 Léo Peixoto Rodrigues


formações do m eio ambiente em que está acoplado, a partir de seus próprios
componentes operacionais, com vistas a sua permanência com o sistema.
Quando consideradas as características do sistema autopoiético coloca-
se, de imediato, uma importante questão de cunho epistem ológico com rela­
ção não apenas ao pensamento sistêmico tradicional, mas também com rela­
ção às perspectivas funcionalistas, estruturalistas e estrutural-funcionalistas;
qual seja: o fim do dogma teleológico. A idéia de função, por exem plo, traz
implícita a noção de um telos. Na epistem ologia positivista-funcionalista al­
guma coisa sempre está em função de outra coisa; isto é, o termo função sem ­
pre traz consigo a idéia de finalidade. M esmo estudos da Cibernética e, inclu­
sive antes, com o desenvolvim ento do conceito de hom eostase, por trás da
idéia de realimentação estava implícita a idéia de finalidade. Essa finalidade
entretanto não era vista com o uma autofinalidade ou uma não-finalidade. N es­
ta perspectiva, a dimensão teleológica toma-se uma dimensão da cognição do
observador; ou seja, quem percebe nexos lógicos finalistas é aquele que ob­
serva o sistema. Uma finalidade (telos) não está explícita ou é intrínseca aos
processos sistêm icos auto-referenciados. Isto significa que a auto-referência é
também uma auto-referência teleológica; o sistema “justifica” a sua razão de
ser na própria razão de sê-lo. O desdobramento ou “giro” dessa perspectiva
epistemológica coloca em relevo a discussão de uma fundamentação ontoló­
gica do conhecimento (pós-fiindacionalismo). Para Maturana e Varela (1979,
1995, 1997), ao contrário do que pensavam alguns dos cibem eticistas, a “v i­
da’, o ser vivo, não apresenta qualquer sentido fora de si mesmo. Ser não im ­
plica, de um ponto de vista biológico autopoiético, “ser” p a ra ou ter a função
de com o a B iologia mecanicista-funcionalista costumava descrever. N as pa­
lavras de seus formuladores:
[...] finalidade ou objetivo não são aspectos da organização de qualquer máqui­
na26 (alo ou autopoiética). Tais noções ficam no âmbito do comentário de nossas
ações, quer dizer, pertence ao domínio das descrições [do observador] e, quando
são aplicadas a uma máquina ou qualquer sistema exterior a nós, expressa que
estamos considerando-as dentro de um contexto mais amplo. Em geral, o obser­
vador dá algum uso à máquina [...] (Maturana e Varela, 1997, p. 78).

O conceito de autopoiésis, do mesmo modo que o de auto-organização só


é aplicável, tendo-se por base a noção de sistema. N ão faz sentido o uso do
termo autopoiésis de forma isolada, uma vez que a autopoiésis só pode ser
manifesta numa unidade sistêm ica discreta. U m sistema autopoiético, portan­
to, é um sistema cujos elem entos que o com põem formam laços que se retroa-
limentam, produ zin do a si p róprios e só p o r si sendo p ro d u zid o s; isso carac­

26 Ao se referir a sistemas, tanto artificiais como vivos, os Cibemeticistas utilizavam a expres­


são “máquinas” . É abundante na literatura cibernética, sistêmica e biológica dos anos 40-60
o uso da palavra máquina para designar também os seres vivos, como máquinas orgânicas.

A (des)estruturação das estruturas e a (re)estruturação dos sistemas 61


teriza o que primeiramente Maturana e Varela chamaram de sistem as auto-
referidos. É ilustrativo salientarmos, ainda, essa importante passagem de Ma­
turana e Varela (1995a, p. 15; 1997, p. 15) sobre o seu inovador conceito: “é
a esta rede de produção de componentes, que resulta fechada sobre si mesma,
porque os com ponentes que produz a constituem ao gerar as próprias dinâmi­
cas de produções que a produziu e ao determinar a sua extensão com o um en­
te circunscrito
O “N ovo Pensamento Sistêm ico”, com o passou a ser chamado a partir de
então, por algumas correntes sistêmicas em diferentes disciplinas explica a
dimensão processual, interativa, dinâmica e fluída de todos os sistemas vivos.
A autopoiésis, além de ser um conceito jovem dentro da própria teoria bioló­
gica, encerra em seu significado uma perspectiva epistem ológica muito singu­
lar quando comparado com a tradição do pensamento sistêm ico, gerando, as­
sim, algumas dificuldades de compreensão. N ão raramente esse avanço epis-
tem ológico, para o entendimento de uma teoria sistêmica, devido a sua pró­
pria origem - as ciências naturais - , é refutado a p rio ri por diferentes cientis­
tas principalmente das “humanidades” que, de certa forma, ainda não se liber­
taram da luta contra as “amarras positivistas” conceptivas das Ciências Sociais.

C o n sid eraçõ e s finais


Conceitos tais com o função, estrutura, sistema, em verdade são concei-
tos-teoria, uma vez que carregam consigo mais que a mera denotação de um
objeto. Tais conceitos possibilitam, de imediato, um grande número de analo­
gias, em que o conhecimento de um determinado domínio passa a fazer senti­
do ao explicar um outro domínio até então desconhecido; isto é, existe um
transporte de sentido de um domínio a outro, concomitantemente ao transpor­
te do conceito. Tais conceitos foram utilizados ao longo dos tempos, de forma
interdisciplinar, para a explicação de diversos fenômenos e isso fez com que
se tom assem repletos de conteúdo, polissêm icos. A o longo dos usos, estes
conceitos, tomaram-se verdadeiros repositórios de significados, acúmulo es­
se, que tem lhes conferido essa fantástica plasticidade. Se lhes quisermos dar
um fundamento, estrutura e sistema podem bem fundamentar uma determina­
da teoria; se lhes quisermos dar um neofundamento ou m esm o um pós-
fundamento a plasticidade de tais conceitos parece bem desempenhar esse
papel, pois tanto as estruturas com o os sistemas podem aderir a um desloca­
mento teórico-conceitual para além da idéia de fundamentação.
A partir de uma perspectiva epistem ológica, o movimento estruturalista
também pode ser visto com o a tentativa de uma “nova fundamentação” no
momento de sua adoção por disciplinas e teóricos distintos. Se o fundamento,
por um lado, estava constituído no su jeito dos diferentes existencialism os,
cujo axioma fundador passaria pelo cogitans cartesiano, por outro lado, esse

62 Léo Peixoto Rodrigues


sujeito espraiava-se, na primeira metade do século XX, num humanismo em
que o fundamento estava em toda parte e em parte alguma. A noção de estru­
tura, desenvolvida na lingüística, ofereceu às Ciências Sociais a possibilidade
de uma superação epistem ológica em relação à fragmentada fundamentação
proposta pelo humanismo. É neste sentido que tanto o conceito de estrutura
como o de sistema têm-se colocado com o uma tentativa de superação das ex­
plicações atomistas para a sociedade, demonstrando que o fenômeno social
não é constituído de coleções de objetos ou sujeitos que se aglomeram ao
acaso. Em verdade, tanto a noção de estrutura com o a de sistema, com o já
vimos, são conceitos que em sua origem etim ológica comportam a idéia de
um todo agregado, articulado ou não.
As perspectivas mais tradicionais tanto do conceito de estrutura com o de
sistema foram abaladas não pela sua incapacidade de fundamentação científi­
ca, mas pelo abalo que a própria noção de fundamento (no sentido de verdade
única) sofreu (mais declaradamente) desde o início do século X X . A história
epistemológica das Ciências Sociais, em particular da Sociologia, desde sua
fundação iluminista com a filosofia positiva e a “física social” de Augusto
Comte, tem sido uma história cravejada de esforços teóricos para a determi­
nação do seu objeto, por um lado, e, para a emancipação desse objeto da tute­
la das Ciências Naturais (Física e a B iologia), por outro lado. O cerne do ar­
gumento apresentado por diferentes correntes sociológicas era o de que o ob­
jeto da Sociologia não se constituía em um objeto estático, mas em socieda­
des humanas, cujo agir de homens concretos dava fluidez, dinâmica, imper-
manência e subjetividade às realidades sociais. Isso sempre se constituiu num
dilema à Sociologia: com o pretender ser uma Ciência sem ter verdades pere­
nes, universalizantes e cujo objeto não se transfigure no tempo e no espaço.
Os paradigmas científicos da Física (as leis da mecânica clássica) e da B io lo ­
gia evolucionista (sistemática filogênica) foram tão marcante na história
“conceptiva” da S ociologia que deflagraram uma contundente relação de
amor e ódio com as “Ciências Naturais”. Talvez o mais bizarro em tal relação
seja o fato de que mesmo quando as Ciências Naturais já não mais acredita­
vam piamente na noção de verdade, de determinação e de leis imutáveis, a
Sociologia continuava o seu diálogo - m onólogo (?) - com um progenitor que
já não era o m esm o, uma vez que a noção de com plexidade e de indetermina-
ção já havia sido adotada tanto pela Física com o pela Biologia. O irônico, en­
tretanto, é constatar que a Sociologia, do pondo de vista epistem ológico,
mesmo antes de Weber, mas principalmente com ele, já tinha bem fundamen­
tado a noção de com plexidade científica sociológica, tão em moda, não ape­
nas nas Ciências Sociais, mas principalmente nas hard sciences, nesta con-
temporaneidade.
Foi somente a partir da segunda metade do século X X , após a década de
60, com a reorientação de uma epistem ologia de tendência analítica para uma

A (des)estruturação das estruturas e a (re)estruturação dos sistemas 63


tendência histórico-social, que a Sociologia parece ter conseguido finalmente
psicanalisar o seu desejo (frustrado) de fundamentação. A história do empre­
go de conceitos tais com o estrutura e sistema se confundem com a própria
história das Ciências Sociais e de toda essa relação de afirmação e negação na
busca de um fundamento que, se não último, pelo menos distinto daquele em­
pregado pelas Ciências Naturais. Merquior (1991) comenta: “enquanto os
‘paleoestruturalismos’ (com a teoria antropológica de Radcliffe-Brown e a te­
oria sociológica de Parsons) fizeram uso constante das analogias biológicas, o
estruturalismo francês optou por uma abordagem totalmente diversa: esfor­
çou-se muito para adaptar o estruturalismo lingüístico às Ciências S ociais” (p.
226). A crise do estruturalismo com o um movimento francês que buscava
uma nova fundamentação para o entendimento dos fenômenos sociais não
significou, porém, no abandono do termo estrutura. A ssim com o o termo sis­
tema, que ao longo de sua história vem sofrendo mutações e vem se resignifi-
cando, o conceito estruturalismo sobrevive - talvez infértil do ponto de vista
de um fundamento - no pós-estruturalismo.
Se o fundamento deslizou, com ele o sistema e a estrutura também desli­
zaram. O estruturalismo passou a assumir uma roupagem “pós-estruturalista”
e o sistema, ao contrário, preferiu manter-se um pouco mais “conservador”;
não adotou prefixos gregos ou latinos tais com o neo ou pós. Para diferenciar-
se do sistema fechado da Termodinâmica, e do sistema aberto, de Bertalanffy;
preferiu ser chamado simplesmente de “novo”: o “N ovo Pensamento Sistêm i­
co”. Como o estruturalismo teve a sua origem na lingüística, o novo “para­
digma” estrutural francês do século XX tinha, finalmente, conseguido livrar a
teoria sociológica - isso fica muito claro em Lévi-Strauss - das m arcas epis-
têm icas das Ciências Naturais. M esm o o estruturalismo tendo entrado em fa­
lência, com direito a data de concordata, maio de 1968, o que viria depois,
embora pudesse ser melhor encarado com o um antiestruturalism o, principal­
mente considerando o pensamento de Foucault, D eleuze, Derrida e Lyotard,
posto que a desconstrução pode ser vista mais com o uma desestruturação, o
pós-estruturalismo também estaria liberto das marcas cientificistas naturais
iluministas. Contrariamente, a idéia de sistema continuou “contaminada”
quando não pela Física, pela Biologia: o conceito de sistema aberto é prove­
niente da B iologia e o conceito de sistema autopoiético também, ambos de­
senvolvidos pelos biólogos von Bertalanffy, e Maturana e Varela, respecti­
vamente. Chamar as teorias desenvolvidas a partir da crise estruturalista de
«eo-sistêm icas ou pós-sistêm icas, o que em muitos casos seria mais coerente,
significaria perpetuar a figura positiva (opressora?) paterna (castradora?) na
Sociologia, ciência esta, que parece, por vezes, envergonhar-se da sua ori­
gem

64 Léo Peixoto Rodrigues


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A (des)estruturação das estruturas e a (re)estruturação dos sistemas 67


3

O construtivismo sistêmico
nas ciências humanas e sociais*

Marcelo A m old Cathalifaud


Fernando Robles Salgado

------------ ♦------------

Tudo surge no observador como conseqüências que se desprendem ao haver co­


locado uma distinção (Luhmann, 1999, p. 28).

Introd ução
Esta apresentação explora os aspectos epistem ológicos subjacentes às
com unicações especializadas das ciências humanas e sociais. Descreveremos
com o o construtivismo proporciona respostas consistentes para indicar de on­
de emergem nossos conhecimentos da realidade social, concentrando-nos nos
princípios construtivistas de uma teoria da sociedade atribuída ao paradigma
dos sistemas sociais autopoiéticos (Luhmann, 1991; 1998).
Como capítulo das teorias do conhecimento, a epistem ologia inclui tanto
aqueles mecanismos poderosos com o os quotidianos que são construtores de
realidade. Suas discussões envolvem contribuições da antropologia cultural,
da sociologia do conhecimento, da neurofisiologia, da filosofia analítica e da
psicologia cognitiva. Recentemente, devido à centralidade de sua matéria, em
tom o dela reuniram-se novas (re)organizações do pensamento científico: as
ciências cognitivas, as teorias de sistemas, as filosofias da linguagem, as tecno­
logias baseadas na inteligência artificial e os princípios do novo management.
Os debates sobre a epistem ologia ocorrem em todas as áreas nas quais a
produção e circulação do conhecimento são centrais. Mas, embora a episte-

Por suas inestimáveis críticas, comentários e sugestões, agradecemos sinceramente a Adrián


Scribano. A responsabilidade por erros e imperfeições é exclusiva dos autores.

68 Marcelo Arnold Cathalifaud e Fernando Robles Salgado


mologia seja um tema que está na moda, além de assinalar que sua matéria
consiste em estudar os fundamentos e métodos do conhecimento da realidade,
sua definição não é unívoca.
Segundo as convenções sociais, a epistem ologia consiste em uma ativi­
dade especializada na compreensão e explicação dos processos de observação
envolvidos na produção de conhecimentos acerca da realidade - e essa é uma
das garantias para o estabelecimento de sua legitimidade. Sua qualidade con­
siste em concentrar-se em “com o se conhece ” e em temas diretamente rela­
cionados, com o verdade e a objetividade - com o podem os distinguir o co ­
nhecimento verdadeiro (ou adequado) do falso (ou inadequado)?
Em suma, os processos do conhecer, que com petem à epistem ologia, en­
tram em jo go quando se aplicam distinções, independentemente de sua desig­
nação em números, crenças, valores, normas ou preços. O que antecede é vá­
lido para todo observador, seja uma pessoa ou um determinado sistema so­
cial. Dentro dessa ampla caracterização, com o afirmou o antropólogo Bateson
(1993), aqueles que pretendem não ter relação alguma com a epistem ologia
devem superar seu otimismo, pois todos os conhecimentos, sejam científicos
ou comuns, encontram-se amarrados a observações e dependem delas para
produzir-se.1
Admitindo, com o idéia fundamental, que a realidade emerge a partir de
operações de observação, as explicações epistem ológicas fazem uma nova
proposta sobre a atividade cognoscitiva e convidam a uma reflexão crítica so­
bre seus fundamentos. Suas pressuposições também incluem aspectos éticos,
pois responsabilizam os observadores das realidades que modelam, reprodu­
zem ou nas quais intervém. Certamente, quando a epistem ologia se associa às
premissas construtivistas, e estas ao paradigma sistêm ico, surgem riscos, pois
sem poder retom ar a sua ignorância, a referência à realidade já não será
igual.2

Em q ue co n s is te a ep istem o lo g ia co n stru tivista?


O ponto de partida do construtivismo consiste em determinar as estrutu­
ras e operações que permitem produzir conhecimentos e seus questionamen­
tos centrais são: o que é observar? e qual é a m atéria do conhecim ento? D es­
locando suas preocupações da natureza dos objetos para as possibilidades de

1 Neste sentido todas as epistemologias são equivalentes.


2 Poderíamos lembrar do filme The Matrix, onde Neo - o protagonista - optou por viver numa
das realidades e teve sucesso, mas, no caso do nunca bem ponderado Quixote - que viveu
louco e morreu certo - , sua excentricidade não lhe trouxe rendimento algum, a não ser sua
posteridade. Talvez Mr. Truman (The Truman Show), quem por acaso descobre ter vivido
num mundo "falso ", tampouco tenha tido melhor sorte.

0 construtivismo sistêmico nas ciências humanas e sociais 69


seus observadores, o construtivismo aborda a auto-implicação dos conheci­
mentos da realidade com as distinções que os tomam visíveis.
A s afirmações e declarações construtivistas colocam em questão a noção
clássica de objetividade quando sustentam que todo conhecimento surge de
experiências de observação e que, portanto, seus registros não podem ser
concebidos com o reproduções da realidade e sim com o resultados de tais ex­
periências. Como teria afirmado Kant: somente conhecem os das coisas aquilo
que nós mesm os colocam os nelas.
A postura construtivista assume a auto-referência inerente a todas as in­
dicações, descrições e explicações da realidade que são trazidas para a com u­
nicação, inclusive a própria. Isso implica que o construtivismo se auto-inclui
com o tema de observação - construtivism o do construtivism o. Com base na
sua visão, nenhum conhecimento pode sustentar-se tendo com o comprovação
correspondências com algo externo, visto que todo conhecimento é resultado
das operações de um sistema que observa. Desta forma, o construtivismo des­
taca que, em toda ação cognoscitiva, a observação estabelece o objeto, pois
este último passa a ser uma conseqüência das operações que o distinguem.
Assim , todos os conhecimentos são relativos a aplicações de distinções que
não têm correlações externas. Especificamente: os espaços, as imagens, as
texturas e os odores são configurados de acordo com as disponibilidades dos
sistemas nervosos dos seres vivos; do mesmo m odo que os critérios que deli­
mitam a verdade, a beleza, a legalidade, as ideologias sociais ou os preços se
organizam por distinções processadas comunicativamente a partir das deter­
minações dos sistemas sociais dos quais fazem parte - neste caso: a ciência, a
arte, a justiça, a política e a economia.
Para os construtivistas, as observações, as distinções que as orientam e,
em geral, os componentes com os quais se constrói o conhecimento da reali­
dade, são determinados na estrutura de um observador. Em conseqüência, to­
da observação refere-se a si mesma em cada uma de suas operações e em to­
das as descrições que origina.
A s descrições comprometem-se com suas seleções - com o na narrativa
de sonhos - e expressam mais os processos aplicados para levar a cabo sua
missão do que propriamente aquele que foi descrito. Nenhum sistema pode
conhecer além de suas disponibilidades, assim com o não se pode observar e
comunicar sobre o social desde fora do social, ou seja, desde fora da comuni­
cação. N o âmbito social, a matéria do real trata das conseqüências de suces­
sões recursivas e auto-sustentadas de observações comunicadas através da
linguagem, ou seja, das cadeias de aplicações de distinções e seus resultados.
A auto-referência não é impedimento para a produção de conhecimentos,
pelo contrário. Para Luhmann (1991), é paradoxal que a clausura do observa­
dor condicione a que sua abertura em relação ao entorno somente possa fixar-
se a partir de seus esquemas diferenciadores internos. Para isso, formas com o

70 Marcelo Amold Cathalifaud e Fernando Robles Salgado


sujeito/objeto ou sistema/entorno são recursos que um mesmo observador de­
limita - seleciona e o faz de acordo com as suas possibilidades estruturais.
Como os observadores somente podem constituir a unidade do observado
mediante distinções que remetem a suas próprias determinações, estes não
dispõem de mecanismos que lhes permitam distinguir algo alheio àquilo que
permitem seus mecanismos de observação. Portanto, o contexto e os limites
da realidade do conhecimento encontram-se no observador. Estas afirmações
não são alheias a reflexões pré-sistêmicas das ciências sociais e humanas, de­
vemos lembrar que noções com o marcos sociais do conhecimento ou cosmo-
visões são bastante difundidas, embora pouco compreendidas!
Mas os conhecimentos não indicam somente, também operam com o dis­
tinções, com o marcas para diferenças que tomam a se aplicar. Assim , o co ­
nhecimento da realidade vai sendo constituído pelas p eg a d a s que vão ficando
das distinções que os observadores aplicam. A cultura é depositária das m es­
mas.
A realidade é tão inesgotável com o as distinções que lhe são estendidas,
assim as construções do conhecimento - seus artefatos - são contingentes,
pois é possível experimentar tudo de outro m odo.3 Mas, embora todo conhe­
cimento seja resultado de observações, uma vez realizadas suas indicações,
estas se reforçam num invólucro lingüístico que permite que sejam experi­
mentadas com o propriedades do ambiente. Este deslocamento tem suas fun­
ções. A s descrições do mundo, da realidade, quando fixadas na comunicação,
permitem falar de coisas, embora estas somente sejam geradas no ato da fala
(Maturana, 1990).
Quem percebe, somente percebe os produtos de suas operações, não os
meios através dos quais o faz - não vem os nossos olhos nem os condiciona­
mentos ideológicos que nos guiam, mas os dos outros\ A s condicionalidades
do conhecimento são invisíveis para observadores pré-reflexivos. Somente
um observador no plano de segunda ordem pode indicar com o os conheci­
mentos são artefatos que dependem dos m eios - estruturas e operações - uti­
lizados em sua configuração.
Como paradigma pós-nominalista e pós-realista, o construtivismo tira
proveito de sua própria auto-observação, encontra-se em crescente expansão
e suas explicações dirigem-se tanto a construções pessoais com o sociais da
realidade. Especificamente, para as ciências humanas e sociais, o construti-

3 De certa maneira, o Metálogo de Bateson (1993) que trata da questão: "Por que as coisas se
desorganizam? " serve para experimentar estas idéias: as “arrumações” não são possibilida­
des naturais, não refletem nenhuma organização antes de sua observação como tal. Um escri­
tório pode parecer caótico para qualquer pessoa que não seja aquela que habitualmente o o-
cupa. Ainda mais, qualquer tentativa de organizá-lo, que parta de alguém que não o usuário,
significará a introdução de um fator desconhecido, ou seja, desorganização. Visto de outro
modo, existem "infinitas bagunças " c, somente uma "arrumação Então: sobre que bases
opera a ordem que surge do conhecimento?

0 construtivismo sistêmico nas ciências humanas e sociais 71


vism o é tratado com o outro ponto de partida para as teorias sociais que ten­
tam explicar o surgimento da cultura e das ordens sociais (Corcuff, 1998;
Berger e Luckmann, 1968), faz parte das estratégias para uma mudança pes­
soal precipitada terapeuticamente (Neimeyer, 1996),4 é um dos aspectos que
acompanham as reformas pedagógicas (Piaget, 1970)5 ou é aplicado com o um
instrumento para o desenvolvimento de organizações. Mas suas posturas, em ­
bora ofereçam caminhos atraentes, provocam muitas dúvidas e oferecem pou­
cas certezas. Em sintese, suas idéias são altamente improváveis de serem acei-

0 q u e favo receu o su rg im en to da ep istem o lo g ia


co n stru tivista?
O perspectivismo facilitou a entrada às propostas construtivistas (Am old
e Rodríguez, 1990a). Enfatizando as limitações para abordar questões simples
e com plexas, pelas vias do procedimento cientifico tradicional, a postura
perspectivista destacou as dificuldades para falar do todo a partir das partes
ou destas sobre si mesmas. Seus argumentos, ao destacar posições para ob­
servadores inquestionáveis aceleraram as perdas dos privilégios da ciência na
comunicação da sociedade - pois, se os acontecimentos são recebidos através
de experiências: o que tem de diferente as experiências dos cientistas? N este
caminho, com o destaca Giddens (1994), que já não se aceita universalmente a
idéia de que todo conhecimento deva fazer alusão a uma realidade apreensí-
vel pelos sentidos e que a aplicação da m etodologia e a estrutura da mecânica
clássica seja o caminho para todas as disciplinas.6
Em sua avalanche, os construtivistas têm prazer em afirmar que, embora
atraído inicialmente pelos postulados neopositivistas, Popper (1902-1996),
indicou a im possibilidade de provar empiricamente as teorias cientificas, de­
clarando que as únicas proposições verdadeiras são as que não nos permitem
verificá-las - critério de falseabilidade. Com essa demarcação, a procura da
verdade objetiva - que está além da ciência - permanece com o critério regu­
lador da atividade científica mas, com o meta, inatingível.

4 Em programas terapêuticos nos quais as mudanças pessoais pressupõem mudanças nas es­
truturas de conhecimento, ou seja, nos processos que dão origem aos construtos pessoais.
Seus seguidores afirmam que os pacientes procuram as terapias porque sua realidade, da
maneira como eles próprios a construíram, toma-se inviável e sua tarefa como terapeutas,
nesta modalidade, consiste em agir como facilitadores para a reconstrução ou recomposição
de tais realidades.
5 Onde se assume que os processos de aprendizagem não se explicam com a metáfora da
transmissão de conhecimentos, mas com processos ativos de construção de conhecimentos.
6 Da periferia, juntamente com Dano Rodríguez, há mais de dez anos afirmamos a mesma
coisa (1990b). Por isso, aqueles que parecem estar falando de novidades são os que susten­
tam que nada aconteceu nas ciências sociais depois dos alicerces lançados por Durkheim,
Marx e Weber.

72 Marcelo Amold Cathalifaud e Fernando Robles Salgado


Os construtivistas tampouco deixam de mencionar os estudos de Kuhn
(1971). Este, observando os condicionamentos históricos e comunitários da
ciência, demonstrou que nem a razão (racionalidade) nem as sensações (empi-
rismo), sustentam os artefatos da ciência. Conforme suas evidências, os co ­
nhecimentos científicos baseiam-se em considerações formadas com a fé das
comunidades científicas que acreditam nelas - e na confiança que essa f é
inspira na sociedade! Se suas provas forem aceitas, o desenvolvimento do
conhecimento científico já não poderia mais ser considerado com o uma abor­
dagem sustentada e disciplinada para desvendar a realidade.
Nas disciplinas humanas e sociais as formas construtivistas têm-se nutri­
do, sob amparo da hermenêutica, da fenomenologia, da etnometodologia
(Robles, 1999), da psicologia piagetiana e, em geral, das m etodologias quali­
tativas. Todas estas abordagens e procedimentos fazem uma reflexão intensa
acerca dos processos de observação, até o ponto que suas aplicações ficam
fora da normalidade científica do universo mecânico e causai predominante no
paradigma positivista.
Mas os argumentos epistem ológicos construtivistas mais fortes, aqueles
que nos interessam, têm com o apoio a cibernética de segunda ordem , as teo­
rias neurocognitivas e, muito especialmente, a lógica desenvolvida por Spen-
cer-Brown (1979).7 Entre as contribuições mais relevantes encontram-se as
pesquisas dos biólogos chilenos M aturana e Varela, que constataram que o
sistema nervoso observa somente os estados mutantes do organismo do qual
faz parte e para cuja explicação contribuiu a teoria da autopoiésis
(1984; 1995) e as de von F oerster (1985), que, redescobrindo Johannes Mül-
ler (séc. XIX) - um dos pioneiros da neurofisiologia - , retoma o princípio da
codificação indiferenciada, explicando que as células nervosas codificam so­
mente a intensidade dos estímulos e que, por isso, todas as diferenças que um
organismo cognoscente obtém, ou seja, seu mundo perceptivo, provêm exclu­
sivamente de suas operações internas.8
Para o relativismo cultural, as formulações que hoje denominamos cons­
trutivistas, são as normais para outras tradições. Sem ir mais longe, o budismo
afirma que os seres humanos, por sua própria condição, estão obrigados a v i­
ver em um mundo cuja realidade não podem confirmar sem sua ativa presen­

7 Foi o cibernético Heinz von Foerster que introduziu este lógico britânico no foco dos teóri­
cos de sistemas. Com o reconhecimento de Bertrand Russel, George Spencer-Brown desen­
volveu em breves demonstrações os princípios que assumem a tautologia e o paradoxo como
seus componentes explicativos (vide Rodriguez e Amold, 1991).
8 De fato, são processos de codificação de sinais eletroquímicos que originam nossos mundos
perceptivos. Isto significa que as percepções estão muito além da estimulação sensorial (ou­
vimos que estão nos chamando e não sons!). Por isso, entre outras funções, as organizações
perceptivas apresentam constâncias, ainda que os estímulos estejam sempre variando. Em
outro sentido, não é possível prever percepções, conhecendo somente as características do
estímulo.

0 construtivismo sistêmico nas ciências humanas e sociais 73


ça, do que deduzem que, talvez por isso, o real não seja nada além de uma
mera ilusão. Daí a afirmação: esperem tudo de vocês mesmos (Carriere, 1995,
p. 26).
Entender a novidade e os alcances do construtivismo leva também a ex­
plorar suas interações com o sistema da sociedade e o da ciência. Embora von
Glaserfeld (1995), cite Protágoras com o precursor do construtivismo - lem­
brando que esse sábio grego afirmava que o homem é a medida de todas as
coisas - e outros propagadores procurem seus antecedentes entre as correntes
filosóficas idealistas, o construtivismo somente pôde estruturar-se plenamente
com o uma nova corrente quando suas premissas ressoaram diante de mudan­
ças na complexidade da sociedade. Talvez, da combinação entre mudanças
sociais e científicas tom e-se plausível que uma autodescrição da sociedade
contemporânea - que destaca a perda de razões vinculantes ou o difuso estilo
social e cultural rotulado por Lyotard com o pós-m odem idade (1986) - tenha
cumprido a função de favorecer a divulgação das opções epistem ológicas
construtivistas.9
Vinculadas às mudanças na ciência, desde a modernidade registram-se
incrementos na com plexidade da sociedade que se acumulam com o perdas de
confiança nas explicações gerais que levam consigo suas autoridades: a ciên­
cia, a política e a Igreja. N este sentido, o caso é que a autodescrição da socie­
dade contemporânea não se deixa reduzir por m onólogos baseados em teorias
totalizadoras.
Como documenta Manuel Castells (2000), ondas e cabos transportando
zeros, alguns servindo de base para as com unicações que transcendem países
e territórios com uma velocidade nunca antes imaginada, aceleram a globali­
zação enquanto produzem profundas alterações em nossas disposições sobre
o tempo e o espaço. A acentuação das diferenças culturais não é um fenôme­
no alheio à globalização, fenômeno mais relacionai que hegem ônico - contra
tudo o que se pensa! Como o singular dá passagem para o plural, inclusive
com o opção valorativa, por isso, respeitemos ou não as diferenças, aceitamos
cada vez mais a responsabilidade de decidir em que acreditar.10 Assim , as no­
vas experiências contemporâneas estimulam uma melhor compreensão da di­
versidade.

9 Embora errem suas interpretações mais comuns, pois o que para alguns é simplesmente a
perda de toda razão, somente é efeito de processos de diferenciação social. A única coisa que
acontece é uma fragmentação de razões e, portanto, de epistemologias. Antes bastava-nos
um par delas, agora temos dúzias!
10 Tudo isto projeta a individualidade a um status social onde a noção de pessoa surge como
uma de suas conseqüências mais evidentes e com todas as complicações que isso acarreta,
por exemplo, sua “dessubjetivação” e transformação em “ente” jurídico, ou político, ou eco­
nômico, dependendo do caso.

74 Marcelo Arnold Cathalifaud e Fernando Robles Salgado


O c o n stru tivis m o é um a ep istem o lo g ia anticientífica?
A divulgação do construtivismo não está isenta das tergiversações e sim­
plificações que degradam seus rendimentos. Este risco é inevitável quando se
discutem seus argumentos vinculando-os com os estilos culturais da new age
ou integrando-os em debates em tomo da oposição entre idealismo e materia-
lismo; subjetivismo e objetivismo ou solipsism o e empirismo. Assim, embora
o construtivismo mostre uma radical oposição aos postulados clássicos da
pesquisa naturalista que propõe um mundo cuja existência e efeitos podem
calcular-se com o independentes a sua observação, distancia-se claramente das
tendências céticas ou niilistas, com o já observara Feyerabend (1974).
Schmidt (1987) esclareceu que o construtivismo não propõe um solip­
sismo ontológico, simplesmente não afirma os conhecimentos na “realidade"
mas sim em “experiências de realidade" . Por essa mesma razão, as preocu­
pações mais difundidas de seus expoentes consistem em propor critérios para
a aceitabilidade e validação das explicações científicas sob um novo formato
(Luhmann, Maturana, Bateson, von Foerster e Piaget, entre outros).
A única coisa irrenunciável para os construtivistas é afirmar que nenhum
observador pode realizar operações fora dos limites traçados pelos condicio­
namentos estruturais que demarcam suas operações de observação, e que
quando se relaciona conhecimento com realidade somente se pode argumen­
tar que todo o observável é um ganho específico de um observador, incluindo
o seu observar o observar - refletir. Portanto, embora se pressuponha uma
complexidade - ou realidade - externa disponível, esta seria incognoscível.
Luhmann (1991) esclarece este argumento afirmando que embora não existam
constituições absolutamente endógenas e o entorno - mesmo que construído -
faz-se notar por seus ruídos, este não pode informar aos seus observadores.
Segue-se a isso a demonstração de Maturana e Varela (1984) sobre a ausência
de m ecanismos para distinguir entre o que ele denomina ilusões e percepções.
Os construtivistas assumem a cientificidade e permanecem com o pesqui­
sadores empíricos. Seus pesquisadores procuram gerar conhecimentos empí­
ricos aceitáveis para as comunidades científicas e tentam explicar os m eca­
nismos mediante os quais as experiências da realidade são construídas e com ­
partilhadas.
Os argumentos construtivistas não são pós-científicos, são sustentados
por pesquisas, comunicados em congressos, em revistas especializadas e em
livros com inúmeros experimentos. Na verdade, o que mais poderia surgir de
estudos sobre as coordenações neuronais incluídas na percepção visual de rãs,
pombas e salamandras, da coleta de dados com galvanômetros ou de estudos
acerca das operações de sistemas sociais parciais, organizações formais, m o­
vimentos sociais, grupos e interações. Para os construtivistas, a ciência con­
serva sua primazia funcional na produção de conhecimentos e apóiam seu ca­

0 construtivismo sistêmico nas ciências humanas e sociais 75


ráter de observatório privilegiado - embora não encontre pontos externos que
lhe permitam confirmar suas observações.
A s afirmações construtivistas que surgem da pesquisa empírica projetam-
se a partir das seguintes condições: em primeiro lugar, reconhecem a natureza
ativa e dinâmica do conhecer - cujos artefatos (descrições/percepções/ex­
plicações) emergem a partir das diferenças aplicadas por seus observadores;
e, em segundo lugar, assumem que esses artefatos - que operam no domínio
da descrição - não são idênticos às operações que buscam dar conta, estão em
um plano incomensuravelmente diferente.

Em q ue co n sis te a realid ade para os co n stru tivistas?


O construtivismo entende a observação, no espaço da sociedade, como
uma meta observação, e suas matérias - artefatos - consistem em notícias de
diferenças e não-territórios. Diferentemente das pressuposições sobre o co ­
nhecimento que considera possível uma observação não mediada da realida­
de, o construtivismo assume a construção da realidade com o uma produção
problemática que emerge de operações internas da ciência ou de seus equiva­
lentes funcionais.
Para o construtivismo, os conhecimentos da realidade são descrições que
resultam de operações de observação. Isto quer dizer, com o afirmamos ante­
riormente, que nunca vão coincidir com as operações que buscam dar conta.
Assim, o conhecimento do mundo com o resultado de experiências de obser­
vação depende das distinções que são aplicadas."
Como nas estruturas de um observador especifica-se sua experiência, não
podem estranhar as convergências entre sistemas que compartilham suas de­
terminações. Conectando com as mesmas pautas (paralelismos cognitivos)
são obtidos os (mesmos) resultados previstos. Do mesmo modo, são determi­
nações das operações de observação as que tomam provável a estabilidade
sobre a mudança no conhecimento da realidade, por isso a objetividade fica
relativizada ao contexto de sua (pré)determinação, ou seja, às operações que a
tomam visível.
O efeito conservador das observações explica-se porque seus artefatos
constituem-se a partir de indicações geradas por distinções que, justamente,
ao comunicar-se constituem premissas para sua reemergência. Embora so­
mente algumas observações sejam confirmatórias e a maioria seja desviadora
- a m udança é a única coisa p ro v á v e l - a estabilidade fica presa na descri­

11 Mas, quais seriam as características distintivas das diferenças? Não são materiais, não po­
dem ser localizadas, não podem ser situadas no tempo, não são quantidades, carecem de di­
mensão, não é energia, pois a energia está ali antes da chegada da informação ou que uma
resposta seja ativada, e para os órgãos sensoriais uma diferença é um sinal digital. Em con­
clusão: uma diferença é uma idéia nas mãos de um observador (Bateson, 1993).

76 Marcelo Amold Cathalifaud e Fernando Robles Salgado


ção. Assim , os registros atuam com o construções que existem sem motivo.
Tudo indica que existe algo - mesmo que seja o destino do incognoscível. Is­
to se explica porque toda indicação acarreta efeitos ontológicos. Somente um
observador especializado, e a partir de uma posição epistem ológica de segun­
da ordem, perguntar-se-á: o que há p o r trás dessa conform ação(?), devol­
vendo-lhes sua contingência.
Das operações de observação do sistema científico emerge um domínio
distintivo de realidade: a realidade do conhecimento científico na sociedade.
Isso não pode nos surpreender, não há nada de novo sob o sol. Lembremos
que a atividade científica, embora orientada para o desconhecido, o faz sob o
marco de um sistema fechado de alternativas. Os conhecimentos da ciência
são construídos sobre a base de suas distinções teóricas e hipóteses, as quais,
por sua vez, estruturam-se em seus paradigmas. Assim, tipos e estilos de pes­
quisa ficam, de uma ou outra maneira, auto-refletidos em suas próprias des­
cobertas.12
Então, o que faz a pesquisa científica? Como diria Bateson, às vezes m e­
lhora suas hipóteses e outras vezes refuta essas mesmas hipóteses, mas prová-
las é outra questão (1993, p. 371). Por isso, suas descrições e explicações en­
tram na comunicação social numa arena dinâmica e nunca podem ser garanti­
das com o observações “verdadeiras " ou “fin a is ”, som ente sua reiteração,
através da recursividade, marcará sua viabilidade.
A viabilidade do conhecimento da realidade tem relação com o sucesso
de operações que prosseguem diante de uma complexidade estruturada e par­
cialmente não controlada, mesmo quando autoconstruída.
Como afirma von Glaserfeld (1995), as construções de realidade sempre
estão medindo sua potência segundo sua utilidade para a sobrevivência de
seus sustentadores e, por isso, uma vez constituídas não se bastam a si m es­
mas.13 Por isso é a viabilidade, mais do que a certeza, que (auto)confirma os
resultados de operações de observação, ela deixa junto o que pode permane­
cer junto e estabelece o que pode ser estabelecido. Tudo é uma questão de
congruências entre ações e conhecimentos - afirmada a partir de uma obser­
vação externa.
Para os construtivistas, somente no domínio descritivo podem ser feitos
cálculos sobre os conhecimentos e somente ali são colocadas à prova suas
consistências ou se autocorrigem. Pensem os nos preconceitos, fobias, suspei­
tas ou fantasias que podem chegar a colapsar a variável crítica de seu obser­
vador: sua organização.

12 Não se pode esperar de quem se perguntar sobre o ambiente e a participação cidadã, que
preste informações sobre outros eventos em suas respostas.
13 Isto pode implicar que um observador desapareça sem se dar conta de seu erro epistemológi-
co. Por outro lado, premissas erradas podem funcionar bem, assim nossos "erros " epistemo­
lógicos podem reforçar-se e autovalidar-se (lembre-se Mr. Gardiner de Kosinski, notavel­
mente interpretada no cinema por Peter Sellers).

0 construtivismo sistêmico nas ciências humanas e sociais 77


N o plano das interações entre diferentes observadores, seus acoplamen­
tos não podem ser atribuídos a conteúdos comuns ou a realidades ônticas e
sim à presença de formas e m eios que, por um lado, facilitam suas conectivi­
dades e, por outro, os mantêm adaptados. Para tomar prováveis estes encon­
tros e suas funções, ao longo da evolução desenvolveu-se uma cultura que,
segundo Luhmann (1992), é um tipo de pré-seleção que, através de distinções
do tipo pertinente-impertinente, correto-incorreto, apropriado-inapropriado,
sustenta estruturas de expectativas que facilitam algumas com unicações em
detrimento de outras. A sistematicidade da cultura verifica-se diante das per­
turbações que atentam contra os construtos comuns, com o aquele que marca o
viés que denominamos loucura, nossos erros ao preencher formulários ou ao
captar as intenções de uma pergunta.14
O conhecimento obtém sua viabilidade das observações que os observa­
dores fazem de seus artefatos e não da verdade que estas contêm. O que ante­
cede tem outras conseqüências: que ao avaliar os conhecimentos, sejam eles
descrições ou explicações, inevitavelmente, deve-se colocar a atenção na sua
legitimação. N o campo da ciência, os propósitos de toda pesquisa ficam cir­
cunscritos a encontrar explicações melhores ou mais úteis, as que se definirão
em relação com outros observadores: em primeiro lugar, a comunidade cientí­
fica, logo seus próprios observados, os agentes de decisão ou os m eios de
comunicação. Por isso, com o todas as atribuições que se estendem aos conhe­
cimentos ficam delimitadas por observadores e não por critérios externos aos
m esmos, sua racionalidade sempre será performativa ou instrumental.15

C o m o o co n stru tivis m o en ten d e a si próprio?


Do ponto de vista de seu auto-reconhecimento, a epistem ologia constru-
tivista pode ser descrita com o uma espécie de processador cognoscitivo inte­
grado à sociedade, ao sistema social da ciência, às operações de conhecer e
aos conhecimentos e diferenças que estes geram.
A s explicações construtivistas harmonizam-se com a com plexidade al­
cançada pelas sociedades contemporâneas e se acoplam aos mecanismos ge­
rais da diferenciação funcional (tal com o estes são descritos por outros obser­
vadores especializados com base em outras seleções e com outras intenções).
A s com unicações construtivistas refletem um tipo estrutural de sociedade
onde se admite, com o experiências cotidianas, a coexistência de tipos e níveis
variados de objetividades/racionalidade, cada uma com suas respectivas clau­
suras - domínios institucionalizados - as quais, em seu conjunto, constituem
o sistema da sociedade. Assim , nos sistemas sociais com plexos, junto com o

14 Como já foi dito: que alguém tente preencher um formulário de apresentação de projetos sem
prestar atenção nas suas instruções!
15 Por isso as considerações ao destinatário da pesquisa social (Amold, 1999b).

78 Marcelo Arnold Cathalifaud e Fernando Robles Salgado


domínio dos conhecimentos garantidos pelas comunidades de cientistas so­
ciais, o poder, a fé, o dinheiro, o prestígio e as em oções desempenham impor­
tantes papéis nos processos constitutivos do conhecimento cotidiano.16
O primeiro exercício para conhecer o construtivismo consiste em “despa-
radoxar” 17 sua auto-referência; isso é alcançado traçando limites para delim i­
tar-se o fluxo contínuo e interconectado ao qual pertence. D e saída, pressupõe
tanto a diferenciação das ciências com o as que suas comunidades incorporem,
sistemática ou intuitivamente, as hipóteses acerca da autopoiésis, sobre o fun­
cionamento do sistema nervoso e os processos de auto-organização. Estas
idéias são dispostas junto ao relativismo histórico, às disciplinas da comuni­
cação, às teorias de sistemas e aos enfoques culturais e psicocognitivos.
O debate que gira em tom o das idéias construtivistas não produz apenas
novas alternativas para a tarefa científica,18 permite também o desenvolvi­
mento de suas diferentes abordagens e ênfases. Para reconhecer esse estado
de situação, tipificaremos as variedades com as quais o programa construti-
vista se oferece entre dois eixos. O primeiro diferencia posturas “sociais” e
“biológicas”; o segundo, suas pressuposições com respeito à realidade, entre
formas “duras” e “brandas”. A s variedades resultantes são indicadas no qua­
dro seguinte:

D uras B randas
C o n s t r u t iv is m o FENOMENÓLOGOS/PEDAGOGOS
OPERATIVO
Socioconstm tivism o
Sociais
Teoria de sistemas (Schütz, Berger e Luckmann)
sociais (Luhmann) Construtivismo pedagógico
(Ausubel et al.)
CONSTRUTIVISMO RADICAL PSICOCONSTRUTIVISMO

Teoria dos sistemas Epistemologia genética (Piaget)


B iológicas
autopoiéticos (Maturana). Enação (Varela)
Construtivismo radical
(von Foerster; Bateson)

Como o construtivismo não oferece uma apresentação m onolítica, sob o


seu rótulo podem ser reconhecidas variações que integram tradições de dife­
rentes disciplinas, inclusive com diferenças radicais, por exem plo, as teorias

16 Seus conflitos, às vezes, estão mais relacionados, como destacam os estudos foucaultianos,
com as estruturas de dominação onde circulam, mas também, num nível mais básico, com os
estados de ânimo.
17 Conceito de Luhmann, em alemão "Entparadoxienmg"
18 ...E muitos, muitos céticos diante dos resultados dessa forma de operar!

0 construtivismo sistêmico nas ciências humanas e sociais 79


interacionistas sim bólicas parecem concepções neo-positivistas do lado das
idéias de Bateson.
A partir das posições “brandas”, a realidade é representada com o um es­
tado extrínseco ao observador, do qual é possível tirar conclusões e a partir
dali são explicadas as convergências cognitivas de diferentes observadores.
U m tipo de princípio das possibilidades limitadas une os construtivistas com
os fenom enólogos - do estilo Shütz - que apostam nos entendimentos inter-
subjetivos. Da mesma forma, mas a partir da biologia, Francisco Varela
(1990; 1993), aplicando o conceito de enação (enacción), explica com o a
operatividade dos sistemas observadores surge em processos subjetivos e ob­
jetivos de co-determinação circular, onde sua perduração é conseqüência de
auto-regulações entre ação e conhecimento disponibilizado a partir do entor­
no. A epistem ologia genética de corte piagetiano (1970), na perspectiva da
aprendizagem, também foi aplicada na mesma direção, empregando os con­
ceitos de assimilação e de acom odação.19 Os pedagogos, por sua vez, acredi­
tam que a experiência toma o conhecimento convergente. D e certa forma, es­
tas variações têm com o atrativo não romper com as ontologias - embora as
questionem.
Tanto o construtivism o radical com o o operativo - “duros” - não se
aproximam de explicações ou argumentos realistas, embora tampouco os ne­
guem, pois isso já seria uma declaração de realidade: não existe a realidade!.
Para estes construtivistas não há observações (dados, leis da natureza, objetos
externos) que possam ser postulados independentemente dos observadores.
Para eles, mesmo quando um observador somente tem conhecimento através
de suas operações de observação e, portanto, não pode ter um contato em
termos informativos com o mundo extem o, tampouco pode afirmar que este
não seja com o é.20 Os conceitos centrais destas posturas depreendem-se do
conceito de autopoiésis e constituem-se, conseqüentemente, em clausura ope­
racional, auto-informação e determinismo estrutural.
A s diferenças entre elas centram-se na com posição basal da autopoiésis:
para Maturana esta reside no metabolismo celular e sua extensão para o sis­
tema nervoso e, para Luhmann, a autopoiésis é própria das operações comu­
nicativas da sociedade.
Na comunicação da sociedade, os argumentos do construtivismo são tra­
tados com o artefatos que explicam a produção de uma realidade que nesse
sentido: sem pre é sociall Por isso, embora a epistem ologia construtivista se
projete a partir da neurobiologia ou a partir de processos da consciência, seu

19 A assimilação confere significados aos fatos e é transformadora destes através desta incorpo­
ração, mas, por sua vez, o objeto exigirá modificações no esquema assimilador (ver noção de
realidade objetiva em Piaget)
Este fenômeno tem relação com o fato de que todo observador comporta-se como um siste­
ma fechado e determinado estruturalmente e, como tal, somente pode observar o que pode, e
somente issol

80 Marcelo Arnold Cathalifaud e Fernando Robles Salgado


efeito somente ocorre na sociedade. A lém do mais, as mesmas hipóteses cons­
trutivistas, sustentadas por estudos da bioquímica da vida, são sociais p o is
somente assim tom am os conhecim ento delas\.
Concordamos com Luhmann (1999b) que nas ciências humanas e sociais
estas distinções são imprescindíveis para desembaraçar as discussões pois,
por exem plo, quando se faz a distinção entre os conhecimentos comuns e os
científicos ninguém argumentaria a partir das diferenças entre tipos de cons­
ciência ou qualidade de neurônios. Pelo contrário, faz-se alusão a diferencia­
ções validadas na evolução do sistema social da ciência na sociedade.

Q ual o tip o de o b s ervação propõ em os co n stru tivistas


às ciên cias h u m an as e sociais?
O construtivismo não abandona suas pretensões científicas no mar do re­
lativo, frágil ou dissipativo. Pelo contrário, sua tarefa consiste em registrar
distinções identificando os níveis emergentes, e sempre dinâmicos, da com ­
plexidade que se reduz através dos conhecimentos.
As pesquisas construtivistas informam sobre os m ecanismos que geram
os conhecimentos que circulam na sociedade. Seus objetos de pesquisa não se
reduzem ao registro de lascas, tamanhos de prédios, taxas de criminalidade,
quantidade de abortos, hábitos de consumo, preferências eleitorais ou pro­
gramações de televisão, tratam das distinções que dão origem a essas realida­
des.21 R econhecem as com plicações do social, onde tanto os observados co ­
mo os observadores têm algo a dizer com respeito a suas distinções. Suas o-
perações de observação são observações de observações e seu método deno­
mina-se observação de segunda ordem (Am old, 1997).
A proposta construtivista diante da observação de observações - distin­
guir distinções - eqüivale a uma observação especializada das ciências huma­
nas e sociais. A distinção da observação de segunda ordem é a de não tratar
com objetos, mas com observadores que aplicam distinções e seguem seu
percurso. Por exem plo, distinguir seus inícios para depois descrever com o,
através de processos recursivos, as realidades são consolidadas - com o ocorre
quando se acompanham as tramas das novelas.
As observações de segunda ordem indicam e descrevem os mecanismos
construtores e reprodutores de realidade, com os quais os observadores confi­

21 Neste ponto, reencontramos os problemas inerentes a observações de sistemas observadores


que auto-observam suas operações, como pode ser amplamente exemplificado com a temati-
zação dos lalibãs ou com as disputas com respeito aos atentados de setembro em Nova York.
Todas estas observações incrementam a complexidade da sociedade. Fazendo referência a
este tema, von Foerster (1985), argumentou que nossas ciências brandas devem encarregar-
se dos problemas, enquanto que as ciências duras baseiam seu sucesso em dedicar-se aos
problemas brandos, n3o sujeitos a contingências e triviais.

O construtivismo sistêmico nas ciências humanas e sociais 81


guram seus conhecim entos22. Seus procedimentos permitem pesquisar as di­
versas formas através das quais pessoas, grupos, comunidades, organizações e
outras formas de sistemas sociais organizam, validam experiências, tomando-
as conteúdos de suas com unicações e de que posição o fazem.23
Os construtivistas consideram que a realidade compartilhada, no que se
refere ao que está estabelecido, surge da capacidade que todo observador tem
para observar os esquemas de diferenças aplicados por outros observadores.
Em outras palavras: "aprender " de outros. Também destacam com o os novos
conhecimentos - ou visões de mundo - surgem quando se experimentam dife­
renças com novas diferenças.
Em parte, estas idéias não são muito novas. Há muito tempo, os antropó­
logos culturais percebiam que as complementaridades cognoscitivas produ­
zem e reproduzem as ordens sociais (Am old, 1987).24 Hoje compreendemos
melhor essas idéias, trata-se de processos cibernéticos que operam com o re­
formulações e encaixes entre experiências e operações cognitivas, cuja ex­
pansão recursiva - sempre é possível fazer diferenças entre diferenças - tem
limites pragmáticos. A estabilização das distinções tem a ver com sua reitera­
ção em outro momento do tempo."3 Uma conseqüência do que antecede é o
fenômeno do autocumprimento das distinções e dos mundos de conhecimento
que revelam.
Na observação de primeira ordem o observador vive em um nicho, seu
mundo fenom ênico e experiências tomam formas de ontologias, onde aquilo
que percebe somente pode ser o que é, já que não reflete sobre a distinção
que o toma possível; a segunda ordem abre o conhecimento à contingência
estabelecendo-se assim uma alteração no fechamento recursivo de toda ob­
servação. Seu aporte reside na possibilidade de ver o que outros não vêem e a

22 Nada foge desta abordagem desde indicar as “formas de ver o desenvolvimento e a moderni­
zação” até discutir acerca das “bases de confiança que operam em nossa sociedade” (núme­
ros e não quantidades).
23 Esse olhar estimula nosso interesse em conhecer as diversas formas através das quais pessoas
(projetos de vida), grupos (cultura mineira; visão dos jovens), comvnidades (autopercepção
das classes médias), organizações (critérios de focalização dos serviços públicos) e outras
formas de sistemas sociais produzem seus conhecimentos (como são vistos hoje os meca­
nismos de articulação politica).
24 Essa perspectiva teórica, inaugurada pelos antropólogos Ward Goodenough e Floyd Louns-
bury (1962, Universidade de Yale), enfatiza a identificação e descrição dos meios - cultu­
ralmente disponíveis - que estão à disposição dos membros de um sistema social para cate­
gorizar suas experiências, enquanto que a Antropologia simbólica coloca sua atenção na sig­
nificação de tais categorias (Amold, 1987).
25 E sugestivo como através da produção e reprodução de leis, crenças, conhecimentos, do­
cumentos, declarações, receitas, conselhos, comentários e estereótipos, a cultura, montada
em seu veículo lingüístico, modela determinadas formas de reconhecimento. Estas, em sua
aplicação são reintroduzidas na sociedade e ao fazê-lo, dão início a um plano operativo de
objetividade que, em alguns casos, num franco hiperetnocentrismo, é concebido como o úni­
co possível.

82 Marcelo Arnold Cathalifaud e Fernando Robles Salgado


novidade consiste em que o observador de primeira ordem, enquanto discri­
mina seus objetos não pode observar com o pode observar, ou seja, não reco­
nhece que seu conhecimento é provocado por sua própria participação.
O surpreendente na abordagem de segunda ordem é que ao indicar as dis­
tinções usadas por um observador, registra-se o que para ele é inobservável
(Luhmann, 1999a). Na linguagem sociológica diríamos que a matéria infor­
mativa da observação construtivista são as funções latentes, aquelas não reco­
nhecidas por aqueles que as sustentam e executam e que, portanto, não podem
comunicá-las. Estas referências não são desconhecidas por outras tradições
teóricas. Por exem plo, a teoria crítica, a psicanálise ou a sociologia do conhe­
cimento discutiram bastante sobre o latente - embora sintam-se tentados a
trabalhar com avaliações do tipo verdade/erro, subjetivo/objetivo ou funcio-
nal/disfuncional. Mas a perspectiva construtivista, que não tem com o tarefa
descobrir erros, afasta-se das hipóteses que interpretam os condicionamentos
inobserváveis do observador com o deformações do conhecimento - fa lsa
consciência. Pelo contrário, os construtivistas destacam que a im possibilidade
de distinguir uma distinção, durante sua aplicação, é o fundamento básico do
conhecimento e se este for classificado com o latência será somente a partir de
uma construção em outro nível de observação (Luhmann, 1999b) para o qual
valem outras distinções - de segunda ou de terceira ordem - e para os quais
rege a mesma condição de inobservância.
Para Luhmann (1999b), o construtivismo é uma oportunidade para recu­
perar epistem ologicam ente as distinções latentes demonstrando a utilidade de
observar as formas usadas por um observador quando aplica algo que, no
momento de sua utilização, não é observável e com o, desta maneira, gera seu
conhecimento. Isto permite observar o que está por trás disso, distinguir a dis­
tinção.
Certamente, o observador de segunda ordem, concentrado em observar
aquilo que para outro é inobservável, carece de outra possibilidade que não
seja a de usar suas próprias distinções. Ele dispõe também de seu ponto cego,
sua própria observação continua ligada a um instrumento que, no momento de
sua utilização, é aplicada sem questionamentos.
Se um observador distingue sua distinção e a aplica autologicam ente,
suas operações tomam -se paradoxais - vejo o que vejo com o que vejo para
desparadoxar-se obriga-se a introduzir assimetrias do tipo antes/depois, de
replicar distinções com o a de sistema e ambiente (dentro/fora) ou, com o ocor­
re nos sistemas sociais parciais, mediante as codificações binárias. Por exem ­
plo, a ciência distingue naquilo que observa o que é verdadeiro do que não é
verdadeiro, a justiça distingue o que é legal do que é ilegal, e a religião, o que
é farsa do que é milagre.
Como podem os ver, a observação de segunda ordem insere-se muito bem
na diferenciação de uma sociedade onde existem múltiplas p osições de obser­

0 construtivismo sistêmico nas ciências humanas e sociais 83


vação que levam a dispor de muitas observações sem poder indicar nenhuma
com o a melhor ou a mais completa (Luhmann, 1995). Esta indicação tem o
seguinte sentido: a possibilidade de que um obsen>ador p o ssa observar outro
sistem a obser\’ador, ou seja, a possibilidade de fazer observação de segunda
ordem está na própria sociedade. Somente nela são encontradas as distinções
que possibilitam as observações do que é latente, com o por exemplo: siste­
ma/ambiente, sujeito/objeto, consciente/inconsciente, ou até a própria mani­
festo/latente.26
O construtivismo reforça a idéia de que no ponto de partida de toda ob­
servação, inclusive na observação de uma observação, encontra-se uma dife­
rença: aquela que faz a diferença. Desde as distinções que diferenciam e con­
ferem valor de conhecimento até as configurações que os observadores fazem
ao construir seus mundos. N este campo, as observações de segunda ordem
constituem-se em focos estratégicos para a pesquisa social. Suas sínteses, ou
seja, a teoria da sociedade que provier delas caberá a uma de suas autodescri-
ções, esperamos sejam as melhores.
Luhmann (1993) sugere que uma teoria que assumir as considerações ex­
postas, poderá chegar a ser uma teoria da sociedade ancorada no sistema par­
cial da ciência, mas deverá satisfazer-se com proporcionar apenas uma teoria
da sociedade. Encontrará a si própria em um mundo constituído de maneira
p olicontextu al e quanto mais suas comunidades assumirem sua própria con-
textualização, terão a sensação de um doloroso sacrifício diante da sua certe­
za de que existem outros pontos de partida para a observação do social.27
Para concluir, lembremos que nossa intenção foi a de indicar as caracte­
rísticas do programa epistem ológico sistêm ico e construtivista, pois uma vez
conhecido o seu conteúdo, cabe, agora, agir conseqüentemente. N ão é tarefa
fácil, mas ali se encontram alguns dos desafios que esperam encontrar solução
neste novo século. Já observamos avanços, por exem plo, na pesquisa-ação, na
avaliação iluminadora, nos estudos qualitativos da opinião pública, nas estra­
tégias derivadas do etnodesenvolvim ento, na educação popular, na comunica­
ção alternativa e no planejamento estratégico organizacional. Em todos estes
casos o olhar auto-referencial é aplicado, inclusive sem ser reconhecido como
tal. Essa é outra prova da potência e “naturalidade” prática contemporânea da
anunciada renovação a qual fizem os referência.

26 Faz-se referência à noção de autopoiésis.


27 Nesse sentido pode-se compreender melhor a anunciada morte da sociologia indicada pelo
sociólogo chileno J. J. Brunner.

84 Marcelo Arnold Cathalifaud e Fernando Robles Salgado


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86 Marcelo Arnold Cathalifaud e Fernando Robles Salgado


Laclau e Luhmann: um diálogo possível

Daniel de Mendonça
Léo Peixoto Rodrigues

------- ♦-------

In tro d u ção
A ssim com o o termo “estrutura”, que no início da segunda metade do sé­
culo passado suscitou uma multiplicidade de significados em diferentes áreas
do conhecimento científico, ocasionando inclusive um Colóquio interdiscipli­
nar em Paris1 para discutir o seu sentido, o termo sistema tem apresentado
uma vasta possibilidade de significados e entendimentos entre os seus interlo­
cutores.
Em outro trabalho, realizamos o resgate de alguns aspectos teórico-
históricos do pensamento sistêm ico,2 que sofreu diferentes e radicais acep­
ções, desde seu marco referencial iluminista, com o desenvolvim ento da S e­
gunda Lei da Termodinâmica. O chamado “novo pensamento sistêm ico” teve
origem, pois, na abordagem desenvolvida pelos cibem eticistas, na década de
40, que desenvolveram, num primeiro momento, o importante conceito de re-
troalimentação ou feedback, que revolucionaria mais tarde a informática.
Num segundo momento, outro importante conceito, também desenvolvido pe­
la Cibernética, foi o de auto-organização, posteriormente incorporado pela
Biologia da Cognição, com a Teoria de Santiago, proposta por Humberto M a­
turana e Francisco Varela, na década de 70, com o desenvolvim ento do con­
ceito de “autopoiésis”.

1 O colóquio “Colóquio sobre o Termo Estrutura” foi patrocinado pela UNESCO, de 10 a 12


janeiro de 1959. Sobre as discussões ver Bastide (1971).
2 Em Rodrigues (2000) discutimos as concepções sistêmicas tradicionais, abordando alguns
aspectos históricos sistêmicos da Física, Biologia e Cibernética (Warren McCulloch, Von
Bertalanffy, Maturana e Varela), bem como na Sociologia (Talcott Parsons, Karl Deutsch,
David Easton), buscando ressaltar a diferença entre essa tradição e o Novo Pensamento Sis­
têmico.

Laclau e Luhmann: um diálogo possível 87


A partir da década de 80, de forma transdisciplinar, diferentes teorias
passaram a utilizar similares conceitos, tais como: autopoiésis, auto-
organização, auto-referência, clausura operacional e sistema fechado para en­
frentar a sempre crescente com plexidade teórica, pós-iluminista, a que a ciên­
cia tem-se confrontado. D o ponto de vista epistem ológico, os avanços do
pensamento sistêm ico, para alguns teóricos, são considerados com o pós-
fundacionalistas, uma v ez que realizam uma forte crítica ao conhecimento
Iluminista - e à conseqüente noção de verdade - à epistem ologia analítica e
fundacionalista e à metafísica tradicional. Stãheli, neste sentido, argumenta:
A Teoria dos Sistemas [...] constitui-se num complexo escopo teórico-
epistemológico o qual propõe que a sociedade, ou melhor, que os fenôm enos so­
ciais, sejam pensados a partir de uma perspectiva pós-fundacionalista que, ao
contrário do tratamento iluminista dado aos paradoxos no sentido de resolvê-los
rapidamente [...] a auto-referência gera paradoxos e compele o observador a de­
senvolver meios específicos de desparadoxação (Stãheli, 1996, p. 257).3

Partindo da perspectiva do “N ovo Pensamento Sistêm ico”, o objetivo ge­


ral deste capítulo é o de trazer à tona possíveis relações que possibilitam um
estudo comparativo de alguns conceitos-chave no âmbito da Teoria do Dis­
curso de Ernesto Laclau (1985) e da Teoria dos Sistemas Sociais de Niklas
Luhmann (1998). U m aspecto fundamental que norteia a nossa análise com­
parativa é que ambos os autores, no desenvolvim ento de suas teorias, estão
inscritos numa perspectiva sistêmica,4 cujas características gerais são: (a) sis­
tema fechado: porque existe uma circularidade necessária e suficiente entre
seus elementos para que toda e qualquer operacionalização com vista à manu­
tenção do próprio sistema se realize a partir dos seus próprios componentes;
(b) diferenciação sistema-entomo: porque o sistema apresenta limites (fron­
teiras ou bordas) que o diferencia do m eio ambiente (entorno) em que está in­
serido, acoplado; (c) sistema auto-referente (autopoiético): porque produz e
reproduz a si próprio de forma semântica, o que significa afirmar que respon­
de às transformações do meio ambiente em que está acoplado, a partir de seus
próprios componentes operacionais, com vista a sua manutenção; (d) vincu­
lam-se a uma teoria da diferença.

3 Todas as citações em língua estrangeira foram traduzidas livremente pelos autores exclusi­
vamente para este trabalho.
4 Na verdade, a perspectiva epistemológica que norteia este capítulo é a da “Nova Teoria dos
Sistemas Sociais”, sendo que, a partir desta, propomos um exercício entre as Teorias de La­
clau e Luhmann. Desta forma, estamos plenamente cientes que tanto as nomenclaturas como
propriamente os sentidos das categorias utilizadas por estes autores possuem, em muitos
momentos, importantes discrepâncias, tendo em vista que tais autores chegaram ao desen­
volvimento de suas teorias partindo de caminhos diversos. Apesar disso, nos trabalhos que
temos desenvolvido individualmente sobre cada um destes autores, verificamos muitas con­
gruências entre diversas categorias e, por isso, uma rica possibilidade de diálogo entre os
mesmos.

88 Daniel de Mendonça e Léo Peixoto Rodrigues


Um olhar analítico-comparativo entre a Teoria do Discurso e a Teoria
dos Sistemas Sociais já vem sendo realizado. Urs Staheli (1996) apontou al­
gumas congruências e discrepâncias entre as propostas teóricas de Ernesto
Laclau e Niklas Luhmann quando comparou a “função da unidade”, no dis­
curso (Laclau) e no sistema (Luhmann), representada respectivamente pelo
“significante vazio” e pelo “código”.5
A exem plo das comparações que já têm sido realizadas, neste trabalho,
estabeleceremos algumas relações entre alguns conceitos teóricos de Ernesto
Laclau e Niklas Luhmann. Compararemos as categorias sistema/entorno, de
Luhmann, com discurso/campo discursivo, de Laclau. Enfocaremos, ainda,
pontos convergentes em relação às noções de teleologia, contingência e senti­
do, tratadas por ambas abordagens teóricas.

S istem a e au to -referên cia


A teoria sistêmica de Luhmann propõe-se a romper com a “tradição epis­
temológica fundacionalista”6 em que as teorias sociológicas têm-se funda­
mentado desde o seu nascimento, no seio da “Filosofia Positiva”, e cujos de­
senvolvimentos posteriores, com poucas exceções, passaram a oscilar entre
perspectivas epistem ológicas acionistas e estruturalistas. Para Luhmann, as
teorias, incluindo a sistêmica, que se utilizam dessa “tradição epistem ológi­
ca”, não conseguem dar conta de uma complexidade teórico-científica sempre
crescente. E neste sentido que “novo pensamento sistêm ico”, voltado para
possibilitar a análise do social, propõe-se a delinear uma teoria geral para os
sistemas sociais, cujo enfoque primordial é o enfrentamento da com plexidade
epistêmica, característica do “real”. A teoria social dos sistemas auto-
referenciados tem por objetivo romper com o pensamento sistêm ico, com o
funcionalismo e com o estrutural-funcionalimo clássicos. Luhmann, ao se re­
ferir à nova abordagem sistêmica, tem defendido a perspectiva de que toda a
teoria sistêmica deva constituir-se na observação da diferença entre siste­
ma/teoria sistêmica e entorno. Para ele, a noção de sistema obriga-nos a per­
cebê-los, com o estando estruturalmente orientados sempre em relação ao que
lhes circunda, ou seja, em relação ao seu m eio ambiente (entorno). N este sen­
tido, os sistemas irão se constituir, estruturalmente, sempre em relação ao seu
entorno; sem o qual, não poderiam existir. Segundo esse autor, sistemas sem ­
pre são constituídos e mantidos “mediante a criação e a conservação da dife­
rença com o entorno, e utilizam seus limites para regular tais diferenças. Sem

5 Sobre tais conceitos, específicos das teorias de Laclau e de Luhmann, ver: Laclau (1996) e
Luhmann (1991 e 1985).
6 Referimo-nos a uma epistemologia de cunho analítico, inscrita em uma tradição fundaciona-
lista, cujo conceito de verdade é sustentado por uma perspectiva ‘linear’ dos fenômenos, em
contraposição a uma abordagem complexa.

Laclau e Luhmann: um diálogo possível 89


diferença com relação ao entom o não haveria auto-referência já que a dife­
rença é a premissa para a função de todas as operações auto-referenciadas”
(Luhmann, 1998, p. 40).
A categoria “sistema” também não é estranha à terminologia de Ernesto
Laclau. Foi, aliás, um termo freqüentemente utilizado pelo autor em seu livro
Em ancipación y diferencia (1996), com o sinônimo de “sistema discursivo”.
N esse ponto, podem os estabelecer a primeira concordância entre o sistema
discursivo descrito por Laclau em relação ao modelo sistêm ico proposto por
Luhmann. Enquanto verificamos que, para Luhmann, um sistema tem por ca­
racterística essencial operar no interior de seus limites, estabelecendo, dessa
forma, uma diferença radical entre sistema e entomo, na perspectiva da teoria
do discurso de Laclau, esse corte diferencial ocorre de forma similar entre o
sistema discursivo e o que está além de seus limites, ou seja, o que não está
discursivamente articulado. Segundo a teoria do discurso, a produção de sen­
tido ocorre internamente, frise-se, nos limites do sistema discursivo, a partir
da articulação de seus próprios elementos: “a possibilidade do sistema é equi­
valente à possibilidade de seus lim ites”. Laclau ainda acrescenta:
U m a co nsideração inicial e puram ente form al pode ajudar a esclarecer o ponto.
Sabem os, a partir de S aussure, que a língua é um sistem a de diferenças; que as
id entidades lingüísticas - os valores - são p uram ente relacionais; e que, por con­
seqüência, a totalid ad e d a língua está im plicada em cada ato individual dc signi­
ficação. Pois bem , nesse caso está claro que essa to talidade é um requerim ento
essencial da significação - se as d iferenças não constituíssem um sistem a, ne­
nhum ato de significação seria possível. O problem a é, con tu d o , que se a po ssib i­
lidade m esm a da significação é o sistem a, a p o ssibilidad e do sistem a é equivalen­
te à p o ssibilidade de seus lim ites (L aclau, 1996, p. 71).

Stãheli (1996) concorda com a possibilidade de percepção do inte­


rior/exterior nas perspectivas sistêm icas de Laclau e de Luhmann, quando
afirma que ambas propostas teóricas - tidas por teorias da diferença - não
partem de uma última garantia de unidade, mas de diferenças constitutivas.
Dentre essas diferenças constitutivas está, na Teoria dos Sistemas Sociais, a
diferenciação entre sistema/entorno, enquanto que, na Teoria do Discurso,
tem-se com o diferença constitutiva a relação entre o discurso e o campo da
discursividade.7
Afirmamos que a produção de sentido ocorre no interior de um sistema
discursivo. Dizer isso, nos leva imediatamente a estabelecer duas conclusões
iniciais: a primeira é que a prática articulatória estabelecida entre momentos8

7 Não estamos esquecendo que o exterior discursivo está também constituído por discursos an­
tagônicos que são, segundo Laclau, ao mesmo tempo, condição de possibilidade e de impos­
sibilidade de uma formação discursiva.
8 Na designação de Laclau Mouffe(1985), “momentos” são posições diferenciais articuladas
no discurso.

90 Daniel de Mendonça e Léo Peixoto Rodrigues


de um sistema discursivo é auto-referente, uma vez que ela se realiza no inte­
rior de seus próprios limites e a partir de suas próprias estruturas; a segunda
conclusão é que a pressuposição da existência de limites num sistema discur­
sivo significa a própria im possibilidade que o exterior tem de produzir senti­
do nesse sistema discursivo auto-referente. Conforme Stãheli, “siste­
mas/discursos não dispõem de nenhum nível extra-sistêmico com o fundamen­
to último [...] e, dessa forma, podem fundamentar-se apenas a si próprios”
(1996, p. 261).
Dessa forma, se em Luhmann, o exterior do sistema é o entorno (meio am­
biente), para Laclau, o exterior do sistema discursivo está formado, tanto por
outros discursos como pelos significantes flutuantes (elementos9) — todos esses
extra-sistêmicos (extradiscursivos). Se, para Luhmann, a relação entre sistema e
entorno ocorre no âmbito de um sistema-mundo, na terminologia de Ernesto
Laclau, a relação entre sistema discursivo e o que está além dele ocorre num es­
paço o qual podemos denominar de “campo da discursividade”.10

T e le o lo g ia e co n tin g ên cia
Como havíamos m encionado, na abordagem sistêmico-auto-referenciada
proposta por Luhmann (1998b), o sistema obrigatoriamente diferencia-se do
meio em que está acoplado. Essa diferenciação leva em conta exclusivamente
os processos “internos” do sistema que se retroalimentam, se auto-organizam
e se autoproduzem (autopoiésis)11 configurando, assim, o chamado fechamen­
to operacional que independe de uma relação de input e output (trocas) ou
mesmo de qualquer tipo de nexos funcionais com o m eio ambiente. Quando
consideradas as características desse tipo de sistema, é colocada, de imediato,
uma importante questão de cunho epistem ológico com relação não apenas ao
pensamento sistêm ico tradicional, mas também em relação às perspectivas

9 Na terminologia de Laclau (1985), “elemento” é qualquer diferença que não está discursi-
vamente articulada.
10 Conforme Maingueneau, o campo discursivo “não é uma estrutura estratégica, mas um jogo
de equilíbrios instáveis entre diversas forças [...]. Um campo não é homogêneo: há sempre
dominantes e dominados, posicionamentos centrais e periféricos” (2000, p. 19).
11 Do grego, auto = por si só, poesis = produção. Maturana e Varela (1979), criadores deste
conceito, explicam que sistemas autopoiéticos são sistemas fechados que se auto-
referenciam. A auto-referência, neste caso, não significa simplesmente feedback. Na idéia de
feedback existe uma informação circular que “nasce” e “morre” num mesmo ponto, sempre
do mesmo modo; ou seja, ao considerarmos o conhecido exemplo do termostato (Ashby,
1970) como um feedback system, temos que: um dado ambiente aquece, a cápsula do ter­
mostato expande, controla o fluxo de gás, o gás diminui, a cápsula esfria e contrai, ativando
também com a contração o fluxo de gás para mais. Neste caso, o termostato é um feedback
system, mas não um sistema autopoiético. A autopoiésis requer produção, transformação,
adaptação do sistema em relação às transformações do seu meio (entorno). A autopoiésis re­
quer sempre uma interpretação semântica do sistema em relação ao meio ambiente. Isto dife­
re de uma mera circularidade informacional repetitiva.

Laclau e Luhmann: um diálogo possível 91


funcionalistas, estruturalistas e estrutural-funcionalistas; qual seja: o fim do
“dogma” teleológico. A idéia de função, por exem plo, traz implícita a noção
de um telos. Na epistem ologia positivista-funcionalista alguma coisa sempre
está em função de outra coisa; isto é, o termo função sempre traz consigo a
idéia de finalidade. Luhmann argumenta que: “o conceito de auto-referência
designa a unidade constitutiva do sistema consigo mesmo: unidade de ele­
mentos, de processos, de sistema. ‘Consigo m esm o’ quer dizer independente
de ângulo de observação de outros...” (Luhmann, 1998, p. 55). Nesta perspec­
tiva, a dimensão teleológica tom a-se uma dimensão da cognição do observa­
dor; ou seja, quem percebe nexos lógicos finalistas é aquele que observa o
sistema. Uma finalidade (telos) não está explícita ou é intrínseca aos proces­
sos sistêm icos auto-referenciados. Isto significa que a auto-referência é tam­
bém uma auto-referência teleológica; o sistema “justifica” a sua razão de ser
na própria razão de sê -lo .12 O desdobramento ou “giro” dessa perspectiva e-
pistem ológica coloca em relevo a discussão de uma fundamentação ontológi­
ca do conhecimento (pós-fundacionalismo).
A noção de sistema discursivo de Laclau é igualmente incompatível com
qualquer teleologia ou escatologia, tendo em vista seu caráter sempre precário
e contingente. Precário, pois toda a produção de sentido, construída por um
sistema discursivo, está sempre tendente a ser alterada na relação com outros
sistemas discursivos. Contingente, uma vez que não há (necessariamente) a
necessidade ou previsibilidade da produção de sentidos por um sistema dis­
cursivo. A contingência - algo não necessário obrigatoriamente, mas tampou­
co im possível - é uma propriedade dos sistemas autopoiéticos e está relacio­
nada com a multiplicidade de possibilidades de produção de sentidos por um
sistema discursivo. Em termos políticos, não há possibilidade de se precisar
qual o projeto político que pode tomar-se um discurso hegem ônico a priori,
ao contrário da previsibilidade teleológica da tradição marxista que via no
proletariado o inexorável papel de liderança na superação do capitalismo. Pa­
ra Laclau, a noção de contingência impede inclusive a previsão de qualquer
tipo de projeto emancipatório. Dessa maneira, um sistema discursivo resulta
de uma prática articulatória que não possui um plano de constituição a p rio ri,
com o podem os perceber nesta passagem:

Poderia argumentar-se que [...] a unidade discursiva é a unidade teleológica de


um projeto, mas isto não é assim. O mundo objetivo está estruturado em seqüên-

12 É pertinente salientarmos que Maturana, et al. começaram seus estudos, que deram origem
ao conceito de autopoiésis, com os processos cognitivos da cor. Tais estudos fizeram-nos
conceber a autopoiésis no próprio sistema nervoso, em que a “imagem” e a percepção da cor
dependiam de um processo auto-organizativo do sistema nervoso. Para Maturana, et. al. o
processo de cognição é dado exclusivamente no sistema nervoso, que é um sistema fechado
autopoiético. Para um maior aprofundamento ver: Biology and cognition (1970); De máqui­
nas y seres vivos (1995) A árvore do conhecimento (1995); Ontologia da realidade (1997);
Da biologia à psicologia (1998).

92 Daniel de Mendonça e Léo Peixoto Rodrigues


cias relacionais as quais não necessariamente possuem um sentido finalístico e
que, em muitos casos, na realidade, não requerem qualquer sentido. E suficiente
que certas regularidades estabeleçam posições diferenciais para estarmos aptos a
falar numa formação discursiva (Laclau e Mouffe, 1985, p. 109).

Como vim os acima, Laclau argumenta que são suficientes “certas regula­
ridades” para que possam os falar de uma formação discursiva. Isso porque,
apesar da busca que um sistema discursivo incessantemente faz em direção a
uma fixação última de seus sentidos, tal busca sempre será em vão tendo em
vista às constantes suturas que esta formação discursiva sofrerá na sua relação
com o campo da discursividade. Contudo, com o estamos diante de uma teoria
das diferenças, esta fixação, mesmo de forma parcial é requerida, uma vez
que se esta não existisse, não haveria o porquê de se falar mesmo na idéia de
sistema, a qual pressupõe, a partir do estabelecimento de seus limites, aquilo
que é interno e, portanto, constituinte deste, e aquilo que lhe é externo e, por­
tanto, estranho a este.
N esse sentido, os limites do sistema discursivo se dão a partir do estabe­
lecimento de seus sentidos que, com o afirmamos, são sempre parciais. Esta
fixação parcial é dada por um ponto discursivo privilegiado chamado de pon­
to nodal13, o qual articula os diferentes momentos constituintes de uma for­
mação discursiva e, por conseqüência, acaba por os diferenciar, bem o discur­
so como um todo, de outras formações discursivas, de elementos e de discur­
sos antagônicos dispersos no campo da discursividade.

S en tid o
Para Luhmann, tanto a sociedade com o o indivíduo devem ser vistos co ­
mo sistemas. A sociedade constitui-se num sistema social e o(s) indivíduo(s)
em sistema(s) p síqu ico(s).14 Os sistemas, em Luhmann, são incom unicáveis
diretamente. Para um sistema auto-referenciado, tudo o que não for ele m es­
mo é m eio ambiente, inclusive os demais sistemas, imaginando-se um siste-
ma-mundo. Tudo o que o m eio ambiente faz é irritar o sistema que pode res­
ponder auto-organizando-se e, neste caso, estaríamos frente a uma comunica­
ção indireta, ou uma autocomunicação. E neste sentido que Luhmann (1988)
se refere à improbabilidade da comunicação e também é aí que se dá o espa­
ço, não-determinista com o afirmam alguns, mas justamente construtivista da

13 Laclau e Mouffe (1985) atribuem à psicanálise de Lacan a origem da categoria “ponto no­
dal” na teoria do discurso, quando incorporam do psicanalista francês a noção de points de
capiton que são significantes privilegiados que fixam sentidos numa cadeia significante.
14 Maturana (1970), ao estudar o sistema nervoso, constatou que a cognição, o processo de per­
cepção, o conhecimento davam-se de maneira sistêmica e operativamente fechada. Para ele,
o sistema nervoso é um sistema autopoiético. Não entraremos nessa questão —freqüente nos
atuais debates epistemológicos - sobre este assunto ver: Maturana e Varela (1970), (1979);
Maturana (1997).

Laclau e Luhmann: um diálogo possível 93


sociologia luhmanniana. N um sistema psíquico, isto é, em cada indivíduo, es­
sa comunicação indireta caracterizar-se-ia pelo que chamamos de entendi­
mento, pela construção de entendimento, uma vez que todo entendimento
sempre é um auto-entendimento, uma autocognição. Sendo assim, se a cons­
ciência ou sistema psíquico, com o denomina Luhmann, constitui-se numa u-
nidade discreta (uma unidade singular), ou seja, numa unidade sistêmica auto-
referente, então entre diferentes sistemas de consciência constroem diferentes
sentidos acerca do entorno, acerca do mundo. Tais sentidos podem coincidir,
se aproximar, serem inclusive percebidos com o idênticos, mas foram constru­
ídos sempre a partir das estruturas internas de cada sistema auto-referente, ou
seja, de cada sistema psíquico que elabora, filtra, utiliza ou refuta as comuni­
cações (irritações) que provêm a partir do entorno. Para Luhmann (1998, p.
79), todo o entorno (ambiente de um sistema) se faz na perspectiva de senti­
do, sendo que os “limites do entorno são limites de sentido; por conseguinte,
remetem-se ao mesmo tempo para fora e para dentro. O sentido em geral, e os
limites de sentido em particular organizam o nexo insuperável entre sistema e
entorno mediante a forma especial de sentido”. A partir dessa perspectiva,
tanto Niklas Luhmann com o Ernesto Laclau estabelecem importantes argu­
mentos para uma teoria da diferença.
Decorre, então, que para Luhmann, “a socialização sem pre é uma auto-
socialização", uma vez que é im possível, na perspectiva sistêmico-auto-
referente, a transferência de sentido de um sistema a outro. Como todo siste­
ma autopoiético não contempla uma teleologia, a consciência realiza e vive a
socialização em si mesma. A conseqüência disso é que os sistemas, assim
com o as consciências individuais, não dependem de qualquer tipo de consen­
so moral (bem, mal, certo, errado). A auto-socialização seria um produto da
reflexividade do sistema/entorno, através da seletivid a d e contingente de sen­
tido, próprio da auto-referência. Em outras palavras, as consciências indivi­
duais e a(s) sociedade(s) são sistemas auto-referentes, o que implica que todo
e qualquer entendimento acerca do mundo é um produto dessa auto-
referência. Logo, o(s) entendimento(s) será(ão) a(s) construção(ões) possí-
vel(is) que um sistema psíquico ou social pode(m ) realizar. Evidentemente
que essa auto-organização, ou essa autoconstrução de sentido irá refletir, de
alguma maneira, o tipo, a qualidade do conteúdo (dos elem entos) que se fa­
zem presente nesse entorno e que, portanto, vão delimitar o gradiente possível
de sentido.Luhmann afirma:

O sentido comporta sempre focalizar a atenção sobre uma possibilidade entre ou­
tras muitas [...] O sentido, portanto mantém-se rodeado por possibilidades. Sua
estrutura será [a estrutura] da diferença entre atualidade e potencialidade. O sen­
tido, em definitivo, é a conexão entre o atual e o possível; não é nem um nem ou­
tro (Luhmann, 1998b, p. 28).

94 Daniel de Mendonça e Léo Peixoto Rodrigues


O sentido, para Luhmann, pressupõe sistemas auto-referentes, dinâmicos,
que utilizam a consciência (no caso dos sistemas psíquicos) e a comunicação
(no caso de sistemas sociais) com o meio para as suas operações. Portanto,
não são unidades estáveis. Estes sistemas, em suas dinâmicas auto-
referenciadas, “relacionam -se” com eventos que surgem e desaparecem com a
mesma velocidade no “sistema-mundo”. Dessa forma, o sentido está baseado
na instabilidade dos elementos, na dinâmica - de difícil apreensão - desses
sistemas; ou com o observou Luhmann (1998b, p. 29) na instabilidade da atua­
lidade, ou seja, na im possibilidade de termos acesso a certezas estáveis. Para
Luhmann, porém, o que se pode fazer é relacionar “os problemas inversos da
certeza instável e da incerteza estável. Esta relação pode mostrar-se com o
sentido e evoluir com a variação e seleção cultural dos sentidos exitosos”.
Os processos sistêm icos auto-referenciados só podem operar mediante o
sentido, ou seja, o sentido é parte intrínseca deste tipo de unidade sistêmica,
uma vez que a negação do sentido (o não-sentido) também é sentido. Isto faz
com que a “relação” entre sistema e entorno seja uma relação operante m edi­
ante sentido(s). E desta forma que o sentido constitui o sistem a social, não
havendo, assim, a possibilidade de inexistência de sentido. Para Luhmann, “o
sentido se constitui na forma do mundo com o qual se transcende a diferença
entre sistema e entorno” (1998, p. 79); ou seja, a desparadoxação; em outro
lugar Luhmann ainda acrescenta:

[...] o mundo do sentido representa a seletividade imposta e se caracteriza por


uma “determinabilidade” indeterminada [possibilidade], Como não podemos
transcender o sentido, posto que não podemos abandonar o mundo do sentido de
uma forma provida de sentido, e dado que toda a negação de sentido pressupõe
sentido, não nos resta outra opção se não aceitar e processar continuamente uma
seletividade [atualidade] que é inevitável. Minha conclusão, portanto, pode ser
expressa dizendo que o sentido é uma representação da complexidade.

Tomando a “realidade” do mundo como expressão de complexidade, em


contraposição a uma epistemologia regular, linear, positiva, com o acreditava a
ciência do século XIX, Luhmann percebe a(s) produção(ões) de sentido(s) não
apenas com uma imagem ou um modelo usado pelos sistemas psíquicos ou so­
ciais, mas com o uma vigorosa forma de afrontar a complexidade epistêmica do
sistema-mundo. Em outras palavras, é a partir da inevitabilidade sistêmica auto-
poiética de produzir sentido (sempre na relação sistema/entorno) que os siste­
mas, sob condição inevitável de uma seletividade forçosa (Luhmann, 1998b),
produzem a possibilidade de redução da complexidade do sistema-mundo ge­
rando uma possibilidade heurística para a sua compreensão.
A produção de sentido para Ernesto Laclau, analogicamente à perspecti­
va de Luhmann, ocorre no interior do sistema discursivo, a qual defendemos
aqui ser, a totalidade estrutural-relacional e auto-referenciada, resultado das
práticas articulatórias. A prática articulatória entre momentos diferentes, por

Laclau e Luhmann: um diálogo possível 95


sua vez, é constituída por pontos nodais, que são, no interior da articulação,
com o já vim os, pontos discursivos privilegiados, uma vez que são capazes de
realizar o próprio sentido do sistema discursivo, evitando assim o infinito des­
lizamento de significantes, no sentido de Lacan (1966). A prática articulatória
que constitui e organiza relações sociais consiste, nas palavras de Laclau:

N a co n stru ção de p o n to s n odais que fixam parcialm ente sentidos; o caráter par­
cial d e ssa fixação procede d a abertura do social, resultante, p o r sua vez, de um
co n stan te tran sb o rd am en to de todo discurso p ela infinitude do cam po da discur-
sividade (L aclau e M ouffe, 1985, 1 13).

Para Laclau e M ouffe (1985), portanto, toda e qualquer produção de sen­


tido ocorre obrigatoriamente a partir da articulação de momentos no interior
de um sistema discursivo. Isso quer dizer que a prática articulatória é uma
prática auto-referenciada, porque todos os momentos da construção discursi­
va são internos ao próprio discurso. O que está além dos limites do sistema
discursivo, por óbvio, não pode produzir qualquer sentido nesse sistema. O
que está além dos limites do discurso, na designação de Laclau e Mouffe,
com o já vim os, é elem ento, ou seja, uma diferença que não está discursiva-
mente articulada, ou os demais discursos que estão em relação de antagonis­
mo. A auto-organização da prática da articulação e o seu resultado - o discur­
so - envolve o seguinte m ovimento com o demonstra Laclau:

N o contexto d essa d iscussão, nós cham arem os articulação q u alq u er p rática que
estabeleça um a relação entre elem entos tal q u e suas id entidades sejam m odifica­
das com o um resultado d a prática articulatória. A to talid ad e estru tu rad a resultan­
te d a prática articu lató ria nós cham arem os discurso. A s po siçõ es diferenciais, na
m edida em que elas apareçam articuladas num d iscurso, nós cham arem os m o­
m entos. P o r contraste, cham arem os elem ento q u alq u er d iferen ça q u e não está
discursivam ente articu lad a (L aclau e M ouffe, 1985, p. 105).

Conseqüentemente, a articulação é uma prática que se estabelece entre


elem entos que, num primeiro momento, não estão articulados entre si. Pode­
mos dizer, portanto, que no momento anterior à articulação, esses elementos
estão imersos numa lógica complexa, ou seja, estão dispersos de forma alea­
tória no campo da discursividade. A prática articulatória agrega esses elemen­
tos transformando-os em momentos diferenciais. Portanto, um elemento ao
ingressar na articulação, em relação a essa, deixa seu status de elem ento e as­
sume a condição de momento diferencial: passa, portanto, a fazer parte da au-
to-referência sistêmica. A articulação entre esses momentos diferenciais resul­
ta inexoravelmente na m odificação de suas identidades: numa alteração se­
mântica de seus conteúdos particulares anteriores ao ingresso na prática arti­
culatória (autopoiésis). O resultado dessa prática articulatória auto-referente é
o discurso. Insistimos na auto-referencialidade de um sistema discursivo nos
m esm os termos expressos pelo Sistema Social de Luhmann. Auto-referência

96 Daniel de Mendonça e Léo Peixoto Rodrigues


deve ser aqui entendida exatamente com o autopoiésis, cujo conceito, de sutil
entendimento, é abaixo demonstrado por Luhmann:

O conceito dc a u to p o iésis traz consigo, n ecessariam ente o dificu lto so e freqüen­


tem ente m al interpretado conceito dc sistem a operativam ente fechado [...] é evi­
den te que não pode significar isolam ento causai, nem autarquia, nem solipsism o
cognitivo, com o os seus contraditores freqüentem ente tem suposto. Este conceito
c, antes, um a conseqüência forçosa do fato trivial (conceitualm ente tautológico) de
que nenhum sistem a pode operar fora dos seus lim ites (L uhm ann, 1998, p. 55).

Considerando o conceito de autopoiésis, resta-nos claro que o tipo de sis­


tema expresso pela perspectiva teórica de Laclau é, com o na perspectiva de
Luhmann, autopoiético, ou auto-referente, uma vez que toda produção de sen­
tido ocorre necessariamente no interior do sistema discursivo. Dizer isso, nu­
ma perspectiva luhmanniana, significa afirmar que o sistema discursivo de
Ernesto Laclau é operativamente fechado. A sutileza do entendimento da no­
ção de autopoiésis, ou auto-referência está em compreender que um sistema,
quando conceituado com o fechado, refere-se tão-somente a sua operacionali-
dade na produção de sentido. Com demonstrou Luhmann, não se está aqui fa­
lando de um sistema não-relacional, completamente isolado de um contexto.
Pelo contrário, o sistema está sempre acoplado a um entorno, com o qual
mantém relação a partir da categoria de irritação, capaz, portanto, de ser
constantemente ressignificado.
Para Laclau, a impossibilidade de uma literalidade última, ou da produ­
ção de um sentido finalístico por um sistema discursivo se dá justamente por­
que o sistema encontra-se em relação de antagonismo15 com os demais dis­
cursos dispersos no campo da discursividade. N esse particular, a relação an­
tagônica deve ser aqui entendida em seu sentido mais estrito. Antagonismo é
a impossibilidade, segundo Laclau (1993), da constituição da objetividade.
Isso quer dizer que, em função do sistema discursivo estar disposto numa ló­
gica relacionai e antagônica com outros discursos, seus conteúdos particulares
estão sempre alterando seus sentidos. Esse constante “alterar de sentido” pro­
vocado pela relação antagônica, impede a objetividade sistêmico-discursiva,
ou seja, seu sentido finalístico ou objetivo é im possível.
E importante termos presente de que não se trata de uma incoerência,
apesar de ser certamente um paradoxo - mesmo considerando as categorias
de irritação, em Luhmann, e antagonismo, em Laclau - dizer que a produção
de sentido num sistema opera-se internamente em seus limites. A auto-

15 Neste particular, desenvolvemos em outro momento a categoria da “dupla impossibilidade


da constituição discursiva última” no interior da Teoria do Discurso, a qual coloca o antago­
nismo como uma das possibilidades da impossibilidade da constituição de sentidos finalísti-
cas de uma formação discursiva. A outra impossibilidade reside justamente na incessante in­
corporação e/ou perda de sentidos que um discurso pode articular no momento do funciona­
mento auto-referente dc suas estruturas (Mendonça, 2003).

Laclau e Luhmann: um diálogo possível 97


referência é, com o m esm o apontou Luhmann, óbvia, tendo em vista que, se
assim não fosse, não poderíamos em absoluto conceber a idéia de sistema,
pois, sem a auto-referência, o sistema não constituiria sua identidade - e sua
conseqüente diferença - em relação aos outros sistemas.

C o n sid eraçõ e s fin ais


A s Ciências Sociais, talvez pela sua própria história para constituir-se
com o ciência no seio das chamadas “Ciências naturais” iluministas, têm sido
a área do conhecimento que mais busca, discute e experimenta metodologias
na construção do conhecimento científico. A o contrário do que o douto ima­
ginário do mundo científico muitas vezes crê, o cientista social tem por oficio
uma contínua reflexão sobre os fundamentos epistem ológicos e m etodológi­
cos de sua prática científica, dada à instabilidade e a ética que tem de enfren­
tar e lidar, respectivamente, no seu cotidiano com o “seu” objeto.
Da mesma forma que o mecanicism o, o funcionalismo, o estruturalismo,
o historicismo têm posto luzes em muitas reflexões, na busca de construções
de m odelos científicos explicativos da realidade com o dimensão fenomênica,
o pensamento sistêm ico auto-referente, tem-se apresentado, no âmbito inter­
disciplinar — transpondo os preconceitos da clássica partilha metodológica
iluminista entre ciências “exatas e naturais” e “ciências das humanidades” —
com o uma possibilidade epistêm ico-m etodológica profícua para a chamada
“redução da com plexidade” do mundo contemporâneo.
O capítulo que ora concluím os, mesmo tendo sido fruto de uma longa in-
terlocução entre os seus autores, não tem qualquer outra pretensão senão a de
abrir o debate, na nossa esfera acadêmica, não apenas no que se refere à ferti­
lidade da Teoria Geral do Discurso de Em esto Laclau e da Teoria Geral dos
Sistemas Sociais de Niklas Luhmann, mas principalmente sobre as possibili­
dades de suas aplicações nas diferentes esferas organizacionais.
Buscamos, ao longo deste trabalho, estabelecer algumas similaridades
possíveis entre pressupostos das Teorias do Discurso e dos Sistemas Sociais,
tendo sempre presente o fato de que estamos lidando com duas perspectivas
teóricas diferentes, mas que, com o observadores de segunda ordem, com o di­
ria Luhmann, percebem os a existência da possibilidade de comensurabilidade
conceituai entre ambas. Portanto, as correlações conceituais que realizamos
entre as duas teorias sociais, expostas neste trabalho, se constituem num pe­
queno exercício teórico frente à riqueza da totalidade da obra de Laclau e de
Luhmann. M uitos outros esforços, neste sentido, podem, e devem ocorrer,
principalmente se levarmos em conta a necessidade que tem uma sociedade
com o a nossa - referimo-nos à América Latina - de pensar a sua heterogenei-
dade e, por conseguinte, uma epistem ologia de maior complexidade.

98 Daniel de Mendonça e Léo Peixoto Rodrigues


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Laclau e Luhmann: um diálogo possível 99


5

Política e subjetividade no pensamento


de Ernesto Laclau

Mirta A. Giacaglia

------------ ♦------------

Atravessamos uma época histórica na qual as concepções politicas domi­


nantes nos últimos séculos encontram-se saturadas e não aparecem alternati­
vas claras diante das im posições do assim chamado pensam ento único. Diante
desta nebulosidade do politico, a reflexão sobre a política e o sujeito torna-se
um tema crucial para fugir da inquietação que sentimos diante do fato de que
os Estados, e isto tom a-se mais dramático em países vulneráveis com o os
nossos, limitam-se a administrar inadequadamente fluxos de capitais transna-
cionais, com as terríveis conseqüências sociais a isso associadas. Se como
afirma Slavoj Zizek, a grande novidade da atual era pós-política é a despoliti-
zação radical da esfera econôm ica, surge com o tarefa inevitável a necessidade
de uma repolitização da econom ia.1 Mas cabe então perguntar: é possível es­
quecer a política? A retirada ou eclipse da política não é também o efeito de
uma decisão que é em si mesma política? O que nos obriga, ao m esm o tempo,
a questionar-nos acerca de com o pensar a política e se existem hoje condições
para a constituição de um sujeito político capaz de articular um novo horizon­
te emancipatório. Estas perguntas tomam-se questões-chave para recuperar o
momento de instituição do político e projetar o futuro.
N o campo do pensamento pós-marxista, Em esto Laclau é o principal re­
presentante da corrente de idéias denominada Teoria do Discurso2 que envol­
ve diversas disciplinas (política, filosofia, lingüística e psicanálise) e tradi­
ções teóricas. A mesma constitui uma configuração conceituai crítica da ra­
cionalidade ocidental e sua metafísica da presença, que se estrutura em tomo
da crítica de todo essencialism o, o caráter incompleto e contingente do social,

1 Slavoj Zizek, The iicklish subject, It’s the Political Economy, Stupid, Verso, London, 1999,
p. 353.
2 Também designada Análise política de discurso.

100 Mirta A. Giacaglia


a elaboração de uma concepção de discurso na qual se acentua o caráter flu­
tuante do signo, a idéia de sobredeterminação e o caráter constitutivo da ar­
gumentação e a proposta de uma democracia radical. Retomando diferentes
tradições do marxismo e articulando-as com a hermenêutica pós-heideg-
geriana, o pós-estruturalismo, a psicanálise lacaniana e a filosofia da lingua­
gem do segundo Wittgenstein, esta corrente fornece-nos pistas para imaginar
possíveis trilhas que permitam encontrar algumas respostas para os questio­
namentos que formulamos acerca de por que existe acontecimento e não mera
repetição, a relação entre situação e acontecimento, estrutura e inexplicabili-
dade. Em seu projeto de repensar o socialism o e reformular um programa po­
lítico para a esquerda, dentro das novas condições surgidas a partir do final
do século X X , Laclau pensa a pós-m odem idade com o um processo de “ero­
são e desintegração de categorias tais com o ‘fundamento’, ‘n ovo’, ‘identida­
de’, ‘vanguarda’, etc. não pode ser, portanto, a simples rejeição da moderni­
dade, e sim uma nova modulação de seus temas e categorias, uma maior proli­
feração dos jogos de linguagem em que é possível embarcar a partir dela”/
que traça um novo horizonte possível do conjunto de nossa experiência cultu­
ral, filosófica e política.

D iscu rso
Para refletir sobre os temas que nos preocupam, a partir da proposta de
Emesto Laclau, analisaremos, em primeiro lugar, seu conceito de discurso,4
cuja compreensão consideramos chave, já que seu pensamento articula-se em
tomo dessa noção.
A concepção do espaço social com o discurso parte da idéia de que toda
configuração social é uma configuração significativa. Tomando um exem plo
inspirado em Wittgenstein, Laclau desenvolve sua concepção de discurso. Na
construção de um muro, diz ele, o ato de pedir um tijolo é lingüístico, o ato de
colocá-lo na parede é extralingüístico. Mas esta distinção não esgota a reali­
dade de ambos atos. A s duas ações compartilham uma operação total que é a
construção da parede.
Como caracterizamos essa totalidade que inclui, com o momentos par­
ciais, elem entos lingüísticos e não-lingüísticos? Esta totalidade é o que cha­
mamos de discurso. Por discurso não entendemos, então, uma combinação de
fala e escrita, mas, pelo contrário, a fala e a escrita são apenas componentes
internos das totalidades discursivas. Por exem plo, se dou um pontapé num ob­
jeto esférico na rua ou se dou um pontapé numa bola durante um jogo de fu­

3 Emesto Laclau, “Política y los limites de la modemidad” en VVAA, Debates Políticos Con­
temporâneos, Plaza y Valdés, México, 1998, p. 56-57.
4 Emesto Laclau, Nuevas rejlexiones sobre In revolución de nuestro tiempo, Nueva Vision,
Bs. As., 1993, p. 114.

Política e subjetividade no pensamento de Ernesto Laclau 101


tebol, a ação física é a mesma, mas sua significação é diferente. O objeto é
uma bola de futebol somente na medida em que se estabelece um sistema de
relações com outros objetos, e estas relações não estão dadas pela mera refe­
rência material dos objetos, mas são, pelo contrário, socialmente construídas.
É este conjunto sistemático de relações que chamamos de discurso.
O caráter discursivo de um objeto não pressupõe colocar em questão sua
existência. U m objeto somente é tal na medida em que está integrado a um
sistema de regras socialmente construídas, e isto não significa que ele deixa
de existir com o objeto físico. A existência dos objetos é independente de sua
articulação discursiva. D evem os, então, diferenciar o existente (o objeto aqui
e agora) da realidade (o que se fala desse objeto). Ou seja, uma pedra existe
independentemente de todo sistema de relações sociais, mas será um projétil
ou um objeto de contemplação estética, etc. somente dentro de uma configu­
ração discursiva específica. Um diamante no mercado ou no fundo de uma
mina é o mesmo objeto físico, mas somente é uma mercadoria dentro de um
sistema determinado de relações sociais. Do que antecede podem os concluir,
então, que a realidade é uma construção social enquanto é construída ao sig-
nificá-la. Por esta mesma razão, é na discursividade que se constitui a posição
do sujeito com o agente e não é o agente social quem é a origem do discurso.
A partir de Wittgenstein a separação entre significado e uso (semântica e
pragmática) tom a-se nebulosa. O significado de uma palavra é totalmente de­
pendente de seu contexto. Toda identidade ou objeto discursivo constitui-se
no contexto de uma ação. Toda ação não-lingüística também tem um signifi­
cado. A distinção entre elem entos lingüísticos e não-lingüísticos não se so­
brepõe à distinção entre significativo e não-significativo, mas a primeira é
uma distinção secundária que ocorre no interior das totalidades significativas.
Os fatos naturais são também fatos discursivos devido a que a própria na­
tureza é o resultado de uma construção histórico-social. Não há nenhum fato
cujo sentido possa ser lido de maneira transparente, do m esm o m odo que não
há nenhum fato que possa provar de modo definitivo uma teoria, já que não
existe garantia de que esse fato não possa ser explicado de um m odo mais
adequado (ou seja, determinado em seu sentido) por uma teoria posterior e
mais abrangente.
A idéia de que o ser dos objetos é construído discursivamente no devir,
pressupõe afirmar uma ontologia historicista, antiessencialista e pós-
fundacionalista.

H eg em o n ia
Outro conceito central para Laclau é a categoria de hegemonia, já que a
expansão da lógica implícita no conceito de hegemonia oferece novas ferra­
mentas teóricas para pensar as atuais lutas sociais na sua especificidade e es­

102 Mirta A. Giacaglia


boçar um projeto político que articule socialism o e democracia no campo do
pós-marxismo. Diante do racionalismo do marxismo clássico e sua concepção
de desenvolvimento necessário da história de acordo com leis, a categoria de
hegemonia propõe o tema da contingência dentro da história, constituindo
desta maneira uma contribuição fundamental para refletir sobre nossa complexa
realidade.
Ao longo da história do pensamento político do século XX, o conceito de
hegemonia surge com o resposta para uma crise que questiona as categorias
tradicionais do marxismo para explicar a contingência. A reformulação do
marxismo em tom o de uma teoria da hegemonia requer, por um lado, deter­
minar quais são os posicionam entos de cuja articulação depende uma trans­
formação histórica ou a constituição de uma nova hegemonia e, por outro, en­
tender tais articulações com o formas históricas concretas e sobredetermina-
das, e não com o etapas predeterminadas ou relações necessárias resultado do
desdobramento de leis da história. A análise da sociedade em tom o da idéia
de hegemonia exige a articulação contingente dos elem entos e a produção de
subjetividades a partir dessas relações articulatórias, superando assim a idéia
essencialista de sujeitos pré-constituídos.
A noção de hegemonia vem ocupar o espaço teórico aberto pela crise
profunda que sofre o pensamento marxista a partir da Primeira Guerra Mun­
dial, diante da impossibilidade que enfrenta de construir um projeto político
em termos de lutas e alianças de classe, com o conseqüência da abertura de
uma etapa histórica na qual a proliferação de novas contradições exige outra
concepção de sujeito e a necessidade de entender as lutas sociais com o práti­
cas articulatórias. N este contexto de crise, marcado pela experiência da frag­
mentação e da indeterminação das relações entre diferentes lutas e posições
de sujeito, a noção de hegem onia constitui a tentativa de proporcionar uma
resposta diante da quebra da categoria de “necessidade” propondo o tema da
contingência dentro da história.
Antonio Gramsci (1891-1937), dirigente comunista prisioneiro nos cár­
ceres do fascismo, reflete sobre a derrota de uma revolução e os caminhos
que possam conduzir à vitória de outra. Sua obra, enquanto pensamento sobre
o Estado e a sociedade civil, visando sua transformação radical é, dentro do
campo do marxismo, essencialmente política. Na categoria de “bloco históri­
co”, Gramsci tentou encontrar uma explicação teórica que permitisse sair do
beco sem saída no qual se encontrava o marxismo ocidental nas primeiras dé­
cadas do século XX. A teoria gramsciana sustenta-se na participação pessoal
de seu autor nos conflitos políticos da época, e em um estudo m inucioso da
história européia.
Gramsci transforma a categoria de hegemonia em um conceito totalmente
novo dentro do discurso marxista (já que vai além da mera aliança de classes)
visando teorizar sobre as estruturas políticas do poder capitalista que não ha­

Política e subjetividade no pensamento de Ernesto Laclau 103


viam existido na Rússia czarista. A partir das análises de Maquiavel sobre o
príncipe, a violência e a traição, Gramsci reformulou o conceito de hegem o­
nia para refletir sobre a com plexidade e a especificidade da dominação da
burguesia na Europa ocidental, que tomavam inviável a repetição da Revolu­
ção de Outubro nos países capitalistas mais desenvolvidos do resto do conti­
nente. Como afirma Perry Anderson,5 este sistema hegem ônico de poder defi-
nia-se pelo grau de consenso que obtinha das massas populares que dominava
e pela conseguinte redução na quantidade de coerção necessária para reprimi-
las. Seus m ecanism os de controle para garantir esse consenso residiam em
uma rede ramificada de instituições culturais (escolas, Igreja, partidos, asso­
ciações, etc.), que manipulavam as massas exploradas através de um conjunto
de ideologias transmitidas pelos intelectuais, gerando uma subordinação pas­
siva. A dominação burguesa fortalecia-se também pela adesão de classes se­
cundárias aliadas, formando um compacto bloco social sob a direção política
da classe dominante: “a flexível e dinâmica hegemonia exercida pelo capital
sobre o trabalho no ocidente, mediante esta estrutura consensual estratificada
foi, para o movimento socialista, uma barreira muito mais difícil de transpor
que aquela encontrada na Rússia” (Anderson, 1987, p. 100). Esta ordem polí­
tica podia conter e suportar as crises econôm icas do tipo que os marxistas an­
teriores haviam considerado com o a alavanca fundamental da revolução sob o
capitalismo. N ão permitia um ataque frontal do proletariado, de acordo com o
modelo russo. Para enfrentá-lo, seria necessária uma longa e difícil “guerra de
p osições”.6
Gramsci define a hegem onia com o “direção política, intelectual e moral”.
N esta definição cabe distinguir dois aspectos: (1) o mais propriamente políti­
co, que consiste na capacidade que uma classe dominante tem de articular os
interesses de outros grupos com os seus, tom ando-se assim o elem ento central
de uma vontade coletiva, e (2) o de direção intelectual e moral, que indica as
condições ideológicas que devem ser cumpridas para que a constituição dessa
vontade coletiva seja possível. A novidade na concepção gramsciana de he­
gem onia é o papel que ele outorga à ideologia. Esta não é para ele um sistema
de idéias nem se identifica com a falsa consciência dos atores sociais, mas
constitui um todo orgânico e relacionai encarnado em aparatos e instituições,
um cimento orgânico que unifica, em tom o de certos princípios articulatórios
básicos, um “bloco histórico” e práticas produtoras de subjetividades no pro­
cesso de transformação social. Para Gramsci, os homens tomam consciência
de si e de suas tarefas no contexto de uma determinada concepção do mundo,

5 Este pensador inglês tem estudado o surgimento e desenvolvimento desta categoria em suas
obras C onsideraciones sobre el marxismo Occidental, Siglo XXI, México, 1987 e Las anti­
nomias d e Gramsci, México, Era, 1979.
6 Perry Anderson, C onsideraciones sobre e l marxismo Occidental, Siglo XXI, México, 1987,
p. 100.

104 Mirta A. Giacaglia


e toda possibilidade de transformar a sociedade passa necessariamente pela
modificação desta concepção do mundo.
A partir do conceito de bloco histórico e de ideologia com o cimento or­
gânico que o unifica, introduz uma nova categoria totalizadora que supera a
distinção base/superestrutura. Produz assim um deslocamento (ao romper
com a concepção reducionista da ideologia e superando, ao mesmo tempo, o
reducionismo da classe que identifica o sujeito revolucionário com a classe
operária) já que os sujeitos políticos não são “classes”, no sentido estrito do
termo, e sim “vontades coletivas” com plexas que são o resultado da articula­
ção político-ideológica de forças históricas dispersas e fragmentadas. Fica
clara aqui a importância do aspecto cultural. Todo ato histórico é levado a
cabo pelo “homem coletivo”, o que pressupõe alcançar uma unidade “cultu-
ral-social” através da qual uma multiplicidade de vontades dispersas, com ob­
jetivos heterogêneos, se unem em tom o de um fim que tem por base a mesma
concepção do mundo. A hegemonia, entendida no sentido gramsciano com o
articulação, amplia o campo da contingência histórica no âmbito das relações
sociais, já que os diferentes “elem entos” ou “tarefas” sociais perdem a cone­
xão essencial que os caracterizava na concepção etapista, e seu sentido vai
depender agora de articulações desprovidas da garantia outorgada pelas leis
da história, carecendo assim de toda identidade à margem de sua relação com
a força que os hegemoniza.
Ernesto Laclau, juntamente com Chantal M ouffe, retoma criticamente a
construção gramsciana em seu livro H egem onia e estratégia socialista indi­
cando os limites da mesma, pois “baseia-se numa concepção que não conse­
gue superar plenamente o dualismo do marxismo clássico. Porque, para
Gramsci, inclusive se os diversos elem entos sociais têm uma identidade ape­
nas relacionai, obtida através da ação de práticas articulatórias, tem que haver
sempre “um princípio unificador em toda formação hegem ônica, e este deve
ser referido a uma classe fundamental. Com isso vem os que existem dois
princípios da ordem social (a unicidade do princípio unificador e seu caráter
necessário de classe) que não são o resultado contingente da luta hegemônica,
mas sim o marco estrutural necessário dentro do qual acontece toda luta he­
gemônica. Ou seja, que a hegemonia da classe não é inteiramente prática e re­
sultante da luta, mas tem, em sua última instância, um fundamento ontológico.
A infraestrutura não confere à classe operária sua vitória, mas esta depende
de sua capacidade de liderança hegemônica; mas a uma falha na hegemonia
operária somente pode responder uma reconstituição da hegem onia burguesa.
A luta política continua sendo, finalmente, um jogo sem valor algum entre as
classes. É este o último núcleo essencialista que continua presente no pensa­
mento de Gramsci”.7 Mas, com o também afirmam Laclau e M ouffe, a partir

7 Ernesto Laclau y Chantal Mouffe, Hegemonia y estralegia socialista. Hacia una radicaliza-
cián de la democracia, Siglo XXI, Madrid, 1987, p. 80.

Política e subjetividade no pensamento de Ernesto Laclau 105


da teoria gramsciana da hegemonia, a política é concebida com o articulação e
aceita-se a com plexidade social com o condição da luta política, compatível
com uma pluralidade de sujeitos históricos. E embora a lógica da hegemonia
não desdobre todos seus efeitos desconstrutivos no espaço teórico do mar­
xism o clássico, cai o reducionismo de classe na medida em que a unidade e a
própria homogeneidade dos sujeitos de classe desagrega-se em um conjunto
de p osições precariamente integradas.
Como dissem os, hegemonia define-se com o a conquista de uma liderança
moral, intelectual e política, através da expansão de um discurso que fixa um
significado parcial em tom o de pontos nodais. Envolve mais do que um con­
senso passivo de ações legítimas: envolve a expansão de um determinado dis­
curso de normas, valores, pontos de vista e percepções através de redescri-
ções persuasivas do mundo. A lógica da hegemonia constitui uma lógica da
articulação e da contingência.
A articulação deve ser entendida com o uma prática que estabelece um ti­
po de relações entre elem entos que faz com que a identidade dos mesm os se
modifique com o resultado da prática articulatória. A articulação de elementos
dentro de um discurso hegem ônico ocorre na conflituosa área do poder e da
contingência, e incluirá sempre momentos de força e de repressão. D eve-se a
isto que a não-fixação seja a condição de toda identidade social. Na medida
em que não existe um vínculo necessário entre a tarefa e a classe que a hege-
moniza, a identidade dos agentes sociais tem um caráter puramente relacionai
enquanto construída a partir de sua articulação no interior de uma formação
hegem ônica. E com o todo sistem a de relações é instável e não-fixo, toda
identidade tom a-se precária, provisória e parcial. Em conseqüência, não há
relação necessária entre socialism o e as posições dos agentes sociais nas rela­
ções de produção. Desta perspectiva, a introdução do conceito de sobrede-
terminação é chave para entender a lógica específica das relações sociais.8
A sociedade não deve ser entendida, então, com o um espaço suturado.9
Toda estrutura discursiva é o resultado de uma prática articulatória que orga­

O conceito de sobredeterminação foi introduzido no âmbito das ciências sociais e da filoso­


fia por Althusser que toma da psicanálise a idéia de multiplicidade de determinações. Para o
filósofo francês, este conceito faz alusão à multiplicidade de determinações, determinação
recíproca, fusão de contradições e determinação em última instância. Laclau e Mouffe reto­
mam o conceito, mas criticam o essencialismo althusseriano e radicalizam a categoria de so­
bredeterminação a partir do estabelecimento de novas articulações entre psicanálise e hege­
monia, reformulando-a a partir da critica da noção de identidade plena.
9 A categoria de sutura é proveniente da psicanálise lacaniana, a qual designa a relação do su­
jeito com a cadeia de seu discurso, que denomina não apenas uma estrutura de falta, mas
também a disponibilidade do sujeito a certo fechamento. Laclau c Mouffe estendem o con­
ceito de sutura para o campo da política, destacando este duplo movimento. As práticas he­
gemônicas são suturadoras na medida em que seu campo de ação está determinado pela
abertura do social, pelo caráter finalmente não-fixo de todo significante. Esta falta originária
é justamente o que as práticas hegemônicas tentam preencher.

106 Mirta A. Giacaglia


niza e constitui as relações sociais. Os antagonismos sociais e o deslocamento
impedem o fechamento de toda estrutura. As práticas articulatórias hegem ô­
nicas definem sua identidade por oposição a práticas articulatórias antagôni­
cas. O antagonismo descobre os limites de toda objetividade, pois que nunca
está plenamente constituída. A sociedade não se apresenta, em conseqüência,
como uma ordem objetiva e harmoniosa, mas com o um conjunto de forças
divergentes em conflito, impedindo a formação de identidades plenas. A
constituição e a manutenção de uma identidade dependem, então, do resulta­
do de uma luta que não é garantida por nenhuma lei a p rio r i nem necessária
da história. Partindo desta perspectiva, a categoria de hegemonia constitui um
valioso e fundamental ponto de partida dentro do discurso contemporâneo pa­
ra pensar o político, já que significa a articulação contingente de elementos
em tom o das lutas dos agentes sociais concretos dentro de configurações so­
ciais específicas.
N este contexto, o poder não deve ser concebido com o uma relação exter­
na que acontece entre duas identidades pré-constituídas, mas com o constitui-
dor das próprias identidades. Enquanto toda ordem é expressão de uma he­
gemonia, de um m odelo específico de relação de poder, a prática política não
pode ser considerada com o uma simples representação de interesses de iden­
tidades fixas e sim com o constituinte destas mesmas identidades num terreno
precário e sempre vulnerável. Se aceitarmos que as relações de poder são
constitutivas do social, a questão principal para uma política democrática não
seria a eliminação do poder, mas a maneira de constituir formas de poder
mais com patíveis com os valores democráticos.
O importante na teoria da hegemonia é ver que toda universalidade nunca
é uma universalidade com um conteúdo próprio; ela tem sempre um conteúdo
particular que se universaliza e com eça a representar a totalidade das deman­
das particulares equivalentes. Trata-se de pensar uma forma de produção do
universal a partir do particular e não um universal que tenha um conteúdo a
priori. Partindo dessa concepção, tudo o que é universal não é mais que uma
particularidade que a partir de uma operação hegem ônica ocupa o lugar de
universal.
A preocupação de Laclau concentra-se em repensar o político para avan­
çar na instituição de uma democracia radical e plural. Nesta direção, a pro­
blemática gramsciana da hegemonia, acarreta uma transformação profunda da
teoria marxista ao privilegiar o momento político na estratégia emancipadora
e permitir, assim, sair do reducionismo economicista. A concepção de hege­
monia pressupõe, por outro lado, “a superação da concepção estreita da p olí­
tica com o atividade localizada somente na sociedade política e que sempre
pode ser mais ou m enos assimilada com uma atividade de dominação [...] a
política não é simplesmente luta pelo poder no interior de instituições deter­

Política e subjetividade no pensamento de Ernesto Laclau 107


minadas ou luta para destruir essas instituições, ela é também “luta pela trans­
formação da relação da sociedade com suas instituições”.10
A categoria de hegem onia constitui uma ferramenta-chave para pensar a
política, já que permite ir além da definição da política com o relação amigo-
inimigo e instaurar a distinção am igo-adversário. Isto significa que dentro da
comunidade política é possível significar o opositor não com o um inimigo
que é preciso desarticular, mas sim com o um adversário cuja existência é le­
gítima e com quem é possível argumentar, pois embora suas idéias sejam
combatidas não lhe é negado o direito a defendê-las. A categoria de inimigo
não desaparece, mas deve ser aplicada àqueles que não se inscrevem dentro
da ordem democrática.11 A tarefa de instituir uma nova ordem social pressu­
põe propor o tema da democracia em termos novos e mais com plexos e assu­
mir a urgência de construir novas hegemonias.
A partir da teoria gramsciana da hegemonia, Laclau concebe a politica
com o articulação dentro do com plexo tecido social compatível com uma plu­
ralidade de sujeitos. A sociedade deve ser entendida com o uma estrutura dis­
cursiva deslocada, atravessada por antagonismos que descobrem os limites de
toda objetividade. Enquanto o vazio ou falha estrutural é condição da ação
política, a hegemonia, conceituada com o prática articulatória contingente de
elem entos em tom o das lutas dos agentes sociais concretos dentro de configu­
rações sociais específicas, define o campo onde se constituem as relações po­
líticas.

P olítica, su jeito e em an cip ação


A s relações sociais, caracterizadas por sua contingência e historicidade,
são sempre relações de poder. Enquanto o poder é condição de possibilidade
e impossibilidade do social, transformar a sociedade, inclusive a partir do
projeto de uma democracia radical, não significa a eliminação do poder, mas
sim a construção de um novo poder. Em relação a estas questões, as noções
de sedimentação e reativação trabalhadas por Laclau, constituem uma contri­
buição interessante para refletir acerca da primazia do político em relação ao
social, e estabelecer diferenças entre o político e a política.
Para este autor, a distinção entre o político e o social ocorre em tom o do
caráter sedimentado das relações sociais e do momento institucional constitu­
tivo das mesmas. Usa, para isso, a distinção proposta por Husserl entre os
conceitos de sedimentação e reativação, mas desenvolvendo-os seguindo uma

10 Chantal Mouffe, Hegemonia, política e ideologia, em Julio Labastida (coordenador), La­


clau, E., Arico, J., de Ipola, E., Mouffe, Ch., Paramio, L., e outros, Hegemonia e alternativas
políticas na América Latina (Seminário de Morelia 1980), Siglo XXI, México, 1985. p.
137.
11 Chantal Mouffe, El retorno de lo político, Paidós, Barcelona, 1999, p. 16.

108 Mirta A. Giacaglia


direção diferente. Há, para Laclau, uma primazia do político com respeito ao
social que decorre do fato de que as relações sociais são relações de poder. O
momento de instituição originária do social coloca de manifesto sua contin­
gência radical, pois que tal instituição é possível a partir da repressão de ou­
tras alternativas antagônicas que foram descartadas com o resultado de um ato
de poder. Tomando a idéia de Husserl de que na medida em que um ato de
instituição foi bem -sucedido, tende a haver um esquecimento de suas origens,
Laclau sustenta que “o sistema de possibilidades alternativas tende a esvair-se
e as pegadas da contingência originária tendem a apagarem-se. D este modo, o
instituído tende a assumir a forma de uma mera presença objetiva”.12 O m o­
mento da reativação não consiste no retomo à função originária mas somente
no reconhecimento, através do surgimento de novos antagonismos, do caráter
contingente de toda “objetividade”. Este processo de dessedimentação coloca
a descoberto os atos originários de instituição e a historicidade de suas ori­
gens, enquanto as formas naturalizadas revelam-se com o contingentes. Para
Laclau, as formas objetivas sedimentadas constituem o campo do social, en­
quanto que o momento antagônico no qual se toma visível a inefabilidade das
alternativas e seu fechamento através de relações de poder é o que configura
o campo do político.
A distinção entre o social e o político é constitutiva das relações sociais.
Seria im possível existir uma sociedade na qual o político tivesse sido elim i­
nado, pois ela ficaria reduzida a um âmbito fechado de práticas repetitivas.
Um ato de instituição pura, total e permanente, também é im possível, já que,
por um lado, toda instituição política ocorre no marco de um conjunto de prá­
ticas sedimentadas e, por outro, somente poderia ser o resultado de uma von­
tade onipotente, com o que apagaria a natureza contingente do instituído e,
portanto, seu caráter político. A política institui uma certa ordem e põe fim ao
conflito que ameaça o social, mas toda ordem não é mais do que o resultado
de uma articulação hegem ônica e, portanto, sempre provisória e parcial. A
sociedade com o positividade plena é im possível e a permanência do político
como força instituidora mostra os limites de toda instituição. Nenhuma ordem
pode fechar o jogo irredutível entre o movimento instituidor e o cenário insti­
tuído.
A partir desta análise, podem os estabelecer diferenças entre a política e o
político, expondo a necessidade do retorno do político. A política, entendida
como espaço de atividades, práticas e procedimentos que se desenvolvem no
tecido institucional do sistema político, eqüivale ao caráter sedimentado das
relações sociais. O político, ao contrário, designa o momento institucional
constitutivo das mesmas. A política e o político constituem dois registros que
se interpenetram e contaminam mutuamente, enquanto que a ordem da políti­

12 Ernesto Laclau, Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo .Nueva Vision,
Bs. As., 1993, p. 51.

Política e subjetividade no pensamento de Ernesto Laclau 109


ca não põe fim ao conflito; somente regula seu modo de existência dentro do
espaço institucional do Estado. O político é um movimento instável que não
se define por marcos institucionais, ele ultrapassa o espaço institucional da
política. O conflito é a condição do político e a política nada mais é do que a
tencativa de domesticar esse conflito. O caráter instituidor do político permite
dessedimentar o estabelecido, desnaturalizar as instituições, reativando o
momento constitutivo que suturou o conflito, permitindo o surgimento de no­
vas hegem onias.
Para Laclau, há acontecimento na medida em que uma diferença do inte­
rior do sistema abandona seu caráter particular e assume a representação des­
se objeto im possível que é a sociedade. Se, por um lado, toda situação apare­
ce socavada por uma falta radical; essa falta será compensada por certo signi­
ficante que se constitui no significante da plenitude. Hegemonia, enquanto de­
fine a verdadeira área na qual se constituem as relações políticas, não signifi­
ca a articulação de identidades preexistentes fixas: significa que as identida­
des se constituem no mesmo processo de articulação entre particularidade e
universalidade.
Se a sociedade configura-se com o um espaço ético-político, e isto pres­
supõe a contingência das articulações, com o pensar o sujeito nesta luta para
alcançar a hegemonia? Laclau coloca em questão tanto a idéia de subjetivida­
de com o efeito passivo das estruturas, com o a de autodeterminação da subje­
tividade. O vazio estrutural é condição do surgimento do sujeito e da ação po­
lítica, que produz o fechamento provisório da estrutura, uma vez que o fe­
chamento sempre é im possível, já que aquela é constituída a partir da existên­
cia de uma exterioridade que, ao mesmo tempo em que a ameaça é a condição
que a toma possível. O sujeito define-se, então, com o subversão da objetivi­
dade pela contingência. N este sentido, todo sujeito (falta no interior da estru­
tura) é, por definição, político e somente se constitui nas bordas deslocadas
daquela, já que sua identidade toma forma com o parte do efeito de transfor­
mação produzido pelo processo de articulação hegemônica.
Enquanto o político restitui o lugar do acontecimento no devir histórico,
permite-nos reproblematizar a questão do laço social e da representação. Para
Laclau, estamos diante da desintegração dessa dimensão de globalidade que
era inerente aos discursos emancipatórios modernos. N ão foram conteúdos
específicos desses projetos os que entraram em crise, mas a idéia de que o
conjunto dessas reivindicações constituísse um todo unificado que alcançaria
seu triunfo em um único ato fundacional levado a cabo por um agente privile­
giado da mudança histórica.
O que está em questão não é este ou aquele ator universal, mas a própria
categoria de ator universal, de revolução global e as pretensões fundacionalis­
tas dos discursos emancipatórios. Já não temos de justificar nossas lutas dian­
te do tribunal da história. A contingência e a parcialidade de nossas demandas

110 Mirta A. Giacaglia


permite o avanço, a expansão e a diversificação das lutas emancipatórias con­
cretas, nas quais o próprio significado das reivindicações é construído discur-
sivamente através dessa luta e a partir de práticas democráticas plurais: “é
justamente este declínio dos grandes mitos da emancipação, da universalidade
e da racionalidade, o que está tomando as sociedades mais livres: sociedades
nas quais os seres humanos vêem a si mesmos com o construtores e agentes da
mudança de seu próprio mundo e percebem, portanto, que não estão ligados a
nenhuma instituição ou forma de vida pela necessidade objetiva da histó­
ria”.13
Diante das exposições que inserem todo evento histórico numa continui­
dade essencial, Laclau afirma a noção de acontecimento com o parte de uma
história descontínua que produz uma exceção no social sedimentado e faz su­
por que existam cortes radicais. Entre situação e acontecimento ocorre uma
relação de contaminação, ou seja, a situação aparece cruzada por lógicas que
prenunciam o acontecimento. Para este pensador, a universalidade do aconte­
cimento é a universalidade de um significante vazio. O sujeito é consubstan­
ciai com um ato contingente de decisão, o processo de subjetivação deve ser
entendido com o o gesto de identificar a universalidade vazia com algum con­
teúdo particular que a hegemoniza.
Entre os temas cruciais de hoje, em relação ao problema da política, des­
taca-se o problema da representação. Uma das diferenças básicas entre as
democracias modernas e as antigas, reside no fato de que nas com plexas so ­
ciedades contemporâneas as formas diretas já não são possíveis, por isso as
democracias modernas são necessariamente representativas. Em conseqüên­
cia, a ressignificação do conceito de democracia hoje, requer uma reflexão
também sobre a idéia de representação. Nesta direção, as propostas de Ernes­
to Laclau permitem abrir novas perspectivas de análise em relação a essa ca­
tegoria.14 Este pensador sustenta que a representação é o processo pelo qual o
representante “substitui” e, ao mesmo tempo, “encarna” o representado. Para
que se apresentem as condições de uma perfeita representação, a vontade do
representado deve estar plenamente constituída, e o papel do representante
deve esgotar-se nessa função de intermediação. Mas nem do lado do repre­
sentante nem do lado do representado ocorrem as condições de uma perfeita
representação, com o conseqüência da própria lógica inerente a esse processo,
já que pertence à essência da representação o fato de que o representante te­
nha de contribuir para a identidade do representado e não é possível, por ou­
tro lado, uma transmissão completa e transparente da vontade do representa­
do. Há uma opacidade no processo de representação, que é ao m esm o tempo

13 Emesto Laclau, Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo, Nueva Visión,
Bs. As., 1993, p. 226.
14 Emesto Laclau, “Poder y representación”, em Emancipación y diferencia. Ariel, Argentina,
1996.

Política e subjetividade no pensamento de Ernesto Laclau 111


sua condição de possibilidade e de impossibilidade. Para Laclau, o fato de
não poder haver uma relação de representação pura ou perfeita, não faz supor
que o conceito de representação deva ser abandonado. O problema consiste,
então, em que a “representação” é o nome com que se designa um jogo inefá­
vel a partir do deslocamento entre relações de equivalência e diferença, cujas
operações não constituem um mecanismo racionalmente unívoco, já que exis­
te uma impossibilidade estrutural de representar a totalidade do espaço social
com o sistema sem exclusões; e é por isso que toda relação social se constitui
com o relação hegem ônica. Enquanto a representação é constitutiva do social,
a democracia radical constitui-se nessa tensão, já que em sociedades com ple­
xas ninguém pode instituir-se com o representante do interesse geral. Essa in­
vocação é, então, o resultado de uma construção hegemônica a partir da qual
um particular encarna um universal, mas sempre haverá uma defasagem, uma
distorção entre o particular e a articulação hegemônica. Em conseqüência, se
não podem os fugir do processo de representação, deve-se tender à construção
de alternativas democráticas que multipliquem os pontos a partir e em torno
dos quais opera a representação. Por esta razão, o argumento de Claude Le-
fort, que expressa que com a chegada da democracia, o lugar do poder toma-
se vazio, deveria ser suplementado, afirma Laclau, com a afirmação de que a
democracia requer a constante e ativa produção desse vazio. Se a representa­
ção é constitutiva de toda relação hegemônica, a eliminação da representação
é a ilusão que acompanha a noção de emancipação total.
Para Laclau, longe de experimentarmos hoje um processo de despolitiza-
ção e de uniformização, assistimos a uma politização das relações sociais
muito mais profunda do que em qualquer momento anterior. “Repensar uma
alternativa radical democrática para o século XXI requer inúmeras interven­
ções discursivas, que vão da política (no sentido corrente do termo) à econo­
mia, e da estética à filosofia [...]. E este princípio de democratização é, desde
logo, compatível com uma ampla variedade de acordos sociais concretos que
dependem de circunstâncias, problemas e tradições. É na multiplicação de es­
paços públicos, e de seus grupos de referência, além daqueles aceitos pelo li­
beralismo clássico, que se encontra a base para a construção de uma alternati­
va democrática radicalizada. E não há nada de utópico na proposição desta al­
ternativa, tendo em vista a crescente fragmentação dos setores sociais e a pro­
liferação de novas identidades e antagonismos nas sociedades em que vive­
m os.” 15 A natureza plural e fragmentada das sociedades contemporâneas abre
um terreno de inefabilidade que permite estabelecer uma pluralidade de lógi­
cas equivalenciais que tomam possível a construção de novas esferas a partir
de uma política democrática hegemônica.

15 Emesto Laclau, Nuevas rejlexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. Nueva Vision,
Bs. AS., 1993, p. 15.

112 Mirta A. Giacaglia


A crise de representação que as sociedades atuais vivenciam dá lugar a
novas subjetividades e ao surgimento de novos movimentos sociais proveni­
entes daqueles que não se sentem representados pelas instituições existentes,
o que permite expandir as lutas democráticas numa pluralidade de direções e
estabelecer uma multiplicidade de lógicas equivalenciais que tomam possível
a construção de novas esferas a partir de uma política democrática hegem ôni­
ca. N este contexto, devem os reconhecer, também, o impacto deslocador e li­
bertador da politização pós-moderna de novos espaços, e a proliferação de
demandas democráticas que ampliam o campo das lutas emancipatórias: fe­
minismo, hom ossexualism o, ecologia, minorias étnicas, religiosas, etc. e o
surgimento dos movimentos antiglobalização, dos Sem-Terra, do EZLN, dos
piqueteiros, etc. N as condições do mundo globalizado contemporâneo, o sur­
gimento e a proliferação de antagonismos produzem uma série de explosões
sociais que vão convergindo para a constituição de agentes cuja identidade
passa pela interiorização crescente de uma multiplicação de deslocamentos
que permitem recuperar o impulso instituidor do político. Para Laclau, trata-
se de refletir acerca da impossibilidade do esquecimento do político e de sus­
tentar a necessidade de um retomo, reativação ou reinvenção que permita o
surgimento de uma multiplicidade de lutas emancipatórias pelo reconheci­
mento.
Cabe, então, questionar-se sobre a possibilidade da construção de uma
verdadeira democracia radical e plural. Nesta direção, consideramos que a
proposta de Chiapas ilumina o debate ao inaugurar uma nova forma de pensar
e de fazer política, um esforço para reinventar a política de emancipação, a
partir da idéia de que seu objetivo não é a tomada do poder do Estado, nem
de ser vanguarda nem partido politico, mas reconhecer-se com o uma vontade
anônima e coletiva que não representa ninguém.
Acreditamos que a pergunta central que hoje nos com ove é com o pode­
mos constituir-nos em sujeitos capazes de reformular projetos políticos eman­
cipatórios que rompam com o consenso estabelecido na era do capitalismo
global. A partir deste horizonte não é possível esquecer a política porque seu
esquecimento seria a negação do sujeito, o fim da história. Como afirma Er­
nesto Laclau: “o futuro é certamente indeterminado e não está garantido; mas
por isso m esm o tampouco está perdido. A atual expansão das lutas democrá­
ticas na arena internacional dá lugar para um otimismo cauteloso”. 16

16 Emesto Laclau, op.cit. p 98.

Política e subjetividade no pensamento de Ernesto Laclau 113


R eferên cias
ANDERSON, Perry. Consideraciones sobre el marxism o Occidental. México: Siglo XXI,
1987.
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ZIZEK, Slavoj. The ticklish subject: the absent centre o f political ontology. London:
Verso, 1999.

114 Mirta A. Giacaglia


6

Sem objetivo?
Movimentos sociais vistos
como sistema social

Emil Albert Sobottka

------------------------ ♦ -------------------------

M ovim ento s sociais: um fen ô m en o da M o d ernidade


Nas definições mais comuns de movimentos sociais pode-se destacar
certo conjunto de constantes: a de que se trate de um ator coletivo, com certo
grau de integração (identidade) e que persegue objetivos relacionados à
n)udança_SQCial. Via de regra asleorias têm, por conseguinte, com o pano de
fundo pressupostos relacionados à capacidadejiumana de avaliar a realidade,
unir-se a outros semelhantes, elaborar alternativas e busoar transformá-las em
ação.
D ois breves exem plos mostram como estes aspectos aparecem nas
definições de movimentos sociais. Uma definição clássica é a de Raschke,
que sintetizou em meados dos anos 1980 o estado da arte das teorias
européias e estadunidenses. Para ele, “movimento social é um ator coletivo
mobilizador que, com certa continuidade, à base de "elevada integração
simbólica, com pouca especificidade de papéis, mediante formas variadas de
organização e ação, persegue o objetivo de provocar, evitar ou reverter
mudança_ social profunda” (1988, p. 77). Outro exem plo bastante
representativo da teoria atual no plano internacional norte-atlântico é a
proposta de McAdam et al. (1996) de sintetizar as principais correntes
teóricas sobre movimentos sociais em tom o de três conceitos: vo litica l
opportunities, mobilizins_structures e cu ltu ra l/ra m ia g s. N os três conceitos, e
em especial na relação entre eles, os autores destacam a vontade dojigente
para aproyeitar as oportunidades políticas possíveis dentro de certos marcos
referenciais culturais para mobilizar pessoas em tom o de objetivos comuns.

Sem objetivo? Movimentos sociais vistos como sistema social 115


Essa determinação humana de tomar as rédeas de seu destino nas
próprias mãos é relativamente recente e originou-se concomitantemente com
a Modernidade; mais que isto: é um traço essencial dela. A resposta deTCant à
questão o que é o esclarecim ento (Kant, 1988) traz cristalinamente esta
maneira de se posicionar no mundo. Para ele, quem não for capaz de guiar-se
por seu próprio entendimento, dependendo da orientação de outrem, aceita
tutela alheia por falta de decisão e de coragem para ser autônomo e
permanece, assim, preso a épocas passadas.
Esta determinação perpassa as correntes da teoria política do
contratualismo à democracia e ao individualismo m etodológico assim como
as teorias sociais modernas, e adquire importância central em movimentos
que explicitamente colocam para si o objetivo de provocar mudança social,
com o os movimentos revolucionários e a grande maioria dos movimentos
sociais.
Dieter Rucht leva às conseqüências esta relação entre a época e a
determinação humana de tomar-se autônomo ao afirmar que “movimentos
sociais são impensáveis sem a Modernidade; a Modernidade é impensável
sem m ovimentos sociais” (1994, p. 77-78). Possivelm ente a segunda parte de
sua tese encontre aceitação mais restrita; a primeira, contudo, pode ser
amplamente secundada pelos cientistas sociais da área. M esmo Luhmann, em
sua obra Sistem as sociais (1994, p. 546-547), apontou explicitamente para a
especificidade da função dos m ovimentos sociais na Modernidade como
sendo os únicos que se descrevem com o tais; movimentos existentes antes
desta época poderiam ser considerados também em certa medida movimentos
sociais,1 mas diferem profundamente dos modernos exatamente pela ausência
desta capacidade.
Para uma análise dos m ovimentos sociais no marco ou no mínimo com
recurso a categorias da teoria dos sistemas de Luhmann que são por definição
sistemas autopoiéticos, operativamente fechados e auto-referentes, a
autonomia dos atores sociais e o propósito explícito de influenciar o curso de
processos sociais levantam a questão sobre a possibilidade de compatibilizar
os postulados da teoria com características emancipatórias tidas com o tão
centrais nos e pelos movimentos sociais. A quase total ausência de análises de
movimentos sociais na ótica da teoria luhmanniana dos sistemas certamente é
um testemunho da dificuldade.
Mas o que legitimaria que um grupo assuma para si a tarefa de
transformar a sociedade em sentido determinado a despeito ou, com o via de
regra acontece, contra a vontade dos demais? N ão sendo a própria força para
impor sua determinação, a legitimação só ser reivindicada em estreita
vinculação com o objetivo do movimento. Ou melhor: não com o objetivo em
si, mas com a qualificação deste com o sendo justo, natural ou necessário.

1 Luhmann destaca mais a reflexividade que a autonomia dos movimentos sociais modernos.

116 Emil Albert Sobottka


Comum é-lhes o recurso a uma legitimação externa para seus objetivos e a
transferência desta para a existência e ação do movimento.
Aí reside uma segunda questão para a análise de m ovimentos sociais no
marco da teoria dos sistemas. M ovimentos sociais via de regra agem em tomo
do limite da legalidade - inclusive freqüentemente além dela, com o forma de
romper situações limitantes dadas. Tal transposição de limites não é adereço
ocasional, mas parte central da estratégia de atuação de m ovimentos sociais
que os diferencia de outras formas coletivas de pressão com o os lóbis. A
deficiência de legalidade aí inerente aos m ovimentos buscam compensar com
uma oferta de sentido que os coloque com o representantes legítimos da causa
por eles defendida. Mas a teoria dos sistemas de Luhmann rejeita
categoricamente legitim açoes externas. Como, então, analisar os movimentos
sociais na ótica desta teoria sem violentá-los nesta característica e, ao mesmo
tempo, sem precisar aceitar seu modo operacional enquanto tal?
Embora ainda pouco difundido entre nós, há entre os impulsionadores da
teoria dos sistemas proposições para estas duas questões. D elas nos
ocuparemos abaixo, logo após uma leitura da teoria dos sistemas orientada
pelo objeto do presente estudo.

T eo ria sistêm ica p ó s -fu n d a cio n al de Luhm ann


A teoria dos sistemas de Luhmann atingiu um grau elevado de
complexidade e maturidade e de maneira alguma seria p ossível sintetizá-la
aqui. N ão obstante, para os propósitos da discussão sobre os m ovimentos
sociais convém destacar alguns de seus aspectos centrais relevantes para o
caso.
Luhmann distingue claramente entre os sistemas vivos em geral, sistemas
psíquicos e sistemas sociais. A o primeiro tipo são associados os seres vivos
com o plantas e animais; ao segundo as pessoas; ao terceiro, as relações
sociais. Em sua teoria este autor se ocupa basicamente de sistemas sociais.
Surpreendente para quem está acostumado a pensar em categorias de
tradições humanistas é a separação categórica entre sistemas psíquicos e
sociais: os primeiros não são parte, mas tão-somente ambiente para os
segundos.
Em sua concepção geral, a teoria dos sistemas de Luhmann se insere na
tradição evolucionista que caracterizou a Sociologia desde seus inícios. Os
sistemas sociais são vistos com o estando em permanente mudança; o
constante aumento de com plexidade e seu correlato, a diferenciação2 seriam a

2 Sobre as teorias sociológicas da diferenciação, cf. Schimank (1996); o cap. 4 trata


especificamente de Luhmann. Willke (cf. Willke et al., 2000) defende que na concepção de
sociedade de Luhmann decisivo não é a diferenciação, mas a diferença (observação do
observador). Esta leitura parece questionável, porquanto o surgimento de novos sistemas,

Sem objetivo? Movimentos sociais vistos como sistema social 117


expressão desta mudança. N o Jon go prazo, a diferenciação p o de ser descrita
co mo evolução, e depende da conjugação de m ecanismos de variação,
seleção e estabilização. N o interior deste processo, a diferenciação resulta em
novos sistemas especializados.
Os sistemas sociais formam-se, assim, no contexto de aumento de
com plexidade e sua rèduçãõ ^via^ clifefenciação a partir das estratégias de
solução de problemas do sistema original; eles contribuem pára estabilizar
expectativas ou então para superar de forma especializada problemas que se
tomam agudos.
Com sua perspectiva evolucionista, a teoria dos sistemas coloca em
xeque dois postulados que perpassam, em graus variados, a imensa maioria
das teorias sociológicas clássicas e contemporâneas, apegadas ao humanismo.
Ela n e g a a pnssihilidade de postularem -se objetivos de mudança social
(utopias, planejamento) e de fundamentação de teoria sociológica sobre o
binom io sujeito-objeto. A evolução não é programável nem previsível, nem
tem a pessoa humana com o impulsionadora ou com o referência;3 ela depende
da contingência presente em cada operação do sistema observado pelo
próprio sistema.
U m postulado básico é o da auto-referência, segundo o qual os sistemas
constituem seus elementos constituintes e processam suas operações
elementares unicamente a partir de si próprios, voltados para si m esm os e em
clara distinção face ao..seu ambiente. Essa distinção permite a unidade? dos
sistemas que, aa_constituírem seus próprios elem entos, suas estruturas, são
também autopoiéticos.
Os sistemas são definidos com o sendo fechados e constituídos
basicamente da distinção sistema-ambiente. Não há possibilidade de
interferência deles no ambiente nem do ambiente neles. Sua relação com o
ambiente ocorre através daquilo que Luhmann, seguindo Maturana, denomina
acoplamento estrutural; embora determinados sistemas só sejam possíveis em
determinados ambientes, a comunicação sistema-ambiente se dá tão-somente
através de “irritações” ou estímulos, cuja recepção e eventual processamento
dependem exclusivamente do sistema.
Característico do ambientç dos sistemas é -sua com plexidade; tanto na
origem com o na continuidade dos sistemas coloca-se a necessidade de reduzir
esta com plexidade. O sistema seleciona permanentemente os elem entos entre
os quais estabelece relações e aqueles que ignora. N em tudo o que acontece
no ambiente encontra ressonância nas estruturas processuais do sistema.

central para a garantia de possibilidade da própria reprodução funcional, está visceralmente


ligado à redução de complexidade via diferenciação.
3 Luhmann raramente faz referência ao ser humano (Mensch), preferindo justamente referir-se
a pessoa (Person), que remete ao desempenho em ato ao invés da ontologia.

118 Emil Albert Sobottka


Por outro lado, na teoria sistêmica os sistemas e suas estruturas diferem
muito daquilo que classicamente se tem visto com o “estruturas” na
Sociologia: as estruturas são efêmeras e necessitam ser permanentemente
reproduzidas, adaptadas, renovadas. O sistema precisa reproduzi-las
constantemente sob pena de deixar ele mesmo de existir. E esta necessidade
intrínseca e vital do sistema que o toma extremamente sensível ao seu
ambiente e às possibilidades de conectividade com ele, levando-o a
desenvolver mecanismos de observação altamente sensíveis.
D ois destes mecanismos de observação - o direito e os movimentos
sociais - são alocados funcionalmente por Luhmann no contexto do conflito
em sistemas sociais. .

M o vim e n to s so ciais e direito


co m o sistem a im u n o ló g ico
Em seu clássico Sistem as sociais: esboço de uma teoria geral, publicado
originalmente em 1984, Luhmann (1994) dedica o nono capítulo à questão
das contradições e conflitos, para colocar, de forma algo surpreendente, o
direito e os m ovimentos sociais com o antídotos da desintegração do sistema
social, fazendo as vezes de sistema im unológico. Sua argumentação é que
contradições podem se tomar conflitos que podem/deveriam ser
“encauçados” pelo direito ou por m ovimentos sociais.
Luhmann vê o surgimento de contradições com o algo extremamente
corriqueiro em e m esm o inerente aos sistemas sociais e a sua observação. Por
fazerem parte de um sistema, determinadas operações intra-sistêmicas
ganham em determinação; quando esta determinação se toma indeterminada,
quando o sistema retira destas operações o ganho em determinação adquirido
com a participação no sistema, então surge uma contradição.
A participação no sistema social implica em comunicação de sentido, e
todo sentido pode apontar em inúmeras direções, inclusive em sentido
contrário ou inconsistente, fazendo com que toda experiência de sentido tenha
já em si o contraditório. Todo sentido experimentado traz em si de maneira
latente contradições; ele é passível de ser retirado do horizonte aberto de
sentidos e sintetizado em uma contradição; todo sentido pode ser constituído
em contradição. A questão, para Luhmann, é com o e por que isto acontece
(cf. 1994, p. 494-95).
Os sistemas sociais, na definição de Luhmann, existem com o sistemas de
comunicação. N eles as contradições estão ligadas à lógica de seleção
controlada de sentido e sua comunicação. N ão qualquer sentido, mas sim a
negação. “O sistema social constitui as contradições válidas para ele com
recurso a esta unidade da comunicação. Sua síntese toma visível a
impossibilidade de convivência [...]. A contradição surge mediante sua

Sem objetivo? Movimentos sociais vistos como sistema social 119


com unicação” (id., p. 498). Por conseguinte, as contradições não são externas
nem agressão vinda do exterior; elas são um momento da auto-referência dos
sistemas sociais que articulam as contingências em direção à impossibilidade
de convivência, que trazem em seu bojo a necessidade da adaptação ou da
diferenciação. Contradições rompem estruturas e impulsionam com isso a
reprodução autopoiética, mas deixam em aberto qual das muitas
possibilidades será efetivamente atualizada. E isto que possibilita ver as
contradições com o promotoras da mobilidade dos sistemas; com a
impossibilidade de determinação a p rio ri do resultado preserva-se a auto-
reprodução.4
Para Luhmann, reside aí o potencial das contradições com o sinais de
alarme, para fomentar o desenvolvimento de um sistema im unológico. D e um
sistema im unológico não se exige que corrija desvios ou restabeleça uma
suposta normalidade anterior; ele deve cumprir suas funções seletivamente de
forma compativel com condições variáveis, pois o sistema social não é
imunizado contra mudanças e sim através delas, inclusive incorporando
aprendizagem. A aprendizagem do sistema social não é cognitiva mas
discriminadora: importa saber se algo pertence ou não ao sistema e como
reagir face a isto, sem necessidade de analisar o contradito.
Contradições surgem a toda hora nos sistemas sociais. Como os sistemas
sociais são constituídos de comunicação, as contradições se tomam
processáveis apenas com o comunicação; quando comunicadas, tomam-se
conflitos. N as palavras de Luhmann: “um conflito é a autonomizaçào
operativa de uma contradição mediante a comunicação. Logo, um conflito
está dado somente quando expectativas são comunicadas e a não-aceitação da
comunicação é retrocomunicada” (1994, p. 530).
Embora contradições e mesmo conflitos surjam corriqueiramente,5 sua
relevância eles adquirem apenas na medida em que demonstrem
conectividade para relações sociais fora da interação em que se originaram.
Uma vez instalados, conflitos tomam-se sistemas parasitários: eles não se
diferenciam formando um novo sistema fechado, mas seguem existindo
dentro do hospedeiro. Com um agravante: eles não tendem a uma simbiose,
mas à absorção do sistema hospedeiro a ponto de sugar-lhe todos os recursos.
M ovimentos sociais e direito atuam precisamente aqui com o partes
constituintes do sistema im unológico, selecionando os conflitos significativos,
de alta conectividade.

4 Sem dúvida esta reflexão de Luhmann quando levada imediatamente às possíveis


conseqüências, escancara possibilidades para ver a contradição como mecanismo por
excelência para a conservação do sistema. Movimentos sociais e direito, definidos neste
capítulo como constituintes do sistema imunológico, seriam então os principais responsáveis
pela preservação do status quo.
5 “Conflitos são formações quotidianas, surgem em todo lugar e geralmente são bagatelas
rapidamente superadas” (Luhmann, 1994, p. 534).

120 Emil Albert Sobottka


O direito, nesta perspectiva, é constituído com o antecipação de possíveis
conflitos. Da grande quantidade de possibilidades quotidianas de contradição
em tom o de expectativas são selecionadas aquelas que deverão provar sua
eficácia; a elas é associada a normatividade das expectativas submetendo-as
às excludentes alternativas de direito e não-direito, legal e ilegal. A ssim
forma-se no sistema social todo um conjunto de antecipações de conflito que
via de regra atenderão às situações mais inusitadas que possam surgir. Só
muito excepcionalm ente o conflito surgirá no nível da interação. Em suma: “o
direito não se destina a evitar conflitos; comparado com a repressão de
conflitos em sociedades em que predomina a interação ele até leva a um
aumento das chances de conflito. Ele somente busca evitar a resolução
violenta de conflitos disponibilizando formas adequadas de comunicação para
cada conflito” (1994, p. 511).
Diferente do direito, que opera mediante estruturas oficiais, os
movimentos sociais são uma forma de selecionar conflitos relevantes que é
mais independente das estruturas, mais a d hoc e mais difícil de reconhecer.
Luhmann introduz a possibilidade do surgimento dos movimentos remetendo
a uma seqüência corriqueira de três passos dentro dos sistemas sociais: (a)
afrouxamento dos laços sociais, tomando-se menos tipificados a p rio r i e mais
decorrentes de escolhas; (b) as contribuições individuais são mais
especificadas uma vez que o status é adquirido e os feitos pressupõem
qualidades individuais; e (c) por parte da sociedade com plexa há crescente
produção de e reação a efeitos para os quais não há disponíveis estruturas que
os “encaucem ”, e que agregados podem tomar-se autocumulativos. Então o
movimento com eça movimentar-se a si próprio - e desenvolve
autopoieticamente “sistemas auto-referentes de um tipo su i gen eris que, com
grande predisposição para a contradição e o conflito, podem assumir funções
no sistema im unológico da sociedade” (Luhmann, 1994, p. 548).
D e certa maneira Luhmann, à época em que formulou esta parte de sua
teoria dos sistemas, não estava de todo satisfeito com a conceituação dos
movimentos sociais. Mas via neles a solução para a necessidade inerente ao
sistema social, de extrair e consolidar em unidade autônoma aquilo que o
sistema im unológico selecionou com o conflito relevante. Uma vez
consolidada a unidade, a ela agregam-se outras ações e o m ovimento pode se
desenvolver.
O acionamento de qualquer um destes componentes do sistema
imunológico levará o sistema social a mudanças em sua auto-reprodução. O
sentido destas mudanças - se será uma melhor adaptação ao seu ambiente ou
não - é um resultado contingente; ele não está dado de antemão. Luhmann
insiste que no caso dos m ovimentos sociais nem mesmo o objetivo original
pode indicar o rumo da mudança.

Sem objetivo? Movimentos sociais vistos como sistema social 121


O lugar dado por Luhmann aos m ovimentos sociais no esboço de sua
teoria geral num primeiro olhar surpreende em dois sentidos: pela
naturalidade com que vê seu surgimento e pela função predominantemente
reativa que conota a associação com o sistema im unológico. Movimentos
sociais têm predominantemente sido vistos nas Ciências Sociais como
expressão de vontade de atores face ao desafio da mudança social, reunindo,
por conseguinte, vontade para a ação com objetivos de transformação.6
Por outro lado, não se pode menosprezar que neste ponto Luhmann não
estava tratando dos movimentos sociais e sim das contradições e dos conflitos
e seu lugar nos sistemas sociais. Assim , faz sentido insistir na pergunta: como
Luhmann viu os movimentos sociais?

Protesto: co m o a teo ria dos sistem as vê


os m o vim en to s sociais
Luhmann, não sem alguma razão, é conhecido e admirado nas ciências
jurídicas mais do que em qualquer outro campo do conhecimento, inclusive
na sociologia. D esde o início de sua atuação acadêmica, coincidente com a
publicação de Legitim ação p elo procedim ento em 1968, até praticamente o
final dela, com a publicação de O direito da so cied a d e em 1993, ele tem
escrito obras abrangentes enfocando o Direito. Embora a economia, a ciência
e até m esm o a arte, a religião e o amor na sociedade modema tivessem
recebido dele atenção específica expressa na forma de livros, a repercussão
nas áreas respectivas foi bem menor que entre os juristas.
Em vão, porém, procurar-se-á em sua obra uma crítica abrangente e
sistemática da sociedade modema ou um tratamento sistemático dos
m ovimentos que radicalmente a criticam - permitindo a impressão de serem
estes temas negligenciados. Tal pergunta reveste-se de importância crucial
quando confrontada com a aspiração explícita do autor de apresentar com sua
teoria dos sistemas uma teoria sociológica universal, isto é, uma teoria que
tem a pretensão de poder abarcar todas as temáticas e todas as esferas desta
disciplina.
Uma atenuante desta impressão foi a publicação do livro Protest:
System theorie und soziale Bewegungen (Protesto: teoria dos sistemas e
movimentos sociais), organizado por Kai-Uwe Hellmann (cf. Luhmann,
1997). N ele são reunidos mais de uma dezena de textos - artigos e entrevistas
- de Luhmann sobre aquilo que ele usualmente denominou protesto,
publicados entre 1985 e 1995.

6 Mesmo que, como enfatiza a definição clássica de Raschke, o objetivo pode ser evitar ou
reverter mudança social (cf. Raschke, 1988, p. 77).

122 Emil Albert Sobottka


Já no agitado ano de 1968 Luhmann havia concedido aos m ovimentos
estudantis que eles estariam com razão ao chocarem-se com o status quo.
Porque se voltam para problemas prementes no sistema social, atesta a estes
movimentos a função de romper periodicamente com o dogmatismo e a
rigidez estruturada para abrir caminho para a adaptação do sistema,
mantendo-o em m ovimento.7 Mas esta função é tida com o um efeito
secundário de movimentos em si considerados com o errantes.
Quando uma década e meia depois Luhmann publica Sistem as sociais,
obra com que inicia sua fase madura ao passar a trabalhar com o conceito de
sistemas operativamente fechados, auto-referentes e autopoiéticos, ele volta à
questão dos m ovimentos sociais, dando-lhes um lugar de destaque na
arquitetura da teoria.
Ao lado do Direito, os movimentos sociais têm seu locus no contexto do
tratamento das contradições e dos conflitos, e são vistos com o constituintes
do sistema im unológico da sociedade (cf. Luhmann, 1994, cap. 9). O próprio
sistema social, em sua auto-referência, é quem os identifica com o
movimentos sociais, reforçando com isso sua própria identificação e auto-
referência. Quando a esta auto-referência é associado um objetivo ou
programa, isto amplia o potencial e o espectro de seletividade do sistema;
pela orientação ao objetivo inerente ao programa será determinado o que se
conecta ou não ao sistema.
Mas os m ovimentos sociais, diferentemente do Direito, são considerados
um procedimento moderno para selecionar e tratar as contradições e os
conflitos relevantes da sociedade (ibid., p. 549) e tidos com o os principais
impulsionadores das mudanças nas estruturas operativas dos sistemas. Isto se
deve ao fato de que neste tipo de sistema a atribuição de valores ao código
binário tem seus critérios estabelecidos por um programa voltado
especificamente ao cumprimento daquilo que é considerado função do
sistema, independentemente das atuais estruturas - o programa dos
movimentos sociais.8 Com isso compensa-se nos sistemas a operação

7 Uma questão a ser ainda melhor pesquisada é em que medida a concepção luhmanniana da
dinâmica interna do sistema que leva a mudanças em sua estrutura operacional tem
parentesco com o estruturalismo genético.
8 En un sistema autopoiético diferenciado con base en un código binário, el código dirige las
operaciones que reproducen la unidad dei sistema: regula la producción de diferencias y con
ello la elaboración de información por parte dei sistema. Las operaciones proceden siempre
ciegamente y en su nivel no existe ninguna forma de control dei sistema sobre su proceder: el
código, en efecto, no aporta directivas para la acción, sino que se limita a orientar las
operaciones asegurando que se relacionen con las subsecuentes. La autorregulación y el
autocontrol dei sistema se desarrollan en cambio en el âmbito de los programas, que dirige la
observación de las operaciones por parte dei sistema mismo, con base en distinciones
distintas de aquella a la que tales operaciones se orienta. Los programas fijan las condiciones
que deben darse para que una determinada operación pueda acontecer: por ejemplo,
establecen que la atribución dei valor positivo dei código es correcta solo en circunstancias
especificas. [...] Los programas son los que dan cabida al excluido tercer elemento, al que es

Sem objetivo? Movimentos sociais vistos como sistema social 123


rigidamente baseada em um código binário, permitindo a inserção de
objetivos externos ao sistema e pela via comunicativa que o sistema está apto
a processar.
A esta valorização teórica dos m ovimentos sociais seguiram-se os já
referidos textos ocasionais de Luhmann. N eles o autor aprofunda a questão da
auto-observação da sociedade e sua observação pelos movimentos sociais.
Segundo ele, toda autodescrição é contingente, aberta a alternativas; mas a
sociedade m odem a diferenciada não tem a possibilidade de valer-se de
observação a partir de um ponto de vista externo nem consegue, a partir de
um ponto de vista privilegiado de observação, representar a unidade da
sociedade na sociedade. Precisamente aí os m ovimentos sociais lhe oferecem
a observação que é com o se fo sse externa: assume um olhar distanciado sem
distanciar-se e, a despeito de toda diversidade, têm na crítica à diferenciação
funcional sua intenção radical. Com isso os movimentos adquirem status
teórico de equivalente dos observadores externos sem serem externos, sem
atropelar a auto-referência.
Em um de seus últimos escritos (Luhmann, 1998, v. 2), Luhmann coloca
ao lado dos movimentos sociais ainda outros observadores, com o os m eios de
comunicação social e, em certa medida, a própria opinião pública. Ao
fazerem a auto-observação e descrição da sociedade, eles exercem a autologia
do sistema social.
N ão obstante este lugar de destaque no aspecto funcional, Luhmann não
parece ter nutrido maiores simpatias pelos m ovimentos sociais.
Ocasionalmente volta a referir-se a eles com uma qualificação que ficou
patente a partir de uma publicação de 1986, onde afirma que os movimentos
alternativos não apresentam alternativas (A lternaíive ohne A lternative, cf.
1997, p. 75 seg.) - repetindo o niilism o de 1968, onde os estudantes teriam
toda razão para voltarem-se contra o status quo, mas continuavam sendo
considerados errantes (cf. Hellmann, 1997).
A impressão que se tem é que Luhmann tinha as categorias teóricas para
um enquadramento muito mais profícuo dos movimentos sociais em sua
teoria, chegando inclusive a tangenciá-lo, mas falhou ao não levar as
possibilidades às conseqüências. Uma razão fundamental para esta falha foi
sem dúvida seu limitado horizonte de referência no conhecimento do espectro
dos movimentos sociais: pelo m enos nos últimos anos, paradigma para
m ovimentos sociais para ele foi sobretudo o movimento ecológico e, em grau
bem menor, os m ovimentos pacifistas, contra o uso da energia atômica, e

extraflo a la composición entre los valores dei código, al interior dei sistema que se orienta
hacia éste, y de esta manera mitiga la unilateralidad dei código. Aun orientándose
unicamente con su código, el sistema considera en el âmbito de los programas algunos
critérios que rigen en otros âmbitos sociales. (Corsi et al., 1996, p. 132).

124 Emil Albert Sobottka


feminista - todos vistos com o reativos. Luhmann praticamente não se refere
aos movimentos sociais propositivos ou de pano de fundo cultural.
Seguidores da proposta teórica de Luhmann deram continuidade à
questão dos m ovimentos sociais; de uma destas propostas nos ocuparemos a
seguir.9

M o vim en to s sociais: sistem a social baseado


na m o b ilização
A s deficiências teóricas da teoria dos sistemas com relação aos
movimentos sociais foram tomadas por Heinrich Ahlem eyer (1995) com o
desafio para sua tese de livre-docência. A questão que ele colocou com o
central e se propôs a aprofundar foi se os m ovimentos sociais apresentam o
necessário fechamento auto-referente e, em sendo o caso, com o ele se dá
operacionalmente.
M ovimentos sociais via de regra são vistos com o muito fluidos,
fortemente dependentes de fatores conjunturais e explicitamente voltados
para influências sobre ocorrências fora deles próprios; parecem, portanto,
muito distantes de sistemas sociais fechados nos termos da teoria de
Luhmann.
Por outro lado, é possível inferir da introdução a seu livro que
Ahlemeyer, um militante de longa data em m ovimentos, não se sente
confortável com o estatuto teórico conferido aos m ovim entos sociais por
Luhmann. Para recolocá-los em termos bem novos e demonstrar a
possibilidade de analisar movimentos sociais nos termos da teoria dos
sistemas sem renunciar ao que é característico de ambos, este autor redeclina
as categorias centrais da teoria.
Auto-referência e autopoiése são centrais para a concepção de sistemas
sociais com o operativamente fechados. Auto-referência implica que uma
diferenciação só pode ocorrer a partir de dentro, que na constituição de seus
elementos o sistema só pode recorrer a si próprio. Por isso será necessário
mostrar com o nos movimentos sociais efetivamente acontece este fechamento
operativo, que é correlato da auto-referência.
D e forma similar acontece com a autopoiese: será necessário mostrar
como o sistema dispõe de formas autônomas para sua produção e reprodução.
Isto não implica na necessidade de repetir determinada ação, mas em
“produção a partir do produzido” (Luhmann, 1994, p. 233) e a continuidade

5 Uma proposta digna de nota por sua consistência e abrangência, apresentada como tese de
doutorado e que obteve parecer favorável do próprio Luhmann, foi feita por Hellmann
(1996). Ela aprofunda a função dos movimentos sociais como sinalizadores precoces de
risco no sistema social. O autor, no entanto, não inova muito no aspecto teórico, preferindo
ater-se e, freqüentemente, expandir teses e indicações já feitas por Luhmann.

Sem objetivo? Movimentos sociais vistos como sistema social 125


da operação do sistema - assegurando que o sistema não se extingue com a
presente operação.
A tese de Ahlem eyer é que os m ovimentos sociais são um tipo de sistema
social em que o fechamento operacional se dá mediante “comunicações
voltadas para a m obilização” ou simplesmente pela “m obilização” (ibid., p.
73) e que eles cumprem, com o sistema social, todos os requisitos teóricos.
Por isso ele redefine m obilização com o sendo uma forma específica de
comunicação, diferindo radicalmente da definição mais usual da mobilização
presente nas teorias sobre m ovimentos sociais que enfatizam a mobilização
com ativação de recursos.
Luhmann havia definido a comunicação nos sistemas sociais em geral
com o uma síntese de três seleções, com o a unidade entre informação,
comunicado e compreensão. A estas Ahlemeyer acrescenta uma quarta
seleção, que não é mais parte da comunicação, mas conexa a ela: o aceite ou a
recusa da oferta de redução de sentido. Para ele, é esta quarta seleção que
pode provocar a continuidade da comunicação e assegurar a conectividade.
A especificidade da m obilização com o forma de comunicação é que a
sugestão de sentido vem acompanhada de uma nova sugestão de seleção: a
expectativa de ego de que alter atue de maneira determinada face ao sentido
sugerido. A sugestão de ação, segundo Ahlemeyer, não só dá continuidade,
mas qualifica a comunicação. Segundo o autor, pouco importa se esta
sugestão é explícita ou implícita, nem deixa de ser m obilização se a seleção
de alter for a recusa da sugestão de ação (ibid., p. 93).
A ssim , este autor pode defender com o tese central que “a sugestão de
ação que acompanha a sugestão de sentido é tão central para a operação de
m obilização, que ela simultaneamente amplia e coordena as seleções
comunicativas” (Ahlemeyer, 1995, p. 89). Há uma presunção na sugestão de
ação sobre a conectividade que ultrapassa em muito a sugestão de sentido
comunicada, sem negar a autonomia da seleção.
N a teoria de Luhmann está muito claro que sistemas sociais não são
estruturas perenes; eles duram enquanto durarem suas operações. Pode-se
então perguntar: se uma sugestão de ação de uma m obilização for recusada
por alter, não cessa aí a comunicação e, portanto, o sistema movimento
social? Segundo Ahlem eyer não, pois a sugestão de ação da mobilização,
diferente da sugestão contida em relações assimétricas com o o poder, vem
acompanhada de um autocomprometimento. A sugestão é: “vem, junte-se a
mim/nós e faça tal coisa”. Por conseguinte, m obilização por definição é uma
comunicação de sentido e de sugestão de ação simétrica, autocomprometida;
sem autocomprometimento com a sugestão de ação, independentemente de
sua aceitação ou não, ela deixa de ser m obilização.

126 Emil Albert Sobottka


A ssim fica assegurada na mobilização a reprodução autopoiética: o
próprio m obilizador mobilizado dá continuidade à operação do sistema. Nas
palavras de Ahlemeyer:

A operação elem entar da m obilização envolve pois as duas coisas


sim ultaneam ente: a tentativa de transm itir um a sugestão de sentido e de ação de
alter para ego [sic] c o autocom prom etim ento de alter. C om isso, d a p erspectiva
de alter, ela funciona tanto com o m ecanism o auto-referente de g a ran tia da
operação elem entar com o tam bém com o m ecanism o hetero rreferen te da
am pliação do procedim ento elem entar (Ibid., p. 97).

D e forma similar, a auto-referência se dá na m obilização pelo fato de a


sugestão de ação indicar para o próprio movimento; a ação sugerida é aquela
que já está presente no movimento. Como a m obilização desaparece com sua
efetivação, o sistema depende permanentemente de que novos eventos
mobilizadores sejam realizados; isto coloca os movimentos sociais diante do
permanente desafio de reproduzirem m obilização formando um processo
mobilizador. A m obilização não é hierárquica nem gradual, mas binária e
recursiva. Por causa desta auto-referência, segundo o autor, a m obilização só
seria possível em movimentos sociais. A ssim fecha-se o círculo referencial do
movimento face ao seu ambiente.
Com esse reposicionamento de conceitos fundamentais da teoria dos
sistemas no contexto dos m ovimentos sociais, Ahlem eyer pode formular uma
nova definição de m ovimentos sociais:
A ssim , o m ovim ento social não é outra coisa senão a re p ro d u ção e conexão de
eventos de m obilização nos quais ele p róprio se supõe e se sugere com o cam po
de ação. C om essa rem essa auto-referente a sua p ró p ria u nidade, ela traç a um a
delim itação (de sentido) frente a seu am biente e c o nquista, com isto, a
po ssib ilid ad e de form ar com plexidade p ró p ria (Ibid., p. 99).

C o d ifican d o a o b servação
Partimos da postulação de que com o teoria sociológica pretensamente
universal, a teoria dos sistemas de Luhmann deveria ser capaz de servir de
instrumento teórico também para a análise de m ovimentos sociais, sem
desprezar as questões da determinação humana por tomar as rédeas de seu
destino nas próprias mãos e a permanente busca por legitimidade em um
programa que não esteja delimitado pelo rígido esquema da legalidade, que
lhe são tão características.
A tematização dos movimentos sociais pelo próprio Luhmann foi
recorrente em escritos sobretudo ocasionais. Algumas decisões sobre a
arquitetura de sua teoria, com o a de relacionar os m ovimentos sociais com o
sinalizadores precoces de conflitos, foram interessantes, a despeito do juízo

Sem objetivo? Movimentos sociais vistos como sistema social 127


negativo do autor sobre os m ovimentos com o sendo errantes. Quer parecer,
no entanto, que a mais instigante das possibilidades para analisar este
fenômeno <*m Luhmann deu-se em sua concepção de programa e na função a
ele atribuído: com ela seria possível analisar os movimentos sociais numa
pt.spectiva relativamente imanente sem recorrer a legitimação/fundamen­
tação externa. Mas ela permaneceu inconseqüente.
Por outro lado, a proposta de Ahlemeyer permite ver a relação
movimentos sociais-teoria dos sistemas num novo patamar. Lástima que
consistência e abrangência desta proposta ainda não tenham sido suficientes
para motivar pesquisas em maior número, com o que a teoria poderia
verific ir-se enquanto explicativa. Há, pois, ainda trechos de caminho a
percorrer.

R eferên cias
A HLEM EYER, Heinrich W. Soziale Bewegungen ais Kom m unikationssystem : Einhcit,
Um weltverhãltnis und Funktion eines sozialen Phanomens. Opladen: Leske + Budrich,
1995.
CORSI, Giancarlo et al. GLU: glosario sobre la teoria social de Niklas Luhmann. Madrid:
Anthropos, 1996.
HELLM ANN, Kai-Uwe. Eiführung. In: N iklas Luhmann. Protest: System theorie und
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--------- . System theorie und neue soziale Bewegungen: identitâtsproblem e in der
R isikogesellschaft. Opladen: W estdeutscher Verlag, 1996.
KANT, Immanuel. A p a z perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1988.
LUHM ANN, Niklas. Die G esellschaft der Gesellschaft. Franfurt am Main: Suhrkamp,
1998, 2 v.
--------- . Protest: System theorie und soziale Bewegungen. Franfurt am Main: Suhrkamp,
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--------- . Soziale Systeme: Grundriss einer allgemeinen Theorie. 5. ed. Frankfurt am Main:
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M CADAM , Doug et al. (Org.). Comparative perspectives on social movements: political
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University Press, 1996.
RASCHKE, Joachim . Soziale Bewegungen: ein historisch-system atischer Grundriss. 2. ed.
Frankfurt am Main: Campus, 1988.
RUCH T, Dieter. M odem isierung und soziale Bewegungen. Frankfurt am Main: Campus,
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SCHIM ANK, Uwe. Theorien gesellschaftlicher D ifferenzierung. Opladen: Leske +
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W ILLKE, Helmut et al. Die G esellschaft der Systemtheorie. Ethik und
Sozialwissenschaften: Streitforum für Erwagungskultur. v. 11, n. 2, 2000.

128 Emil Albert Sobottka


7

Estado e Direito como sistemas


autopoiéticos: uma abordagem da Teoria
de Sistemas de Niklas Luhmann

Rodrigo Ghiringhelli de A zevedo

------------------------ ♦ -------------------------

In tro d u ção
D esde o final dos anos 60, com a publicação da obra Legitim ation durch
Verfahren,1 até sua morte, em 1998, Niklas Luhmann (1927-1998) foi res­
ponsável por uma construção teórica original, que acabou por influenciar de
maneira decisiva os estudos sociojurídicos neste final de século. Formulando
sua proposta teórica no curso de quase quarenta anos de vida acadêmica dedi­
cada à teoria sociológica, desde os seminários de Talcott Parsons no início
dos anos 60 (onde foi colega daquele que viria a ser seu maior opositor, na
defesa da tradição emancipatória da Teoria Crítica, Jürgen Habermas) Luh­
mann acabou por formular uma ampla, generalizante e singular teoria da soci­
edade, no interior da qual pretendeu dar conta da com plexidade e da contin­
gência com que nos deparamos na época contemporânea.
Incorporando a herança das correntes funcionalistas e evolucionistas da
sociologia moderna, reinterpretadas em um quadro conceituai interdisciplinar
(cibernética, biologia) e voltado para a construção de um novo paradigma ci­
entífico, a perspectiva teórica de Luhmann, a par do sucesso obtido pelo alto
potencial descritivo do funcionamento do sistema jurídico, bem com o de ou­
tros subsistemas sociais, foi também alvo de pesadas críticas, chegando a ser
caracterizada com o n eocon servadora.' Tendo em conta a advertência haber-

1 No Brasil, Legitimação pelo procedimento, UnB, 1980.


2 Cf. Habermas, J. (1998). Para Habermas, “o faeto de Luhmann esgotar o conteúdo reflexivo
destas duas tradições opostas [filosofia do sujeito e funcionalismo sistêmico] e conjugar mo­

Estado e Direito como sistemas autopoiéticos: uma abordagem da Teoria de Sistemas de Niklas... 129
masiana de que o ganho obtido por Luhmann em termos de conceitualização,
imaginação teórica e capacidade de elaboração paga um preço excessivam en­
te alto, ao eliminar o mundo da vida com o resíduo indigesto, através da dis­
sociação entre sistemas pessoais e sistemas e subsistemas sociais que formam
mundos circundantes uns para os outros, a nossa pretensão no presente traba­
lho não é a de explorar as limitações metateóricas da perspectiva luhmannia-
na, e sim a de apresentar, de forma sistemática, os principais conceitos e cate­
gorias com as quais procura descrever o funcionamento do Estado e do siste­
ma jurídico.
Pretendemos, com isso, apreender a lógica interna da construção concei­
tuai da nova teoria de sistemas sociais, especificamente no que diz respeito à
caracterização dos subsistemas político e jurídico nas sociedades contempo­
râneas. Para tanto, partimos de uma análise dos conceitos mais abrangentes da
teoria sistêmica, com o a noção de sistemas sociais autopoiéticos, operacio­
nalmente fechados e auto-referenciados. Em seguida, são analisados os sub­
sistemas político e jurídico, tomando com o referência as obras do Luhmann
“maduro”, posteriores a 1984, em que se vislumbram os pontos de contato en­
tre a teoria de Luhmann e a chamada corrente pós-m odem a do pensamento
sociojurídico, particularmente em relação à autonomia do Direito frente a ou­
tras dim ensões da prática social, à capacidade autonormativa do quotidiano,
ao pluralismo jurídico e ao caráter local do saber jurídico.

O sistem a social au to p o iético - co m p lexid ad e, co n tin g ên cia


e evo lu ção
Tendo na obra de Parsons o seu ponto de referência inicial, Luhmann
propõe a inversão da ordem lógica dos conceitos de estrutura e função. Para
Luhmann, o problema fundamental para a análise sociológica não deve ser,
com o em Parsons, o de determinar as condições necessárias para a existência
e permanência de determinadas estruturas, e sim determinar as condições
através das quais podem ser realizadas algumas das funções essenciais para a
estruturação de um sistema social (Treves, 1988, p. 214). Essa diferença na
abordagem da relação entre estrutura e função vai implicar em deixar de lado

tivos mentais de Kant e Nietzsche num jogo de linguagem cibernético caracteriza o nível em
que ele instala a teoria sistêmica da sociedade. Luhmann transfere as mesmas propriedades,
que Foucault tinha atribuído com a ajuda de um conceito de poder histórico-transcendental
às formações discursivas, para sistemas que operam de modo auto-referencial e que elabo­
ram o sentido. Uma vez que, ao mesmo tempo que abandona o conceito de razão, também
abandona a intenção da crítica à razão, ele pode orientar para o descritivo todas as afirma­
ções que Foucault ainda formulava de modo denunciador. Neste sentido, Luhmann conduz
ao extremo a afirmação neoconservadora da modernidade social, por conseguinte também a
um nível da reflexão onde tudo o que os defensores da pós-modemidade poderiam alegar, já
foi ponderado anteriormente sem acusação e de modo mais diferenciado” (p. 324-325).

130 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo


a preocupação parsoniana com a obtenção do consenso normativo com o fun­
damento da legitimidade de uma ordem social, passando a referir-se ao pro­
blema da governabilidade, reduzindo a legitimidade a um mero problema
funcional:
o ap erfeiçoam ento dos m ecanism os de p rocedim ento institucionalizados do sub-
sistem a adm inistrativo, que assim liberta o sistem a social geral (o processo de
d ecisão) dos c onstrangim entos do “ m ercado p o lítico ” (o subsistem a d o s partidos
e das suas leis dc c oncorrência), con ferin d o -lh e m aior autonom ia e capacidade
seletiva (P issarra in L uhm ann, 1992, p. 17).

A partir da obra S ocial System (1995), Luhmann vai consolidar o seu dis­
tanciamento da concepção de sistemas de Parsons, especificam ente na forma
como compreende a relação entre sistema e entorno. Conforme Pissarra, a
versão parsoniana da Teoria dos Sistemas, aplicada à realidade social, conce­
beu a sociedade com o uma espécie de sistema soberano, com capacidade ili­
mitada de modelação do seu meio ambiente. Em Luhmann, na relação siste-
ma-meio, o m eio ambiente do sistem a (U m w elt) não se limita à função de
apoio ou base do sistema, definindo também os seus limites de racionalidade.
D aqui resulta, p o r conseqüência, a redefinição d a p ró p ria ra cio n alid ad e sistêm ica
(systcm rationalitât): j á não um a racionalidade hegem ônica (com o W eb er e n te n ­
dia a racio n alid ad e form al), m as antes “defen siv a”, um a racio n alid ad e que p re ­
tende apenas aco lh er e neutralizar, tanto qu an to possível, as am eaças p ro v e n ie n ­
tes do m eio (sem n u n c a chegar a dom iná-lo). N esta m edida, ela perde tam b ém o
seu carácter norm ativo e ideal-típico; to m a -se c o n tin g en te e o pera com o um a es­
pécie d e rede p luridim ensional e p o lim órfica (P issarra in L uhm ann, 1992, p. 14).

O sistema social é visto com o uma conexão de sentido de ações que se


referem umas às outras e estão delimitadas frente a um m eio ambiente (entor­
no). N ão se trata de um conjunto de seres humanos, mas sim de um conjunto
de ações comunicantes - com unicações. O ser humano constitui-se, enquanto
indivíduo, em parte do m eio ambiente do sistema social, fonte geradora de
com plexidade.3
O excesso de expectativas geradas pelas infinitas possibilidades ofereci­
das pelo m eio ambiente colide com a limitada possibilidade de apreendê-las e
realizá-las concretamente, derivando daí a com plexidade do mundo, isto é, o
seu excesso de possibilidades frente aos limites cognitivos do sistema. O au­
mento da com plexidade apresenta-se para Luhmann com o uma constante ev o ­
lutiva absoluta, que o leva a identificar três estágios na linha evolutiva das so ­
ciedades: sociedades segmentárias, em que não há diferenciação em subsis-
temas; sociedades estratificadas, caracterizadas pela relação hierárquica entre

3 Para uma ampla apresentação de seu conceito de sociedade, vide Luhmann, “O Conceito de
Sociedade”, in: Baeta Neves e Samios (org.), Niklas Luhmann: a nova Teoria dos Sistemas
(1997).

Estado e Direito como sistemas autopoiéticos: uma abordagem da Teoria de Sistemas de Niklas.., 131
os subsistemas com o garantia da ordem social; e sociedades de diferenciação
funcional, pelo desenvolvim ento de subsistemas operativamente autônomos,
com critérios e códigos próprios (Herrera, 1998, p. 92). A evolução é uma
conseqüência da necessária adaptabilidade dos sistemas sociais, que os leva à
permanente tentativa de redução da com plexidade do entomo, selecionando e
traduzindo as potencialidades indefinidas em expectativas previsíveis (Tre-
ves, 1988, p. 214). A auto-referência é a tomada de consciência subjetiva da
diferença do sistema em relação ao seu entomo, que garante a superioridade
evolutiva dos sistemas diferenciados funcionalmente.4
A lém da com plexidade, o mundo social está também caracterizado pela
contingência, derivada tanto do fato de que as possibilidades selecionadas pe­
lo sistema podem realizar-se de um m odo distinto do previsto, com o da pos­
sibilidade sempre existente de alternativas funcionalmente equivalentes para
lidar com uma realidade complexa. Frente à com plexidade e à contingência,
somente se poderia neutralizar os perigos que derivam das expectativas frus­
tradas mediante duas estratégias, incompatíveis entre si: corrigir a expectativa
frustrada de m odo a que se conforme com a nova realidade (estratégia cogni­
tiva), ou negar-se a aprender e manter a mesma expectativa, embora frustrada
(estratégia normativa).
A formulação mais acabada da teoria de Luhmann passa a adotar como
central a noção de sistem as autopoiéticos, inspirada pelos trabalhos dos bió­
logos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela,5 desenvolvendo-a pa­
ra os domínios das ciências sociais e do Direito. A teoria dos sistemas auto­
poiéticos tenta descrever o m odo de funcionamento de todos os sistemas que
reproduzem a si mesm os, ou seja,

d efinem a sua identidade p o r oposição ao e x terior (am biente) e d efin em as regras


das tran saçõ es entre sistem a e am biente; constroem os seus pró p rio s elem entos;
constroem a g ram ática do seu próprio ciclo de funcionam ento; constroem a (m e­
ta) g ram ática q u e com anda as transform ações d a prim eira, de ciclo para ciclo
(H espanha, 1998, p. 260).

O que permite a utilização da teoria dos sistemas autopoiéticos, originá­


ria da biologia, para a análise dos sistemas sociais, é uma mudança do ângulo
a partir do qual é vista a relação entre o sistema e os seus elem entos (Guerra
Filho, 1997, p. 60). Em Maturana e Varela, a unidade entre o sistema e seus
elem entos é vista “de baixo para cima”, isto é, a autopoiésis se dá ao nível
dos elem entos, que se autoproduzem, enquanto que em Luhmann, a unidade
entre elem entos do sistema não emerge “de baixo”, e sim ao nível do sistema,
que autoproduz seus elem entos, que portanto são elem entos apenas para o sis­

4 Para uma critica da noção de evolução em Luhmann, vide Habermas (1990), História e Evo­
lução (p. 163/218).
5 Sobre a caracterização feita por esses autores dos sistemas vivos como produtores de si
mesmos, vide Maturana e Varela, “De maquinas y seres vivos” (1973).

132 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo


tema, que os emprega com o unidades. Assim , enquanto os sistemas vivos têm
como elem entos células e m oléculas, que produzem outras células e m olé­
culas, em um ambiente onde há outros sistemas que fazem o mesmo, e os sis­
temas conscientes têm com o elementos significações e pensamentos, que pro­
duzem outras significações e pensamentos, em um ambiente onde há outros
sistemas que fazem o mesmo, os sistemas sociais se caracterizam por ter co ­
mo elem entos com unicações, que produzem outras com unicações, que, p o­
rém, não existem no seu entorno, mas apenas na sociedade vista com o um sis­
tema comunicativo global, onde sistemas parciais, ou subsistemas funcionais,
aparecem com o ambiente uns para os outros. Nas palavras de Luhmann, “a
sociedade é o sistema abrangente de todas as com unicações, que se reproduz
autopoieticamente, na medida em que produz, na rede de conexão recursiva
de com unicações, sempre novas (e sempre outras) com unicações” (Luhmann
in N eves e Samios, 1997, p. 83).
Segundo Hespanha (1998), a novidade apresentada pelo m odelo autopoi-
ético, em relação à teoria de sistemas parsoniana, pode ser melhor compreen­
dida a partir da noção de fechamento sistêm ico, no sentido de que tudo aquilo
que o sistema recebe do exterior, ao ser integrado no sistema, é redefinido,
transformado, recriado em função da gramática do sistema.

A ssim , em b o ra h aja um a ab ertu ra no sistem a (que perm ite que receba elem entos
“em b ru to ” do exterior), a p ró p ria existên cia de um sistem a do tad o de um a g ra ­
m ática p ró p ria im p lica o seu fe ch am en to . P o d e d ize r-se , p o rta n to , q u e a um a
ab ertu ra in fra-sistêm ica co rresp o n d e um fecham ento sistêm ico (H espanha, 1998,
p. 261).

Somente permanecem no interior do sistema social as operações de auto-


observação e autodescrição, e tudo o mais é o seu entorno. Em sociedades
que alcançaram o estágio de diferenciação funcional, cada subsistema social
estrutura sua comunicação, visando a redução da com plexidade do entorno,
através de um código binário, que permite que toda apreensão da realidade
ambiente possa ser processada. Assim , o sistema econôm ico teria com o elo
entre as diversas ações comunicantes que se realizam no mercado o código
dinheiro (posse ou ausência de); o sistema da ciência teria com o código ver­
dadeiro/falso; o sistema jurídico o código legal/ilegal; o sistema político o
código governo/oposição, etc. A criação de sempre novos subsistemas seria
uma decorrência evolutiva do modo de funcionamento dos sistemas autopoié-
ticos, que se alteram na medida em que surgem estruturas completamente no­
vas de maneira im previsível (Brunkhorst, 1996, p. 692).
Cada subsistema lida com as irritações provenientes do m eio ambiente a
partir do seu código binário de referência, isto é, respondendo à com plexida­
de do entorno pela sua tradução em informações e o seu processamento. A lém
disso, os diferentes subsistemas estão acoplados estruturalmente, isto é, em­
bora sejam sistemas fechados, mantêm interdependências regulares entre eles

Estado e Direito como sistemas autopoiéticos: uma abordagem da Teoria de Sistemas de Niklas.., 133
e com o m eio ambiente. Cada subsistema pode operar com diferentes aco­
plamentos estruturais, com o no caso do sistema jurídico, acoplado ao sistema
político através das normas constitucionais e ao sistema econôm ico pelas
normas relativas à propriedade e ao contrato (Luhmann, 1990, p. 154). As
formas altamente seletivas de acoplamento estrutural, na medida em que não
abrangem o ambiente total do sistema, dão conta da canalização das situações
de irritação do sistema pelo entomo, influenciando o processo histórico evo­
lutivo de auto-estruturação dos sistemas autopoiéticos (Luhmann in N eves e
Samios, 1997, p. 67-68).
A partir dessa base conceituai, Luhmann vai sustentar que a diferencia­
ção dos sistemas funcionais na sociedade moderna criou condições que se
manifestam na sua própria ordem interna, formando subsistemas funcionais
autopoiéticos, com plexos e dinâmicos, operativamente fechados, que são o
entom o uns para os outros e estabelecem relações de forte dependência recí­
proca. A unidade do sistema social global é vista com o reprodução autopoié-
tica, no interior da qual todas as distinções através das quais essa unidade po­
de ser observada e descrita se apresentam ao observador por meio de um có­
digo binário (sistem a/entomo, centro/periferia) (Luhmann, 1990, p. 168).

E stad o e d em o cracia em so cied ad es d ife re n ciad as


fu n c io n alm en te
Em sociedades modernas com elevado grau de diferenciação funcional, o
sistema político codifica e generaliza simbolicamente o poder, na forma de
um m eio específico de comunicação. O poder passa a ser um m eio de comu­
nicação social, um código de sím bolos generalizado que toma possível e dis­
ciplina a transmissão de prestações seletivas de um sujeito a outro. Cada vez é
menos identificado com a coerção violenta, consistindo na possibilidade de
que dispõe um ou vários sujeitos de eleger mediante uma decisão própria uma
alternativa para outros sujeitos.6

6 Para o desenvolvimento do conceito de poder em Luhmann, vide Luhmann, Poder (1992).


Sobre o processo de constituição do poder político, Luhmann salienta que não é relevante
somente para o subsistema político, modificando a sociedade como um todo: “com a forma­
ção de sistemas políticos particulares na sociedade, que podem basear-se na violência física
superior, alcança-se uma certa sistematização de fins e, com estas , também uma dependên­
cia maior da decisão com respeito ao emprego do poder. Não se alcança, todavia, uma mo-
nopolização integral do poder na mão do ‘Estado’. Isto não significa apenas que se deve pre­
ver o exercício do poder contra as instâncias decisórias politicamente legítimas, postas sob
pressão social ou até ameaçadas com violência, porque se queria influenciar suas decisões
sobre o poder. Um outro problema, talvez maior, é apresentado pelo volume do poder social
que suija e permaneça fora de qualquer relação com o sistema político - primeiramente so­
bretudo o poder na família (‘despotismo’ no sentido próprio) e o poder dos sacerdotes; ulte-
riormente, o poder da economia, em especial o do proprietário, muito discutido moderna­
mente e, hoje em dia, o poder exercido no sistema educacional que se serve do recurso à de­

134 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo


N o interior do sistema político diferenciam-se dois subsistemas: o dos
partidos (ou sistema político em sentido estrito) e o da administração pública
(legislativo, executivo e judiciário). A função do sistema político em sentido
estrito (periferia do subsistema) é a produção de legitimidade, isto é, a legiti­
mação do exercício do poder pela administração pública (centro do subsiste­
ma). Tal função não é exercida mediante a obtenção de um consenso dos ci­
dadãos, im possível e ilusório, e sim através da sistematização da difusa dis­
ponibilidade social a aceitar as decisões da administração pública sem moti­
vações particularistas. Dessa forma, é através da efetiva participação dos in­
divíduos em procedimentos do sistema político (eleições), e não com base em
valores ou interesses, que o sistema político obtém para si a obediência disci­
plinada dos cidadãos nas sociedades com plexas (Treves, 1988, p. 216).
Na opinião de Luhmann, estaríamos hoje expostos, com o nunca antes, a
problemas que derivam do aumento da complexidade do entorno, tanto na re­
lação do sistema social com seu ambiente natural, com o do sistema político
com seu entorno social (Luhmann, 1997, p. 147). Diante do crescente aumen­
to de com plexidade, há um déficit de direção das transformações a que estão
sujeitas as sociedades contemporâneas, que afetam as formas de organização
da vida, o Estado, a economia, o Direito, a educação, o m eio ambiente natural
e as m otivações individuais. A mudança social que surge da relação entre sis­
tema e entorno escapa a uma direção e a um controle precisos. Diante dessa
situação, específica da nossa época, Luhmann propõe repensar as possibilida­
des da política, que não pode mais garantir uma regulação global da socieda­
de, com o era a pretensão dos modernos Estados de Bem-Estar. Esta discre­
pância entre as pretensões de regulação e a realidade com plexa, im previsível
e contingente, coloca em xeque as ideologias políticas, pulverizando a confi­
ança política. Para a teoria política, essa situação é representada pelos concei­
tos de “ingovem abilidade”, “crise do Estado”, “fracasso do Estado” (Luh-
mann, 1997, p. 148-149).
A lógica da formação da opinião pública, isto é, a escolha política entre
posições conservadoras/direita (manutenção do status quó) e progressis­
tas/esquerda (a favor da mudança) não estaria a altura dessa nova situação
histórica. A questão que permanece irrespondida por essa lógica ultrapassada
é: até que ponto devem os aceitar e adaptar-nos às transformações, e até que
ponto existe a possibilidade de intervenções corretivas, já que não se pode
pretender controlar a totalidade da mudança. Buscar nos princípios constitu­
cionais uma resposta a esta questão, com o tem sido a tendência da Comuni­
dade Européia, seria uma empresa fadada ao fracasso, por tomar a política
nada mais que uma prática de adaptação tardia às conseqüências do desen­
volvim ento econôm ico e social. Valores fundamentais com o a dignidade hu­

cisão sobre atribuições de status. Todos estes fenômenos levam à questão dos limites da poli-
tização do poder” (Luhmann, 1992, p. 76).

Estado e Direito como sistemas autopoiéticos: uma abordagem da Teoria de Sistemas de Niklas... 135
mana, a liberdade, a igualdade, a solidariedade e a justiça não ofereceriam
uma orientação suficiente e efetiva para a ação política.
N a teoria de Luhmann, toda ação política é vista com o comunicação. A
questão é: se o entorno do sistema político, quer seja a economia, a motivação
da população, o desenvolvim ento científico ou o limite dos recursos mate­
riais, adquire uma com plexidade crescente, com o se pode aumentar a capaci­
dade de comunicação do sistema político para dar conta desse aumento de
complexidade? A resposta a esta questão envolve a diferenciação interna do
sistem a p o lítico e as form as de decisão vinculante apropriadas para que a po­
lítica possa atuar sobre a vida social.
A diferenciação interna leva o sistema político-partidário (periferia) a
privilegiar determinadas formas de orientação para o exterior, filtradas pela
opinião pública,7 pelas possibilidades de consenso, pelo incremento da carrei­
ra política das personalidades políticas e pelo direito. As informações que não
podem satisfazer nenhuma destas condições de recepção, isto é, que não pas­
sam por nenhum destes filtros, não têm possibilidade de encontrar atenção
política.
A questão das decisões vinculantes diz respeito ao centro do sistema po­
lítico (administração pública), e tem com o limitação o fato de que para a de­
cisão política eficaz no Estado moderno somente se dispõe de dois m eios de
ação/comunicação: o Direito e o dinheiro. Na situação atual, ambos os meios
(Direito e dinheiro) mostram sinais claros de uma utilização excessiva (sobre­
carga), que aparecem com o hiperjuridificação e crise fiscal do Estado. O
quadro que se apresenta, portanto, é de uma sobrecarga do sistema político
sobre si mesmo, provocada por m otivos socioestruturais que são praticamente

7 Sobre o conceito de opinião pública cm Luhmann, vide Luhmann, “Complexidade societal e


opinião pública” , in: A improbabilidade da comunicação (1992). Segundo Luhmann, “o
conceito de opinião pública refere-se ao sistema social da sociedade. Não se refere ao que
realmente acontece na(s) consciência(s) das pessoas individuais, ou de muitas pessoas, ou de
todas, num momento particular no tempo. Portanto, não remete para o que as pessoas reais
realmente pensam, o que elas compreendem , o que atrai a sua atenção ou o que conseguem
lembrar. Se é este o seu significado, eqüivaleria a um caos indescritível de diferença simul­
tânea, e à impossibilidade de qualquer coordenação, devido exclusivamente à simultaneida-
de de experiências. [...] a opinião pública pode ser entendida como um meio no qual são cri­
adas formas e logo dissolvidas através da comunicação continua. [...] os meios assentam
numa união fraca de elementos que estão presentes em sobreabundância, enquanto as formas
assentam numa selecção de tais elementos para uma união forte. [...] a idéia de ‘opinião pú­
blica’ pressupõe que os estados conscientes são o meio que pode ser ligado a formas especí­
ficas de sentido. [...] Assim, só no caso do sistema social da sociedade há uma opinião pú­
blica que existe como o meio de estabelecer uniões fortes. Neste caso não há nada que garan­
ta a possibilidade de atingir acordos reais. Mas há uma comunicação pública que se apoia
nesta ficção e assegura a sua continuidade. Por outras palavras, este tipo particular de comu­
nicação vê a oportunidade de dar á opinião pública sempre novas formas. E encontra nesta
oportunidade a lei da sua própria autopoiésis” (Luhmann, 1992, p. 71-73).

136 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo


irreversíveis, levando à perda de confiança na atividade política por parte de
intelectuais, jovens e amplos setores da população.
N o lugar de definir conservadores e progressistas pela posição no espec­
tro político (direita e esquerda), Luhmann propõe a utilização dos conceitos
de política expansiva e política restritiva para classificar as orientações políti­
cas da administração pública nas modernas democracias (Luhmann, 1997, p.
156). A concepção expansiva da política seria na verdade a atual expressão
do conservadorismo, vinculada às tradições da “velha Europa”, que conferem
à política um papel de orientadora da sociedade, responsável pela institucio­
nalização da vida social ajustada à “dignidade humana”, com o destinatária úl­
tima de todos os problemas. A o contrário, uma concepção política restritiva
romperia com esta tradição, ao vislumbar os limites de suas possibilidades e
aceitar estes limites, reconhecendo a medida exata em que econom ia, educa­
ção, ciência, vida familiar, dependem da política. N o lugar das prédicas m o­
rais de boa vontade, se colocaria a necessidade de uma pedagogia da causali­
dade, a fim de não sobrecarregar continuamente as possibilidades do sistema,
e realizar efetivamente aquilo que se propõe à opinião pública através do sis­
tema dos partidos. Se trata, portanto, de um método de reflexão sobre o senti­
do, as possibilidades e os limites da política sob condições atuais e futuras,
orientado pelos problemas estruturais, pela capacidade de aprendizagem, pela
capacidade de receber estímulos e pela capacidade para autocrítica, no senti­
do de criar uma relação reflexiva do Estado sobre si mesmo, com o sistema
auto-referente e autopoiético.
A conseqüência direta dessa proposta é a exclusão das im possibilidades
ou improbabilidades extremas do conceito de democracia. N esse sentido, de­
mocracia não é o governo do povo pelo povo, já que o pressuposto de que o
povo possa governar a si mesmo é teoricamente inútil, por inviável e falacio­
so. Também não é um princípio segundo o qual todas as decisões devem ser
tomadas de m odo participativo, pois isto eqüivaleria a dissolver todas as deci­
sões em decisões sobre as decisões, com uma acumulação ilimitada de cargas
de decisão, uma imensa teleburocratização e uma falta de transparência das
relações de poder em benefício dos insiders, indivíduos capazes de nadar nes­
ta água turva (Luhmann, 1997, p. 162).
A proposta é conceber a democracia com o uma divisão diacrônica do
centro do sistema político - o aparato administrativo - , mediante a distinção
entre governo e oposição. Este é o código binário do sistema político, assim
como o sistema científico se orienta pelo código verdadeiro/falso, o sistema
jurídico pelo código legal/ilegal, o sistema religioso pelo código imanen-
te/transcendente. Enquanto a sociedade esteve organizada hierarquicamente,
esta divisão do poder político era impensável, ou era associada a experiências
como a guerra civil, a desordem e a calamidade. Somente quando uma socie­
dade se estrutura de tal maneira é que passa a não requerer mais um poder hi­

Estado e Direito como sistemas autopoiéticos: uma abordagem da Teoria de Sistemas de Niklas... 137
erarquicamente superior, articulando-se horizontalmente em sistemas funcio­
nais, e o sistema político passa a operar com esta lógica binária autônoma.
Com isso, a política perde a possibilidade de representação do todo, mas
alcança o seu próprio código de funcionamento auto-referenciado. Precisa­
mente porque não governam ambos, não há nenhuma im posição de consenso,
fato que produz continuamente informações internas ao sistema, que regula o
que se atribui ao governo e à oposição, graças a uma pequena diferença tem­
poral: a possibilidade de que os partidos no governo e na oposição troquem
seus postos nas eleições seguintes. Este código binário é reconhecido por
Luhmann com o um ganho evolucionário altamente improvável, e a sua falta
de ambigüidade constitui o motor e a meta de um sistema político autônomo.
Para Luhmann,

Esta diferenciación significa que el sistem a político no debe o perar sobre un sis­
tem a social altam ente com plejo, en constante m utación a través de la dinâm ica
autônom a de los sistem as funcionales, sino d entro de él. La econom ia fluetúa; la
ciên cia inventa bom bas atôm icas, píldoras anticonceptivas, transform aciones
quím icas de todo tipo; las fam ilias y las escuelas no producen ya los jó v e n e s que
d esearía el ejército. En sum a: son tiem pos revueltos para la p o lítica, y precisa­
m ente p o r ello sólo puede operar com o un sistem a cerrado o, com o a mí m e gus-
ta decir, autopoiético: que d ebe codificarse y program arse hacia la contingência.
La invención estructural resultante de ello ha recibido, por m otivos históricos ac-
cidentales, el nom bre de dem ocracia (L uhm ann, 1997, p. 164-165).

Diante deste diagnóstico do funcionamento do sistema político e dessa


conceitualização restritiva da democracia, a questão que estaria colocada para
uma ciência social prospectiva não seria a de com o formular uma nova uto­
pia, e sim a de com o reconhecer na realidade presente de nossos dias os pro­
blemas e fontes de perigo (déficits funcionais) para esta peculiar e improvável
estrutura, tendo portanto a forma política democrática com o um fim em si
mesmo.
Para Luhmann, um dos principais déficits funcionais contemporâneos é
decorrente do fato de que esta lógica binária acaba gerando uma auto-
eliminação da espontaneidade do sistema político (selbstdespontaneifikation).
N em sequer os grupos alternativos e os partidos verdes podem escapar a esta
ordem preestabelecida, a imperativos de adaptação, a este processo de perda
da espontaneidade. Por causa do código binário, o sistema político reage
sempre, em primeiro lugar, sobre si mesmo, e somente em segundo lugar so­
bre aquilo que pode compreender do entorno através da informação que auto-
produz. Fica, portanto, prisioneiro do ritmo e das formas voláteis da opinião
pública.
A fluidez do código binário somente é alcançada através de uma sólida
estrutura de partidos, que permita que as organizações políticas possam so­
breviver à mudança do governo para a oposição e da oposição para o gover­

138 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo


no. A questão é com o se valer da lógica do código binário para decidir sobre
questões políticas relevantes para a manutenção do sistema social, se a lógica
binária diz respeito apenas à manutenção do subsistema político. Isto leva
Luhmann a propor a existência de uma diferenciação programática de parti­
dos oposta entre si, de tipo binário (conservador/progressista ou, com o esta já
não funciona, entre políticas de Bem-Estar restritivas/expansivas, ou entre
preferências ecológicas e preferências econôm icas). N o entanto, os partidos
temem os riscos que isto implica, preferindo não dizer de forma explícita,
programaticamente, aquilo que não agrada a parcelas do eleitorado, sendo es­
te o segundo déficit funcional apontado.
O resultado é que, ao invés de controvérsias programáticas, assiste-se a
uma redução da disputa política a controvérsias morais, gerando a impressão
pública de que as posições sobre questões práticas são adotadas a partir de
uma confrontação moral entre os disputantes do poder político-adm inis-
trativo. Luhmann vai propor a superação desse grave déficit funcional da ação
política na democracia pelo desenvolvimento de uma maior amoralidade por
parte do sistema político-partidário, no sentido de uma renúncia à moraliza­
ção do oponente político, pois ao se pretender que somente um dos lados é
bom e digno de respeito e a outra parte deve ser repudiada, se acabaria por
colocar em questão as próprias regras do jogo democrático. Em uma dem o­
cracia, não se pode tratar o oponente político com o inelegível, que é o que
ocorre quando o esquema político se coloca em correspondência com um es­
quema moral.
T an razo n ab le com o irresponsable es erigir ideales, que no pueden ser satisfe-
chos p o r las cond icio n es actuales, y lam entarse después de las prom iesas irreali-
zadas de la re volución burguesa. En esta actitud no veo nin g u n a teoria, y m ucho
m enos aún u n a teo ria crítica (L uhm ann, 1997, p. 168-169).

A a u to p o iés is do sistem a ju ríd ico


Partindo da noção de que os sistemas e subsistemas sociais são sistemas
diferenciados de produção de sentido que visam a redução da com plexidade,
Luhmann vê o Direito com o aquela estrutura de um sistema social (subsiste­
ma) que tem a função de generalizar as expectativas normativas de compor­
tamento, e com isto garantir a coesão social. E um subsistema que coordena a
um nível altamente generalizado e abstrato todos os m ecanism os de integra­
ção e de controle social. A partir dessa definição, Luhmann vai desenvolver
suas investigações sobre as relações entre Direito e sociedade a partir de três
problemas distintos: “o do condicionamento que a sociedade exerce sobre o
Direito; o do condicionamento que o Direito exerce sobre a sociedade; e o re­
flexivo, da relação entre o estudo do Direito e o estudo da sociedade” (Tre-
ves, 1988, p. 215).

Estado e Direito como sistemas autopoiéticos: uma abordagem da Teoria de Sistemas de Niklas... 139
Para Luhmann, o crescimento da com plexidade social é a causa de uma
transformação das estruturas jurídicas, a fim de que possam exercer sua fun­
ção de redução da complexidade. Essa transformação ocorre, com o mostrou
Weber, através do processo de positivação do Direito, que desvincula o sis­
tema jurídico de sua tradicional vinculação com o sagrado, substituído pela
decisão obtida por procedimentos preestabelecidos. Dessa forma, a eficácia
do sistema de Direito positivo depende não tanto da adequação de um conte­
údo das normas jurídicas às exigências concretas dos particulares, quanto da
adequação dos m odos de produção dessas normas às exigências de racionali­
dade e de controle que o nível de complexidade alcançado pelo sistema social
e pelo seu entomo requerem em cada momento.8 Um sistema jurídico que
funcione adequadamente obtém a sua legitimidade na medida em que é capaz
de produzir uma prontidão generalizada para a aceitação de suas decisões, a-
inda indeterminadas quanto ao seu conteúdo concreto, graças a um procedi­
mento judicial que imuniza a decisão final contra as decepções inevitáveis.
Essa capacidade é garantida, a partir do século XIX, pela separação estri­
ta de dois subsistemas, legislação e jurisprudência, acoplados estruturalmente,
com o periferia (legislação) e centro (juizes e tribunais) do sistema jurídico.
Essa separação permite a canalização diferencial de influências (irritações)
externas, e a sua dissolução levaria ao colapso do sistema jurídico e da pró­
pria diferenciação entre política e economia. Segundo Luhmann, essa diferen­
ciação

fornece, na sua ação con ju n ta com outras d istinções, sobretudo nas d istinções en­
tre co d ificação bin ária e program ação, igualm ente n a d iferença entre D ireito e
n ão-D ireito, p o r um lado, e norm as ju ríd ic o -p o sitiv as, de outro lado, o pressu­
posto para que o p róprio sistem a ju ríd ic o se possa diferen ciar do seu m undo cir­
cundante e para que ele possa, enquanto sistem a operativam ente fechado, repro­
d u z ir suas pró p rias operações através d a rede de operações p róprias (L uhm ann,
1990, p. 155).

Embora a maioria das descrições teóricas da distinção entre legislação e


jurisprudência partam de um m odelo hierárquico, segundo o qual a legislação
tem precedência sobre a jurisprudência, de fato essa hierarquia não subsiste,
se considerarmos o processo legislativo e o processo jurisdicional com o sub­
sistemas autopoiéticos fechados. Por um lado, esse fechamento garante que,
no caso de um conflito entre a decisão do legislador e a decisão judicial, é o
próprio centro do sistema jurídico, isto é, o tribunal, que decide se estamos ou
não diante de um conflito. Por outro lado, o processo de constitucionalização
do Direito positivo, e a criação de Cortes Constitucionais, reforça a circulari­

Essas idéias já se encontram desenvolvidas na obra Legitimation durch Verfahren, editada


pela primeira vez na Alemanha em 1969, e publicada no Brasil, em 1980 pela Ed. UnB (Le­
gitimação pelo Procedimento).

140 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo


dade auto-referencial do sistema jurídico, com o fonte última das decisões ju­
diciais. A única coação legal realmente efetiva para o centro do sistema jurí­
dico é a obrigatoriedade da prestação jurisdicional.
O sistem a funciona com o sistem a operativo fechado, à m edida em q u e ele so­
m ente precisa rep ro d u z ir suas p róprias operações; m as ele é, exatam ente n essa
base, um sistem a aberto ao m undo circundante, à m edida em que ele deve estar
disp o sto a reagir a p ro p o siçõ es (Anregungen) de q u a lq u e r espécie, con tan to que
elas assum am um a form a ju ríd ic a. A ssim , a p roibição d a re cu sa d a Ju stiça g a ran ­
te a ab ertu ra por interm édio do “ fecham ento” (L uhm ann, 1990, p. 161).

N o m odelo teórico de Luhmann, a legislação deixa de ser compreendida


como instância hierarquicamente superior à administração da Justiça, passan­
do a ser reconhecida com o um órgão periférico, que garante o acoplamento
estrutural entre o sistema jurídico e o sistema político. Sua função é acomodar
a irritação constante do sistema jurídico pelo sistema político, através de re­
gras genericamente válidas, servindo na prática da administração da Justiça
apenas para excluir excessos nas decisões de casos individuais. Somente o
próprio centro do sistema pode ser concebido hierarquicamente, através das
várias instâncias que ligam os juizes singulares aos tribunais.
Quanto ao problema da reflexividade do Direito e da sociedade, Luh­
mann considera que cabe à chamada dogmática jurídica, imersa no sistema ju­
rídico, receber e elaborar as informações que entram no sistema (input - le­
gislação nova, demandas judiciais), com uma orientação no passado, para as
normas e decisões já estabelecidas. A sociologia do Direito teria com o objeto
o output dos sistemas normativos, isto é, os efeitos que estes sistemas produ­
zem no m eio, com uma orientação para o futuro, aos problemas de engenharia
social.
Para Hespanha, a teoria de sistema autopoiéticos de Luhmann, também
chamada de construtivism o auto-referencial (Hespanha, 1998, p. 262), apli­
cada ao Direito, coincide ponto por ponto com o chamado pós-m odem ism o
jurídico, ao reconhecer a autonomia do Direito em relação a outras dimensões
e contextos da prática social, a capacidade autonormativa do quotidiano, o
pluralismo jurídico e o caráter local do saber jurídico.9

9 Embora aqui se sustente a vinculação da Teoria Social Sistêmica a uma perspectiva pós-
modema do direito, o próprio Luhmann não aceita essa vinculação, ao criticar o que deno­
mina vale-tudo pós-moderno (Neves e Samios, 1997, p. 73). No entanto, no mesmo sentido
de Hespanha é a opinião de Pissarra (in Luhmann, 1992), quando afirma: “Mantém, assim,
também algum significado a inclusão desta teoria no quadro do que se convencionou chamar
‘pós-modemidade’ (Bednarz, 1991, 423-32) - a expressão, no entanto, não pertence ao vo­
cabulário do autor e é mesmo objeto da sua ironia corrosiva (Luhmann, 1987, 231). A cono­
tação surge em virtude do interesse prestado à tendência deslegitimizante presente nas socie­
dades mais desenvolvidas, com a crise das ‘metanarrativas’ (do ‘Espírito’ ou da ‘Humanida­
de’), que formavam o quadro teleológico de referência da politica modema, e a emergência
de um critério puramente performativo (autolegitimante), de optimização da relação input-

Estado e Direito como sistemas autopoiéticos: uma abordagem da Teoria de Sistemas de Niklas... 1 41
Quanto à autonomia do Direito, a teoria luhmanniana justifica a resistên­
cia que o sistema jurídico apresenta frente às intenções ou projetos oriundos
de outros universos com unicacionais (subsistemas), adotando a noção de sis­
tema autopoiético com o uma alternativa frente às perspectivas que dissolvem
o Direito em uma lógica do social, com o nos determinismos economicistas,
que consideram o Direito apenas na sua dimensão de instrumento de engenha­
ria social.
Por outro lado, a noção de autopoiésis apresenta um interessante viés ex­
plicativo para as resistências dos sistemas com unicacionais do quotidiano em
relação ao Direito oficial, na medida em que a causalidade inter-sistêmica
nunca é direta, e sim mediada. Um sistema apenas pode “irritar” o outro, pro­
vocando nele reações internas que respondem a essa irritação de acordo com
a sua própria gramática interna. Portanto, uma política jurídico-legislativa de­
ve ser duplamente reflexiva, no sentido de avaliar as conseqüências de uma
inovação jurídica sobre o seu entorno, e o resultado dessa inovação em face
da estrutura e gramática interna do sistema jurídico.
Quanto à idéia de pluralismo jurídico, a teoria dos sistemas autopoiéticos
permite compreender porque não basta ao sistema de Direito oficial declarar
que o Direito se aplica igualmente a todos os cidadãos, já que na prática ten­
dem a formar-se diversos sistemas de comunicação jurídica (direito oficial,
direitos populares, direitos das profissões, direitos das comunidades cultural­
mente diferenciadas) fechados entre si. Frente a essa pluralidade de sistemas
jurídicos, que constitui a descrição fenom enológica do Direito em sociedades
com plexas, são evidentes as dificuldades de “tradução” das normas, institutos
e conceitos de um sistema jurídico para outro. D e fato, a comunicação jurídi­
ca intra e inter-sistêmica é feita através de suportes infrajurídicos (com o a
linguagem do senso comum), e se estes são culturalmente muito diferentes, a
comunicação é atravessada por ambigüidades e mal-entendidos com repercus­
são no plano normativo.

C o n sid eraçõ e s finais


A nova teoria social sistêmica de Luhmann, por sua riqueza conceituai e
pela capacidade explicativa do funcionamento dos sistemas e subsistemas so­
ciais, tem se colocado no centro dos debates da teoria social contemporânea,
atraindo adeptos e adversários em todos os quadrantes. Sem pretensão de rea­
lizar um julgamento, acreditamos ser possível identificar algumas de suas vir­
tudes e os seus principais déficits, inerentes a qualquer tentativa de teorização
tão ampla e generalizante.

output, que em política eqüivale ao esvaziamento do processo de decisão e sua arregimenta-


ção sob controle formalizado” (p. 19).

142 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo


A grande atração exercida pela teoria de Luhmann está relacionada com
sua capacidade de lidar com alguns dos temas-chave do debate epistem ológi-
co contem porâneo, com o as n oções de com plexidade e contingência, sem
aderir às tendências fragmentárias e m icrossociológicas do pós-m odem ism o
francês (Lyotard, Baudrillard, M afesolli). N esse sentido, é possível conectar o
pensamento de Luhmann à obra weberiana, da qual é possível sustentar que
se coloca com o uma continuidade direta em termos de filosofia da história,
tendo com o diferencial a incorporação do funcionalismo parsoniano. E em
Weber que podem os encontrar uma filosofia da história pautada pela contin­
gência e pela indeterminação, que não o impede de identificar o processo de
crescente racionalização e burocratização das sociedades modernas.
A preocupação de W eber com a jaula de ferro da modernidade, supri­
mindo o espaço para a ação individual e a possibilidade de emancipação hu­
mana, é retomada por Luhmann com o uma constatação auto-evidente, já que
os seres humanos não fazem parte dos sistemas e subsistemas que eles m es­
mos estabeleceram a partir de seus fluxos de comunicação, que passaram a
funcionar com a sua própria lógica binária, levando ao extremo o processo de
racionalização do mundo identificado por Weber.
Também chama a atenção na obra de Luhmann a capacidade de identifi­
cação de alguns dos déficits funcionais das sociedades contemporâneas, que
permanecem irresolvidos pela lógica binária do subsistema político. E o caso
daquilo que identifica com o uma sobrecarga do subsistema jurídico-político,
com a hipeijuridificação da vida social e a crise fiscal do Estado. Confronta­
do com essa realidade complexa, o sistema político-administrativo vem rea­
gindo tardiamente, ao sabor do funcionamento auto-referenciado do subsis­
tema dos partidos, através do qual são ocupados os cargos de poder adminis­
trativo.
N este ponto, no entanto, o próprio Luhmann acaba por denunciar os lim i­
tes da sua própria teorização, quando acredita ser possível lidar com essa si­
tuação de aumento da com plexidade pela amoralização da política. Ora, se a
lógica binária de governo e oposição tende ao esvaziamento das diferenças
programáticas e a redução do Estado a um mero gestor de conflitualidades
sociais e com plexidades sistêmicas, é somente através de escolhas morais que
se pode distinguir não apenas as diferentes propostas para o exercício do po­
der, mas principalmente a prática política das diferentes facções. Por outro
lado, a obrigatoriedade de decidir sempre entre governo e oposição impede
que se visualize toda a riqueza da dinâmica política parlamentar, em que se
realiza a interlocução entre diferentes setores da sociedade, numa m ultiplici­
dade de interesses e opiniões que é inerente à forma democrática das moder­
nas sociedades contemporâneas.
A mesma limitação pode ser apontada na análise do sistema jurídico,
quando Luhmann propõe ancorar a sua legitimidade na adesão a procedimen­

Estado e Direito como sistemas autopoiéticos: uma abordagem da Teoria de Sistemas de Niklas... 143
tos, sem considerar o conteúdo das decisões adotadas. É im possível pensar no
sistema jurídico das modernas democracias ocidentais, sem levar em conta a
delegação conferida aos tribunais para dirimir todo um conjunto de questões
de profunda relevância moral para o conjunto da sociedade, traduzidas em
decisões judiciais universalizantes, orientadas pela legislação e pela jurispru­
dência. Questões com o o direito ao aborto, os níveis de poluição ambiental, a
responsabilidade por danos ao patrimônio e violência contra a pessoa, a fun­
ção social da propriedade, a relação de reciprocidade nos contratos formais e
informais que fazem parte do quotidiano das sociedades contemporâneas, o
alcance dos direitos e garantias individuais, têm sempre uma relevância do
ponto de vista ético e moral que não pode ser reduzida ao código legal/ilegal,
com o seria a pretensão de uma teoria pura do direito de origem kelseniana.
Como coloca Boaventura de Sousa Santos (2000), a teoria da autopoiése do
direito levanta importantes questões a respeito de problemas operacionais
particulares, com o a demora e os custos da justiça, a brutalidade policial, o
congestionam ento dos tribunais e das prisões, a discrepância entre Direito le­
gislado e Direito aplicado, etc. “N o entanto, para além do limitado - mas im­
portante - nível ‘operacional’, esses problemas não são jurídico-técnicos: são
problemas políticos (Santos, 2000, p. 161).
Como conclusão, e sem esgotar de forma alguma as questões suscitadas
pela riqueza da obra luhmaniana, cumpre apenas destacar a contribuição por
ela aportada em um momento de transição paradigmática. Com a exaustão do
paradigma moderno, pelo colapso e transformação das energias emancipató-
rias em energias regulatórias, ingressamos em um período de transição para­
digmática, no qual surgem novos riscos e inseguranças, mas também oportu­
nidades para a inovação, a criatividade e as escolhas morais. Se a teoria de
Luhmann não reconhece a importância destas últimas, não deixa de contribuir
para que as mesmas sejam tomadas, colocando a nu a lógica sistêmica que re­
gula e coloniza o mundo da vida de 6 bilhões de seres humanos. Ela nos aler­
ta, no mínimo, para o seguinte dilema: quanto maior for a correspondência
entre a descrição luhmanniana dos sistemas sociais, cegos e surdos aos valo­
res humanos, maior a tragédia para a emancipação humana. N ão há com o ne­
gar a centralidade desse debate no delineamento de possíveis configurações
societais futuras.

R eferên cias
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Estado e Direito como sistemas autopoiéticos: uma abordagem da Teoria de Sistemas de Niklas... 145
8

A condensação do “imaginário popular


oposicionista” num significante vazio:
as “diretas já”

Daniel de Mendonça

------------------------ ♦ -------------------------

Os capítulos constantes nesta obra, no âmbito mais geral da tradição pós-


fundacionalista, apresentam importantes discussões de cunho teórico-
epistem ológico acerca da Teoria do Discurso de Emesto Laclau e da Teoria
dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann. Sem dúvida nenhuma que o exercí­
cio proposto neste livro, ou seja, o de estabelecer uma aproximação entre as
teorias de Laclau e Luhmann constitui-se numa tarefa ao mesmo tempo ousa­
da e importante. D e nossa parte, em companhia de Rodrigues, já realizamos
neste volume tal exercício aproximativo entre tais perspectivas teóricas.
O que nos cabe agora é tomar uma destas propostas teóricas e testar sua
aplicabilidade em análises políticas. N esse sentido, o presente trabalho pre­
tende utilizar algumas noções da teoria laclauniana - primordialmente a no­
ção de significante vazio - para analisar um acontecimento relevante da histó­
ria política brasileira. Buscaremos, assim, sob o olhar da Teoria do Discurso,
explicar a emergência e o sucesso popular que representou a Campanha das
“diretas já ”, ocorrida em 1984. Nossa hipótese geral de trabalho caracteriza
as “diretas” com o um significante vazio - categoria analítica incorporada da
tradição psicanalítica de Lacan pela teoria laclauniana - uma vez que esse
movimento tom ou-se um ponto nodal de condensação de múltiplas demandas
sociais democratizantes do período.
Para a consecução dos objetivos apresentados, o presente capítulo está
dividido em quatro seções principais. Na primeira seção, apontaremos alguns
elementos explicativos da noção de significante vazio. N o segundo momento,
apresentaremos sucintamente as condições de emergência de um discurso
democrático no Brasil autoritário, mais precisamente entre 1974 e 1984, pe­
ríodo que se caracteriza como o momento de constituição do que denomina-

146 Oaniel de Mendonça


mos de “imaginário popular oposicionista”. Nas terceira e quarta seções, es­
tabeleceremos a relação entre o m encionado “imaginário popular oposicionis­
ta” e a campanha política das “diretas já ”, aplicando aí a noção de significan-
te vazio desenvolvida por Ernesto Laclau.

A n o ç ão de s ig n ific a n te vazio
N o âmbito da Teoria do Discurso, um significante vazio é um significan-
te sem significado. Contudo, um significante vazio é um significante sem sig­
nificado, conforme aponta Laclau (1996), não por não fazer parte de um sis­
tema de significações - o que conseqüentemente o impediria de produzir
qualquer sentido - mas justamente pelo fato do significante vazio representar
um sistema de significações que, devido ao seu caráter polissêm ico, acaba por
perder qualquer possibilidade de produzir sentidos específicos.
Tom em os um exem plo da constituição de uma prática articulatória dis­
cursiva para buscar esclarecer o ponto. “A ”, “B ” e “C” são elem entos diferen­
tes que num primeiro momento (M l) não estão relacionados entre si. Num
momento seguinte (M 2), surge o elem ento “D ”, que passa a estabelecer rela­
ções com “A ”, “B ” e “C ”. Portanto, em M 2, “D ” consegue ser o ponto nodal'
entre os elem entos “A ”, “B ” e “C”, criando uma “ordem”, ou uma articula­
ção, entre os três elem entos. O resultado desta articulação é o discurso, cujo
sentido principal, mas não o único, é o produzido pelo ponto nodal “D ”. “D ”,
portanto, passa a representar um sentido com um em relação aos elem entos
unificados, alterando suas especificidades e ampliando seus próprios limites
de significação. “D ” constitui uma cadeia de equivalências, na qual as dife­
renças entre “A ”, “B ” e “C”, perante “D ”, desaparecem. “D ” suporta os três
elem entos em questão, ou seja, “D ” significa mais do que a singularidade de
cada um dos elem entos articulados.
D e forma simplificada, apresentamos acima a noção de prática articulató­
ria, cujo resultado é o discurso.2 “D ” pode, ainda, articular mais elem entos do
que os dessa limitada cadeia de equivalências formada por “A ”, “B ”, “C” e
“D ”. “D ” pode ser um elem ento de convergência de tantas identidades a pon­

1 A noção de ponto nodal é oriunda da psicanálise lacaniana, a partir do conceito de “points de


capiton”, traduzido para o português como “pontos-de-estofo”. Joêl Dor (1989), explicando
essa noção afirma que, “para Lacan, o ponto-de-estofo é, antes de qualquer coisa, a operação
pela qual o ‘significante detém o deslizamento, de outra forma indeterminado e infinito, da
significação’. Em outras palavras, é aquilo por meio do qual o significante se associa ao sig­
nificado na cadeia discursiva” (1989, p. 39).
2 No clássico Hegemony and socialisl strategy, Laclau e Mouffe enunciam com precisão as
noções de prática articulatória e de discurso: “chamaremos articulação qualquer prática que
estabeleça uma relação entre elementos tal que suas identidades sejam modificadas como um
resultado da prática articulatória. A totalidade estruturada resultante da prática articulatória
chamaremos discurso” (Laclau e Mouffe, 1985, p. 105).

A condensação do “imaginário popular oposicionista” num significante vazio: as “diretas já" 147
to de perder qualquer possibilidade de significação específica e se tomar um
significante sem significado, um significante vazio. Essa perda de significa­
ção específica é o resultado do esvaziamento dos sentidos identitários de “D ”
e essa é a razão desse elemento conseguir suportar (no sentido de representa­
ção, ou de supplêm ent em Derrida) a presença dos demais elem entos inseri­
dos na estrutura articulatória. Conforme Laclau (1996), a função do signifi­
cante vazio reside justamente em renunciar sua identidade diferencial para re­
presentar o espaço comunitário, ou seja, o sistema de diferenças.
Céli Pinto (1999), num importante artigo que tem por objetivo apresentar
as principais categorias da Teoria do Discurso de Em esto Laclau e Chantal
M ouffe, destaca o sentido de significante vazio quando apresenta, no terreno
do político, o exem plo do esvaziamento dos conteúdos da democracia liberal:
A dem ocracia liberal se constitui em um a cadeia de equivalência com : liberdade
de expressão; igualdade perante a lei; eleições dos g overnantes e representantes,
na qual a dem ocracia liberal é o term o que perm ite equivalência. O ra, a partir das
lutas d a décad a de 60, este term o vai g anhando cada vez m ais eq uivalências c
perd en d o cada vez m ais con teú d o s particulares. C om põem esta cadeia de direitos
im pensáveis antes d a II G uerra, tais com o: voto universal (ho m en s/m u lh e­
res/analfabetos), d ireito das m inorias, exp eriên cia de dem ocracia participativa,
direito s sociais, etc. A dem o cracia p aulatinam ente se to rn a um significante vazio
(P in to , 1999, p. 85).

Na situação apresentada por Pinto, temos, num primeiro momento, a


“democracia liberal” com o um termo que permite equivalências entre “liber­
dade de expressão”, “igualdade perante a lei” e “eleições dos governantes e
representantes”. N essa situação 1, portanto, a “democracia liberal” possui
sentidos bem delimitados e definidos. O exem plo avança e apresenta a situa­
ção 2. A partir da década de 1960, a “democracia liberal” passa a incorporar
mais termos em sua cadeia de equivalências a tal ponto de ela não poder mais
ser significada com um mínimo de exatidão. Isso ocorre porque o termo “de­
mocracia liberal” perde seu conteúdo específico, uma vez que passa a ser o
ponto nodal de articulação de múltiplos elementos. A “democracia liberal” é,
assim, um significante vazio, um universal, um lugar vazio.3
Apesar de um significante vazio ser um significante sem significado em
função da sua polissem ia que este articula, é possível percebermos seus limi­
tes.4 Estes são, paradoxalmente, condição de possibilidade e de im possibili­

3 A expressão “lugar vazio” é utilizada por Laclau (1996), para caracterizar a noção de Uni­
versal e de significante vazio.
4 Laclau, em A morte e a ressurreição da Teoria da Ideologia (2000) demonstra com precisão
os limites de qualquer formação discursiva: “uma cadeia de equivalências pode, em princi­
pio expandir-se indefinidamente, mas, uma vez que um conjunto de relações centrais está es­
tabelecido, essa expansão é limitada. Certas novas relações seriam simplesmente incompatí­
veis com as particularidades integrantes da cadeia” (Laclau, 2000, p. 140-141).

148 Daniel de Mendonça


dade à constituição de um sistema discursivo.5 Dito de outra forma, ao mesmo
tempo em que os limites de um discurso articulado por um significante vazio
impedem sua expansão significativa e ameaçam sua existência (condição de
impossibilidade), estes servem também para afirmar a própria existência des­
sa cadeia discursiva e para unir as diferenças por ela articuladas (condição de
possibilidade), tendo em vista que o limite antagônico6 é idêntico a todas as
identidades constituidoras do discurso, gerando, pois, a união dessas diferen­
ças em tom o de uma luta comum: contra algo que, de uma forma ou de outra,
impede a constituição de todos os elem entos dessa cadeia de equivalências.
Pinto, tomando a dem ocracia com o um significante vazio, exem plifica os
limites desse regime político:

A noção de dem o cracia com o um processo sem pre em construção, que, p o r sua
natureza, tem poten cialid ad es m uito alargadas de incorporação e inclusão, ape­
nas com um lim ite fundam ental e constituidor: [...] a dem ocracia, para não perder
a razão de existir, não pode incorporar a sua negação, isto é, d iscu rso s que p re ­
tendam legitim ar a exclusão (P in to , 1999, p. 97).

V istos, portanto, a noção de significante vazio, bem com o sua condição


de possibilidade e seu limite de expansão significativo dado pelo corte anta­
gônico, buscaremos, a partir da próxima seção, estabelecer as condições de
emergência sócio-históricas que apoiam nossa hipótese de que o sucesso da
campanha popular das “Diretas já” no Brasil em 1984 pode ser explicado a
partir da lógica da constituição de um significante vazio.

A c o n stitu iç ão do “im ag in ário p o p u la r o p o s ic io n is ta ”


Nesta seção, apresentaremos as condições de emergência explicativas do
significante vazio que se constituiu a campanha da “diretas já ” nos momentos
finais da transição política brasileira do autoritarismo para a democracia. Para
tanto, revisitaremos, de forma sucinta, o tortuoso caminho da história da tran­
sição política brasileira entre 1974 e 1984, momento ao qual defendemos ser
o da constituição do “imaginário popular oposicionista” ao regime autoritário
que passaremos, a partir de agora, a enfocar.

5 Em outro momento desenvolvemos de forma mais aprofundada a discussão acerca dos limi­
tes de um sistema discursivo. Na verdade, introduzimos ao debate da Teoria do Discurso o
que denominamos de a “dupla impossibilidade de objetivação discursiva” , dada, por um la­
do, pelo corte antagônico e, por outro, pelas próprias características de funcionamento da
prática articulatória (Mendonça, 2003).
6 Em “Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo” , Laclau enfatiza o sentido
que deve ser entendido a categoria de antagonismo: “o ponto fundamental é que o antago­
nismo é o limite de toda a objetividade. Isto deve ser entendido em seu sentido mais literal:
como afirmação de que o antagonismo não tem um sentido objetivo, de sorte que é aquilo
que impede a constituição da objetividade como tal” (1993, p. 34).

A condensação do “imaginário popular oposicionista” num significante vazio: as “diretas já" 149
Em nossa análise, o “imaginário popular oposicionista” constituiu-se
numa série de demonstrações de insatisfação política oriundas da população
em relação ao governo autoritário, dispersas durante o período de transição.
Este sentimento oposicionista manifestou-se, sobretudo, de duas formas: I)
pela via eleitoral e; II) a partir da emergência dos “novos movimentos soci­
ais” no final da década de 1970. Vejamos cada uma dessas formas de senti­
mento oposicionista, iniciando pela insatisfação popular manifestada nos re­
sultados das eleições de 1974, 1976, 1978 e 1982.

A in satis faç ão eleito ral


Pela via eleitoral, o “imaginário popular oposicionista” ao regime autori­
tário pode ser observado a partir da vitória do M DB nas eleições legislativas
de 1974. Para o governo militar e para os líderes da ARENA, vencer as elei­
ções de 1974, de maneira lisa e contundente, representava um importante pas­
so à institucionalização do regime autoritário e a segurança necessária de um
avanço mais seguro em direção à abertura política. N esse sentido, além da
campanha publicitária realizada pelo governo ressaltando a importância da
população em votar, foi liberada a utilização do rádio e da televisão para a
campanha eleitoral, bem com o foram realizados debates entre candidatos ao
Senado com veiculação midiática. Tudo foi realizado para que a vitória da
A R EN A fosse incontestável, ou seja, para que a legitimidade política do auto­
ritarismo, ainda incerta,7 fosse assegurada pelo povo. N esse sentido, Maria
Helena Moreira A lves expressa a importância dessa eleição para os próceres
do regime:

A c o n ju n tu ra p o lítica e econôm ica indicava que tal p o lítica ob teria êxito. P or um


lado, a in sistên cia n a busca de legitim ação baseada no crescim ento econôm ico
apresentava dificuldades cada vez m aiores, com o e strangulam ento do m odelo
econôm ico. P o r outro, a p esada d erro ta política d o M D B nas eleições de 1970
para o C ongresso sugeria aos planejadores político s que a A R E N A p o d eria efeti­
v am ente o b ter im portantes vitórias nas eleições de 1974. N a realidade, poucos
observ ad o res d uvidavam de que a A R E N A c o nseguiria esm agadora vitó ria sobre
a o posição em 1974. N a o pinião dos estrategistas g overnam entais, eleições mais
livres, com acesso à televisão e ao rádio e claro recuo d a coerção, aum entariam a
legitim idade do sucesso eleitoral do governo (A lves, 1984, p. 187).

Contrariamente às previsões de analistas politicos, de membros do go­


verno, da A R EN A e do próprio M DB, os resultados das eleições de 1974 re­

7 Acerca da busca de legitimidade pelo regime autoritário no pleito de 1974, veja-se a posição
de Lamounier: “[...] no Brasil, começando em 1974, o processo eleitoral foi de fato um teste
de forças e de legitimidade, e não o símbolo e o coroamento de um pacto de transição já
acertado noutras bases entre os atores relevantes” (Lamounier, 1985, p. 127).

150 Daniel de Mendonça


presentaram o primeiro grande plebiscito8 contrário ao regime autoritário. O
MDB, além de vencer as eleições para o Senado,9 aumentou substancialmente
sua representação, tanto na Câmara dos Deputados, com o nas assembléias le­
gislativas estaduais.
O M D B teve sig n ificativam ente aum entada sua representação no C ongresso N a­
cional. Em 1970, o partido o btivera 87 cadeiras n a C âm ara dos D eputados, c o n ­
tra 233 da A R E N A . Em 1974, c o nquistou 161 cadeiras, e a m aioria da A R E N A
desceu para 203 cadeiras. N as assem bléias estaduais, a o posição ganhou 45 das
70 cadeiras no E stado de São Paulo, 65 das 94 no R io d e Janeiro e com pleto
controle das im portantíssim as assem bléias do P araná e do R io G rande d o Sul.
P ara m uitos observ ad o res p o líticos, com o para m em bros d o p róprio M D B , a vi­
tó ria da o posição surpreendia com o um a inversão das ten d ên cias eleitorais. As
e le içõ e s fo ram em g eral c o n sid e ra d a s e q u iv a le n te s a um p le b isc ito em q u e os
eleitores votaram antes c ontra o governo do que na o posição (A lves, 1984, p.
189).

O resultado negativo para a AR EN A das eleições parlamentares de


197410 suscita duas constatações. A primeira é a de que o regime autoritário
não detinha a legitimidade política que seus próceres esperavam, apesar do
crescimento econôm ico - ocorrido principalmente durante o período do go­
verno M édici que ficou conhecido por “milagre econôm ico” - que, em 1974,
já demonstrava sinais evidentes de desgaste." Uma das possíveis causas des­
sa carência de legitimidade política foram os altos níveis de repressão empre­
endidos contra a oposição durante o período M édici. E importante lembrar
que essa repressão se deu em boa parte contra estudantes, profissionais libe­
rais, líderes políticos democráticos, intelectuais e artistas, que são classica-
mente tidos com o agentes importantes na formação da “opinião pública”. Por
mais sucesso econôm ico que pudesse obter o autoritarismo brasileiro, era
muito difícil esconder da população - principalmente das grandes cidades e
dos estados mais desenvolvidos econom icamente, onde a oposição obteve,
durante toda a transição, seus melhores resultados eleitorais - os momentos
mais difíceis da repressão contra os m ovimentos oposicionistas. A s vitórias

Segundo Lamounier, “o significado imediatamente intuitivo de voto plebiscitário é o de vo­


tação polarizada em termos da simples aprovação ou rejeição de uma proposição, ou da con­
fiança ou desconfiança que os detentores do poder inspiram no povo” (Lamounier, 1988, p.
111 ).
Na disputa no Senado, o MDB fez 14.579.372 votos contra 10.068.810 da ARENA (Alves,
1984, p. 189).
10 Para uma análise mais detalhada da vitória política do MDB nas eleições de 1974 em três es­
tados brasileiros (São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul), são importantes os resulta­
dos dos surveys analisados respectivamente nos artigos de Bolívar Lamounier, Fábio Wan-
derley Reis e Hélgio Trindade (Cardoso e Lamounier, 1978).
" Acerca das causas das dificuldades econômicas enfrentadas pelo regime autoritário a partir
de 1973, ver a análise de Luiz Carlos Bresser Pereira (1978), principalmente os capítulos VI-
II, IX, X, XII, XIV e XVI.

A condensação do “imaginário popular oposicionista" num significante vazio: as “diretas já” 151
da AR EN A em 1966 e 1970 não poderiam também justificar previamente
uma vitória govem ista em 1974, haja vista que, além dessas eleições terem
sido inegavelmente viciadas em legitim idade,12 não foi realizado nenhum
pleito legislativo em níveis estadual e federal no Brasil entre 1970 e 1974, pe­
ríodo marcado pelo alto grau de repressão política. A realidade que parecia
óbvia, mas que em 1974 ninguém percebeu, era a de que não havia m eios de
se precisar qual era o grau de legitimidade do regime autoritário, tendo em
vista que o termômetro social mais eficaz, o processo eleitoral, não fora sido
realizado no ápice do período de repressão.13 M esmo considerando os resul­
tados de 1970, amplamente favoráveis à ARENA, não se pode, ainda assim,
ter segurança do grau de legitimidade autoritária, tendo em vista que as cir­
cunstâncias eleitorais de 1970 não podem ser minimamente comparadas com
as do pleito de 1974, cujo grau de liberalismo político-eleitoral foram muito
maiores.
A segunda constatação decorrente da derrota da ARENA em 1974 é a de
que, uma vez instaurado o “projeto de abertura”, pelo presidente G eisel, e o
conseqüente “processo de abertura”, 14 esses fugiram ao controle, tanto do go­
verno, com o da oposição. O “processo de abertura” adquiriu uma dinâmica
própria que foi muito além de uma estratégia inicial concebida pelo governo.
Esse argumento está em conformidade com o de Lamounier, uma vez que, se­
gundo este autor, “eleições com petitivas podem exercer efeitos liberalizantes
mesmo dentro de sistemas políticos não-com petitivos” (Lamounier, 1988, p.
96). Lamounier explica ainda a importância das eleições de 1974 para a di­
nâmica da abertura: “o mínimo que se pode dizer dessa eleição [...] é, pois,
que ela deu início à autonomização da abertura com o processo político, trans-
formando-a em algo bem m enos reversível do que o inicialmente antevisto na
estratégia governamental” (Lamounier, 1988, p. 111). A reversibilidade do
processo representaria um novo fechamento do regime, o que comprometeria
em boa medida a legitimidade política que buscava o governo autoritário.

12 Apesar da notável diferença em relação à transparência e a lisura do pleito de 1974 em sua


relação com os de 1966 e 1970, não estamos afirmando aqui que ele transcorreu dentro dos
padrões de uma ordem democrática. A análise de Carlos Estevam Martins, O balanço da
campanha discute a falta de representatividade, liberdade, igualdade, o baixo grau de parti­
cipação política e o péssimo nível ideológico que marcou o pleito e os dois partidos envolvi­
dos (Martins, 1978, p. 77-126).
13 Nesse ponto, desconsideramos as eleições de 1972, uma vez que essas ocorreram meramente
no âmbito dos municípios, excluindo-se, contudo, as capitais.
14 Luiz Wemeck Vianna diferencia “projeto de abertura” de “processo de abertura” da seguinte
maneira: “toma-se claro que o projeto aberturista, trama destinada a autopreservar o regime,
não se confunde com o processo de abertura, cujo sentido está subordinado à ação e orienta­
ção das forças sociais e políticas. Esse processo ganhará novas energias principalmente se
for consolidado um sistema de alianças em tomo da democracia, amplo o suficiente para
abarcar movimentos convergentes anti-regime, mesmo de setores sociais que não têm a de­
mocracia como centro de sua mobilização” (Vianna, 1983, p. 166).

152 Daniel de Mendonça


Absorvido o impacto da derrota de 1974, a preocupação imediata do g o ­
verno em relação à arena eleitoral passou a ser com as eleições municipais de
1976. Conforme A lves (1984), tendo por base estudos realizados pelo Servi­
ço Nacional de Informações (SNI), constatou-se que o acesso ao rádio e à te­
levisão obtido pelos partidos no período eleitoral, contribuiu muito para a vi­
tória oposicionista em 1974. Era necessário, portanto, para uma vitória eleito­
ral da AR EN A, que o governo autoritário im pedisse novamente tal acesso,
tendo em vista as eleições municipais de 1976 e o pleito para o Congresso
Nacional e às assembléias legislativas em 1978. A medida limitativa do aces­
so ao rádio e à televisão foi o Decreto-Lei n° 6.639/76, que ficou conhecido
como a “Lei Falcão”. O referido Decreto-Lei limitava que a aparição dos
candidatos durante a campanha eleitoral no rádio e na televisão ficasse restri­
ta à divulgação do nome, do número e de um breve currículo, além de uma
foto, no caso da campanha de televisão. O objetivo dessa limitação era, sobre­
tudo, impedir a apresentação de propostas e críticas ao regime oriundas dos
candidatos do M DB.
M esm o com o auxílio casuístico da Lei Falcão, o resultado das eleições
de 1976 ficou aquém do esperado pelo governo. A AR EN A obteve mais ou
menos 35% do total dos votos contra cerca de 30% do M D B (A lves, 1984, p.
191). Se, por um lado, o partido govem ista venceu facilmente nas cidades si­
tuadas nas regiões mais pobres e m enos desenvolvidas do país, por outro la­
do, a vitória do M D B ocorreu principalmente em locais com os maiores índi­
ces de desenvolvim ento econôm ico. A oposição, portanto, conquistou a m aio­
ria das câmaras municipais de Porto Alegre, de São Paulo, do Rio de Janeiro,
de B elo Horizonte, de Salvador, de Santos e de Campinas.
Como a Lei Falcão não conseguiu conter o crescimento eleitoral do
M DB, principalmente nos grandes centros urbanos e, tendo em vista que a le­
gislação eleitoral previa para 1978 - além da escolha de novos parlamentares
ao Congresso N acional e às assembléias legislativas —a eleição direta dos g o ­
vernadores dos estados, o governo autoritário estava na iminência de mais
uma vez ser derrotado eleitoralmente. Eram necessárias, portanto, novas m e­
didas restritivas ao avanço do M DB. Entretanto, os dispositivos legais a se­
rem alterados eram constitucionais e, portanto, requeriam dois terços dos v o ­
tos do Congresso N acional, ou seja, uma maioria qualificada que o governo
não dispunha, com o vim os, desde os resultados das eleições de 1974.
Assim , utilizando-se o Ato Institucional n2 5, G eisel fechou o Congresso
em l e de abril de 1977, e decretou uma “reforma constitucional”, que ficou
conhecida por “pacote de abril”. Tal “reforma” visava principalmente a pro­
mover alterações na legislação eleitoral em razão das eleições de 1978 que se
avizinhavam. A partir do “pacote de abril” a aprovação de emendas constitu­
cionais dependeria tão-somente da votação de maioria sim ples no Congresso
Nacional; os governadores dos estados e um terço dos senadores seriam elei­

A condensação do “imaginário popular oposicionista" num significante vazio: as “diretas já” 153
tos indiretamente por colégios eleitorais estaduais, bem com o os efeitos da
Lei Falcão permaneceriam vigentes. O “pacote de abril” representou clara­
mente a admissão de que o regime autoritário carecia de legitimidade politica,
tendo em vista que, para manter maioria no Senado e o controle dos poderes
executivos estaduais, era necessário recorrer às eleições indiretas que, na prá­
tica, representava a escolha de membros do regime para a ocupação dessas
cadeiras.
Apesar dessas medidas casuisticas visando à vitória da ARENA, o MDB
obteve ainda um excelente desempenho eleitoral. Na disputa pelo Senado, por
exem plo, o partido oposicionista conquistou 4,3 m ilhões de votos a mais do
que a ARENA. Contudo, apesar desta importante diferença pró-oposição, o
M DB conquistou apenas nove cadeiras no Senado contra 36 da ARENA.
D essas 36 cadeiras conquistadas pela ARENA, “21 foram ganhas nas eleições
indiretas dos colégios eleitorais aumentados nos estados” (A lves, 1984, p.
200). Na Câmara dos Deputados, a ARENA elegeu 231 deputados contra 189
do M DB. O “pacote de abril” conseguiu, assim, conter o avanço da oposição
emedebista e garantir a maioria da ARENA no Congresso Nacional.
Já o processo eleitoral de 1982 - o primeiro desde a volta do pluriparti-
darismo em 1979 - representou um passo decisivo no processo de redemocra-
tização. O governo, prevendo mais uma derrota, editou, em novembro de
1981, outro subterfiigio eleitoral que ficou conhecido por “pacote de novem­
bro”. Esse conjunto de medidas restringia a participação dos partidos de opo­
siç ã o ,15 que excluindo o PM D B , ainda eram organizações d éb eis e sem
abrangência nacional.
A resposta imediata da oposição a mais uma medida legal restritiva foi a
incorporação do Partido Popular ao PM DB. Com isso, o PM DB ganhou im­
portante reforço eleitoral para enfrentar o pleito de novembro de 1982. A in­
corporação do PP pelo PM DB reinstituiu, na prática, em quase todas as dis­
putas estaduais, o bipartidarismo presente durante praticamente todo o regime
autoritário. Assim , a campanha eleitoral foi extremamente competitiva, com a
realização de intensos debates entre partidos e candidatos, principalmente às
vagas ao Senado Federal e aos governos dos estados. A campanha foi mar­
cante também pelo grande envolvimento da sociedade civil.
O resultado eleitoral foi novamente positivo para a oposição. Entretanto,
o PD S, justamente em função das medidas restritivas do “pacote de novem­
bro”, conseguiu ainda manter sua maioria no Congresso Nacional: 235 depu­
tados federais e 46 senadores, contra 200 deputados e 21 senadores do

15 Algumas medidas da reforma eleitoral anunciada pelo presidente Figueiredo em 25 de no­


vembro de 1981 foram: 1. proibição de coalizões para escolha de candidatos aos governos
dos estados; 2. obrigatoriedade de votação num mesmo partido em todos os níveis em dispu­
ta (de vereador a governador); 3. impedimento da renúncia de candidaturas, salvo se o parti­
do desistisse de concorrer na eleição.

154 Daniel de Mendonça


P M D B .16 Para os executivos estaduais, o PDS elegeu 12 governadores, contra
9 do PM DB e 1 do PDT.
As eleições de 1982 representaram o último grande plebiscito contrário
ao autoritarismo antes do movimento das “diretas já ”. N o sentido da reorde-
nação institucional do poder político esse pleito representou, na análise de
Lamounier, “um marco verdadeiramente significativo”:

A eleição de 10 g o v ern ad o res oposicio n istas e a perda pelo g overno d a m aioria


ab so lu ta da C âm ara d o s D eputados deu ao sistem a político um caráter diárquico
(com o sugere Juan L inz), e elevou substancialm ente o nível do confronto no que
d iz respeito à p rópria sucessão presidencial (L am ounier, 1985, p. 134).

O tipo de transição operada no Brasil, pela via eleitoral, gerou, apesar


dos muitos constrangimentos à oposição partidária aqui relatados, uma “dis­
tribuição de votos francamente com petitiva” (Lamounier, 1985, p. 128) entre
governo e oposição, a ponto de, nas eleições de 1982, o partido govem ista ni­
tidamente ter perdido o controle do processo de transição e a situação política
tomar-se instável, permitindo a emergência de um m ovimento popular da di­
mensão das “diretas já ”, com o veremos a seguir. Em relação à constituição do
“imaginário popular oposicionista” ao regime militar, entendemos ser a via
eleitoral um m eio eficaz de medição de legitimidade (ou sua da falta) por par­
te de um grupo político no exercício de um govem o. Se não fossem as m edi­
das eleitorais restritivas e casuísticas, não seria demais afirmar que o regime
autoritário colecionaria derrotas eleitorais em escala muito mais significativa.

A con testação do regim e autoritário pelos m ovim entos sociais


O sentimento oposicionista demonstrado eleitoralmente pela população
não foi o único do período autoritário brasileiro. N o final da década de 1970,
emergiram no país m ovimentos sociais que evidenciaram ainda mais o paula­
tino decréscim o de legitimidade política da situação autoritária.
E importante registrarmos que a emergência dos movimentos sociais foi
possível a partir da estratégia da distensão, empreendida inicialmente pelo
govem o Em esto G eisel. Como m encionamos acima, a disposição do regime
de se legitimar politicam ente perante a população fez com que, a partir de
suas próprias estruturas, iniciasse o projeto de liberalização política, o que,
em grande medida, encorajou a emergência de movimentos sociais que bus­
cavam a observância de suas demandas específicas por parte do Estado. Nas
palavras de Przeworski: “uma vez que a repressão diminui, por quaisquer ra­
zões, a primeira reação é a explosão de organizações autônomas da sociedade

16 Os demais partidos obtiveram os seguintes resultados: PDT, 24 deputados e 1 senador; PTB,


13 deputados e 1 senador e; PT, 8 deputados e não obteve vaga no Senado (Alves, 1984, p.
286).

A condensação do “imaginário popular oposicionista” num significante vazio: as “diretas já” 155
civil. Organizações estudantis, sindicatos e protopartidos se formam do dia
para a noite” (Przeworski, 1989, p. 27).
É importante ainda salientarmos que se, por um lado, a emergência des­
ses movimentos se deu em conseqüência de uma maior liberalização politica,
por outro, restou claro que o acolhimento de suas demandas específicas por
parte do Estado era extremamente limitado em função da estrutura estatal au­
toritária que impedia a participação popular.17
Desta forma, entendemos que não é necessário que um movimento social
reivindique diretamente o fim do regime autoritário para que este ameace a
existência do autoritarismo. Isso porque o que era comum a todos os m ovi­
mentos sociais do final da década de 1970 era que suas demandas específicas
entravam em constante choque com um regime que, conforme de Forget,18 via
“todos os brasileiros” da mesma forma, ou seja, com o membros de uma idên­
tica nação, não reconhecendo, portanto, m ovimentos que reivindicassem de­
mandas específicas. O não-atendimento das demandas desses movimentos so­
ciais favoreceu em muito o desenvolvimento do “imaginário popular oposi­
cionista” em relação ao regime autoritário. Inúmeros m ovim entos sociais
emergiram nesse período. Mencionaremos, contudo, somente três deles, par­
tindo das greves operárias do A BC paulista, entre os anos de 1978 e 1980,
passando pelos m ovimentos populares e pelo movimento feminista.
A s greves operárias da região do A BC paulista foram lideradas por uma
corrente do movimento sindical brasileiro que ficou conhecida por “sindica­
lismo autêntico” ou “novo sindicalismo”. Os “autênticos” formavam um gru­
po de novos sindicalistas oriundos principalmente de indústrias de setores pe­
sados e de ponta da econom ia brasileira, com o metalúrgicas, siderúrgicas, re­
finarias de petróleo e petroquímicas. Esse grupo de sindicalistas representou
uma nova visão na relação existente entre capital e trabalho em contraposição
ao sindicalismo tradicional brasileiro instituído no período populista.19 Os

17 Acerca da problemática entre Estado autoritário e movimentos sociais concordamos com a


interpretação de Przeworski: “Assim, por um lado, as organizações autônomas emergem da
sociedade civil enquanto, do outro, não existem instituições às quais possam apresentar suas
posições e com as quais possam negociar seus interesses. Por causa desse hiato entre a orga­
nização autônoma da sociedade civil e o caráter fechado das instituições estatais, o único lu­
gar onde os grupos recém-organizados podem eventualmente lutar por seus valores e interes­
ses são as ruas” (1989, p. 27-28).
18 Nesse ponto, concordamos com a análise de Forget acerca da idéia-força que caracteriza a
maioria dos discursos autoritários: “A grande maioria dos discursos autoritários se baseia em
temas de colorações drásticas, e os proferidos no Brasil durante o regime militar não esca­
pam à regra. [...] A defesa da nação, ou ainda da pátria ou do país, representa o ideal máxi­
mo: nesse sentido não se luta por interesses individuais ou de classe, mas por uma causa co­
mum, cujo caráter ufanista e abstrato dispensa maiores definições” (1994, p. 35-36).
19 Não trataremos aqui das divergências no interior do movimento sindical brasileiro no final
da década de 1970. Para um balanço crítico das contradições do sindicalismo no período au­
toritário, ver o artigo “O Sindicalismo Brasileiro entre a Conservação e a Mudança”, de Ma­
ria Hermínia Tavares de Almeida (Almeida, 1983).

156 Daniel de Mendonça


“autênticos” demandavam um m ovimento sindical totalmente desatrelado do
Estado. Suas reivindicações colidiam frontalmente com a legislação trabalhis­
ta da época, que previa uma organização sindical sob a tutela do M inistério
do Trabalho e impedia a negociação coletiva direta entre trabalhadores e em ­
presários.
O “novo sindicalism o”, portanto, em contraposição à legislação trabalhis­
ta vigente, propunha, com o uma de suas principais bandeiras de luta, o esta­
belecimento da negociação direta entre patrões e empregados sem a intromis­
são do M inistério do Trabalho. U m sindicalismo de clara inspiração liberal-
democrática, com o definiu Almeida, cujas propostas principais eram:

l 2) substituição da política salarial normativa e autoritariamente imposta, pela


contratação livre e direta entre sindicatos e empresas, sem ingerência das autori­
dades e órgãos públicos; 2°) luta por uma organização sindical livre e autônoma,
liberta para sempre da tutela incômoda do Ministério do Trabalho, e firmemente
ancorada nos locais de trabalho, por meio de comitês, com direito assegurado à
existência; 32) direito irrestrito à greve, como condição e corolário da liberdade
sindical (Almeida, 1982, p. 83).

A defesa das propostas dos “autênticos” manifestou-se a partir das parali­


sações e das greves de 1978, 1979 e 1980. A s greves de 1978 foram as pri­
meiras depois da grande repressão aos m ovimentos grevistas de 1968. N o se­
tor metalúrgico, as greves tiveram início com os trabalhadores de São Ber­
nardo do Campo e logo se espalharam por vários m unicípios da Grande São
Paulo. A s paralisações foram curtas na maioria das empresas, sem maiores
incidentes violentos e, muitas vezes, sem a interferência sindical, a partir da
organização dos próprios trabalhadores nos locais de trabalho. Apesar de
muitas paralisações terem ocorrido por iniciativa direta dos trabalhadores, os
sindicatos foram os que estabeleceram as negociações diretas com o empresa­
riado, com o fica ilustrado na passagem de Keck (1988):
Desta forma, apesar de não ter sido o sindicato quem fez com que os trabalhado­
res do turno das 7:00 da Scania cruzassem os braços junto às máquinas no dia 12
de maio de 1978, foi ele quem foi chamado para fazer a negociação, uma hora
depois de iniciada a greve. Em poucos dias, os trabalhadores da Ford e de outras
montadoras seguiram o exemplo da Scania. As negociações através do sindicato
conseguiram um aumento de 11%, quase o dobro do que a Scania oferecera a
princípio (Keck, 1988, p. 398).

O resultado das reivindicações de 1978 foi considerado positivo pelo


“novo sindicalism o”, uma v ez que as negociações entre patrões e empregados
se deram sem a interveniência dos ministérios da Justiça e do Trabalho. A to­
lerância, tanto por parte do governo autoritário, com o por parte do empresa­
riado em relação à negociação direta de 1978, parecia apontar, na visão dos
sindicalistas da época, para uma expectativa de mudança na legislação traba­

A condensação do “imaginário popular oposicionista" num significante vazio: as “diretas já" 157
lhista vigente e, com isso, o ingresso das relações de trabalho na pauta da
transição politica, ponto que até então, tanto govem o, com o oposição partidá­
ria, negligenciavam o debate.
Já os m ovimentos de 1979 e 1980 caracterizaram-se por uma maior cen­
tralização das greves por parte dos sindicatos. Representou, também um au­
mento significativo no número de paralisações: 224 em 1979 contra 136 no
ano anterior (Almeida, 1982, p. 94). A lém do aumento significativo no núme­
ro de paralisações, essas atingiram também outras categorias laborais, princi­
palmente nas grandes cidades do centro-sul, com o rodoviários, bancários, li­
xeiros, m édicos, professores, entre outros. O comportamento, tanto dos em­
presários, com o do govem o, também se alterou. Por parte dos empresários,
ocorreu um aumento da resistência em negociar com os trabalhadores. Um
m otivo importante para o aumento dessa resistência se deu pelo fato de que as
greves de 1979 e 1980 caracterizaram-se pela paralisação de categorias intei­
ras, contrastando com as paralisações localizadas de 1978. A s negociações,
portanto, alteraram suas características. Como os sindicatos estavam mais
bem preparados e organizados para enfrentar as greves, eles conseguiram
condensar as reivindicações gerais de cada categoria. Isso representava um
aumento substancial do poder e do papel dos sindicalistas na mesa de nego­
ciação com o empresariado. D o lado do govem o, voltou-se a aplicar a legis­
lação trabalhista vigente, que previa a intervenção do Ministério do Trabalho,
e que considerava a greve com o um instrumento ilegal de manifestação dos
trabalhadores. Essa intervenção governamental resultou em medidas autoritá­
rias com o a intervenção de sindicatos e a destituição e prisão de líderes e de
diretores sindicais.
Assim , a expectativa de um novo tempo nas relações de trabalho no Bra­
sil vislumbrada pelo “novo sindicalism o”, principalmente após os resultados
positivos do m ovimento sindical em 1978, foi abandonada com as malogradas
experiências grevistas de 1979 e 1980. A lém disso, o poder do movimento
sindical em mobilizar protestos e greves diminuiu substancialmente no início
da década de 1980, tendo em vista o crescimento dos níveis de desemprego
em função da recessão econôm ica do período (Almeida, 1982).
A ssim com o o m ovimento sindical, os movimentos populares foram tam­
bém importantes na contestação do regime autoritário e na constituição do
“imaginário popular oposicionista”. Os “m ovimentos populares”20 que esta­
mos tratando aqui são organizações locais que reivindicam do Estado (em to­
dos os níveis e esferas de competência) questões pontuais atinentès às comu­
nidades suburbanas das grandes cidades, com o implantação de redes de água
e esgoto, fornecimento de luz elétrica, asfaltamento de ruas, construção de es­

20 Para um pertinente estudo de caso acerca dos movimentos populares, ver a análise de Scott
Mainwaring sobre o Movimento de Amigos de Bairro (MAB) de Nova Iguaçu - RJ (Main-
waring, 1988).

158 Daniel de Mendonça


colas, etc. Subjacentes a essas demandas pontuais e à difícil resposta do Esta­
do a todas elas, estão questões políticas mais gerais, com o a própria oposição
desses movimentos populares ao regime autoritário.
E interessante ressaltarmos que, na maioria das vezes, a constituição dos
movimentos populares tem origem externa às próprias comunidades. Igreja
Católica, m édicos, professores, advogados, arquitetos, militantes de partidos
de esquerda, foram atores de extrema importância na m obilização e na forma­
tação técnica das demandas dos movimentos populares, conforme aponta Ru-
th Cardoso:
A lém da Igreja, grupos de pro fissio n ais oferecem assessorias técnicas valiosas. O
m ovim ento de lo team entos clandestinos, por exem plo, não ex istiria sem o apoio
v o luntário dc alguns advogados. A rquitetos, professores e m éd ico s tam bém c o la ­
bo raram com gru p o s populares, d esejo so s de dar sen tid o p o lítico ao seu saber
profissional (C ard o so , 1983, p. 231).

O papel da Igreja Católica merece, nesse contexto, destaque especial.


Ralph Delia Cava (1988) enfoca com o o quarto momento21 da relação entre
Igreja Católica e sociedade brasileira no período autoritário, entre 1978 e
1985, o período em que as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) trabalha­
ram efetivamente na organização das populações carentes para que estas ex i­
gissem do Estado autoritário medidas objetivas à melhoria de suas realidades
locais. N ão obstante, a atuação das CEBs foi além: tendo por base a reivindi­
cação das demandas locais, o trabalho desenvolvido visava também à forma­
ção de uma consciência popular socialista e diametralmente oposta ao regime
autoritário (Cava, 1988).
D essa forma, o “processo de abertura”, além das disputas entre membros
da elite política, perpassou também pelas reivindicações dos mais pobres. A s­
sim, os m ovimentos populares urbanos surgiram e desafiaram o autoritarismo.
Suas demandas poderiam não ser diretamente o “fim da ditadura”, ou o “res­
tabelecimento da democracia”. Contudo, seguramente pode-se dizer que essas
questões mais gerais eram o pano de fundo para uma população que reivindi­
cava o que tem de vir antes de tudo: água tratada, esgoto pluvial, asfalto, m o­
radia, escolas. Exigiram com veem ência e radicalismo ações do Estado auto­
ritário para que lhes fossem garantidas condições humanas dignas. Como
opositores do autoritarismo foram os mais ferozes, os m enos tolerantes e os
mais desesperados.

21 Os três primeiros momentos históricos das relações entre a Igreja Católica e o Estado autori­
tário são: o primeiro, entre 1964 e 1968-69, marcado por divisões ideológicas e políticas no
clero entre “conservadores” e “progressistas”, com maior influência dos “conservadores”. O
segundo momento, iniciado em 1968-69, teve duração até o final de 1973 e ficou marcado
por um crescente movimento de oposição do clero ao regime autoritário que estava no auge
da repressão política. O terceiro momento, entre 1973/74 a 1978, ficou conhecido pelas po­
sições e ações da Igreja profundamente criticas ao autoritarismo.

A condensação do “imaginário popular oposicionista” num significante vazio: as ‘diretas já" 159
A ssim com o os movimentos populares, nesse mesmo período, surgiram
também vários m ovimentos de mulheres por todo o país. Em meados da dé­
cada de 1970, portanto, tanto mulheres de classe média e nível superior, como
mulheres pobres e com pouca instrução formal, organizaram m ovimentos pa­
ra pressionar o governo autoritário com reivindicações políticas específicas
de gênero. A luta das mulheres foi difundida em vários setores da sociedade,
com o na formação de inúmeras entidades civis feministas, no engajamento
nos partidos políticos de oposição e na participação ativa no m ovimento sin­
dical também nascente no período.22
O surgimento dos movimentos de mulheres desafiava o regime autoritá­
rio, pois restava claro, pelo m enos aos grupos feministas mais intelectualiza­
dos, que a luta política em direção à redcmocratização era o primeiro cami­
nho que deveria ser percorrido para após, numa sociedade mais democratiza­
da, reivindicarem políticas específicas de gênero.
Com isso não estamos afirmando que as feministas, durante o período au­
toritário, anularam suas demandas de gênero para apenas se incorporarem na
luta mais geral pela redemocratização. Creches, planejamento familiar, m éto­
dos de controle de natalidade, igualdade em relação ao homem no contrato
matrimonial, luta contra a violência em casa, salários iguais e redistribuição
do trabalho dom éstico (Alvarez, 1988), eram algumas demandas que o m ovi­
mento feminista no Brasil reivindicava ao Estado brasileiro. Ocorre que o re­
gim e autoritário não reconhecia tais demandas de gênero com o legítimas.
Ademais, quaisquer demandas específicas não tinham o mínimo reconheci­
mento institucional, com o demonstra C éli Pinto:

O projeto autoritário tratou de anular diferenças e construir sujeitos-políticos


únicos, ao mesmo tempo em que, por sua natureza conservadora, reforçou a
construção de sujeitos historicamente retrógrados. Esses sujeitos eram construí­
dos a partir de interpelações conservadoras que pretendiam reforçar as condições
de emergência onde tomavam lugar (Pinto, 1987, p. 169).

Buscam os demonstrar até aqui que, tanto pela via eleitoral, com o a partir
da em ergência dos novos movimentos sociais, o governo militar assistiu o
crescimento do “imaginário popular oposicionista” e o conseqüente decrés­
cim o de sua legitimidade política. E leições de 1974, 1976, 1978, movimentos
sociais no final da década de 1970, restabelecim ento do pluripartidarismo,
eleições de 1982. O caldeirão oposicionista estava esquentando. Contudo, a
grande explosão de participação e ânimo popular contra o regime ainda esta­
va por vir. A Campanha das “diretas já ” representou o coroamento e o ponto
nodal de múltiplas demandas, constituindo-se num significante vazio como
demonstraremos na próxima seção.

22 Para uma análise das relações de gênero no seio do movimento sindical brasileiro no período
do surgimento do “novo sindicalismo”, ver Brito (1986).

160 Daniel de Mendonça


A c o n d en sa ção do im ag in ário p o p u la r o p o sic io n ista
nas “d ireta s já ”
A origem da Campanha das “diretas já” remonta março de 1983. N os
primeiros dias da legislatura, o deputado federal Dante de Oliveira
(PM DB/M T) protocolou na Câmara dos Deputados um projeto de emenda
constitucional que previa alterações importantes nas regras da eleição para
presidente da República. Essa eleição, que constitucionalmente estava previs­
ta para ser indireta passaria, se aprovado o projeto, a ser realizada a partir de
sufrágio universal.
Tão logo foi protocolada, a emenda conquistou a simpatia e o apoio de
entidades importantes da sociedade civil, conforme constatou Forget:
A Igreja assume um papel importante após endossar a emenda em abril de 83; o
mesmo ocorre com os sindicatos, que, encabeçados por Lula, realizam uma ver­
dadeira campanha de manifestações públicas ao lado de alguns membros do pa­
tronato. Os advogados, sempre atentos aos debates jurídicos dos últimos anos,
exercem pressões sobre os grupos juntando-se a profissionais liberais, intelectu­
ais e mesmo artistas (Forget, 1994, p. 164).

É importante destacarmos que o apoio dado por diversas entidades da so­


ciedade civil à emenda Dante de Oliveira retirou do âmbito meramente legis­
lativo o m onopólio dessa discussão política, tomando a disputa pró ou contra
eleições diretas para Presidência da República um tema debatido pelos mais
amplos setores da sociedade brasileira. Este é um elem ento extremamente
importante, tendo em vista que os atos legislativos concernentes à emenda
passaram a ter relevância, não meramente aos profissionais da política, mas
também aos grupos e indivíduos que, geralmente, estão fora da disputa políti­
ca e que, nesse momento pontual, buscaram influir no processo político, na
direção do que afirma Gaxie:
Negócio de profissionais, a política interessa (em todos os seus sentidos) primei­
ramente, aos profissionais e seus partidários [...]. Não que os outros sejam des­
providos de meios de influenciar os processos políticos. Através da ação dentro
das organizações profissionais, as greves, as manifestações, as petições, levantes
populares, as rebeliões, as insurreições ou as revoluções, os agentes habitualmen­
te excluídos da luta pelo poder podem ser levados a influenciá-los (Gaxie, 1993,
p. 41).

Conforme Gaxie, ordinariamente a prática política interessa primeira­


mente aos seus profissionais, conhecedores de sua lógica de funcionamento e
de seus limites. N esse sentido, independente do regime, a dimensão da políti­
ca é comumente administrada por esses profissionais. Entretanto, existem
momentos em que outros grupos sociais - ordinariamente estranhos à disputa
política quotidiana - conseguem influenciar a arena política. Isso porque, o
espaço político, principalmente o parlamentar, mostra-se comumente sensível

A condensação do “imaginário popular oposicionista” num significante vazio: as “diretas já” 161
às pressões externas. D essa forma, é interessante notar que o apoio ao projeto
das diretas por parte de entidades da sociedade civil organizada com o a Igreja
Católica, os sindicatos e as entidades de profissionais liberais passou objeti­
vamente a pressionar os parlamentares a aprovarem tal emenda em pleno au­
toritarismo, ou seja, durante um regime político que, apesar de claros sinais
de liberalização, representava inequivocamente uma ideologia política que
vedava a participação popular nas decisões públicas.
Assim , com o afirmamos acima, as primeiras pressões populares pró-
diretas remontam a abril de 1983, através das manifestações de entidades da
sociedade civil organizada. O início oficial da Campanha ocorreu, contudo,
somente em janeiro de 1984. N esse período - entre o protocolo do projeto de
emenda constitucional e o com ício realizado em Curitiba23 - registrou-se o
recebimento de várias adesões da sociedade civil ao movimento que ainda es­
tava por acontecer.24
Em novembro de 1983, por exem plo, a revista “V eja” registrou que o
projeto do deputado Dante de Oliveira havia recebido o apoio de todos os dez
governadores oposicionistas. Positivam ente sintom ático à campanha foi o
anúncio da revista do apoio à emenda de nove dos 13 governadores do então
partido govem ista, o PDS (Veja n2 794, 23/11/83, “Uma Direta no P D S”, p.
37). N a mesma matéria, a revista destaca ainda que Joaquim dos Santos An­
drade, o Joaquinzão, presidente do Sindicato dos M etalúrgicos de São Paulo,
reuniu sindicalistas “para levar a campanha pela direta para a porta das fábri­
cas” (p. 37). Outras manifestações pró-diretas ocorreram no mês de novem ­
bro, com o o ato público e o abaixo-assinado de artistas, realizado nas escada­
rias do Teatro Municipal de São Paulo (Veja n- 795, 30/11/83, “Diretas já ou
em 1986”, p. 36).
Tanto a revista “V eja”, com o a “Isto É”, divulgaram dados de pesquisas
de opinião favoráveis à realização de eleições diretas. A “V eja” divulgou a
enquete realizada pelo Instituto Gallup que apontou, em junho de 1983, que
79% dos paulistas e cariocas preferiam a realização de eleição direta à Presi­
dência da República (Veja ns 796, 07/12/83, “A direta pára no P D S”, p. 42).

23 O comício realizado em 12 de janeiro de 1984 na cidade de Curitiba/PR é tido pelos organi­


zadores do movimento, os partidos políticos de oposição, como o evento oficial de abertura
da campanha das “diretas já ”.
24 Algumas dessas adesões são registradas pela revista “Veja” : “Existem poucos sinais visíveis
da evidente simpatia popular pela eleição direta, como os adesivos plásticos colados às jane­
las dos veículos que circulam no Rio de Janeiro. “Brasil Urgente - Diretas para Presidente”,
pregam esses adesivos, encomendados por um grupo de arquitetos cariocas que decidiu levar
a campanha às ruas. Cerca de 6.000 já foram vendidos no mês passado, boa parte dos quais
por um Comitê do Rio de Janeiro por Eleições Livres e Diretas, que reúne cerca de oitenta
sindicatos e associações de bairro. O comitê pretende lançar um manifesto no próximo dia
21 e prepara um abaixo-assinado, a ser enviado ao Congresso, solicitando mudanças na
Constituição que permitam o povo escolher o presidente” ( Veja, n. 792, 09/11/83, “As dire­
tas no páreo”, p. 40).

162 Daniel de Mendonça


Essa mesma pesquisa foi também publicada pela “Isto É”, que adicionou ain­
da os dados relativos às enquetes realizadas anteriormente. Portanto, além dos
79% registrados em junho de 1983, as enquetes do Instituto Gallup, realiza­
das em 1981, 1982 e em fevereiro de 1983, respectivamente, registraram o
crescimento da preferência do eleitorado paulista e carioca em relação à elei­
ção direta para presidente na ordem de 63%, 68% e 74% (Isto E ne 361,
23/11/83, “Foi dada a partida”).
As m anifestações de apoio à emenda Dante de Oliveira cresceram ainda
mais entre janeiro e abril de 1984. Vários são os exem plos que podem ser
apontados. Na edição de “Veja” nu 805, de 08 de fevereiro, a Confederação
Nacional dos Professores do Brasil, em apoio à emenda, distribuiu material as
suas entidades filiadas, “orientando os professores sobre com o abordar o tema
da direta com os alunos” (p. 28). N essa mesma matéria, noticiou a revista que
“em B elo Horizonte, os funcionários de sindicatos dos trabalhadores já aten­
dem telefonem as substituindo o tradicional alô pela frase “sindicato pela dire­
ta” (p. 28). Faixas, cartazes e outros materiais com inscrições com o legaliza­
ção dos partidos comunistas, “democracia nas universidades” (Veja n2 808,
29/02/84, “O grito dos m ineiros”, p. 20), “direitos da mulher, diretas já ” (V e­
ja ne 814, 11/04/84, “Bola de N ev e”, p.24), dentre outros, podiam facilmente
ser vistos nas dezenas de com ícios da Campanha. A própria organização do
com ício realizado em São Paulo, em 25 de janeiro de 1984, contou com uma
heterogênea organização:
Preo cu p an te, p a ra B rasília, era o fato de que, d u ran te m ais de um m ês, a p re p ara ­
ção do com ício ju n to u em um a inéd ita m aratona de reuniões, em d ias e d ias de
trab a lh o m in u cio so e interm inável, rep resen tan tes d e to d o s os p a rtid o s de o p o si­
ção, das variadas en tid ad es rep resen tativ as d a sociedade civil, d irig e n tes sin d i­
cais filiados à C U T e à C O N C L A T , católicos e pro testan tes - subitam ente unidos
em to m o de um a pa la v ra de o rdem que outra vez, com o nos tem pos m ais difíceis,
reuniu to d o s sob o m esm o teto am plo (Isto É, n. 371, 02/0 2 /8 4 , “O gigante que
d esp e rta ” , p. 17-18).

O grande número de entidades da sociedade civil que participaram da


campanha das “diretas já” - sindicatos, organizações de estudantes, grupos
feministas, entidades religiosas, associações de moradores - demonstram a
importância dessa campanha na luta contra o regime autoritário, o único elo
que insistia na manutenção de eleições indiretas para presidente. N ão se tra­
tava som ente de reivindicar “diretas já ”. A idéia inicial da em enda Dante de
Oliveira, que gerou a campanha popular, esvaziou seu conteúdo específico.
Quanto mais avançavam os dias - entre janeiro e abril - mais pessoas se en­
gajavam nesse m ovimento, mais demandas específicas eram incorporadas:
mais elem entos ingressavam nessa cadeia de equivalências discursiva que ti­
nha com o ponto nodal a campanha pela volta do direito de votar no presiden­
te.

A condensação do “imaginário popular oposicionista” num significante vazio: as “diretas já” 163
N esse sentido, para muitos grupos - e esta é a questão fundamental - lu­
tar por eleições diretas para presidente da República, um expediente que mui­
tos países democráticos dispensam e nem por isso deixam de ser considerados
democráticos, representava muitas vezes um pretexto para demandarem suas
questões pontuais, as quais não vinham tendo espaço de em ergência naquela
situação autoritária. Como vim os acima, havia manifestantes que, além das
diretas, reivindicavam, dentre muitas outras questões específicas, a democra­
tização nas universidades, mais direitos civis às mulheres, ou seja, questões
que não possuíam nenhuma ligação direta com a regra formal de votar para
presidente.
O que deve ser percebido nestas manifestações para além das “diretas já”
é que somente derrotando o regime autoritário - o corte antagônico e amea­
çador das identidades constituidoras do sistema discursivo “diretas já ” - e re-
instituindo a democracia, esses movimentos viam a possibilidade de deman­
dar suas políticas específicas que só poderiam ser reconhecidas por um regi­
me político que admitisse a existência de diferenças, contrariamente a um re­
gime autoritário que, por definição, tende a igualar todos os “cidadãos” do
Estado sob os preceitos e bases de sua “revolução”.
O grupo político contrário às “diretas já” restringia-se ao govem o federal
e à maioria do PDS. O interesse imediato desse grupo era o de eleger o suces­
sor do presidente João Figueiredo. Acreditavam que, para isso, era necessário
que a eleição presidencial se mantivesse indireta.
Já o grupo pró-diretas não pode ser dimensionado com clareza, nem no
que tange o número de identidades envolvidas, nem em relação aos seus múl­
tiplos objetivos condensados em tom o da idéia que a todos abrigava: o direito
de votar para presidente. Podem os exemplificar, mais uma vez o sentido he­
gem ônico da campanha das diretas através da seguinte constatação registrada
num editorial da revista “V eja”:

Hoje o desejo de escolher o próximo presidente da República é a maior unanimi­


dade popular já registrada na História do Brasil, algo que se afere não apenas pe­
lo tamanho dos comícios, mas por toda e qualquer investigação de opinião públi­
ca que se possa fazer. Nunca tantos quiseram a mesma coisa no mesmo tempo
{Veja, n. 815, 18/04/1984, Carta ao Leitor, p. 21).

É importante, nesse ponto, estabelecermos uma diferenciação necessária


entre a “emenda Dante de Oliveira” e a “campanha das diretas já”. A primeira
propunha algo com sentido direto e restrito, ou seja, o restabelecim ento da
eleição direta para presidente. A segunda, tendo por origem o sentido estrito
da primeira, refletiu-se, na verdade, numa verdadeira polissem ia de sentidos
absolutamente im possíveis de serem precisados: a campanha popular pelas
eleições diretas transformou-se num significante vazio, um discurso hegem ô­
nico na sociedade brasileira daquele período. D esenvolverem os m elhor esse
ponto que é crucial em nosso argumento.

164 Daniel de Mendonça


Em sentido estrito, ou seja, o mesmo da emenda Dante de Oliveira, a
campanha pelas “diretas já ”, significou um m ovimento popular - liderado pe­
los partidos de oposição ao regime autoritário (PM D B, PDT, PTB e PT) -
pelo restabelecimento de eleições diretas à Presidência da República. Entre­
tanto, esse objetivo primeiro é insuficiente para explicar o movimento com o
um todo.
A campanha condensou muito mais sentidos do que simplesmente a de­
manda de votar para presidente. A s “diretas já” foi o maior m ovimento políti­
co de oposição ao regime autoritário.25 Foi um discurso capaz de ampliar a d
infinitum seus conteúdos e significar o estabelecimento de um sentido hege­
mônico, um significante vazio, que, no limite, deixava absolutamente claro
que não era mais possível o Brasil viver sob a égide autoritária.
A campanha das “diretas já ” teve ainda o incontestável mérito de reunir
em praça pública,26 sob o eco de apenas um grito, m ilhões de manifestantes
que, quando gritavam “diretas já ”, bradavam também em prol de suas deman­
das identitárias: “direitos das mulheres já”, “direitos dos trabalhadores já”,
“liberdade irrestrita de expressão e associação já”, “legalização dos partidos
comunistas já”, “mais verbas para a educação já ”, “reforma agrária já ” enfim,
múltiplas demandas e grupos sociais que, sob um grito possível de ser brada­
do, o grito das diretas, queriam, na verdade, muito mais do que simplesmente
votar num presidente. “Diretas já ” era uma “senha” para reivindicar algo mui­
to mais profundo e, talvez por isso, imperceptível para muitos manifestantes:
significava lutar por democracia e romper, de uma vez por todas com um re­
gime, que apesar de dez anos de abertura política, insistia ainda em manter o
povo completamente marginalizado do processo político.

C o n s id eraçõ e s fin ais


Como vim os, a noção de significante vazio consiste na confluência de
múltiplos elem entos em um discurso, a ponto de esse discurso perder seu sen­
tido específico justamente pelo excesso de sentidos articulados.

25 Na análise de Brasilio Sallum Jr.: “Antes de mais nada, a Campanha das Diretas, ligando a
palavra à ação, consolidou e ampliou a posição da grande maioria da população, contrária ao
regime militar e a seus mecanismos de dominação. Nesse sentido, cumpriu de forma mais in­
tensa função similar à desempenhada pelos processos eleitorais no processo político” (1996,
p. 99).
26 Das mais de cinco dezenas de comícios pelas diretas realizados em todo Brasil, o número de
manifestantes de três deles merece especial destaque. Em 25 de janeiro de 1984, em São
Paulo, reuniram-se mais de 200 mil pessoas para reivindicarem eleições diretas. Em Belo
Horizonte, em 24 de fevereiro, 250 mil manifestantes aglomeram-se para defender a aprova­
ção da emenda Dante de Oliveira. Impressionante mesmo, contudo, foi a monstruosa cifra de
mais de um milhão de pessoas reunidas na Praça da Sé, no Rio de Janeiro em 10 de abril de
1984, momento que se constituiu na maior manifestação pública da história do Brasil.

A condensação do “imaginário popular oposicionista’’ num significante vazio: as “diretas já’ 165
U m significante vazio é, ainda, um discurso capaz de se impor no campo
da discursividade a ponto de poder representar uma idéia hegem ônica. A for­
ça de um significante vazio está na própria possibilidade que essa categoria
tem de explicar um determinado imaginário social, com o o imaginário das
“diretas já ”. N as palavras de Em esto Laclau:

Se as cadeias equiv alen ciais estendem um a larga variedade de d em an d as concre­


tas, então a base das eq uivalências não pode ser e ncontrada na especificidade de
q u alq u er um a dessas dem andas, pois está claro que o resultado do desejo coleti­
vo encontrará seu p o n to an co rad o r no nível do im aginário social e o centro do
im aginário social é o que nós cham am os de significantes vazios (L aclau, 2000, p.
2 1 0 ).

N esse sentido de “imaginário social”, a campanha das “diretas já ” consti­


tuiu-se num discurso com características de significante vazio. Criou inúme­
ras expectativas para os brasileiros que, segundo as dimensões dos maiores
com ícios realizados em São Paulo, B elo Horizonte e Rio de Janeiro, conse­
guiu modificar completamente o cenário político do país, no sentido de que,
pela primeira vez durante os vinte anos de regime militar, os próceres do au­
toritarismo viram seu poder político se esvaziar frente a uma até então inima­
ginável força oposicionista realmente de caráter popular. Se antes a oposição
ao regime autoritário partia da institucionalidade dos partidos de oposição e
dos movimentos identitários isolados, com a campanha das “diretas já”, de­
mandas por democracia substantiva ecoaram das vozes de m ilhões de brasi­
leiros que organizados em m ovimentos, identitários ou não, queriam definiti­
vamente dar um basta a um regime político excludente. Demandar eleições
diretas foi dizer não ao regime militar em geral e não ao governo Figueiredo
em particular. Demandar eleições diretas também foi dizer sim à democracia,
um significante vazio por excelência.
Enfatizamos, portanto, que o grande mérito da Campanha das “diretas já”
foi o de ter conseguido condensar o “imaginário popular oposicionista” ao re­
gim e autoritário que até então estava disperso. Desta forma, pela primeira vez
em vinte anos de ditadura, os brasileiros tiveram a oportunidade de se mani­
festar com o cidadãos desejosos de cidadania. Cidadania entendida de múlti­
plas formas - direitos sociais, equilíbrio econôm ico, emprego, respeito às di­
ferenças, dentre outras significações - que somente encontram espaços de
em ergência num regime democrático.
Como se sabe, a campanha popular por eleições diretas não conseguiu
forçar suficientemente o Congresso Nacional a aprovar a emenda Dante de
Oliveira. Por apenas 22 votos, os deputados oposicionistas não conseguiram
aprovar o projeto de emenda constitucional. Entretanto, o que os próceres do
regime autoritário não esperavam é que nem com eleições indiretas eles con­
seguiriam se manter mais tempo no poder político do Estado. Mas esse é um
outro capítulo desta mesma história.

166 Daniel de Mendonça


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A condensação do ‘ imaginário popular oposicionista'' num significante vazio: as ‘diretas já* 169
CONHEÇA OS AUTORES

E d u a rd o L u ft, b rasileiro, D o u to r cm F ilosofia pela P o n tifícia U niversidade C atólica


do R io G rande do Sul (P U C R S - B rasil), com estágio na U niversidade de H eidelberg
(A lem anha). A u to r de So b re a co erên cia do m u n d o (2005), A s sem en tes da d úvida
(2001) c P ara um a crítica interna ao sistem a de H eg el (1995), além de vário s artigos
em revistas científicas. Foi co o rd en a d o r dos cursos de G raduação e P ós-G raduação
em F ilosofia da PU C R S , e atualm ente é pro fesso r nos níveis de G raduação
e P ós-G raduação na m esm a U niversidade.

E m il A. S o b o ttk a , b rasileiro, D o u to r em S ociologia pela U niversidade de M ünster,


A lem anha, p e sq u isa d o r do C N P q, p rofessor na P U C R S e pro fesso r v isitante
na U niversid ade de K assel (2000-2003). D urante o d o u to rad o freqüentou sem inários
de L uhm ann em B ielefeld; em 2004-2005 fez pó s-d o u to rad o com C laus O ffe
na U niversid ade H um boldt, em Berlim . Á reas de pesquisa: m ovim entos sociais,
O N G s e po líticas sociais públicas.

F e rn a n d o R o b le s S a lg a d o , chileno, D o u to r em F ilosofia, com m enção


em S ociologia, p ela U niversidade de M unich (A lem anha); P ro fesso r titu lar
do D epartam ento de S o cio lo g ia d a U niversidade d e C oncep ció n (C hile);
P rofessor no C olégio d e M éxico; P ro fe sso r C o nvidado d a U niversidade C entral
da V enezuela; P ro fe sso r V isitante d a F aculdade de C iências S ociais do C hile.
Á reas tem áticas: teoria sociológica, teo ria dos sistem as, e tnom etodologia,
análise de discurso; b io te c n o lo g ia e genom a hum ano.

M a rc e lo A rn o ld C a th a lif a u d , chileno, D o u to r em S o cio lo g ia p e la U niversidade


de B ielefeld (A lem anha), sob a o rientação de N iklas L uhm ann (19 8 3 -1 9 8 7 );
A ntro p ó lo g o Social e M estre em C iências S ociais com ênfase em M odernização
Social n a U niversidade do C hile; P rofessor e C o o rd e n ad o r d o M estrado
em A ntro p o lo g ia e D esenvolvim ento no D epartam ento de A n tro p o lo g ia d a F aculdade
de C iências S ociais d a U niversidade do C hile e com o co n su lto r de in stituições
p úblicas, priv ad as n o terceiro setor. P ro fesso r C o nvidado nas U niversidades
d a A rgentina, U ruguai, Peru, Paraguai, M éxico, A lem anha e E spanha.
A reas tem áticas: teo ria dos sistem as, E p istem ologia construtivista, O rganizações
sociais (cultura, com portam ento e d esenvolvim ento o rg anizacional); im pactos
d a b io ciên cia n a so cied ad e contem porânea, m o dernização e m u d an ça social.

Conheça os autores 171


M i r t a A . G ia c a g lia , argentina, licenciada em F ilosofia pela U niversidade N acional
d e R osário (A rgentina). P ro fesso ra titu lar de H istó ria das Idéias e de F ilosofia
d a E ducação d a U niversidade de E ntre R ios; D iretora do D epartam ento d e E ducação
e S ociedade d a F aculdade de C iências d a E ducação da U niversidade N acional
de E ntre R ios; P ro fesso ra d a F aculdade de C iências d a E ducação (U N E R );
D ireto ra do P ro jeto d e Investigação “ El re to m o de la política: la utopia d e m o c rática ”
(U N E R ). Á reas tem áticas: teo ria d o discurso, pós-estruturalism o.

R o d rig o G h irin g h e lli d e A zevedo, brasileiro, advogado, D o u to r em S ociologia


pela U F R G S ; P ro fesso r nos P rogram as d e Pós-G raduação em C iências C rim inais
e em C iências S ociais d a PU C R S. Á reas de interesse: S o cio lo g ia Jurídica, S ociologia
d a A dm inistração d a Ju stiça P enal, S ociologia d a V iolência e d a C o n flitualidade,
P o líticas P ú b licas de S egurança e C ontrole Social.

172 Conheça os autores


S o b r e o s o r g a n iz a d o r e s

éo Peixoto Rodrigues é Licencia­

L do em Ciências Fisicas e Biológicas


pela Faculdade Porto-Alegrense
de Ciências e Letras (FAPA); Licenciado
e Bacharel em Ciências Sociais pela Uni­
versidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS); Mestre e Doutor em Sociologia
(UFRGS). Atualmente, é Professor do Pro­
grama de Pós-Graduação em Ciências So­
ciais da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (PUCRS). Sua área de
interesse e pesquisa vincula-se á Sociolo­
gia do Conhecimento e das Organizações
Sociais, à Sociologia da Ciência e do Co­
nhecimento Cientifico, à Teoria Sistêmica
e Epistemologia das Ciências Sociais. É
autor da obra Introdução à Sociologia do
Conhecimento, da Ciência e do Conheci­
mento Científico, publicada pela EdUPF,
em 2005.

aniel de Mendonça é Bacharel

D em Ciências Jurídicas e Sociais


pela Pontifícia Universidade Ca­
tólica do Rio Grande do Sul (PUCRS):
Mestre e Doutor em Ciência Política pela
Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS). Atualmente, é Professor Ad­
junto do Instituto de Sociologia e Política
da Universidade Federal de Pelotas (ISP/
UFPEL). Tem direcionado seus estudos
principalmente às potencialidades analí­
ticas da teoria do discurso desenvolvida;
sobretudo, por Ernesto Laclau e Chantal
Mouffe, aplicando suas principais catego­
rias à compreensão da história política braí
sileira. É autor da obra Tancredo Neves: da
distensão á nova república, publicada pela
EdUNISC, em 2004.

í
iklas Luhmann, sociólogo alemão, é um dos mais proeminentes e polêmicos pensa­

N dores da contemporaneidade, A leitura da obra de Luhmann é um convite à reflexão,


à crítica, à dúvida e à perplexidade. A sua obra representa um esforço em formular
uma teoria geral da sociedade, com o auxílio da teoria de sistemas, considerando seu desen­
volvimento científico mais elaborado. Luhmann buscou um aporte universal, que superasse a
estreiteza da conexão entre micro e macro e alcançasse maior precisão conceituai, incorporando
elementos da cibernética, teoria da comunicação e da biologia, para superar o que chama de
"velho pensamento europeu". Na sua teoria, a sociedade é vista como um sistema auto-referen-
te de comunicações, analisada através de diferentes âmbitos como política, economia, direito,
religião, educação, ciência entre outros. Com essa proposta, constrói um aparato teórico que
permite realizar observações da profunda complexidade contemporânea, com possibilidades de
proporcionar novas estratégias de atuação sobre ela.
Clarissa Eckert Baeta N eves

trabalho de Ernesto Laclau nos últimos 30 anos tem representado um dos mais

O profícuos e originais desenvolvimentos no campo da teoria e da filosofia política.


Com raízes no marxismo, Laclau parte para sua crítica, sem desprezar a vertente
gramsciana marcadamente em suas primeiras produções na década de 80. Desde então tem
incorporado a psicanálise lacaniana e o desconstrutivismo de Derrida construindo um aporte
teórico complexo e denso sobre a natureza do politico. Atualmente retomou seu tema inicial do
populismo reconstituindo, a partir de uma nova conceituação, a própria definição do político.
Frente às questões colocadas pela democracia contemporânea tanto no hemisfério norte, como
na América Latina, a contribuição de Laclau oferece uma perspectiva de análise que não pode
deixar de ser considerada por todos aqueles estudiosos do assunto.
Cêu R egina Jardim P into

EDIPUCRS

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