Professional Documents
Culture Documents
Pulsões e Destinos
da Pulsão
1915
TRIEBE UND TRIEBSCHICKSALE
Edições alemãs:
1915 • Int. Z. Ärztl. Psychoanal., 3 (2), 84-100.
1918 • S.K.S.N., 4, 252-278. (1922, 2ª ed.)
1924 • G.S., 5, 443-465.
1924 • Technik und Metapsychol., 165-187.
1931 • Theoretische Schriften, 58-82.
1946 • G.W., 10, 210-232.
já havia apresentado descrições quase com as mesmas palavras. Alguns anos antes,
perto do final da Seção III de seu exame do caso Schreber (1911c), descreveu o
“instinto” [Trieb] como “o conceito na fronteira entre o somático e o mental,
o representante psíquico das forças orgânicas (…)”. E num trecho provavelmente
escrito alguns meses antes do presente artigo, e acrescentado à terceira edição
(publicada em 1915, mas com prefácio datado de outubro de 1914) de seus Três
Ensaios (1905d), Edição Standard Brasileira, vol. VII, p. 171, IMAGO Editora,
1972, descreveu o “instinto” [Trieb] como “o representante psíquico de uma
fonte de estímulo endossomática, continuamente a fluir (…) um conceito que se
acha na fronteira entre o mental e o físico”. Essas três descrições parecem tornar
claro que Freud não estabelecia nenhuma distinção entre um “instinto” [Trieb] e
seu “representante psíquico”. Aparentemente, considerava o próprio “instinto”
[Trieb] como o representante psíquico de forças somáticas. Se agora, contudo,
passarmos aos artigos ulteriores dessa série, teremos a impressão de que Freud
traça uma distinção muito acentuada entre o “instinto” [Trieb] e seu represen-
tante psíquico. Isso talvez seja indicado com o máximo de clareza num trecho de
“O Inconsciente” (p. 182): “Um “instinto” [Trieb] jamais pode tornar-se um
objeto da consciência — somente a idéia [Vorstellung] que representa o instinto é
que pode fazê-lo. Além disso, no inconsciente um “instinto” [Trieb] não pode ser
representado de outra forma senão por uma idéia (…). Quando, não obstante,
falamos de um impulso instintual [Triebregung] inconsciente ou de um impulso
instintual [Triebregung] recalcado (…), referimo-nos apenas a um impulso instin-
tual [Triebregung] cujo representante ideacional é inconsciente. Esse mesmo con-
ceito aparece em muitos outros trechos. Por exemplo, em “O Recalque” (p. 153)
Freud refere-se ao “representante (ideacional) psíquico do “instinto” [Trieb]” e
prossegue: “(…) o representante em questão persiste inalterado e o instinto [Trieb]
permanece ligado a ele”; e de novo, no mesmo artigo (p. 157), escreve sobre o
representante do “instinto” [Trieb] como “uma idéia”, ou grupo de idéias, investida
com uma quota definida de energia psíquica (libido, interesse) proveniente de um
“instinto” [Trieb], e continua, dizendo que “além da idéia, algum outro elemento
que representa o ‘instinto’ [Trieb] tem de ser levado em conta (…)”. Nesse segundo
grupo de citações, portanto, o “instinto” [Trieb] não é mais considerado o represen-
tante psíquico de impulsos somáticos, mas antes como sendo ele próprio algo
não-psíquico. Esses dois conceitos aparentemente divergentes da natureza de um
“instinto” [Trieb] encontram-se em diversas passagens dos escritos subseqüentes de
Freud, embora o segundo predomine. Pode ser, contudo, que a contradição seja
mais aparente do que real, e que sua solução esteja precisamente na ambigüidade do
próprio conceito — um conceito-limite entre o físico e o mental.
135
OBRAS PSICOLÓGICAS DE Freud
“têm origem nas células do corpo e dão lugar às necessidades principais: fome, respira-
ção e sexualidade”, mas em nenhuma parte aparece o termo “instinto” [Trieb].
O conflito subjacente às psiconeuroses foi, nesse período inicial, às vezes
descrito como situado entre “o Eu” e a “sexualidade”, e, embora o termo “libido”
fosse com freqüência empregado, o conceito era o de uma manifestação de “ten-
são sexual somática”, que por sua vez era considerada um processo químico. Só
nos Três Ensaios é que a libido foi explicitamente estabelecida como uma expres-
são do instinto sexual. O outro elemento do conflito, “o Eu”, permaneceu indefi-
nido por muito tempo. Foi examinado sobretudo em relação a suas funções —
em particular o “recalque”, a “resistência” e o “teste da realidade” —, mas (à parte
uma tentativa muito antiga na Seção XIV da Parte I do “Projeto”) pouco se disse a
respeito de sua estrutura ou de sua dinâmica. Quase não se fez referência aos “ins-
tintos de autopreservação” [Selbsterhaltungstriebe], salvo indiretamente, em rela-
ção à teoria de que a libido se ligara a eles nas fases iniciais de seu desenvolvi-
mento; e parecia não haver razão óbvia para se estabelecer uma conexão entre eles
e o papel desempenhado pelo Eu enquanto agente repressivo em conflitos neu-
róticos. Então, de modo aparentemente repentino, num breve artigo sobre per-
turbações psicogênicas da visão (1910i), Freud introduziu a expressão “instintos
do Eu” [Ichtriebe], identificando-os, por um lado, com os instintos de autopre-
servação e, por outro, com a função do recalque. A partir dessa época, o conflito
foi sempre representado como competição entre dois conjuntos de “instintos”
[Triebe] os “instintos” da libido e os “instintos” [Triebe] do Eu.
A introdução do conceito de “narcisismo”, contudo, originou uma com-
plicação. Em seu artigo sobre essa teoria (1914c), Freud apresentou a idéia da
“libido do Eu” (ou “libido narcisista”), que investe o Eu, em contraste com a
“libido objetal”, que investe os objetos (p. 99, neste volume). Um trecho desse
artigo (loc. cit.), bem como uma observação no presente artigo (pp. 150-1), já
revela uma inquietação de sua parte com a possibilidade de sua classificação dua-
lista dos instintos [Triebe] perdurar. É verdade que na análise de Schreber (1911c)
ele insistia na diferença entre “investimentos do Eu” e “libido”, e entre “interesse
que emana de fontes eróticas” e “interesse em geral” — distinção que reaparece na
réplica a Jung no artigo sobre narcisismo (pp. 102-3). O termo “interesse” é tam-
bém empregado no presente artigo (p. 155); e, na Conferência XXVI das Confe-
rências Introdutórias (1916-17), “interesse do Eu” ou simplesmente “interesse” é
em geral posto em contraste com “libido”. Não obstante, a natureza exata desses
instintos [Triebe] não-libidinais era obscura. O ponto crucial da classificação dos
instintos [Triebe] feita por Freud foi alcançado em “Além do Princípio do Prazer”
(1920g). No Capítulo VI dessa obra, ele reconheceu com franqueza a dificuldade
da posição que fora alcançada, declarando explicitamente que a “libido narcisista
137
OBRAS PSICOLÓGICAS DE Freud
era, sem dúvida, uma manifestação da força de instintos [Triebe] sexuais, no sen-
tido analítico, que tinham de ser identificados desde o início com os instintos
[Triebe] de autopreservação permitidos” (Standard Edition, 18, p. 50 e segs.).
Contudo, sempre sustentou que, além dos instintos libidinais, existem instintos
[Triebe] do Eu e instintos objetais; e foi aqui que, ainda vinculado a um ponto de
vista dualista, introduziu a hipótese do instinto [Trieb] de morte. Um relato do
desenvolvimento de seus conceitos sobre a classificação dos instintos [Triebe] até
aquele ponto foi apresentado na longa nota de rodapé no final do Capítulo VI de
“Além do Princípio do Prazer”, Standard Edition, 18, pp. 60-1, e uma ulterior
discussão do assunto, à luz de seu recém-concluído quadro da estrutura da mente,
ocupou o Capítulo IV de O Eu e o Id (1923b). Tratou mais uma vez da matéria
com todos os pormenores no Capítulo VI de O Mal-Estar na Civilização (1930a)
(Edição Standard Brasileira, vol. XXI, IMAGO Editora, 1974), dispensando ali,
pela primeira vez, especial consideração aos instintos agressivos e destrutivos.
Antes prestara pouca atenção a eles, exceto nos casos (como no sadismo e no
masoquismo) em que se achavam fundidos com elementos libidinais, mas agora
os examinava em sua forma pura e os explicava como derivados do instinto
[Trieb] de morte. Uma revisão ainda ulterior do assunto será encontrada na
segunda metade da Conferência XXXII das Novas Conferências Introdutórias
(1933a) e num resumo final no Capítulo II da obra póstuma Esboço de Psicanálise
(1940a [1938]) (Edição Standard Brasileira, vol. XXIII, IMAGO Editora, 1974).
quico de modo particular, por ser marcada pelos afetos, pelas imagens e sobretudo
pela linguagem.
O Trieb, como Freud o concebe na dimensão humana, tem alguns aspec-
tos em comum com os de sua manifestação nos animais, pois nossas pulsões são
portadoras das leis da natureza em geral e das leis da espécie em particular, e
também veiculamos em nosso corpo as leis dos ciclos químicos e fisiológicos
(organische Triebe e biologische Triebe). Como espécie humana, também traze-
mos em nós um modo de representar psiquicamente as pulsões através de repre-
sentações primitivas e disposições para certas fantasias e neuroses que são depó-
sitos de experiências arcaicas de nossos ancestrais que se fixaram na filogênese
(a hipótese lamarckista de Freud era de que as pulsões seriam também “precipita-
dos” de vivências da espécie que se cristalizaram). Para descrever os percursos e os
destinos da pulsão em seu processo de circulação por esses diferentes patamares de
manifestação, Freud refere-se com freqüência a diferentes “pontos de vista” ou
“ângulos” a partir dos quais se pode analisar a pulsão. Cada patamar de circulação
pulsional contém contradições específicas: por exemplo, no âmbito biológico
encontra-se o conflito entre as pulsões de reprodução da espécie e as pulsões de
conservação do indivíduo; no nível do funcionamento fisiológico os conflitos sur-
gem nos movimentos opostos e por vezes contraditórios entre carga e descarga —
necessários ao funcionamento dos órgãos —; e na dimensão do processo psíquico
primário a polaridade reside na oposição entre prazer e desprazer. Contudo, para
além dessa adesão à visão embriológica da época (a ontogênese repete a filogê-
nese), Freud destaca uma especificidade humana e cultural que altera profunda-
mente o percurso, interfere na síntese e fusão entre pulsões e retroage sobre todo o
arco pulsional: as pulsões aderem (binden sich, ligam-se, enlaçam-se) a representa-
ções e afetos organizados como linguagem, de modo que o conflito pulsional se
expressa na dimensão humana como desejos opostos que englobam as camadas
anteriores e estão ancorados na história biológica, sendo determinados não só por
esta, mas também por significações.
No presente artigo Freud sugere “que abordemos os destinos das pulsões
relacionando-os com as forças motivacionais que se contrapõem ao avanço das
pulsões, o que nos permite tratar tais destinos como se fossem modos de defesa
contra as pulsões”. Assim, o conceito de Trieb permite a Freud integrar todas essas
camadas e vetores em um sistema complexo e abrangente em que pulsões se fusio-
nam (e se desfusionam), se enlaçam (e se liberam), progridem (e regridem), se
deslocam (e se distorcem), se condensam, mudam de direção e sofrem transfor-
mações de natureza, transitando entre o corpo, a psique, o consciente e o incons-
ciente, assumindo diferentes roupagens (Umkleidungen) nos processos psicodinâ-
141
OBRAS PSICOLÓGICAS DE Freud
micos. Enquanto dura a vida, esse sistema está entrecortado por inúmeras formas
de Regulierung (regulação), todas precárias, pois trata-se sempre de bewältigen
(lidar, enfrentar) pulsões que não se deixam domar, estando sempre em processo
de Drang (ânsia por se manifestar e se extinguir), e Freud atribui ao próprio cará-
ter essencial da pulsão esse aspecto “pressionante” [drängend]. Daí a importância
de se evitar o equívoco de cindir o termo Trieb e tratá-lo como referente ao bioló-
gico ou só ao que é humano e considerar que Freud tivesse superado uma fase bio-
lógica ingênua na qual os liames do Trieb com o biológico, o fisiológico, o quí-
mico e o animal tenham sido deixados para trás. Freud aborda intensamente esses
temas até os últimos artigos, bem como em diversos casos clínicos. O termo
Trieb, tanto no idioma alemão como no uso em Freud, possui simultaneamente
uma carga de arcaísmo e de determinações da natureza, como também aspectos
impulsivos da vontade irrefreável e de inclinação psíquica. Manter esses nexos da
palavra permite elucidar diversas dificuldades. Os textos de Freud tornam-se
incoerentes entre si e desconectados do idioma alemão se utilizarmos Trieb como
referido somente ao psíquico, à demanda e ao humano. Essa conexão refere-se
apenas ao momento de circulação psicodinâmica entre o consciente e o incons-
ciente. Como se verá neste artigo e em muitos outros, Freud repassa todos esses
nexos a que aludimos acima — por exemplo, no manuscrito redigido na mesma
época e não publicado em vida, “Neuroses de Transferência: Uma Síntese”
(1915) (IMAGO Editora, 1985), e em textos tão diversos como “Além do Princí-
pio do Prazer” (1920) (ESB, vol. XVIII, 1987), “O Problema Econômico do
Masoquismo” (1923) (ESB, vol. XIX, 1987), “Análise Terminável e Interminá-
vel” (1937) (ESB, vol. XXII, 1987).
Muitos dos obstáculos à leitura da teoria das pulsões decorrem também de
como os diversos sinônimos de Trieb são utilizados por Freud. Termos alemães
como “carência/necessidade” (Bedürfnis), “pressão” (Drang), “estímulo” (Reiz),
“compulsão” (Zwang), “prazer/desejo” (Lust), “vontade” (Wille), “desejo” (Wunsch),
que constavam como ocasionais sinônimos de Trieb nos dicionários de época, são
empregados por Freud ora como equivalentes a Trieb e, portanto, de modo mais
frouxo e pouco rigoroso, ora de forma mais sistemática, diferenciando-os entre si.
Esses termos, quando utilizados como equivalentes a Trieb, formam no texto de
Freud tramas semânticas cuja função é enfatizar determinados aspectos, marcar
uma idéia-força martelando por meio de palavras diferentes uma mesma noção.
Freqüentemente, após utiliza-los desse modo, Freud adota poucas linhas abaixo,
ou nos parágrafos seguintes em um mesmo artigo, outra forma de designação dos
conceitos, trata como distintos termos que antes eram equivalentes e passa então a
utilizar cada termo como elos e unidades que compõem determinadas cadeias do
Freud Pulsões e Destinos da Pulsão
142
Trieb, além desse imperativo presente na vida das espécies e dos seres humanos,
engloba outros elementos. Refere-se a um patamar mais arcaico e geral, isto é, a
uma escala dos grandes princípios ou leis que regem a natureza, temas da filoso-
fia, da biologia e da metafísica (nesse sentido, Freud por vezes alude a uma
“manifestação do instinto” [Instinktäusserung] que seria a expressão, nos ani-
mais, da natureza dos Triebe em geral), mas sobretudo o arco de sentidos de
Trieb abrange também a esfera mais volitiva ligada ao pensamento e às represen-
tações e que ultrapassa as determinações “naturais”. Trieb não é representado
apenas por imperativos compulsivos (como Freud exemplifica com a pseudopul-
são e a fome no artigo “O Recalque”, deste volume), mas também por desejos,
carências e outras representações e afetos menos investidos e mais deslocáveis, que
por isso podem conhecer destinos tais como a sublimação, o recalque etc. O ter-
mo “instinto” não foi adotado nesta tradução por ser mais estreito que Trieb e
levar a uma compreensão mais desligada dos aspectos volitivos e representacio-
nais também presentes em Trieb e fundamentais para uma compreensão psico-
dinâmica e metapsicológica do inconsciente. Por esse motivo a escolha recaiu
sobre um neologismo oriundo do francês e já usual na psicanálise brasileira,
“pulsão”, que, apesar de menos compreensível do que “instinto”, tem a vanta-
gem de remeter foneticamente a algo que “pulsa” e a “impulsão”.
145
OBRAS PSICOLÓGICAS DE Freud
Ouvimos muitas vezes a opinião de que uma ciência deve se edificar sobre concei-
tos básicos claros e precisamente definidos, mas, na realidade, nenhuma ciência,
nem mesmo a mais exata, começa com tais definições. O verdadeiro início da ati-
vidade científica consiste muito mais na descrição de fenômenos que são em
seguida agrupados, ordenados e correlacionados entre si. Além disso, é inevitável
que, já ao descrever o material, apliquemos sobre ele algumas idéias abstratas obti-
das não só a partir das novas experiências, mas também oriundas de outras fontes.
Tais idéias iniciais — os futuros conceitos básicos da ciência — se tornam ainda
mais indispensáveis quando mais tarde se trabalha sobre os dados observados. No
princípio, as idéias devem conter certo grau de indefinição, e ainda não é possível
pensar em uma delimitação clara de seu conteúdo. Enquanto elas permanecem
nesse estado, podemos concordar sobre seu significado remetendo-nos repetida-
mente ao material experiencial a partir do qual elas aparentemente foram deriva-
das; contudo, na realidade, esse material já estava subordinado a elas. Em rigor,
essas idéias iniciais possuem o caráter de convenções. Entretanto, é preciso que
não tenham sido escolhidas arbitrariamente, e sim determinadas pelas relações
significativas que mantêm com o material empírico. É comum que imaginemos
poder intuir tais relações antes mesmo de podermos caracterizá-las e demons-
trá-las, mas só depois de termos investigado mais a fundo determinado campo de
fenômenos é que poderemos formular com mais precisão seus conceitos básicos e
modificá-los progressivamente, até que se tornem amplamente utilizáveis e, por-
tanto, livres de contradição. É apenas então que talvez tenha chegado a hora de
confinar os conceitos em definições. Entretanto, o progresso do conhecimento
não suporta que tais definições sejam rígidas, e como ilustra de modo admirável o
exemplo da física, mesmo os “conceitos básicos” que já foram fixados em defini-
ções também sofrem uma constante modificação de conteúdo.1 SA.1
como essa resultará inútil, pois, apesar da fuga, eles continuam a exercer uma
pressão constante [drängenden].11 Esses outros estímulos são o sinal característico T.11
Não nos choquemos, por ora, com a generalidade e indeterminação dessa idéia e
prossigamos. Podemos atribuir ao sistema nervoso a tarefa — em termos gerais —
de lidar16 com os estímulos. Vemos então como a introdução das pulsões complica T.16
los pulsionais que se originam no interior do organismo não podem ser elimina-
dos por esse mecanismo. Eles impõem ao sistema nervoso exigências muito mais
elevadas. Incitam-no a assumir atividades complexas e articuladas umas com as
outras, as quais visam a obter do mundo externo os elementos para a saciação das
fontes internas de estímulos, e para tal interferem no mundo externo e o alteram.
Todavia, acima de tudo, os estímulos pulsionais obrigam o sistema nervoso a
renunciar a seu propósito ideal de manter todos os estímulos afastados de si, pois
os estímulos de natureza pulsional prosseguem afluindo de modo contínuo e ine-
vitável. Podemos então concluir que são as pulsões, e não os estímulos externos, os
verdadeiros motores dos progressos que levaram o sistema nervoso, com sua capa-
Freud Pulsões e Destinos da Pulsão
148
Podemos agora passar a discutir alguns termos utilizados em conexão com o con-
ceito de pulsão, tais como: pressão [Drang], meta [Ziel], objeto [Objekt] e fonte
[Quelle] da pulsão.
T.21 Por pressão21 de uma pulsão entendemos seu fator motor, a soma da força ou
a medida de exigência de trabalho que ela representa. Esse caráter de exercer pressão
é uma propriedade universal das pulsões, na verdade, sua própria essência. Toda
pulsão é uma parcela de atividade; assim, quando, de maneira menos rigorosa,
T.22 falamos de pulsões passivas, estamos nos referindo a pulsões cuja meta [Ziel]22 é
SE.23 passiva.23
T.24 A meta de uma pulsão é sempre a satisfação,24 que só pode ser obtida
quando o estado de estimulação presente na fonte pulsional é suspenso. Embora a
meta final de toda pulsão seja sempre a mesma, são diversos os caminhos que
podem conduzir a essa meta. Portanto, uma pulsão pode ter numerosas outras
metas mais próximas e metas intermediárias, que se combinam ou até se permu-
tam entre si antes de chegarem à meta final. A experiência também nos autoriza a
falar de um gênero de pulsões que denominamos “inibidas quanto à meta”, o que
149
OBRAS PSICOLÓGICAS DE Freud
diversos destinos26 que a pulsão conhecerá, o objeto poderá ser substituído por T.26
exemplo, mecânicas. Todavia, o estudo das fontes pulsionais já não compete à psi-
cologia, e muito embora o elemento mais decisivo para a pulsão seja sua origem
na fonte somática, a pulsão só se faz conhecer na vida psíquica por suas metas.
Além disso, o conhecimento mais exato das fontes pulsionais não é rigorosamente
necessário para fins da pesquisa psicológica. Mas, apesar dessas limitações, muitas
vezes, a partir das metas pulsionais, é possível inferir retroativamente quais são as
fontes da pulsão.
Quanto às diferenças qualitativas33 entre as diversas pulsões que se origi- T.33
uma das pulsões pode ser atribuída à diversidade das fontes pulsionais; contudo,
só em um contexto posterior será possível esclarecer o que está implicado no pro-
SE.34 blema da qualidade das pulsões.34
Que pulsões devemos supor existam e quantas? É evidente que esta questão dá
margem a respostas bastante arbitrárias. Embora não se possa objetar se alguém
empregar, por exemplo, o conceito de uma pulsão lúdica, ou de uma pulsão de
destruição, ou ainda de uma pulsão gregária, isso só pode ser feito quando o con-
texto o exigir e as limitações da análise psicológica o permitirem. No entanto,
cabe nos perguntarmos se esses conteúdos temáticos pulsionais tão especializados
não deveriam ser retroativamente decompostos na direção das fontes pulsionais, a
fim de se chegar às pulsões originais, àquelas não mais divisíveis, e atribuir apenas
a estas uma efetiva importância.
Propus uma classificação para essas pulsões originais diferenciando-as em
dois grupos: o das pulsões do Eu, ou de autoconservação, e o das pulsões sexuais.
Mas essa classificação não é uma premissa necessária, como, por exemplo, a hipó-
SE.35 tese a respeito da tendência biológica do aparelho psíquico.35 Ela é uma simples
construção auxiliar que apenas será mantida enquanto se mostrar útil; sua substi-
tuição por outra fará pouca diferença nos resultados de nosso trabalho de descri-
ção e categorização. Essa classificação decorreu da própria história do desenvolvi-
mento da psicanálise, que tomou como primeiro objeto as psiconeuroses, ou,
mais precisamente, o grupo descrito como “neuroses de transferência” (histeria e
T.36 neurose obsessivo-compulsiva [Zwangsneurose]).36 Na raiz de cada uma dessas
afecções, havíamos encontrado um conflito entre as reivindicações da sexualidade
e as do Eu. É sempre possível que um estudo mais exaustivo das outras afecções
neuróticas (sobretudo das psiconeuroses narcísicas: as esquizofrenias) obrigue a
uma modificação dessa fórmula e, com isso, a outro modo de agrupamento das
pulsões originais. Mas, neste momento, não sabemos de nenhuma proposição a
respeito desta questão, e ainda não encontramos nenhum argumento desfavorá-
SE.37 vel à hipótese da oposição entre as pulsões do Eu e as pulsões sexuais.37
Entretanto, parece-me pouco provável que, a partir da análise do material
psicológico, se possam obter dados e indicações decisivos que nos permitam fazer
uma distinção e classificação das pulsões. Pelo contrário, o próprio estudo do
material psicológico parece exigir que nós mesmos aportemos determinados pres-
supostos sobre a vida pulsional. Penso também que seria desejável que pudésse-
mos tomar esses pressupostos emprestados de outro campo e transferi-los à psico-
logia. Nesse sentido, cabe mencionar que da biologia provém uma contribuição
que corrobora a idéia de uma separação entre as pulsões do Eu e as pulsões sexuais.
151
OBRAS PSICOLÓGICAS DE Freud
A biologia ensina que a sexualidade não pode ser equiparada às outras funções do
indivíduo, pois suas tendências vão além dele e têm por conteúdo a produção de
novos indivíduos, portanto, a conservação da espécie. Além disso, a biologia nos
mostra que duas concepções a respeito da relação entre o Eu e a sexualidade coexis-
tem lado a lado, com igual direito. Uma concepção reza que o indivíduo é o ele-
mento principal e a sexualidade, uma de suas atividades, e que a satisfação sexual é
uma das necessidades [Bedürfnisse] do indivíduo. A outra concepção afirma que o
indivíduo é um apêndice temporário e transitório do plasma germinal — quase
imortal — que lhe é confiado de geração a geração.38 Pelo que sei, a suposição de SE.38
que a função sexual se diferencia dos outros processos corporais por meio de uma
química própria também é uma premissa da pesquisa biológica de Ehrlich.39 SE.39
alguma satisfação masoquista obtida por via mais direta. Não parece haver um
masoquismo original que não derive do sadismo, tal como descrito acima.52 F.52
punição, mas não em masoquismo. O verbo na voz ativa não se transforma na voz
passiva, mas na voz reflexiva média.55 SE.55
meta masoquista, também pode ocorrer que retroativamente surja a meta sádica
Freud Pulsões e Destinos da Pulsão
154
de infligir dores, pois, à medida que provocamos dores nos outros, nós mesmos,
em nossa identificação com o objeto que sofre, poderemos fruí-las [geniesst], de
modo masoquista. Em ambos os casos, é claro, não é a dor em si que é fruída
[geniesst], mas a excitação sexual concomitante, o que é muitíssimo cômodo para
o sádico. Sentir prazer com a dor seria então uma meta original de cunho maso-
quista; entretanto, esse comprazer-se com a dor só pode tornar-se meta pulsional
na pessoa sádica.
Para não deixar esta exposição incompleta, devo acrescentar ainda algo
sobre a compaixão e dizer que ela não pode ser descrita como um resultado da
transformação pulsional ocorrida no sadismo; é preciso que a concebamos como
SE.57 uma formação reativa contra a pulsão.57
Resultados um pouco diferentes e mais simples se obtêm quando se inves-
tiga outro par de opostos, as pulsões que têm por meta o ato de ficar olhando e o
de se mostrar (voyeur e exibicionista na linguagem das perversões). Aqui também
podem ser consideradas as mesmas etapas que encontramos no caso anterior: a) o
ato de ficar olhando como atividade voltada para um objeto estranho [fremd]; b) a
renúncia ao objeto, a reorientação da pulsão de olhar agora voltada em direção a
uma parte do próprio corpo e, com isso, a transformação da atividade em passivi-
dade e a escolha de uma nova meta: a de ser olhado; c) a introdução de um novo
SE.58 sujeito,58 ao qual nos mostramos para sermos contemplados por ele. Praticamente
não resta dúvida de que a meta ativa surge antes da meta passiva, de que o ato de
olhar precede o de ser olhado. Mas há uma importante diferença com relação ao
caso do sadismo: trata-se do fato de que a pulsão de olhar contém uma fase ainda
anterior àquela apresentada no item a. No início de sua atividade, a pulsão de
olhar é auto-erótica, isto é, tem um objeto, mas o encontra no próprio corpo. Só
mais tarde ela se vê levada (pela via da comparação) a trocar esse objeto por um
objeto análogo situado em outro [fremd] corpo (fase a). O que torna essa fase pre-
liminar interessante é que dela se derivam as duas posições contidas no par de
opostos, conforme a troca se efetue em um ou em outro pólo. O esquema para a
pulsão de olhar poderia ser:
Falta ao sadismo uma fase preliminar como esta, que desde o princípio se
dirige a um objeto estranho [fremd], embora não fosse de todo absurdo supor
que, a partir dos esforços da criança para obter controle sobre seus próprios
membros,59 uma fase assim pudesse se constituir. SE.59
dida como uma herança arcaica, já que temos motivos para supor que, em épocas
primitivas, moções ativas e que ainda não haviam conhecido mudanças participa-
SE.61 vam muito mais da vida pulsional do indivíduo do que ocorre em média hoje.61
Habituamo-nos a denominar narcisismo a fase inicial de desenvolvimento
do Eu, durante a qual suas pulsões sexuais se satisfazem de maneira auto-erótica;
falta, contudo, abordarmos a relação entre auto-erotismo e narcisismo. Segue-se
então que a etapa preliminar da pulsão de olhar — na qual o prazer de olhar tem o
próprio corpo como objeto — pertence ao narcisismo, ou seja, é uma formação
narcísica. A pulsão de olhar ativa se desenvolve justamente pelo abandono dessa
etapa narcísica, ao passo que a pulsão de olhar passiva manterá o objeto narcísico
aprisionado. De modo análogo, pode-se dizer que a transformação do sadismo
em masoquismo significaria um retorno ao objeto narcísico. Em ambos os casos,
por meio da identificação, o sujeito narcísico sofre uma troca por outro Eu estra-
nho [fremd]. Portanto, considerando também a etapa preliminar do sadismo que
aqui construímos, chegamos a uma visão mais abrangente, segundo a qual os des-
tinos pulsionais de redirecionamento contra o próprio Eu e de transformação de
atividade em passividade são dependentes da organização narcísica do Eu e carre-
gam a marca dessa fase. Talvez esses destinos correspondam a tentativas de defesa
que, em etapas mais avançadas de desenvolvimento do Eu, são efetuadas com
SE.62 outros recursos.62
Neste ponto nos damos conta de que até agora só examinamos dois pares de
opostos: sadismo — masoquismo e vontade de olhar [Schaulust] — vontade de
T.63 mostrar [Zeigelust]. Estas são as mais conhecidas entre as pulsões63 sexuais que se
manifestam de forma ambivalente. Os outros componentes que mais tarde farão
parte da função sexual ainda não estão suficientemente acessíveis à análise para que
possamos discuti-los. Todavia, podemos genericamente dizer que as atividades des-
ses componentes são auto-eróticas, isto é, que o aspecto mais importante é o órgão
do qual emanam, sua fonte, e que o objeto é o elemento de menor importância, e
quase sempre coincide com o próprio órgão. Entretanto, no caso da pulsão de olhar,
cabe mencionar que, embora o objeto também seja, no início, uma parte do pró-
prio corpo, ele não é o olho em si. Também no sadismo, a fonte orgânica, que pro-
vavelmente é a musculatura capaz de excercer uma ação, remete diretamente a
outro objeto, ainda que situado no próprio corpo. Assim, entre as pulsões auto-eró-
ticas, o papel da fonte orgânica é tão decisivo que, seguindo a hipótese muito suges-
tiva de P. Federn (1913) e L. Jekels (1913), diremos que a forma e a função do órgão
é que decidirão a respeito da atividade e passividade da meta pulsional.
A transformação do conteúdo de uma pulsão em seu oposto só pode ser
SE.64 observada no caso de conversão de amor em ódio.64 Como esses dois sentimentos
157
OBRAS PSICOLÓGICAS DE Freud
O caso de amor e ódio torna-se de especial interesse para nós, porque não
se encaixa em nossa explanação das pulsões. Não duvidamos de que exista a mais
estreita relação entre a vida sexual e esses dois sentimentos opostos. Porém, se
tivéssemos de considerar o amar como sendo apenas um tipo de pulsão parcial
figurando lado a lado com as outras pulsões parciais também pertencentes à se-
xualidade, com razão teríamos dificuldades em aceitar essa idéia. Tendemos
muito mais a enxergar no amar a expressão da vertente sexual inteira. Entretanto,
isso não nos forneceria uma explicação satisfatória e ainda nos deixaria sem saber
como deveríamos conceber um conteúdo oposto dessa vertente sexual.
O amar admite não apenas um par de opostos, mas três. Além da oposição
entre amar — odiar, existe outra, amar — ser amado, e, ademais, se tomarmos o
amor e o ódio em conjunto, poderemos opô-los ao estado de indiferença. Desses
três pares de opostos, o segundo par, amar — ser amado, corresponde ao redire-
cionamento da atividade para a passividade, e, tal como ocorreu com a pulsão de
olhar, também este pode ser remetido a uma situação básica anterior. Essa situa-
ção básica é: amar-se a si mesmo, o que é a característica distintiva do narcisismo.
Assim, dependendo de o objeto ou o sujeito ter sido trocado por um elemento
estranho [fremd], teremos como resultante uma vertente [Strebung] amorosa66 T.66
ativa dirigida à meta ou uma vertente amorosa passiva de ser amado, e esta última
se situa próximo ao narcisismo.
Talvez possamos compreender melhor os diversos pares de oposições do
amar se nos lembrarmos de que toda a vida psíquica é dominada por três polarida-
des, as oposições entre:
importa o esforço que se faça para tal. No que tange à polaridade prazer — des-
prazer, está aderida a uma seqüência de sensações, cuja importância é fundamen-
SE.68 tal para as decisões de nossas ações (vontade), e já o frisamos anteriormente.68
Quanto à oposição ativo — passivo, não deve ser confundida com a do Eu-sujeito
— exterior-objeto. O Eu recebe estímulos do mundo externo e comporta-se de
maneira passiva com o exterior e de maneira ativa quando reage a esses estímulos;
entretanto, na verdade são as pulsões que forçam o Eu a uma atividade toda espe-
cial em relação ao mundo externo, de modo que poderíamos dizer que a questão
essencial é: o Eu-sujeito é passivo em relação aos estímulos externos e ativo por
meio de suas próprias pulsões. Essa oposição ativo — passivo mais tarde se funde
com a do masculino — feminino, embora antes dessa fusão a oposição masculino
— feminino não tivesse nenhum significado psicológico. Apesar de o amalga-
mento da atividade com a masculinidade e da passividade com a feminilidade
apresentar-se como um fato biológico, ele não é nem tão amplo nem tão exclusivo
SE.69 como estamos inclinados a pensar.69
As três polaridades psíquicas estabelecem entre si as mais significativas cone-
xões. Há uma situação psíquica inicial, na qual duas das polaridades coincidem.
Bem no início da vida psíquica, o Eu se encontra totalmente tomado por pulsões
T.70 [triebbesetzt]70 e em parte é capaz de satisfazer tais pulsões em si mesmo. Denomina-
mos esse estado de narcisismo e para designar essa possibilidade de satisfação
F.71/SE.72 empregamos o termo “auto-erótico”.71, 72 O mundo externo não está, neste
momento, investido de interesse (falando de modo geral); para a satisfação pulsio-
nal ele é irrelevante. Portanto, neste momento, o Eu-sujeito coincide com tudo
aquilo que é prazeroso e o mundo externo, com tudo o que é indiferente (e even-
tualmente, como fonte de estímulos, com o que é desprazeroso). Se definíssemos
o amar como a relação do Eu com suas fontes de prazer, então a situação em que
ele só ama a si mesmo e permanece indiferente para com o mundo reproduziria o
SE.73 primeiro tipo das relações de polaridade nas quais havíamos situado o “amar”.73
Na medida em que é auto-erótico, o Eu não necessita do mundo externo.
Entretanto, devido às experiências das pulsões de autoconservação, o Eu passa a
receber objetos do mundo externo. Por outro lado, também não pode evitar, por
um tempo, perceber as moções pulsionais internas como desprazerosas. Assim,
sob o domínio do princípio do prazer, ocorrerá nele agora outro desenvolvi-
mento. Na medida em que os objetos externos oferecidos sejam fontes de prazer,
eles são recolhidos pelo Eu, que os introjeta em si (de acordo com a expressão de
SE.74 Ferenczi [1909]74), e, inversamente, tudo aquilo que em seu próprio interior seja
SE.75 motivo de desprazer75 o Eu expele de si.
159
OBRAS PSICOLÓGICAS DE Freud
Assim, desse Eu-real inicial, que pôde diferenciar76 o interno do externo a SE.76
mencionado odiar.
Conforme já vimos, é por meio das pulsões de autoconservação que pri-
meiramente o objeto do mundo externo é trazido ao Eu. O mundo externo é per-
cebido como estranho [fremd] e como um aportador de afluxos de estímulos,78 e T.78
mento86 indiferente ao dano ou à aniquilação que possa causar ao objeto. Essa T.86
forma e etapa preliminar do amor quase não se distingue do ódio em sua conduta
para com o objeto. Só com a instauração da organização genital é que o amor se
torna o oposto do ódio.
Enquanto relação com o objeto, o ódio é mais antigo que o amor; ele surge
do repúdio primordial do Eu narcísico ao mundo exterior aportador de estímu-
los. O ódio é uma exteriorização da reação de desprazer provocada pelos objetos e
mantém sempre um estreito vínculo com as pulsões de conservação do Eu; desse
modo as pulsões do Eu e as pulsões sexuais podem facilmente repetir entre si a
oposição existente entre o odiar e o amar. Quando as pulsões do Eu passam a ter o
domínio sobre a função sexual, tal como ocorre na etapa da organização anal-sá-
dica, elas também transmitem à meta pulsional as características do ódio.
Assim, a partir da história de como surgem e se desenvolvem as relações do
amor, fica claro que este se manifesta com freqüência de modo “ambivalente”, isto
é, acompanhado de moções de ódio contra o mesmo objeto.87 Esse ódio mesclado SE.87
são do amar até a etapa preliminar sádica, de modo que o odiar adquire então um
caráter erótico que assegura a continuidade de uma relação de amor.
A terceira relação de opostos que encontramos no amar, a transformação
SE.88 do amar em ser amado,88 corresponde aos efeitos da polaridade entre atividade e
passividade e responde aos mesmos critérios que utilizamos nos casos da pulsão de
SE.89 olhar e do sadismo.89
Do todo que foi apresentado, podemos então destacar que os destinos da pulsão
consistem essencialmente em que as moções pulsionais estão submetidas às influên-
cias das três grandes polaridades que dominam a vida psíquica. Dessas três polarida-
des, poderíamos caracterizar a da atividade — passividade como a biológica, a do
Eu — mundo exterior como a real e, por fim, a de prazer — desprazer como a eco-
nômica.
Quanto ao destino da pulsão denominado recalque, será objeto de uma
SE.90 investigação em seguida.90
NOTAS
F: notas de Freud
SE: notas da Standard Edition
T: notas do tradutor brasileiro
C: notas dos colaboradores brasileiros
■ 3 Reiz, “estímulo”; Sign.: também “encanto” ou “irritação”; Conot.: está implí- T.3
cita uma relação de intensidades e qualidades; pode referir-se à leve comichão que des-
perta o apetite, atrai e encanta (provocante, instigante, irresistível) ou ao excesso de
estimulação, dolorido e irritativo (provocativo, espicaçante); ver DCAF.
■ 5 Obs.: Essa correlação está presente também no idioma alemão, no qual T.5
ambos os termos podem ser equivalentes na acepção do que impele ou atrai, do que
coloca em movimento; ver “Comentários do Editor Brasileiro” e DCAF.
T.11 ■ 11 drängend, “que exerce uma pressão constante”; Alt.: “pressionante”; Conot.:
atropela, empurra, força passagem. Obs. 1: Freud combina o verbo drängen, “forçar
passagem/empurrar” com os prefixos ver-, nach- ou vor- para descrever os movimentos
de “empurrar forçando” na direção do consciente ou do inconsciente, como, por
exemplo o termo “recalque”, Verdrängung; ver a nota T.21 sobre o substantivo Drang;
ver também DCAF.
T.12 ■ 12 Obs.: Aqui as carências pulsionais são manifestações afetivas psíquicas per-
ceptíveis dos estímulos pulsionais gerados nas fontes somáticas, orgânicas, e percebi-
dos e traduzidos em qualidade de afeto e imagens.
SE.13 ■ 13 [Cf. mais adiante, pp. 157-8. Além disso, Freud retoma o tema no artigo “A
Negativa” (1925b, p. 374 e seg., Studienausgabe, vol. 3), e no Capítulo I de O
Mal-Estar na Cultura (1930a), Studienausgabe, vol. 9, p. 197 e segs.]
T.17 ■ 17 Obs.: Aqui aparece a perspectiva lamarckista da época, adotada também por
Freud, de que as características da espécie são incorporadas e se transformam em dis-
posições hereditárias por meio das experiêncais individuais, em vez de a pulsão se tor-
nar disposição hereditária pela via da seleção natural dos mais aptos (Darwin). A idéia
de que as pulsões seriam depósitos ou precipitados da história filogenética da espécie é
recorrente na obra de Freud.
F: Freud SE: Standard Edition T: tradutor brasileiro C: colaboradores brasileiros NOTAS
165
■ 18 [Veremos que dois princípios estão envolvidos aqui. Um deles é o “princípio SE.18
de constância” (cf. nota SE.10 e Studienausgabe, vol. 3, p. 217), que torna a ser enunci-
ado em Além do Princípio do Prazer (1920g), Capítulo I (Studienausgabe, vol. 3, p.
219) nos seguintes termos: “(…) a hipótese de que o aparelho psíquico procura man-
ter no nível mais baixo possível, ou ao menos constante, a quantidade de excitação pre-
sente nele”. Para esse princípio, Freud adotou, no mesmo trabalho (p. 264), a expres-
são “princípio de nirvana”. O segundo princípio implicado é o “princípio do prazer”,
que também volta a ser formulado no texto acima, no início do parágrafo ao qual per-
tence esta nota. Esse segundo princípio também é formulado de novo em Além do
Princípio do Prazer (p. 217): “Na teoria psicanalítica, admitimos sem hesitar que o
curso dos processos psíquicos é automaticamente regulado pelo princípio do prazer,
isto é, acreditamos que esse curso é, cada vez, colocado em movimento por uma tensão
desprazerosa e toma então determinada direção, de modo que seu resultado final coin-
cide com uma redução dessa tensão, portanto, com uma evitação de desprazer ou pro-
dução de prazer”. Freud parece ter suposto, no início, que esses princípios possuíam
uma estreita relação entre si ou que eram até idênticos. Assim, em seu “Projeto” de
1895 (1950a, Parte I, Seção 8, “A consciência”), escreve: “Desde que sabemos de uma
tendência da vida psíquica de evitar desprazer, estamos tentados a identificá-la com a
tendência primária para a inércia [isto é, a tendência a evitar excitação]”. Um ponto de
vista semelhante é adotado no Capítulo VII, Seção E, de A Interpretação dos Sonhos
(1900a), Studienausgabe, vol. 2, p. 568. Na passagem a que se refere esta nota, no
entanto, parece duvidar de que a correlação entre ambos os princípios seja completa.
Essa dúvida é ampliada em “Além do Princípio do Prazer” (pp. 217 e seg., 271), e exa-
minada mais extensamente em “O Problema Econômico do Masoquismo” (1924c,
Studienausgabe, vol. 3, p. 343 e segs.). Ali Freud afirma que os dois princípios não
podem ser idênticos, já que indubitavelmente há estados de tensão crescente prazero-
sos (por exemplo, a excitação sexual), e prossegue sugerindo (como já havia insinuado
nas duas passagens de “Além do Princípio do Prazer” às quais acabamos de aludir) que
a qualidade prazerosa ou desprazerosa de um estado pode ser relativa à característica
temporal (ou ritmo) das mudanças na quantidade de excitação presente. Conclui que,
em todo o caso, os dois princípios não podem ser considerados idênticos: o princípio
do prazer é uma modificação do princípio de nirvana. Este último deve ser atribuído à
“pulsão de morte”, e sua modificação em princípio do prazer se deve à influência da
“pulsão de vida” ou libido.]
■ 19 Grenzbegriff, “conceito-limite”; ver “Comentários do Editor Brasileiro”. T.19
considerarmos que em alemão a pulsão se refere a essa força impelente que se expressa
na variedade de sentidos mencionada nos “Comentários do Editor Brasileiro”; assim,
a pulsão se desenvolve e circula, bem como percorre ciclos de vida; ver DCAF.
■ 28 [Freud dá dois exemplos desse caso na análise do “Pequeno Hans” (1909b), SE.28
Studienausgabe, vol. 8, pp. 93 e 107-8.]
■ 31 Obs.: A referência de Freud à quimica pulsional é recorrente, mas sempre res- T.31
trita ao processo somático; muito raramente, como em “Além do Princípio do Prazer”
(1920), Freud ultrapassa a esfera do somático e aborda as leis ou princípios pulsionais
que governariam a química orgânica, especificamente as pulsões de vida e de morte,
quando o termo “pulsão” é utilizado na acepção de leis ou princípios da natureza; ver
DCAF.
■ 46 Motive, “forças motivacionais”; Alt.: “motivos”. Obs.: Não se trata de “moti- T.46
vos” na acepção de “razões” ou “justificativas”, mas de “temáticas”, conteúdos”; certas
pulsões opostas e ancoradas em certos temas se contrapõem ao avanço de outras, con-
figurando-se aí um conflito pulsional.
■ 50 [Mesmo que o sentido geral dessas passagens esteja claro, pode haver alguma SE.50
confusão no emprego da palavra “sujeito”. Como regra geral, “sujeito” é usado para
designar a pessoa na qual se origina uma pulsão (ou outro estado psíquico), e “objeto”,
a pessoa ou coisa à qual ela está dirigida. Aqui, no entanto, “sujeito” parece designar a
pessoa que desempenha o papel ativo nessa relação — o agente. A palavra é usada mais
claramente neste segundo sentido na passagem paralela na p. 154, bem como em
outras partes do artigo, mais adiante.]
■ 63 Freud aqui chama a Schaulust e a Zeigelust de “pulsões” (Triebe); ver nota 47. T.63
■ 64 [Antes da edição de 1924 constava aqui “na conversão de amor e ódio”.] SE.64
■ 70 triebbesetzt, “tomado por pulsões”; Alt.: “investido de pulsões”. Obs.: o termo SE.70
Besetzung pede algumas observações: “investimento”; Alt.: “catexia”, “carga de investi-
mento”, “investimento de carga”; sign.: o verbo besetzen refere-se à ação de “carregar”,
“preencher”, “ocupar”, “colocar em”, “aplicar sobre”; conot.: descreve um movimento
flexível e reversível de “ocupar” (eventualmente “invadir”) e “preencher”. Obs.: Os
conteúdos investidos podem ser energia, estímulos, pulsões, desejos e o resultado do
investimento geralmente é o de ativar as representações correspondenes, isto é, carre-
gá-las de energia e torná-las conscientes; ver DCAF..
■ 71 Uma parte das pulsões sexuais é, como sabemos, capaz dessa satisfação F.71
auto-erótica e, portanto, apta a servir de veículo para o desenvolvimento [no texto
acima] sob o domínio do princípio do prazer [do “Eu-real” originário até o “Eu-pra-
zer”] que estamos em vias de descrever. As pulsões sexuais, que desde o início recla-
mam um objeto, assim como as necessidades das pulsões do Eu, que nunca se satisfa-
zem de maneira auto-erótica, naturalmente perturbam esse estado [o estado narcísico
primordial] e preparam os progressos posteriores. Por certo, o estado narcísico primor-
dial não poderia seguir aquele desenvolvimento se cada ser vivo não passasse por um
período de desamparo e de cuidado, durante o qual suas necessidades urgentes teriam
sido satisfeitas por agentes externos, e com isso seu desenvolvimento teria sido bar-
rado.
■ 72 [Esta nota, muito condensada, teria sido mais fácil de compreender se tivesse SE.72
sido colocada dois ou três parágrafos adiante. Talvez possamos ampliá-la da seguinte
maneira: Em suas “Formulações sobre os Dois Princípios do Acontecer Psíquico”
(1911b, atrás, p. 21), Freud havia introduzido a idéia da transformação de um precoce
“Eu-prazer” em um “Eu-realidade”. Na passagem seguinte do presente texto, sustenta
que, na verdade, há um Eu-realidade inicial, mais antigo ainda. Esse “Eu-realidade”
inicial, em vez de converter-se diretamente no “Eu-real” definitivo, foi substituído, sob
NOTAS F: Freud SE: Standard Edition T: tradutor brasileiro C: colaboradores brasileiros
172
fechado “em outubro de 1914” — portanto, alguns meses antes de Freud ter escrito o
presente artigo. Cf. também “Suplemento Metapsicológico à Teoria dos Sonhos”
(1915), Studienausgabe, vol. 3, p. 203.]
■ 85 [Cf. “A Disposição para a Neurose Obsessiva” (1913i).] SE.85
■ 89 [A relação entre amor e ódio é tratada posteriormente por Freud, à luz de sua SE.89
hipótese da pulsão de morte, no capítulo IV de O Eu e o Isso (1923b), Studienausgabe,
vol. 3, p. 307.]
■ 90 [Cf. “O Recalque” (1915).] SE.90
Freud
O Recalque
1915
DIE VERDRÄNGUNG
Edições alemãs:
1915 • Int. Z. ärztl. Psychoanal., 3 (3), 129-38.
1918 • S. K. S. N., 4, 279-93. (1922, 2ª ed.)
1924 • G. S., 5, 466-79.
1924 • Technik und Metapsychol., 188-201.
1931 • Theoretische Schriften, 83-97.
1946 • G. W., 10, 248-61.