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Teologia histórica

Uma introdução à História do Pensamento Cristão


Uma introdução à História do Pensamento Cristão
AlisterE.McGrath
SUMÁRIO

Como usar este livro ............................................................ 13


Introdução ............................................................................. 15
Capítulo 1 –O Período Patrístico, c. 100-451 d.0 .................. 31
Uma visão geral do período patrístico .................................. 31
O esclarecimento de alguns termos ...................................... 38
O período patrístico ............................................................... 38
Patrístico ............................................................................... 38
Patrologia .............................................................................. 38
Principais teólogos ................................................................ 38
Justino Mártir (c. 100 - c. 165) .............................................. 38
Irineu de Lião (c. 130 - e. 200) ............................................. 39
Orgerres (c. 185 - c. 254) ...................................................... 39
Tertuliano (c. 160 - c. 225) ................................................... 39
Atanásio (c. 296 - c. 373) ...................................................... 40
Agostinho de Hipona (354-430) ............................................ 40
Principais desenvoluções teológicas .....................................
Estudo de caso 1.2 – A controvérsia ariana:
a divindade de Cristo ........................................................ 59
Justino Mártir .................................................................... 60
Orígenes........................................................................... 61
Ário ................................................................................... 62
Atanásio ........................................................................... 64 Estudo de
caso 1.3 – A escola cristológica alexandrina:
a controvérsia apolinária .................................................. 65
Cirilo de Alexandria .......................................................... 66 1.3.1 –
Apolinário de Lacaficéia: Acerca da mente de Cristo 67
Gregório de Nazianzo ..................................................... 68
1.3.2 – Gregório de Nazianzo: Acerca da encarnação ..... 68 Estudo de
caso 1.4 – A escola cristológica antioquina:
a controvérsia nestoriana ................................................. 70
Teodoro de Mopsuéstía ................................................... 71
Nestório ........................................................................... 72
1.4.1 – Um relato contemporâneo das idéias de Nestório 72 1.4.2 – Cirilo de
Alexandria: Acerca da cristologia
antioquina ........................................................................ 75
Cinto de Alexandria .......................................................... 76
Estudo de caso 1.5 – A doutrina da Trindade .................. 76
Basilio de Cesaréia .......................................................... 78
Gregório de Nissa ............................................................ 78
Agostinho de Hipona ........................................................ 79
Modalismo ........................................................................
A natureza da graça ............................................................. 98
A base da salvação .............................................................. 99
1.7.2 – Agostinho: Acerca da natureza e da graça............... 100
Estudo de caso 1.8 – Fé e Filosofia ..................................... 101
Justino Mártir ....................................................................... 103
1.8.1 – Justino Mártir: Acerca da fé e da Filosofia ............... 104
Clemente de Alexandria ........................................................................................... 104 1.8.2 –
Clemente de Alexandria: Acerca da fé e da
filosofia ................................................................................. 105
Tertuliano ............................................................................. 106
1.8.3 – Tertuliano: Acerca da fé e da filosofia ...................... 106
Agostinho de Hipona.............................................................................................. 107
1.8.4 – Agostinho: Acerca da fé e da filosofia ...................... 108
Capítulo 2 – A Idade Média e o Renascimento, c. 500-1500 111
O nascimento da Idade Média.............................................. 111
As origens do Monasticismo ....................................................................... 112
 desenvolvimento do Cristianismo celta 113
 esclarecimento de alguns termos 118
A Idade Média ....................................................................................................... 118
 Renascimento . . . . 120
Escolasticismo...................................................................... 121
Realismo e Nominalismo .............................................................................
O desenvolvimento da teologia da graça ............................. 138
O papel de Maria no plano da salvação ...................................... 138
A volta direta às fontes da teologia cristã ............................. 138
A crítica à tradução Vulgata das Escrituras ......................... 139
A teologia bizantina .............................................................. 140
Nomes, Palavras e expressões mais relevantes .................. 144
Perguntas (2) ....................................................................... 144 Estudo de caso
2.1 –Argumentos em favor da existência de Deus 144
Anselmo de Canterbury....................................................................... 145
2.1.1 – Anselmo de Canterbury: Acerca da existência
de Deus .................................................................................................... 146
2.1.2 – A réplica de Grunho ao argumento de Anselmo ....... 147
Tomás de Aquino ...................................................................................... 148
Estudo de caso 2.2 – Conceitos de expiação ...................... 151
Anselmo de Canterbury .......................................................................... 152
Tomás de Aquino ...................................................................................... 154
2.2.1 – Tomás de Aquino: Acerca do pagamento realizado
por Cristo ..................................................... 155
Pedro Abelardo ......................................................................................... 156
Estudo de caso 2.3 – A discussão sobre os sacramentos ... 157
Hugo de São Vitor ........................................................................................ 158 2.3.1 – Hugo
de São Vitor: Acerca da natureza de um
sacramento ...................................................... 158 2.3.2 – Pedro
Lombardo: Acerca da natureza dos
sacramentos ......................................................
Calvino .......................................................................................... 183
Huldrych Zwingli ......................................................................... 185
Principais desenvoluções teológicas ............................. 185
As fontes da teologia ..................................................... 185
A doutrina da graça ................................................................... 186
A doutrina dos sacramentos................................................... 187
A doutrina da igreja ....................................................... 187
Movimentos Pós-Reforma ...................................................... 187
A ortodoxia protestante ................................................. 187
Catolicismo romano ..................................................................... 191
Puritanismo .................................................................................. 193
Pietismo......................................................................... 194
Nomes, palavras e expressões mais relevantes ........... 195
Perguntas (3) ................................................................ 195
Estudo de caso 3.1 –A Bíblia e a tradição na Reforma . 196
O cânon das Escrituras............................................................ 196
A autoridade das Escrituras .................................................. 198
O papel da tradição ................................................................... 199
A posição católica .......................................................................... 202 Estudo de caso 3.2
– A justificação pela fé: Marinho Lutero e
o Concílio de Trento .................................................................... 203
Maninho Lutem .......................................................................... 204
3.4.1 – Marinho Lutero: Acerca da natureza da igreja ......... 221
A Reforma radical.......................................................................... 222
João Calvino ............................................................................... 224
3.4.2 – João Calvino e as características distintivas da
igreja .................................................................................. 226 Estudo de caso
3.5 – Teologia e astronomia: as discussões de
Nicolau Copérnico e Galileu Galilei........................................... 227
Capítulo 4 – Do Período Moderno, 1750 – até o presente . 233
 crescimento da indiferença pela religião na Europa . 233
 Cristianismo na América do Norte: o Grande Despertar e a
revolução norte-americana ......................................................... 235
O divisor de águas na Europa: a Revolução Francesa ........ 237
O Iluminismo ................................................................................... 238
 crítica do Iluminismo à teologia cristã: uma visão geral 240
 crítica do Iluminismo à teologia cristã: questões específicas 242
A possibilidade de milagres ......................................................... 242
O conceito de revelação.................................................................. 243
A doutrina do pecado original ........................................................ 243
O problema do mal ........................................................................... 244
0 status e a interpretação das Escrituras ................................... 244
A identidade e o significado de Jesus Cristo ............................. 245
Os movimentos teológicos ocidentais desde o Iluminismo . 245
Romanismo ..................................................................................... 246
Nomes, palavras e expressões mais revelantes ........... 291
Perguntas (4) ............................................................... 291
Estudo de caso 4.1 — Em busca do Jesus histórico ...... 291
A primeira busca pelo Jesus histórico .............................. 292
Gotthold Ephraim Lessing ..................................................... 293
A critica à busca, 1890-1910 .............................................. 294
Albert Schweitzer ................................................................... 294
Martin KãhleT ......................................................................... 296
O afastamento da História: Rudolf Bultmann.................. 298
Rudolf Bultmann..................................................................... 298
A nova busca pelo Jesus histórico .................................... 299
A terceira busca ..................................................................... 302
Estudo de caso 4.2 — A base e a natureza da salvação 303
A relação entre a cristologia e a soteriologia ................ 303
Interpretações da obra de Cristo ....................................... 304
A cruz: constitutiva ou ilustrativa? ............................... 314
A natureza da salvação ..................................................... 316
Conclusão ............................................................................... 318
Estudo de caso 4.3 — A discussão acerca da ressurreição 318
O Iluminismo: a ressurreição como um anticlímax ........ 318
Gotthod Ephraim Lessing .................................................. 319
David Friedrich Strauss: a ressurreição como mito ...... 320 Rudolf Bultmann a
ressurreição como um acontecimento
na experiência dos discípulos ...................................... 321
Rodolf Bultmann .................................................................. 322 Karl Barth: a
ressurreição como um acontecimento
histórico além da investigação crítica ........................... 322
Karl Barth .............................................................................. 323 Wolfhart
Pannenberg: a ressurreição como um
acontecimento histórico aberto à investigação crítica 324
Wolfiran Pannenberg .......................................................... 324
Emst Troeltsch .................................................................... 325 Estudo de caso 4.4
— A Trindade e o pensamento do século 20 326
4.4.1 — F. D. E. Sebieiemacher: Acerca da Trindade .. 327
Karl Barth ............................................................................. 328
Karl Rahner .......................................................................... 330
1. ...............................................................................................................................Cristo está presente
sacramentalmente ...................................................................... 334
2. ...............................................................................................................................Cristo presente por
meio da Palavra .......................................................................... 335
3. ...............................................................................................................................Cristo está presente
por meio do Espírito ................................................................... 337
O Vaticano 11 e a igreja ............................................................ 338
1. ...............................................................................................................................A igreja como
comunhão .................................................................................... 339
2. ...............................................................................................................................A igreja como povo
de Deus ........................................................................................ 340
3. .............................................................................................................. A igreja como
comunidade carismática .................................................................. 341 Estudo de caso
4.6 – Os atributos de Deus na teologia de
processo ............................................................................. 341 Estudo de caso
4.7 – A crítica feminista à teologia cristã
tradicional ........................................................................... 344
Estudo de caso 4.8 – As abordagens cristãs às outras religiões 349
A abordagem particularista ............................................................. 351
A abordagem inclusiva .................................................................. 352
A abordagem pluralista .................................................................... 353 Estudo de caso
4.9 – O método teolOgics, no período moderno 355
O uso da experiência: Schleiermacher e Tillich ...................... 355
F. D. E. Schleiermacher................................................................... 355
Paul Tillich .......................................................................... 356
4.9.1 – Paul Tillich: Acerca da correlação ........................... 357
COMO USAR ESTE LIVRO

Este livro visa a iniciá-lo na Teologia Histórica como um assunto impor-rame e


interessante. Também é um assunto amplo; para lhe fazer justiça, seriam precisos
pelo menos cinco volumes extensos. Este livro tem por objetivo condensar o
maior número possível de infomitações, úteis em um único volume usando
abordagens testadas e aprovadas em salas de aula da Europa, América do Norte e
Austrália. Parte do conteúdo desta obra é proveniente do best seliter Christian
Theology: An Irinvoluction, que foi reconfigurado como propósito específico de
iniciar os alunos na disciplina da Teologia Histórica. Apesar de uma boa parte do
conteúdo ser nova, a abordagem prática e partes do texto anterior foram
mantidas.

Ao entender o princípio norteados por trás deste livro você poderá aproveitá-lo melhor.
O princípio em questão é o da atenção seletiva que parte do pressu-posto de que
você não tem tempo de se familiarizar com todos os aspectos da história do
pensamento cristão, mas deseja ter um conhecimento geral dos seus elementos mais
importantes. A abordagem adotada consiste em começar pintan-do uma cena com
pinceladas amplas e, depois, preencher os detalhes de cercam-nadas áreas Ao
concluir a leitora deste livro, você terá, portanto, uma compreensão geral
adequada do desenvolvimento da teologia cristã. Apesar de seu caráter sucinto, a
obra inclui um grande número de informações – bem mais do que normalmente se
pode encontrar em introduções do gênero.

Este livro começa com uma Introdução que procura explicar o que é Teologia
Histórica, como ela se encaixa no estudo da teologia em geral, e por que é uma
disciplina a ser estudada. Recomendamos fortemente que você leia essa
introdução antes de prosseguir com a leitura.
Costuma-se dividir a história do pensamento cristão em quatro perío-dos
amplos:

Capítulo 1 O Período Patrístico, c. 100-451


Capítulo 2 A Idade Média e o Renascimento, c. 500 – 1500 Capítulo 3 Os
Períodos da Reforma e Pós-Reforma, 1500 – 1750 Capítulo 4 O Período
Moderno, 1750 – até o presente

Essas divisões são um tanto arbitrárias; mas têm se mostrado úteis num
contexto pedagógico e, portanto, foram mantidos. Cada capítulo é
constituído de duas seções principais:

1. Um resumo geral do período em questão que identifica o contexto histó-


rico do período e suas principais desenvoluções teológicas, teólogos, escolas
de pensamentos e movimentos teológicos de destaque. Também apresenta um
vocabulário teológico básico necessário para que você compreenda outras
obras teológicas. Convém ler esse resumo geral antes de exarturar os estudos
de caso da segunda seção. Caso você precise de um resumo sucinto da
história do pensamento cristão, recomendamos que você deixe os estudos
de caso para um segundo momento.
2. Uma série de estudos de caso individuais que examinam alguns dos
temas do período em questão de maneira bem mais detalhada. Com isso,
você pode complementara visão geral do período com um conhecimento
específico acerca de alguns dos seus temas mais expressivos. Em algumas
ocasiões, os estudos de caso serão consumidos essencialmente de textos,
permitindo que você tenha acesso a fontes primárias importantes. Quando isso
ocorrer, você receberá orientações sobre como ler esses textos e aproveita tos
ao máximo. Outros estudos de caso podem ser apresentados na forma de
sinopses gerais visando condensar o maior número possível de informações
num espaço limitado.

Se você estiver usando este livro para estudar Teologia Histórica sozinho,
é recomendável que você leia os capítulos na seqüência em que são apre-
sentados. Cada parte desta obra e desenvolvida com base no conteúdo
das partes anteriores. Assim, o texto sobre o período medieval pressupõe
que você está familiarizado com o período patrístico; o texto sobre o século
16 pressupõe que você está a pardo período medieval, e assim por diante. No
entanto, se você estiver usando este livro como parte de um curso, pode
trabalhar facilmente com as seções da obra relacionadas ao material
adotado por seu professor. Em caso de dúvida, peça orientação.
Ao se deparar com termos desconhecidos, você tem duas opções.
Primeira, procure usar o glossário no final desta obra, no qual você
poderá encontrar uma definição breve do termo e a indicação de uma
discussão do conteúdo relevante do texto. Ou então, procure usar o
índice, que lhe dará uma análise mais completa dos textos em que você
encontrará as principais discussões desta obra.
Por fim, podemos lhe garantir que tudo neste livro — tanto o conteúdo
quanto a organização — foi testado por alunos e leitores da Austrália, Canadá,
Reino Unido e Estados Unidos, visando tomar o texto absolutamente
acessível. No entanto, o autor e a editora estão abertas para sugestões de
professores e alunos que poderão ser incluídas em edições posteriores da
obra.
INTRODUÇÃO

Esta obra tem por objetivo servir de introdução à Teologia Histórica. Assim, é
importante situar essa disciplina e entender sua relevância dentro da teologia como
um todo. Podemos começar considerando as origens da teologia como disciplina
acadêmica distinta e, deste modo, compreender seus princi-pais componentes.

O CONCE.E1'O DE ' -IEOLMU": UMA BREVE INTRODUÇÃO


A palavra `teologia" é constituída de dois termos gregos: theos (Deus) e logos
(palavra). Assim, a teologia é a "discussão sobre Deus", assim como -biologia" é
a discussão sobre a vida (do grego bios). Se existe somente um Deus e se esse
Deus é o "Deus dos cristãos" (tomando emprestada uma expres-são de Ticrituliarro,
um escritor do século 2°), então a natureza e o escopo da teologia são
relativamente bem definidos: a teologia é a reflexão sobre o Deus que os cristãos
culmatin, e adoram.
Ainda que não seja um termo bíblico, a palavra "teologia" começou a ser usada
ocasionalmente, no início do período patrístico para se referir a, pelo menos,
alguns aspectos das crenças cristãs. Assim, no final do século 2-, Clemente de
Alexandria contrastou em seus escritos a teologia cristã com a mitologia dos
escritores pagãos, entendendo claramente que o termo "teolo-gia" se referia a
"asseieóes da verdade feitas pelos cristãos acerca de Deus", que podiam ser
comparadas com as histórias espúrias da mitologia pagã. Ou-tros escritores do
período patrístico, como Eusébio de Cessarás, também usa-ram o termo para se
referira algo como "a visão cristã de Deus". No entanto, ao que parece, o termo
não em usado para se referir ao pensamento cristão como um todo, mas apenas
aos aspectos relacionados diretamente a Deus.

Todavia, o Cristianismo surgiu num mundo politeísta, no qual a crença na


existência de muitos deuses era algo comum. Tudo indica que parte do trabalho
dos primeiros autores cristãos foi distinguir o deus cristão dos outros deuses da
esfera religiosa. A certa altura, foi preciso perguntar de que deus os cristãos estavam
falando e qual era a relação do mesmo com o "Deus de Abraão, [saque e Jacó-, que
ocupa uma posição preeminente no Antigo Testamento.
Ao que parece, a doutrinada Trindade foi, pelo menos em parte, uma resposta
à pressão para identificar o deus do qual os teólogos cristãos estavam falando.
Como passar do tempo, o politeístra, começou a ser considerado obsoleto e
um tanto primitivo. A suposição de que havia somente um, deus e de que esse
deus era idêntico ao deus cristão se, tomou tão amplamente difundida que,
no início da Idade Média na Europa, já se tratava de uma verdade óbvia.
Assim, ao desenvolver sua argumentação em favor da existência de Deus,
Tomás de Aquino não considerou que valesse a pena demonstra' o deus
cuja existência ele havia provado em o "deus dos cristãos": afinal, que outro
deus havia? Provar a existência de deus era, por definição, pmvw a existência
do deus cristão.
Assim, a teologia era considerada a análise sistemática da natureza, pro-
pósitos e atividade de Deus. Em seu cerne se encontrava a convicção que
era uma tentativa, ainda que inadequada, de falar sobre um ser divino
distinto dos seres humanos. Apesar de a "teologia- ser entendida,
inicialmente, como "a doutrina de Deus", o termo adquiriu um significado
sutilmente novo nos séculos 12 e 13 com o início do desenvolvimento da
Universidade de Paris. Era preciso encontrar um nome para o estudo
sistemático da fé cristã em âmbito universitário. Sob a influência de
escritores parisienses como Pedro Abelardo e Gilbert dela Porrée, a
palavra latina theologia passou a significar "a disciplina do saber sugando",
abrangendo a totalidade da doutrina cristã, e não apenas a doutrina de Deus.

Não há dúvidas de que a introdução da teologia nos círculos universitários nos


séculos 12 e 13 deu novo estímulo à sistematização dessa disciplina.
Em geral, as universidades medievais - como de Paris, Bolonha e Oxford
-tinham quatro faculdades: ciências, medicina, direito e teologia. A
faculdade de ciências era considerada o nível inicial que qualificava os
alunos para os estudos mais avançados das outras três "faculdades
superiores". Esse padrão geral persistiu até o século 16, como pode ser
observado na experiência educacional de dois teólogos importantes desse
período. Martinho Lutem começou estudando ciências na Universidade de
Erflut antes de ingressar na Faculdade Superior de Teologia. João Calvino
começou sua vida universitária estudando ciências na Universidade de Paris,
antes de prosseguir com seus estudos na Universidade de Orleturs. Em
decorrência dessa desenvolução, a teologia se es, tabeleceu como
componente importante do ensino superior nas universidades européias. Com
a fundação de um número cada vez maior de universidades na Europa
Ocidental, o estado acadêmico também se tomou mais difundido.
A princípio, o estado do Cristianismo na Europa Ocidental permaneceu
concentrado nas escolas ligadas às catedrais e mosteiros. A teologia
costumava ser considerada relevante para questões práticas como a oração
e a espiritualidade, e não uma disciplina teórica. No entanto, com a
fundação das universidades, o estudo acadêmico da fé cristã passou por uma
transição gradativa dos mosteiros e catedrais para o âmbito público. No século
13, a palavra "teologia" começou a ser amplamente utilizada na Universidade
de Paris para se referir à
discussão sistemática das convicções cristãs em geral, e não de crenças
acerca de Deus. O uso do termo com esse sentido pode ser observado de
maneira limitada em obras antigas como os escritos de Pedro Abelardo. No
entanto, a obra que costuma ser considerada de importância decisiva para a
definição do uso geral do termo foi publicada no século 13: a Sumula
Theologiae de Tomás de Aquino. Cada vez mais, a teologia passou a ser
vista como uma disciplina teórica, e não prática, apesar das reservas acerca
dessa mudança de visão.
Vários teólogos do início do século 13 como Bonaventura e Alexandre de
Hales se mostraram preocupados com as implicações de negligenciar o lado
prático da teologia. Contudo, a argumentação de Tomás de Aquino de que
a teologia era uma disciplina especulativa e teórica se tomou cada vez mais
acei-ta entre os teólogos. Essa abordagem assustou muitos escritores
espirituais medievais, como Thomas à Kempis, que a consideraram um
estímulo à espe-culação acerca de Deus e não à obediência a Deus. Na
época da Reforma, escritores como Maninho Lutem procuraram resgatar o
aspecto prático da teologia. A Academia de Genebra, fundada por João
Calvin em 1559, linha como objetivo inicial oferecera pastores uma educação
teológica voltada para as necessidades práticas do ministério na igreja.
Essa tradição de discutir a teologia com relação às questões práticas do
ministério cristão teria continui-dade em vários seminários e faculdades
protestantes. No entanto, apesar de reconhecerem que a teologia possuía
certas implicações práticas definidas nas áreas da espiritualidade e ética de
um modo geral, os escritores protestantes posteriores que atuaram dentro
de um contexto universitário voltaram à visão medieval da teologia como
disciplina teórica.

O avanço do Iluminismo durante o século 18, especialmente na Alema-nha,


levantou dúvidas sobre o lugar da teologia nas universidades. Escritores
iluministas argumentavam que a investigação acadêmica devia ser livre de
qualquer tipo de autoridade externa. A teologia era vista com reservas pelo
fato de se basear, supostamente, em "artigos de fé" como os dos credos
cristãos ou da Bíblia. Com isso, a teologia passou, cada vez mais, a ser
considerada uma disciplina obsoleta. Karst argumentou que as faculdades
de filosofia das uni-versidades se dedicavam a buscar a verdade, enquanto
outras faculdades (como as de teologia, medicina e direita) se dedicavam a
questões mais práti-cas, como a ética e a saúde. A filosofia se tomou a
disciplina que tratava das questões relacionadas à verdade; a continuidade da
faculdade de teologia den-tro das universidades teria que serjustificada de
alguma outra maneira.

Uma das justificativas mais fortes para a necessidade das faculdades de teologia
nas universidades foi apresentada no início do século 19 por E D. E.
Scbleiemacher, segundo o qual essa disciplina era essencial para o bem tanto da
igreja quanto do Estado no tocante à formação de um clero devidamente instruído.
Em sua obra Linef OutHue of the Study of Aeology [Um breve esboço do estudo
da teologia] (1811), Schleiermacher argumentou que a teologia apresentava três
elementos principais: a teologia filosófica (que identifica a "essência do
Cristianismo"); a Teologia Histórica (que trata da história da igreja a fim de
entender sua situação e necessidades atuais) e a teologia prática (que trata das -
técnicas" da liderança eclesiástica e sua práxis). Essa abordagem da teologia levou
suas credenciais acadêmicas a serem ligadas ao consentimento público de que em
importante a sociedade ter um eleito devidamente instruído. Essa suposição se
mostrou adequada para a Berlim do início do século 19, o contexto de
Sclileiconacher. Mas com o avanço do secularismo e do pluralismo no Ocidente, sua
validade passou a ser cada vez mais questionada.
Em países que adotaram uma abordagem fortemente secular, a teologia cristã foi
praticamente excluída do currículo universitário. A revolução francesa de 1789
levou a uma série de medidas criadas com o propósito de elimirim a teologia cristã
de todos os níveis do ensino público. A maioria das universidades mais antigas
da Austrália (como as Universidades de Sidnei e Melbourne) foi fundada sobre
alicerces extremamente seculares, excluindo a teologia por uma questão de
princípio. À medida que essas ideologias de caráter intensamente secular têm
perdido força, é possível encontrar cursos universitários de teologia ou com
elementos teológicos expressivos nas escolas superiores da Austrália.

No entanto, o que se pode ver com mais freqüência no Ocidente, especialmente


na América do Norte, é uma abordagem pluralista, e não secular. Nesse caso, a
posição distinta da teologia cristã na educação pública é questionada por privilegiar
uma religião em relação a outras. Um dos resultados dessa tendência é a
formação de "faculdades de religião" nas universidades públicas, nas quais várias
posições teológicas são igualmente aceitas. A teologia cristã pode, portanto, ser
lecionada dentro desse contexto, mas apenas como um aspecto dos estudos
religiosos em geral. Por esse motivo, os centros mais importantes de educação e
pesquisa teológica de hoje costumam ser encontrados em seminários, nos quais é
possível adotar uma abordagem mais comprometida com as questões dessa
disciplina.

Nas últimas décadas, a América do Norte e outras partes do mundo têm


testemunhado uma nova discussão sobre a função apropriada da teologia. O
estímulo inicial para essa discussão foi uma obra publicada por Edward Farley,
em 1983, com o título Theologia. The Fragnientaflon and Unity of Theotogicai
Education [Teologia: a fragmentação e unidade do ensino teológico]. Farley
argumentou que a teologia mudou seu sentido do significado clássico de "um
conhecimento sério das coisas divinas" para o domínio de técnicas diferentes e
desconexas. A teologia foi fragmentada num conjunto de disciplinas teóricas e
práticas não-relacionadas e perdeu toda a sua coerência. Não se trata mais de
uma disciplina unitária, mas de um conjunto de especialidades sem ligação entre
si. A discussão em andamento hoje é ainda mais ampla, tratando de questões
como a "arquitetura da teologia" - a relação, por exemplo, entre os estudos
bíblicos e a teologia sistemática, ou entre a teologia sistemática e a teologia
pastoral.

Tendo isso em mente, podemos agora explorar a arquitetura da teologia


considerando seus vários elementos antes de tratar da disciplina da Teologia
Histórica como um assunto independente.

A ARQUITETURA DA TEOLOGIA
O grande estudioso medieval Eficime, Gilson gostava de comparar os prin-
cipais sistemas da teologia escolástica a -catedrais da mente". Trata-sede uma
imagem poderosa que sugere permanência, solidez, organização e estimara —
qualidades extremamente valorizadas pelos escritores daquele período.
Talvez a imagem de uma grande catedral medieval que provoca a
admiração de grupos de turistas empunhando câmeras fotográficas não
seja tão apropriada nos dias de hoje; ao que parece, o máximo que muitos
professores universitários podem esperar hoje é uma paciência tolerante.
Mas o conceito de que a teologia possui uma estrutura continua sendo
importante. Isso porque a teologia é uma disciplina complexa que mante,
diversas áreas relacionadas numa aliança difícil. Nesta obra, concentraremos
nossa atenção na Teologia Histórica, a qual iremos explorar na próxima
seção. No entanto, convém apresentarmos antes alguns dos outros
elementos que constituem a disciplina da teologia.

Estudos bíblicos
A fonte suprema da teologia cristã é a Bíblia que dá testemunho da base
histórica do Cristianismo tanto na história de Israel quanto na vida, morte e
ressurreição de Jesus Cristo. (Observe que, para fins teológicos, os pares
de temos "Escritura" e "a Bíblia" e "csscriturístico- e "bíblico" são
sinônimos.) Como se costuma ressaltar, o Cristianismo diz respeito à crença
numa pessoa (Jesus Cristo), e não num texto (a Bíblia). Não obstante, os dois
se encontram intimamente entretecidos. Em termos históricos, não
sabemos praticamente nada sobre Jesus Cristo, exceto aquilo que
encontramos no Novo Testamento. Ao procurar tratar da identidade e do
significado de Jesus Cristo, a teologia cristã se vê obrigada a lidar com os
textos que transmitem conhecimento a respeito dele. Em decorrência
disso, a teologia cristã é intimamente ligada à ciência do criticismo e à
interpretação bíblica - em outras palavras, à tentativa de avaliar com
precisão a natureza literária e histórica distintiva dos textos bíblicos e de
entender seu significado.
Não é difícil demonstrar a impartância dos estudos bíblicos para a teologia.
O avanço dos estudos bíblicos humanistas no início do século 16 revelou
uma série de erros de tradução nas versões em latim da Bíblia. Em decorrência
disso, tomou-se cada vez mais intensa a pressão para revisar algumas das
doutrinas cristãs com base em passagens bíblicas que antes eram tidas como
corroboração de tais doutrinas, mas que, na verdade, diziam algo diferente.
Pode-se argumentar plausivelmente que a Reforma do século 16 representou
uma

tentativa de realinhar a teologia com as Escrituras depois de um período


em que se afastou consideravelmente delas.
A disciplina da teologia sistemática (da qual trataremos logo =seguida) é,
portanto, dependente dos estudos bíblicos, apesar de haver contro vérsias
quanto ao grau dessa dependência. Assim, o leitor deve esperar
encontrar nesta obra referências a discussões acadêmicas modernas
sobre o papel histórico e teológico da Bíblia. É impossível, por exemplo,
entender o desenvolvimento das cristologias modernas sem tratar de
pelo menos algumas desenvoluções dos estudos bíblicos ao longo dos
últimos dois séculos. Pode-se argumentar que a abordagem kerigmáfica de
Rudolf Bultmann à teologia reúne os estudos contemporâneos do Novo
Testamento, a teologia sistemática e a teologia filosófica (mais
especificamente, o Existencialismo). Isso ilustra uma questão de importância
crítica: a teologia sistemática não opera dentro de um compartimento
hermético, isolada de outras desenvoluções intelectuais. Antes, ela responde
às desenvoluções de outras disciplinas (especialmente dos estudos do
Novo Testamento e filosofia).

Teologia Sistemática

A expressão "teologia sistemática" é entendida como "a organização sis-


temática da teologia". Mas o que significa "sistemática"? Temos hoje dois con-
ceitos desse termo. Primeiro, ele é entendido como o conhecimento teológico
.,organizado com base nas questões educacionais ou expositivm". Em outras
palavras, o interesse central é apresentar uma visão geral clara e ordenada dos
temas centrais da fé cristã seguindo, com freqüência, o Credo Apostólico. Em
segundo lugar, pode significar o conhecimento teológico "organizado, com base
em suposições metodológicas". Em outras palavras, as idéias filosóficas
acerca
da maneira como o conhecimento é obtido determinam a forma como os
dados
são organizados. Essa abordagem é particularmente importante no período
mo-
demo, no qual o interesse pelo método teológico se tomou mais pronunciado.
No período clássico da teologia, a disciplina da teologia normalmente
era organizada em linhas sugeridas pelo Credo Apostólico ou pelo Credo
Niceno,
começando com a doutrina de Deus e terminando com a escatologia.
Várias
obras apresentam os modelos clássicos para a sistematização da
teologia.
O primeiro livro-texto importante da teologia ocidental é a obra de Pedro
Lonibardo, Four Books of the Sentences [Quatro Livros das Sentenças],
com-
pilada na Universidade de Paris durante o século 12, provavelmente entre
os
anos de 1155 — 1558. A obra é, essencialmente, uma coleção de
citações
(ou "sentenças") extraídas de escritores palrtsticos em geral e, mais especifi-
camente, de Agostinho. Essas citações são organizadas por assunto. O
primei-
ro dos quarto livros trata da Trindade; o segundo, da criação e do peca do;
o
terceiro, da encarnação e da vida cristã; e o quarto e último livro, dos
sacra-
mentos e das últimas coisas. Comentar sobre essas sentenças se tornou uma

prática comum entre os teólogos medievais como Tomás de


Aquino, Bonaventura e Duns Scotus. ASumma Theologiae cie Tomás
de Aquino, escrita um século mais tarde, fa z um levantamento da
totalidade da teologia cristã em três partes, usando princípios
semelhantes àqueles adotados por Pedro Lombardo; no entanto, a
Summa dá uma ênfase maior às questões filosóficas (especialmente as
questões levantadas por Aristóteles) e à necessidade de conciliar as
opiniões discrepantes dos escritores patrísticos.
Na época da Reforma foram apresentados dois modelos diferentes. Do
ladoluterano, Felipe Melânctort redigiu o Loei Communes, em 1521. Essa obra
apresentou uma visão geral dos principais aspectos da teologia crista
organizados tematicamente. Já a obra de Calvino, Institutos of the Christian
Religion [lratitutas da Religião Cristã] é considerada, em geral, o texto mais
influente da teologia protestante. A primeira edição foi publicada em 1536 e a
edição definitiva, em 1559. A obra é organizada em quatro livros: o primeiro
catada doutrina de Deus; o segundo apresenta Cristo como mediador entre
Deus e a humanidade; o terceiro trata da apropriação da redenção; e o
quarto, e último livro, trata da vida da igreja. Outras obras importantes mais
recentes de teologia sistemática seguem linhas parecidas, incluindo a obra
ponderada de Karl Barifi, Citurch Dogmática [Teologia Dogmática
Eclesiástica).
No período moderno, as questões de método adquiriram mais impor tância
e, em decorrência disso, a questão dos "prolegômenos" se tornou mais
relevante. Um exemplo de um texto moderno de teologia sistemática
fortemente influenciado por essas questões é a obra Christian Faith [Fé
Cristã] de F. D. E. Seitleiermacher, publicada em 1821 — 1822. A
organização do conteúdo dentro dessa obra é norteada pela suposição de
que a teologia diz respeito à análise da experiência humana. Assim,
Schieienimacher é conhecido por tratar da Trindade no final da sua teologia
sistemática, enquanto Aquino a situa no início.

Teologia Filosófica

A teologia é uma disciplina intelectual independente que traia de várias


questões que intrigam a humanidade desde os primórdios da História. Existe
um deus? Como ele é? Por que estamos aqui? Perguntas desse tipo são feitas
tanto dentro quanto fora da comunidade cristã. De que maneira, então,
essas discussões são inter-relacionadas? De que maneira as discussões
cristãs acerca da natureza de Deus são relacionadas á s discussões da
tradição filosófica ocidental? Existem princípios em comum? Pode-se dizer
que a teologia filosófica investiga os —princípios em comum" entre a fé
cristã e as outras áreas da atividade intelectual, As Cinco Vias de Tomás de
Aquino (isto é, cinco argumentos em favor da existência de Deus) são, com
freqüência, citadas como exemplos da teologia filosófica na qual
considerações ou argumentos não-religiosos conduzem a conclusões
religiosas.

No decorrer desta obra, investigaremos algumas dessas áreas nas quais


as considerações filosóficas tiveram um impacto expressivo sobre a
teologia cristã. Dentre vários exemplos, podemos citara análise
patrística da natureza de Deus que mostra uma influência clara da
filosofia grega; os argumentos de Tomás de Aquino em favor da
existência de Deus que foram influenciados pela física aristinéfica; a
cristologia de escritores do século 19 como D. E Strauss, que lança
nulodeurna visão hegeliana do processo histórico; ou a abordagem
existencialista à cristologia desenvolvida por Rudolf Bultantrai. Em cada
um desses casos, um sistema filosófico é considerado um recurso ou
parceiro de diálogo no desenvolvimento de uma teologia. Muitos teólogos
partiram do pressuposto de que a filosofia oferece uma base sólida para
a construção da teologia.
Não obstante, é preciso observar que existe uma tendência dentro
da teologia cristã que critica energicamente as tentativas de usar as
filosofias seculares nas questões teológicas. No século 2° Tertuliano
perguntou: "O que Atenas tem a ver com Jerusalém? Ou a Academia
coma Igreja?'. Em tempos mais recentes, a mesma reação crítica pode
ser observada nos escritos de Karl Barth segundo o qual, em última
análise, essa forma de uso da filosofia tornou a revelação própria de
Deus dependente de determinada filosofia, comprometendo assim a
liberdade de Deus. Portanto, o leitor pode esperar encontrar, cinto no
passado quanto no presente, uma discussão contínua sobre o escopo
e as limitações da filosofia dentro da teologia.

Teologia Pastoral

Não é possível enfatizar demais que o Cristianismo não ocupa seu


lugar atual como fé global em decorrência da presença de faculdades de
Teologia ou departamentos de Ciências da Religião nas
universidades. O Cristianismo possui uma dimensão intensamente
pastoral que geralmente se reflete de maneira inadequada nas
discussões acadêmicas acerca da teolo g ia. Na verdade, a maioria
dos estudiosos argumenta que a teologia da libertação na América
Latina representa uma correção há muito necessária de uma tendên-
cia excessivamente acadêmica da teologia ocidental, acompanhada de
uma orientação saudável para a direção da aplicabilidade social.
Nesse caso, considera-se que a teologia oferece modelos não apenas
para a reflexão teórica, mas também para as ações transformadoras.
No entanto, essa tendência acadêmica é um fenômeno recente. O
puritanismo é um excelente exemplo de um movimento que colocou a
integridade teológica lado a lado com a aplicação pastoral, crendo
que um é incompleto sem o outro. Os escritos de indivíduos como
Richard Baxter e Jonatifian Edwards transbordam com a convicção de
que a verdadeira expressão da teolo gia se dá no cuidado pastoral e no
ato de alimentar as almas. Em tempos mais recentes, essa
preocupação em garantir que a teologia encontrará sua expressão no
cuidado pastoral tem reavivado o interesse na teolo gia pastoral. Esse
desenvolvi-

mento se reflete na presente obra que foi escrita com base na suposição
de que, como o presente autor, muitos de seus leitores desejam trazer
todos os recursos críticos da teologia cristã para a esfera do ministério
pastoral.

A história da igreja
O conhecimento acerca do desenvolvimento da história do Cristianis mo,
especialmente seus elementos institucionais, é considerado de modo geral
uma parte integrante da disciplina da teologia. Para os estudantes que
pretendem ministrar dentro de determinada tradição cristã ou que estão
interessados em aprofundar seu conhecimento e a apreciação da sua
própria tradição, a história dessa tradição é particularmente importante.
Muitos cursos de História da Igreja incluem elementos da Teologia
Histórica. É difícil, por exemplo, entender as origens e o desenvolvimento
da Reforma na Europa sem certa compreensão da doutrina de Lutero da
justificação somente pela fé, da mesma maneira como uma falta de
conhecimento acerca das questões relacionadas â controvérsia donatista
dificultou o entendimento da história da igreja no norte da África no século
4°.

Não obstante, a História da Igreja deve ser considerada uma disciplina à parte,
apesar de haver um sobreposição entre os seus interesses e os da Teologia
Histórica. O Édito de Tolerância de Valéria (abril de 311) é extremamente
importante para a história da igneja, uma vez que instaria o Cristianismo como
religião legítima dentro do Império Romano e abriu caminho para o cresci -
mento numérico e o progresso institucional. No entanto, o édito não tem
grande relevância para a Teologia Histórica uma vez que não contribuiu
diretamente para o desenvolvimento da reflexão teológica. Tratar da história da
igreja é estudar fatores culturais, sociais, políticos e institucionais que
moldaram o desenvolvimento da igreja ao longo das eras. É estudar o
surgimento, de instituições (como o papado, o episcopado e as irmandades
leigas) e movimentos (como o metodistrio, o pentecosndismo e os cátaros). O
Cristianismo é situado dentro do fluxo da história e a história da igreja visa
explorar o lugar específico de idéias, indivíduos e instituições cristãs dentro
desse fluxo. Essa influência é bilateral: o Cristianismo influencia a cultura e é
influenciado por ela. O estudo da história da igreja permite compreendera
história em geral e a teologia em particular com maior profundidade.

A TEOLOGIA HISTÓRICA: SEU PROPÓSITO E LUGAR

A Teologia Histórica é o ramo da investigação teológica que visa explorar o


desenvolvimento de doutrinas cristãs e identificar os fatores que influenciaram
a sua formulação. É evidente, portanto, que a Teologia Histórica tem vínculos
diretos e estreitos com as disciplinas da História da Igreja e d a Teologia
Sistemática, apesar de ser distinta de ambas. Essa relação pode ser
esclarecida mediante as seguintes considerações:

1. A História da Igreja é de suma importância para a Teologia


Histórica no sentido de que identifica dentro da igreja cristã fatores
relevantes para a compreensão do desenvolvimento de aspectos da teologia
cristã. A Teologia Histórica é o ramo da teologia que visa exploraras situações
históricas em que as idéias se desenvolveram ou foram especificamente
formuladas. Visa apresentar claramente as ligações entre contexto e teologia.
Mostra, por exemplo, que não foi por acidente que a doutrina da justificação
pela fé adquiriu importância fundamental no final do Renascimento. Evidencia
como o conceito de salvação encontrado na teologia da libertação da
América Latina se encontra intimamente ligado à situação econômica dessa
região. Ilustra como as tendências seculares — como o liberalismo ou o
conservadorismo — têm suas expressões correspondentes na teologia. Assim,
a História da Igreja e a Teologia Histórica apresentam uma intor-relação
positiva e simbiõnfica.
2. A Teologia Sistemática visa oferecer uma declaração
contemporânea dos principais temas da fé cristã. Uma compreensão plena do
desenvolvimento dessa doutrina é essencial para a sua reafirmação contem-
porânea. No entanto, a Teologia Histórica não se atém a simplesmente
apresentar o contexto das declarações da Teologia Sistemática. Ela indica
até que ponto as formulações teológicas são condicionadas pelo ambiente em
que surgem. As asserções teológicas contemporâneas não são exceções a
essa regra. A Teologia Histórica mostra como idéias, das quais uma
geração se apropriou ativamente, com freqüência são abandonadas por outras
gerações por serem consideradas embaraçosas. Assim, a Teologia Histérica
desempenha um papel pedagógico e crítico visando informar os teólogos
sistemáticas acerca do que se pensou no passado (e por quê!) e identificar os
fatores que criam a necessidade de certas reformulações.

A teologia tem uma história. Esse conceito é ignorado com facilidade,


especialmente por aqueles que apresentam uma tendência mais
filosófica. A teologia cristã pode ser considerada uma tentativa de entender os
recursos fundamentais da fé à luz dos métodos considerados mais
excelentes em cada época. Isso significa que as circunstâncias locais
exercem um grande impacto sobre as formulações teolôgicas. A teologia
cristã se considera um elemento universal no sentido de que trata da
aplicação da operação salvadora de Deus em todos os períodos da História.
No entanto, também é caracterizada por sua particularidade como uma
experiência da obra salvadora, de Deus em determinadas culturas, e é
moldada pelos conceitos e limitações de pessoas que estavam procurarão
praticar o evangelho dentro de um contexto específico. A universalidade do
Cristianismo é, portanto, complementada por sua aplicação particular, e não
contestada por ela.

O desenvolvimento da Teologia Histórica

Há certo consenso de que a Teologia Histórica teve origem no século 16. A


Reforma testemunhou uma discussão acalorada sobre a autenticidade cristã
na qual a ligação entre as reformas protestante e católica e a igreja
primitiva passou a ser de importância crítica. Em decorrência disso, escritores
de ambos os lados da controvérsia descobriram que precisavam se
familiarizar com a teologia patrística e com as modificações que essas
idéias sofreram na Idade Média. Apesar de esse estudo ter sido realizado
principalmente por motivos polêmicos, implicou produção de um grande
número de obras de referência nessa área, incluindo as edições de obras
de escritores patrísticos.
Uma desenvolução possivelmente mais relevante ocorreu durante o século
18 com o surgimento do movimento conhecido como -história do dogma",
normalmente designado pelo temo alemão Dogmengeschichte. De acordo
com o pressuposto fundamental desse movimento, as formulações
doutrinárias da igreja ("dogmas") foram - especialmente durante o período
patrístico - profundamente condicionadas pelas circunstâncias sociais e
culturais da época. Esse condicionamento, que poderia ser revelado e
submetido ao escrutínio e â avaliação crítica por meio de métodos históricos,
tornava tais formulações doutrinárias inapropriadas para a igreja moderna
que se viu obrigada a desenvolver reformulações dessas doutrinas de modo
a adequá-las ao período moderno.
Essa abordagem pode ser observada nos escritos de G S. Stembart, que
argumentou que a doutrina agostiniana do pecado original - fundamental para
o conceito tradicional de batismo e da obra de Cristo - não passava,
basicamente, de uma ressaca do período maniquesta em que Agostinho
viveu. Representava uma intromissão de idéias pagãs no Cristianismo e não
tinha lugar na teologia cristã. A análise de Steialhart, que foi ampliada de
modo a incluir a doutrina de Anselmo de Canterbury acerca da satisfação de
Cristo, representa um exemplo clássico de criticismo dogmático pelo
estudo crítico de suas origens.

Tal abordagem, expandida por escritores como E C. Balir e A. B. RitschI,


culminou com a obra de Adolf voo Hamack. Em Histury of Dog~
[História do Dogma), Hamack argumentou que o dogma não era, em si
mesmo, um conceito cristão. Ao contrário, ele surgiu com a expansão do
Cristianismo de seu contexto inicial na Palestina para um meio heletostico.
Em decorrência disso, os escritores cristãos absorversta, as tendências
belerrísticas de conceitualizar e de usar uma estrumou metafísica para articular
o evangelho. Para Hamack, a doutrina da encarnação em, possivelmente, o
exemplo mais óbvio de influência do helenismo no Cristianismo, o que o
levou a argumentar que a análise histórica abria o caminho para sua
eliminação. Além disso, pua ele o evangelho dizia respeito ao próprio Jesus
e ao impacto que ele exerceu sobre as pessoas. A mudança da soteriologia
para a especulação metafísica abstrata da cristologia é, na visão de
Hamack, uma desenvolução teológica insidiosa, porém reversível. Hamack
destacou Maninho Lutem como aquele que tentou

eliminar a metafísica da teologia e o elogiou como um exemplo a ser


seguido pela posteridade.
Hoje em dia, apesar de a ênfase de Hamack sobre a "helenização"
do evangelho ser tida como um exagero, os princípios gerais que ele
desenvolveu ainda são considerados válidos. O historiador do dogma
ainda pode discernir áreas da teologia cristã em que vários
pressupostos condicionadores parecem ser provenientes da metafísica
grega. A discussão atual sobre a capacidade de Deus de sofrer (uma
controvérsia que será investigada mais detalhadarreante adiante)
chamou a atenção para a forma como o conceito clássico de apaulieia
de Deus parece ter como base pressupostos da metafísica grega, e não
o testemunho do Antigo e do Novo Testamento dos atos de Deus na
História.
O interesse específico de Hamack na Teologia Histórica era
fundamentado em sua convicção de que a História fornecia um meio
para a correção ou eliminação do dogma. Essa função "critica" da
Teologia Histórica continua sendo importante, de modo que trataremos
dessa questão mais detalhadamente adiante. No entanto, a profusão de
textos de Hamack nessa ama também despertou um interesse
crescente no campo da Teologia Histórica como uma disciplina digna
de interesse por si mesma.

A Teologia Histórica como instrumento pedagógico

Muitos daqueles que estudam a história da igreja não levam em conside-


ração o papel das idéias, concentrando-se antes nos aspectos
sociológicos, econômicos e institucionais dessa disciplina fascinante. No
entanto, é impossível entender alguns dos episódios mais importantes
dessa história sem uma compreensão ao menos parcial das idéias que
exerceram tamanha influência sobre o curso da história da igreja.
Assim como um historiador que trata da Revolução Russa não pode
ignorar as idéias de Marx, Engels, Lênin e Trotsky, tara-bem o
historiador da igreja precisa entenderas idéias de Atanásio, Agostinho e
Lutem (entre tantos outros). Para aqueles que estão estudando a
história da igreja, a Teologia Histórica é u recurso de grande
importância que lhes permite entendera natureza específica das
idéias que afetaram a igreja em períodos críticos da História.
Contudo, a Teologia Histórica não serve apenas para entender o
passado; também é um recurso para a teologia no presente. Muitos
críticos da teologia moderna argumentam que a disciplina se comporta
como se fosse a primeira a tratar dos assuntos em questão, ou como se
todas as tentativas anteriores de lidar com tais assuntos pudessem ser
desconsideradas totalmente. É praticamente impossível exercera
teologia como se ela nunca tivesse sido exercida antes. A todo o
momento, é preciso olhar para trás e ver como as coisas foram
feitas no passado e que respostas foram dadas. Parte, do conceito de
"tradição" é uma disposição de levar seriamente em consideração a
herança teológica do passado. O teólogo protestante suíço Yarl Barth
expressa tal idéia de maneira aguçada:

Não podermos estar na igreja sem assumir tanta responsabilidade


pela teologia do passado quanto assumimos pela teologia do presente.
Agostinho, Tomás de Aquino, Lutem, Schlciermacher e todos os outros
não esta. mortos, mas vivos. Ele,, ainda falam e exigem ser ouvidos
como vozes vivas, tão cenhamente, quanto sabemos que eles e nós
devemos permanecer juntos na igreja.

Portanto, é importante que o leitor se familiarize cem o legado rico do


passado cristão que oferece pontos de referência vitais para a discussão
modicaruti.
Assim, a Teologia Histórica fornece os recursos pedagógicos
essenciais para o fundamento contemporâneo da teologia. Os pontos a
seguir são especialmente relevantes nesse sentido:

1. A Teologia Histórica nos dá um -relatório da situação" dos


principais temas teológicos até o presente, permitindo que
identifiquemos aquilo que já foi discutido.
2. Ao estudaras discussões passadas de cenas questões
teológicas, é possível compreender melhor ramo as virtudes quanto as
deficiências das abordagens atuais a tais questões.
3. A Teologia Histórica nos permite identificar "marcos" no
desenvolvimento do pensamento cristão que continuam sendo
relevantes e expressivos nos dias de hoje. Esses "marcos" incluem
autores (como Atanásio, Agostinho e Tomás de Aquino), discussões
(como as controvérsias donatista e ariana) e documentos (como o Credo
Niceno).

Dessas e de outras maneiras, a Teologia Histórica serve, portanto,


de recurso pedagógico importante para a Teologia Sistemática.

A Teologia Sistermiticai, como instrumento crítico

Pode parecer óbvio observar que, com frequência, o Cristianismo


absorve inconscientemente idéias e valores de seu contexto cultural.
No entanto, trata-se de uma importantíssima observação. Ela aponta
para o fato de que a teologia cristã apresenta um elemento
provisional ou condicional que não é exigido por seus recursos
fundamentais nem fica implícito nos mesmos. Em outras palavras,
certas idéias que muitas vezes são consideradas cristãs, na verdade
são conceitos importados de um contexto secular. Um exemplo clássi-
co é o conceito da `Impassibilidade de Deus" – ou seja, a idéia de
que Deus não pode sofrer. Essa idéia se encontrava claramente
consolidada nos círculos filosóficos gregos. Em seu anseio por obter
respeito e credibilidade, em tais círculos, os teólogos primitivos não
questionaram essa idéia. Em decorrência disso, ela se tomou
profundamente arraigada na tradição teológica cristã. Voltaremos a
tratar dessa questão mais adiante.

O estudo da história do Cristianismo oferece um instrumento poderoso parai


corrigir os conceitos estáticos da teologia. Ele nos permite entender que:

1. Cenas doutrinas adquirem importância particular em pontos diferentes


da história cristã (como, por exemplo, a doutrina da justificação pela fé durante o
século 16).
2. Certas idéias surgiram sob circunstâncias específicas e, por vezes, fo-
r= cometidos erros.
3. O desenvolvimento teológico reversível. Os erros do passado podem
ser corrigidos.

Um exemplo específico já observado ilustra a importância dessa questão e ajuda


a identificar alguns dos fatores que têm impacto no desenvolvimento da
teologia. A questão é: Deus sofre? A tendência dos escritores da primeira era da
história cristã (o período patriótico) era responder de maneira negativa. A "nova
ortodoxia", desde cerca de 1945, tende a dar uma resposta afirmativa. Como é
possível, então, explicar essa discrepância? Ela se deve a uma série de
influências culturais e filosóficas. A fim de entendê-la, investiguemos a questão
com um pouco mais de profundidade antes de tirar algumas conclusões.
A discussão patrística dessa questão foi profundamente influenciada pela idéia de
que Deus é perfeito. Como definir, então, a "perfeição"? Paratis escritores
patrióticos gregos, a filosofia clássica contemporânea oferecia uma resposta
confiável: ser perfeito é ser imutável e auto-suficiente. Portanto, é impossível
uma entidade perfeita ser afetada ou alterada por qualquer elemento externo. Além
disso, dentro da filosofia clássica, a perfeição era entendida em termos
extremamente estáticos. Se Deus e perfeito, a mudança em qualquer direção é ma
impossibilidade. Se Deus muda, essa mudança implica um afastamento da
perfeição (sendo que, nesse caso, Deus deixa de ser perfeito) ou numa aproximação
da perfeição (sendo que, nesse caso, Deus não em perfeito no passado). Ecoando
essas idéias, Aristóteles declarou que "a mudança seria pana pior" e, portanto, excluiu
seu ser divino do âmbito da mudança e do sofrimento.

Esse conceito foi transmitido à teologia cristã em seu estágio inicial. Filo, um
judeu helenista cujos textos eram extremamente admirados pelos escritores
cristãos primitivos, escreveu um tratado chamado Qod Deus inumttabilis sit,
"Eis que Deus é imutável", defendendo energicamente a impassibilidade de
Deus. Em sua argumentação, as passagens bíblicas que pareciam se referir ao
sofrimento de Deus deviam ser consideradas como metáforas, e não de modo
inteiramente literal. Reconhecer que Deus estava sujeito a mudanças seria negara
perfeição divina. "Que impiedade maior poderia haver do que supor que o Imutável
muda?", indagou Filo — uma pergunta aparentemente sem resposta. Para Filo, não
era possível permitir que Deus sofresse ou experimentasse qualquer coisa que
pudesse ser chamada de "paixão".

Influenciada por essa idéia, Anselmo de Canterbury argumentou que Deus


em compassivo em relação à nossa experiência, mas não como ser divino
propriamente dito. Quando relacionada a Deus, a linguagem do amor e da
compaixão é tratada como sendo puramente figurativa.
No entanto, esse consenso foi questionado no período moderno. Esse
questionamento é resultante, em parte, da consciência do grau em que o pensa-
mento patrístico acerca dessa questão foi influenciado pelos conceitos fluxo-ficas
gregos; também e resultante, em parte, de uma consciência de que o Antigo
Testamento parece falar do sofrimento de Deus com mais freqüência do que se
imaginava. Existem, portanto, bases teológicas firmes, para essa tendência de
afirmar que Deus é capaz de sofrer. É preciso entender, porém, que existem ainda
outros fatores que contribuem para a tendência de os teólogos cristãos
responderem de maneira afirmativa à pergunta "Deus sofrer".
Uma das pressões é de caráter cultural, relacionada diretamente a nova
consciência cultural do sofrimento no mundo. O horror intenso provocado pela
Primeira Guerra Mundial causou um impacto profundo na reflexão teológica do
Ocidente. O sofrimento desse período levou a uma percepção amplamente
difundida de que o protestantismo liberal estava seriamente comprometido em
função de seus conceitos otimistas acerca da natureza humana. Não foi por
acaso que a teologia dialêfica, um movimento fortemente crítico em relação ao
protestantismo liberal, surgiu como conseqüência desse trauma. Outra reação
expressiva foi o movimento conhecido como "ateísmo de protesto" que suscitou
um sério protesto moral contra a fé em Deus. Como era possível alguém crer num
Deus que estava acima de tamanho sofrimento e dor no mundo?
Resquícios dessas idéias podem ser observados na ficção Os irmãos Karaniazoi,
que Fiodor Dostoievsky escreveu no século 19. Esses conceitos se desenvolveram
mais completamente no século 20, muitas vezes usando o personagem de
Dostoievsky, Ivan Karamazov, como modelo. A rebelião de Kammazov contra
Deus (ou, talvez, mais precisamente, contra a idéia de Deus) tem sua origem na
recusa do rapaz de aceitar que o sofrimento de uma criança inocente pudesse, de
algum modo, ser justificado. Albert Camus desenvolveu essas idéias em The
Rebel [0 Rebelde], expressando o protesto de Ivan Karamazov em temos de
"rebelião metafisica—. Para muitos teólogos, essa forma intensamente moral de
ateísmo parecia exigir uma resposta teológica digna de crédito — uma teologia
de um Deus sofredor.
Outra pressão surge de uma mudança na compreensão de uma idéia central —neste
caso, a idéia do "amor". Os teólogos arraigados na tradição clássica — como
Anselmo e Aquino — definiram o amor em termos de expressões e
demonstrações de cuidado e boa vontade para com outros. Assim, é perfeitamente
possível falar que Deus "ama impassivelmente" — ou seja, que ama alguém sem
ser emocionalmente afetado pela situação dessa pessoa. Porém, o novo interesse
na psicologia das emoções humanas levantou dúvidas acerca desse conceito de
amor. É possível, de fato, falar de "mor" sem que haja um

compartilhamento mútuo de sofrimento e sentimentos? Não é certo que o temo


"amor' deixa implícita a consciência intensa que o amante possui do
sofrimento do amado e, desse modo, alguma forma de compartilhamento
dessa aflição? Considerações como essas solaparam a plausibilidade intuitiva
(porém, mirressantemente, não a credibilidade intelectual) de um Deus
impassível.
Esta analise extremamente sucinta mostra como a teologia pode ser in-
fluenciada por tendências filosóficas, transformações culturais e mudanças na
psicologia. A reflexão teológica sempre ocorre num contexto complexo e –
quer isso seja levado em consideração ou não! – incorpora aspectos desse
contexto em tal reflexão. A reflexão patrística acerca da possibilidade de
Deus sofrer foi profundamente influenciada pelo consenso filosófico
predominante de que um ser perfeito não pode mudar nem ser afetado por
influências externas. As discussões modernas acerca dessa mesma
questão são influenciadas por uma pressão cultural para responder à
experiência humana de sofrimento e pela afinidade cada vez maior com a
idéia filosófica de Deus como um "companheiro de sofrimento" (Alfred Nortí,
Whitehead). Qualquer que seja a resposta "certa" para essa pergunta – que
continua em discussão na teologia moderna – é essencial considerar os
fatores que exercem uma influência expressiva (e, por vezes, não
reconhecida) sobre a teologia.

A Teologia Histórica documenta as respostas dadas ás grandes questões da


teologia cristã e também procura explicar os fatores que se mostraram rele-
vantes na formulação dessas respostas – quer esses fatores tenham sido
observados e avaliados ou não por aqueles que formularam as respostas. O
estudo da Teologia Histórica é, portanto, subversivo, uma vez que indica
com que facilidade os teólogos são desencaminhados pelas "auto-imagens
da época" (Alasdair MacIntyre). Além do mais, não se trata de um fenômeno
restrito ao passado! Muitas vezes, as tendências modernas da teologia
não passam de uma reação reflexiva a tendências culturais em curto prazo.
O estudo da História nos mantém alertas tanto para os erros do passado
quanto para a forma assustadora como eles se repetem no presente. "A
história se repete. É necessário que o faça, pois ninguém presta atenção da
primeira vez" (Woody Allen).

É por esses motivos que esta obra visa oferecer aos seus leitores o máximo
de contexto histórico para as discussões teológicas dentro dos limites do
espaço disponível. Muitas vezes, as discussões teológicas são realizadas
como se a controvérsia tivesse começado ontem. Um debate informado
dessas questões exige que entendamos como chegamos aqui.
Gastamos tempo suficiente introduzindo nosso tema. É hora de mergu lhar
no universo complexo da teologia patrística ao iniciar nossa investigação do
surgimento da tradição teológica cristã.

CAPÍTULO 1

O PERÍODO PATRÍSTICO,
C. 100 151 D.C.

UMA VISÃO GERAL W PERÍODO PATRIÍSTICO


O período patristico é um dos períodos mais empolgantes e criativos da história
do pensamento cristão. Só essa característica é suficiente pano garantir que
ele continuará sendo objeto de estudo por muitos anos ainda. Esse período
também é importante por motivos teológicos. Todas as principais igrejas cristãs
atuais – incluindo as anglicanas, ortodoxas orientais, luteranas, reformadas
e católicas romanas – consideram o período paitrístico um marco decisivo no
desenvolvimento da doutrina cristã. Cada uma dessas igrejas acredita
estar dando continuidade, expandindo e, quando necessário, criticando as
idéias desses escritores da igreja primitiva. O autor anglicano de maior
destaque no século 17, Cancelou Andresves (1555-1626), por exemplo,
declarou que o Cristianismo ortodoxo tinha como base dois testamentos, três
credos, quatro evangelhos e os cinco primeiros séculos de história cristã. A
seguir, investigaremos as características básicas desse período importante da
história do pensamento cristão.

O período patrestico, foi essencial para esclarecer várias questões. Uma das
tarefas de relevância inicial foi definira relação entre o Cristianismo e o
Judaísmo. As cartas de Paulo no Novo Testamento dão testemunho da
importância dessa questão no primeiro século da história cristã, â medida
que começou a vir a lume uma série de questões práticas e doutrinárias.
Os cristãos gentios (ou seja, os que não eram judeus) deviam ser
circuncidados? Como interpretar corretamente o Antigo Testamento?

No entanto, outras questões não tardaram em aparecer. Uma delas, espe-


cialmente importante no século 2-, foi a questão da apologética – a defesa e a
justificação racional da fé cristã contra os seus críticos. Durante, o primeiro
período da história cristã, a igreja foi perseguida pelo Estado em várias
ocasiões. Sua prioridade era sobreviver; havia, portanto, pouco espaço para
discussões teológicas tendo em vista que a própria existência da igreja
cristã estava em jogo. Essa observação nos ajuda a entender por que a
apologética se tomou tão importante para a igreja primitiva por intermédio de
escritores como Justino Mártir (e. 100 — c. 165), preocupados em explicar e
defender as crenças e práticas do Cristianismo para um público pagão hostil.
Apesar de esse período inicial ter produzido alguns teólogos extraordinários —
como Irineu de Lião (e. 130 —e. 200) no Ocidente e Orígenes (c. 185 — e.
254) no Oriente — as discussões teológicas só começaram de fato quando a
igreja deixou de ser perseguida.
Tendo em vista a importância da mudança de status do Cristianismo dentro
do Império Romano durante o período patirístico, podemos considerar a
questão em mais detalhes. O Cristianismo teve origem na Palestina — mais
especificamente na região da Judéia e, em particular, na cidade de
Jerusalém. O Cristianismo se considerava uma continuação e desenvolução
do Judaísmo e, a princípio, prosperou em regiões às quais o Judaísmo era
tradicionalmente associado; acima de tudo, na Palestina. No entanto, se
espalhou rapidamente para as regiões vizinhas nas quais o Judaísmo
estava presente, em parte por meio dos esforços evangelísticos da igreja,
como no caso de Paulo de Tarso. No final do século P, tudo indica que o
Cristianismo se encontrava estabelecido em todo o mundo mediterrâneo
oriental e que havia adquirido uma presença expressiva até mesmo na cidade
de Roma, a capital do Império Romano.

Roma era o centro administrativo de um império que abrangia toda a região


mediterrânea. Na verdade, Roma costumava se referir ao Mar Mediterrâneo
como "Marre Nos"m" — "nosso mar". A região da Judéia, na qual o
Cristianismo se originou, fazia parte desse império vasto — aliás, era uma
parte insignificante do mesmo. Apesar de as línguas faladas nessa região do
império serem o aramaico (uma língua estreitamente relacionada ao hebraica)
e o grego, o latim em usado para fins administrativos. O Evangelho de João
relata que a acusação contra Jesus de ser "rei dos judeus" foi escrita nas três
línguas (Jo 19.19,20). Em várias pinturas e representações da crucificação de
Jesus, essa inscrição é representada por quatro letras: INRI — as letras iniciais
da expressão em latim Jesus Nazarento, Rex ludaeorum, que significa 'Jesus
de Nazaré, Rei dos Judeus".

Não se sabe ao certo quando o Cristianismo chegou a Roma, mas se


acredita que foi na década de 40. A cara de Paulo aos Romanos, redigida
por volta de 57, se refere a vários indivíduos com nomes latinos, como
Urbano, Áquila, Rufo e falia. Isso indica a possibilidade de que, a essa
altura, vários romanos haviam se convertido ao Cristianismo. A maioria dos
nomes citados é grega, refletindo o fato de que, a princípio, o Cristianismo
parece ter sido a religião de uma minoria que falava grego. Há evidências
de que o Evangelho de Mantas pode ter sido escrito em Roma em algum
momento do ano de 64, as vésperas da perseguição dos cristãos dessa cidade
por Nero. Marcos 12.42, por exemplo, observa que duas moedas de cobre
correspondiam a um quadrano, uma moeda romana que não circulava
na região oriental do império. Semelhantemente, Marcos 15.16 explica
que um termo grego corresponde ao latim praetorium. Essas explicações
sugerem que Marcos está explicando idéias ou termos desconhecidos do seu
público romano.

Desde que se estabeleceu em Roma na década de 40, o Cristianismo se viu


numa condição legal ambígua. Por um lado, não era legalmente reconhecido
e, paririam, não gozava nenhum direito especial; por outro, não era proibido.
No entanto, seu crescimento numérico levou a tentativas periódicas de
reprimi-lo à força. Em algumas ocasiões, essas perseguições foram locais, res-
tringindo-se a regiões como o norte da África; outras vezes, foram sancionadas
pelo Império Romano como um iodo. Um período particularmente expressivo
de perseguições corresponde à ascensão do imperador Décio em 249. Seu pri-
meiro ato mais relevante de hostilidade para como Cristianismo foi a
execução de Fabiano, um bispo de Roma, em janeiro de 250. A perseguição
decima foi decorrente do Édito de Décio, publicado em junho de 250, que
ordenava aos governadores e magistrados das províncias que garantissem o
cumprimento universal da exigência de oferecer sacrifícios aos deuses
romanos e ao imperador. Um certificado (libelIto pacis) era emitido para
aqueles que ofereciam esses sacrifícios. Ao que parece, o Édito foi igmuirado
pela maioria das autoridades; mas, ainda assim, houve regiões que exigiram
seu cumprimento. Milhares de cristãos foram martirizados durante esse
período difícil. Alguns ofereceram sacrifícios aos deuses a fim de receber os
certificados necessários; outros conseguiram obter os certificados sem oferecer
os sacrifícios.
A perseguição decima terminou em junho de 251 quando Décio foi morto numa
incursão militar. Como resultado da perseguição, muitos cristãos se desviaram
ou abandonaram a fé diante das adversidades. Não tardou para que surgissem
divisões na igreja acerca de como esses indivíduos deviam ser tratados: essa
apostasia indicava o fim de sua fé ou cia possível tum, reconciliação com a
igreja mediante penitência? As diferenças gritantes de opiniões provocaram
tensão e controvérsias sérias. Abordagens inteiramente distintas foram
promovidas por Cipriano de Cartago e Novaciano. Os dois escritores foram
martirizados na perseguição instigada pelo imperador Valcriarto entre 257 e
258.
Uma das irrupções mais terríveis de perseguição se deu em fevereiro de
303, sob o imperador Diocleciano. Foi publicado um édito ordenando a
destruição de todos os lugares cristãos de adoração, a entrega e
destruição de todos os seus livros e a cessação de todos os atos cristãos de
adoração. Os funcionários públicos cristãos perderam todos os privilégios de
cargo ou siaras e foram reduzidos à condição de escravos. Cristãos
preeminentes foram obrigados a oferecer sacrifícios de acordo com as
práticas tradicionais romanas. Numa indicação de como o Cristianismo havia
se tornado influente, Diocleciano obrigou sua mulher e filha, ambas cristãs
declaradas, a acatarem suas ordens. A perseguição continuou sob
imperadores subseqúentes, incluindo Galêno, que governou a região
oriental do império.
Em 311, Galério ordenou que a perseguição cessasse. Além de fracassar, a
perseguição simplesmente havia aumentado a determinação dos cristãos de
resistir à reimposição da religião pagã romana. Galério publicou um édito que
permitia aos cristãos voltarem a viver normalmente e "realizar suas
assembléias religiosas, desde que não fizessem nada para perturbara paz
pública". O édito

identificava o Cristianismo explicitamente como uma religião e lhe oferecia toda a


proteção da lei. A situação legal do Cristianismo, que até este ponto havia sido
ambígua, estava resolvida. A igreja deixou de viver sob um regime de medo.
O Cristianismo em uma religião; no entanto, era apenas mais uma dentre muitas
outras religiões. A conversão do imperador Constantino mudou completa e
irreversivelmente a situação do Cristianismo em todo o Império Romano.
Constantino nasceu numa família de pais pagãos em 285 (sua mãe se converteu
posteriormente ao Cristianismo, ao que parece, soba influência do filho). Apesar de
não demonstrar nenhum interesse especial pelo Cristianismo no início de seu
governo, Constituinte, certamente parece ter considerado a tolerância uma virtude
essencial. Depois que Masâncio tomou o poder na Itália e norte da África,
Constarmo partiu da Europa ocidental com parte de seu exército na tentativa de
recuperara autoridade sobre a região perdida A batalha decisiva ocorreu em 28 de
outubro de 312 na ponte Milvio, ao norte de Roma. Consistirmo derrotou Maxêncio
e foi proclamado imperador. Logo depois, declarou-se cristão.

Esse fato é relatado tanto por escritores cristãos quanto pagãos. O que não ficaclara é
a data exata da conversão. Alguns escritures cristãos (como 1 areando e Eusébio)
sugerem que a conversão ocorreu antes da batalha decisiva e que Consistíamo teve
uma visão celestial ordenando que ele colocasse o sinal da em no escudo dos seus
soldados. Quaisquer que tenham sido os motivos da sua conversão e quer esta
tenha ocorrido antes ou depois da batalha na ponte Mílvio, não há dúvidas quanto à
sua realidade e conseqOéticias. Aos poucos, Roma se tomou cristianizada. Sob
instruções do próprio imperador, a estátua erigida no Fórum mostra Consistimo
carregando uma cruz - -o sinal de sofrimento que trouxe salvação", de acordo
coma inscrição redigida pelo imperador. Em 321, Constáramo transformou os
domingos em feriados públicos. Símbolos cristãos começaram a aparecerem
moedas romanas. O Cristianismo não era mais apenas legítimo; também estava em
via de se tomara religião oficial do império.
Em decorrência disso, as discussões teológicas construtivas se tornaram
acontecimentos públicos. Com exceção de um curto período de incerteza durante o
reinado de Juliano, o Apóstata (361-363), a igreja passou a contar com o apoio do
Estado. Assim, a teologia emergiu do mundo oculto das reuniões secretas da igreja
para se tomar uma questão de interesse e preocupação pública por todo o Império
Romano. Cada vez mais, os debates doutrinários adquiriram relevância política e
teológica. Constantino desejava ter uma igreja unificada em rodo o seu império e,
portanto, considerou prioridade que as diferenças doutrinárias fossem discutidas e
resolvidas.
À medida que a igreja em Roma se tomou cada vez mais poderosa,
começaram a se desenvolver pontos de tensão entre a liderança cristã em
Roma e em Consuantinopia, prenunciando o cisma posterior entre as igrejas do
Ocidente e Oriente originárias desses respectivos centros de poder. Além de
Roma e Constantumpha, várias regiões figuraram como centros importantes de
discussão teológica.

Três desses centros podem ser destacados por sua relevância, sendo que
nos dois primeiros falava-se grego e no terceiro, latim

1. A cidade de Alexandria, no atual Egito, que surgiu como centro de


educação cristã teológica. Um estilo característico de teologia veio a ser
associado a esta cidade refletindo sua ligação de longa data com a tradição
platônica. O estudante encontram referências a abordagens "alexandrinas" em
áreas como a cristologia e a interpretação bíblica, demonstrando tanto a
importância como o caráter distintivo do estilo de Cristianismo associado a
essa região.
2. A cidade de Antioquia, na Síria antiga, e a região da
Capadócia, na atual Turquia. Uma forte presença cristã se estabeleceu no
norte e leste do Mediterrâneo desde cedo. Em algumas de suas viagens
missionárias, Paulo passou por essa região. Antioquia é destacada em vários
pontos da história da igreja primitiva, conforme o relato em Atos dos Apósto-
los, e logo se tornou um centro importante do pensamento cristão. Como
Alexandria, veio a ser associada a determinadas abordagens à cristologi a e
interpretação bíblica. O termo "antioquino" é usado com freqüência para
designar esse estilo teológico distinto. Os "patriarcas da Capadócia" também
foram uma presença teológica importante nessa região no século 4n, sendo
conhecidos principalmente por sua contribuição à doutrina da Trindade.
3, A região ocidental do norte da África, especialmente a ama] Argélia. No final
do período clássico, era onde se limava Cartago, uma cidade mediterrâncui
importante e, na época, uma rival política de Roma na região. Durante o
período em que o Cristianismo se expandiu nessa região, ela era uma colônia
de Roma. Entre seus principais escritores, estão Terudiano, Cipriano de
Cartago e Agostinho de Hipona.

Isso não significa que outras cidades do Mediterrâneo não foram importantes.
Milão e Jerusalém também foram centros de reflexão teológica cristã,
mesmo que nenhuma das duas cidades tenha alcançado a preeminên cia
de suas rivais.
À medida que o Cristianismo se consolidou no mundo mediterrâneo,
formaram-se as condições estáveis necessárias pua a reflexão teológica
séria. Em decorrência disso, o período parístico posterior (de cerca de
310 a 451) pode ser considerado um ponto alto da história da teologia
cristã. Os teólogos passaram a desfrutar a liberdade de trabalhar sem a
ameaça de perseguição e puderam tratar de uma série de questões de
grande importância para a consolidação do consenso teológico que
estava surgindo dentro das igrejas. Esse consenso envolveu amplas
discussões e um processo de aprendizagem doloroso no qual a igreja
descobriu que precisava aprendera lidar com as discórdias e tensões
contínuas. Não obstante, pode-se observar nesse

período o surgimento de um grau expressivo de consenso que, mais


tarde, foi preservado nos credos ecumênicos.
O período patrístico é, evidentemente, de importância considerável
para a teologia cristã. No entanto, para muitos estudiosos modernos
da teologia é um período extremamente difícil de ser compreendido.
Essa situação pode ser atribuída a quatro motivos principais:

1. Algumas das discussões do período parecem absolutamente


irrelevantes para o mundo moderno. Apesar de terem sido consideradas
de grande importância na época, com freqüência é difícil o leitor moderno
se identificar com as questões em pauta e entender por que atraíram
tanta atenção. É interessante contrastar o período patrístico com a era da
Reforma, que tratou de diversas questões que continuam sendo rele -
vantes para a igreja moderna. Muitos professores de teologia obser-
vam que seus alunos têm mais facilidade de se identificar com os as-
suntos desse período posterior.
2. Várias das discussões patrísticas giram em torno de questões
filosóficas e só têm sentido se o leitor tiver pelo menos algum
conhecimento dos debates fil osôfícos do período. Enquanto pelo menos
alguns estudantes de teologia cristã estão mais ou menos
familiarizados com as idéias encontradas nos diálogos de Platão,
essas idéias posaram por um processo acentuado de crítica e
desenvolvimento no mundo mediterrâneo durante u período patrístico. 0
Platonismo médio e o neoPlatonismo diferem consideravelmente um do
outro e das idéias originais de Platão. A estranheza de muitas das
idéias filosóficas do período representa outra barreira para o seu
estudo, tomando difícil para os alunos que estão começando a
estudar teologia o entendimento exato do que se passa em algumas
dessas discussões pairísticas.

3. O período patrística é caracterizado por uma enorme diversidade


doutrinária. Foi uma era de mudanças contínuas durante a qual marcos e
paradigoras, – inclusise, documentos como o Credo Meeiro e dogmas
como as duas naturezas de Cristo – surgiram gradativameine. Para os
estudantes acostumados â relativa estabilidade de outros períodos da
doutrina cristã (como a Reforma, na qual a pessoa de Cristo já não era
mais uma questão central), essa característica do período patrístico é
um tanto desnorteante.
4. Esse período testemunhou uma grande divisão – tanto por
motivos políticos quanto linguísticos–entre a igreja do Oriente, de
língua grega, e do Ocidente, de língua latina. Muitos estudiosos
observam uma diferença marcamic, de temperamento teológico entre os
teólogos do Oriente e do Ocidente: os primeiros costumam apresentar
uma tendência mais filosófica e se dedicar mais à especulação
teológica, enquanto os últimos muitas vezes se mostram hostis à
intromissão da filosofia

na teologia e consideram a teologia como sendo a exploração das doutrinas


apresentadas nas Escrituras. A famosa pergunta retórica do teólogo
ocidental Tertuliano (e. 160 - c. 225), "O que Atenas tema ver com
Jerusalém? E a Academia com a Igreja?", ilustra esse fato.

0 ESCLARECIMENTO DE ALGUNS TERMOS

O termo "paidstico" vem da palavra latina pater, "pai", e designa tanto o período
dos patriarcas ou pais da igreja quanto as idéias características que se
desenvolveram nesse período. Trata-se de um termo não-inclusivo; ainda
não foi sugerido na literatura nenhum termo inclusivo de aceitação geral.
Os seguintes temos relacionados são de uso freqüente e devem ser
observados.

O período patrístico
Essa designação vagamente definida costuma ser entendida como uma
referência ao período que vai da conclusão dos escritos do Novo
Testamento (c. 100) até a reunião decisiva do Concilio da Calcedênia (451).

Patrístico

Esse termo costuma designar o ramo da investigação teológica que trata do


estudo dos "patriarcas (narres)".

Patrologia

Em outros tempos, esse termo significava literalmente "o estudo dos patriarcas"
(assim como -teologia" significava "o estudo de Deus Itheos]"). Nos últimos
tempos, porém, essa palavra passou por uma mudança de significado. Agem,
se refere a um manual de literatura patrística, como o do conhecido
estudioso alemão Joharmes Quasten, que oferece aos leitores fácil acesso
às idéias centrais dos escritores fantásticos e a alguns dos respectivos
problemas de interpretação.

PRINCIPAIS TEÓLOGOS

Ao longo desta obra, faremos referência a vários teólogos do período patrística


No entanto, os seis escritores a seguir são particularmente importantes, de
modo que convém receberem maior destaque.

Justino Mártir (e.100 - e.165)

Justino talvez seja o maior dos Apologistas. - os escritures cristãos do


século 2- que se dedicaram a defender o Cristianismo diante das críticas
intensas de fontes pagãs. Em sua "Primeira Apologia", Justino argumentou que

resquícios da verdade cristã podem ser encontrados nos grandes


escritores pagãos. Sua doutrina do logos, spermatikos ("palavra que
produz semeares-) lhe permitiu afirmar que Deus havia preparado o
caminho para a revelação final de Cristo por meio de indícios dessa
verdade na filosofia clássica. Justino nos dá um exemplo antigo
importante de teólogo que procura relacionar o evangelho com o ponto
de vista da filosofia grega, uma tendência associada especialmente à
igreja oriental.

Irineu de Lião (e. 130 - e. 200)

Acredita-seque Irineu tenha nascido em Esnuma (na atual Turquia), apesar de


ter se estabelecido posteriormente em Roma. Por volta de 178 tornou -se
Bispo de Lião, um cargo que manteve até sua morte duas décadas depois.
Irineu é conhecido especialmente por sua defesa enérgica da ortodoxia
cristã diante da oposição do Graisticismo. Sua obra mais expressiva,
"Contra Todas as Heresias" (Adversus omnes Haereses), representa uma
importante defesa da visão cristã da salvação e especialmente do papel da
tradição na fidelidade ao testemunho apostólico diante, de interpretações não-
cristãs.

Origens (e. 185 - e. 254)

Um dos defensores de maior destaque do Cristianismo no século 3°,


Orígenes forneceu uma base importante para o desenvolvimento do
pensamento cristão oriental. Suas principais contribuições para o
desenvolvimento da teologia cristã se deram em duas amas gerais. No
campo da interpretação bíblica, Orígenes desenvolveu o conceito da
interpretação alegórica, argumentando que o significado superficial das
Escrituras deve ser distinguido de seu significado espiritual mais profundo. No
campo da cristologia, Orgeries instituiu uma tradição de distinguir entre a
divindade plena do Pai e a divindade menor do Filho. Para alguns
estudiosos, o Arianismo é uma conseqüência natural dessa abordagem.
Origens também adotou com cerro entusiasmo a idéia de apocatristrese, ou
restauração universal, ou tuiversalismo, de acordo com a qual toda criatura -
incluindo a humanidade e Satanás - será salva.

'111rlutianar (e.160 - e. 225)

Originalmente um pagão da cidade de Cartago no norte da África,


Tertuliano se converteu ao Cristianismo com trinta e poucos anos de idade.
É considerado com freqüência o pai da teologia latina em função do grande
impacto que teve sobre a igreja ocidental. Defendeu a unidade do Antigo e do
Novo Testamento em oposição a Márcion, segundo o qual os Testamentos es-
tavam relacionados a deuses diferentes. Nessa defesa, Temiliano lançou
os alicerces para a doutrina da Trindade. Opunha-se fortemente a tomar a
teologia ou apologética cristã dependente de fontes extra-escriturísticaS. Está
entre

os expositores antigos mais enérgicos do princípio da suficiência das


Escrituras, condenando aqueles que lançavam mão de filosofias seculares
(como os membros da Academia Ateniense) para obter um verdadeiro,
conhecimento de Deus.

Atanásio (e. 296 - e. 373)


A importância de Atanásio é relacionada principalmente às questões
cristológicas que se tornaram extremamente relevantes durante o século
4°. É possível que ainda tivesse vinte e poucos anos de idade quando
escreveu o matado De Incarnatione (Sobre a Encarmação"), uma defesa
enérgica da idéia de que Deus assumiu uma natureza humana na pessoa
de Jesus Cristo. Essa questão se tornou crítica na controvérsia ariana, na
qual Atanásio teve uma contribuição expressiva. Ele ressaltou que se Cristo
não era inteiramente Deus - como Ário argumentava - seguia-se uma série
de implicações devastadoras. Em primeiro lugar, era impossível Deus
redimira humanidade, uma vez que uma criatura não pode redimir outra
criatura. E, em segundo lugar, seguia-se que a igreja cristã era culpada de
idolatria, uma vez que os cristãos costumavam adorar e orara Cristo. Uma
vez que a -idolatria" pode ser definida como "adoração a uma estrutura ou
criação humana", seguia-se que essa adoração era idólatra. Esses
argumentos acabaram se mostrando convincentes, vencendo a discussão e
levando à rejeição do Arianismo.

Agostinho de Hipona (354 - 430)

Ao tratar de Aurelius Augurarmos, conhecido como "Agostinho de Hipona" ou


simplesmente "Agostinho", nos deparamos com aquela que provavelmente
foi uma das mentes mais influentes da igreja cristã ao longo da História.
Atraído à fé cristã pela pregação do Bispo Ambrósio de Milão, Agostinho
passou por uma dramática experiência de conversão. Ele chegou aos 32
anos de idade sem ter satisfeito o seu desejo ardente de conhecer a
verdade. Estava num jardim em Milão, lutando desesperadamente com as
questões momentosas da natureza e destino do ser humano quando pensou
ouvir algumas crianças que estavam por perto cantarem Tolie, lege ("toma e
lê"). Sentindo que se tratava de uma orientação divina, encontrou o
documento do Novo Testamento que estava à mão - incidentalmente, a
carta de Paulo aos Romanos - e leu as palavras decisivas —revesti-vos do
Senhor Jesus Cristo" (Rm 13.14). Essa foi a gora d'água para Agostinho,
para quem o paganismo havia se tomado cada vez mais difícil de
suportar. Como relatou posteriormente, "uma luz de certeza entrou em
meu coração e toda sombra de dúvida desapareceu". Desse momento em
diante, Agostinho dedicou sua capacidade intelectual extraordinária a defender
e consolidar a fé cristã, escrevendo num estilo ao mesmo tempo apaixonado e
inteligente, que toca o coração e a mente.

Sofrendo, possivelmente, de alguma forma de asma, Agostinho deixou a


Itália e voltou para o norte da África onde foi nomeado Bispo de Hipona

(na atual Argélia) em 395. Nos trinta e cinco anos restantes de sua vida,
envolveu-se em uma série de controvérsias extremamente importantes para o
futuro da igreja cristã no ocidente, e teve uma contribuição decisiva em
cada uma delas. Sua exposição minuciosa do Novo Testamento,
especialmente das cartas de Paulo, lhe deu amputação que permanece até
hoje de "segundo fundador da fé crisff'(Jerônimo). Quando a idade das
trevas finalmente se encerrou na Europa ocidental, o conjunto substancial
de escritos teológicos de Agostinho formou a base para um grande programa
de renovação e desenvolvimento teológico, consolidando sua influência
sobre a igreja ocidental.
Uma parte considerável da contribuição de Agostinho diz respeito ao
desenvolvimento da teologia como disciplina acadêmica. Não se pode dizer
que a igreja primitiva desenvolveu qualquer "teologia sistemática". Sua
preocupação central era defender o Cristianismo de seus críticos (como nas
obras apologéticas de Justino Mártir) e esclarecer os aspectos centrais de
seu pensamento, combatendo as heresias (como nos escritos antignósticos
de trinca). Não obstante, uma desenvolução doutrinária momentosa ocorreu
durante os quatro primeiros séculos, especialmente em relação à doutrina
da pessoa de Cristo e ir doutrina da Trindade.
A contribuição de Agostinho foi a estruturação de uma síntese do pensa-
mento cristão, expressada de forma suprema em seu principal trotado De
Civitam Dei, "Sobre a Cidade de Deus". Como o famoso romance de Charles
Dickens, a "Cidade de Deus" de Agostinho é um conto de duas cidades – a
cidade do mundo e a cidade de Deus. A obra é de tom apologético:
Agostinho se mostra sensível â acusação de que a queda de Roma foi
decorrente do fato de haver abandonado o paganismo clássico em favor do
Cristianismo. No entanto, ao defender o Cristianismo dessa acusação,
acabou inevitavelmente fazendo uma apresentação e exposição
sistemática das linhas principais da fé cristã.
Além disso, porém, pode-se argumentar que Agostinho realizou contribuições
críticas em três áreas de grande importância da teologia cristã: a doutrina da
igreja e dos sacramentos que surgiu da controvérsia comunista; a doutrina da
graça que surgiu da controvérsia pelagiana; e a doutrina da Trindade. É
interessante observar que, na verdade, Agostinho nunca explorou a área
da cristologia (ou seja, da doutrina da pessoa de Cristo), que teria, sem
dúvida alguma, sido beneficiada por sua grande sabedoria e
discentintento.
PRINCIPAIS DESENVOLUÇOIes TEOLÓGICAS

As seguintes áreas da teologia foram exploradas de modo parficularmente


intenso durante o período patrística

A extensão do cânon do Novo Testamento

Desde o princípio, a teologia cristã reconheceu ser baseada nas Escrituras.


Havia, porém, um grau de incerteza quanto aquilo que o termo "Escritoras"

designava de fato. O período patuístico testemunhou um processo em que foi


necessário tomar decisões e definir limites pua o Novo Testamento - um
processo que costuma ser chamado de "definição do cânon". Convém
explicar a palavra "cânon". É derivada do temo grego kanon, que significa
"uma regra" ou "um ponto de referência fixo-. O "cânon das Escrituras" se
refere a um grupo limitado e definido de escritos que foram aceitos como
sendo de autoridade própria dentro da igreja cristã. O termo "cmônico" é
usado para se referir aos textos escritutrísticos aceitos como parte do
cânon. Assim, o Evangelho segundo Lucas é considerado "canônico",
enquanto o Evangelho de Tomé é "exuacanônico" (ou seja, se encontra fora do
cânon das Escrituras).

Para os escritores do Novo Testamento, o termo "Escrituras" significava,


essencialmente, um escrito do Antigo Testamento. No entanto, em pouco
tempo, os escritores cristãos primitivos (como Justira, Mártir) estavam se
referindo ao "Novo Testamento" (em contraste como "Antigo Testamento")
e insistindo que ambos devem ser tratados com a mesma autoridade. No
tempo de Irineu, já se aceitava de modo geral a existência de quatro
Evangelhos; no final do século 2-, havia um consenso de que os
Evangelhos, Atos e as Epístolas crato, Escrituras inspiradas. Assim,
Clemente de Alexandria reconheceu quatro Evangelhos, Atos, catorze
Epístolas de Paulo (considerando a carta aos Hebreus de autoria paulina) e
Apocalipse. Terrufianto declarou que, juntamente com "a lei e os profetas"
havia os "escritos evangélicos e apostólicos" (evangelicae et apostolicae
latente), sendo que ambos deviam ser considerados de autoridade própria
dentro da igreja. Aos poucos, chegou-se a um acordo quanto à lista de livros
reconhecidos como escrituras inspiradas e quanto à ordem em que deviam ser
organizados. Em 367, Atanásio publicou sua 39° Carta Festal que considerava
canônicos os 27 livros do Novo Testamento, como o conhecemos.

As discussões giraram especialmente em tomo de alguns dos livros. A


igreja ocidental hesitou em incluir Hebreus, uma vez que a epístola não era
atribuída especificamente a nenhum apóstolo; a igreja oriental apresentou
reservas quanto ao Apocalipse. Quatro dos livros menores (2 Pedro, 2 e 3 João
e Judas) eram omitidos com freqüência das primeiras listas de escritos do
Novo Testamento. Alguns escritos que hoje não fazem parte do cânon eram
favorecidos por partes da igreja, mas, por fim, não obtiveram aceitação
universal como sendo etm6nicos. Alguns exemplos são a Primeira Carta de
Clemente (um dos primeiros Bispos de Roma, escrita por voltado ano 96) e o
Didaquê, um manual cristão primitivo sucinto sobre moralidade e práticas
eclesiásticas, provavelmente do primeiro quarto do século 2°.
A organização dos textos também apresentava uma série de variações.
Logo no início, chegou-se ao consenso de que os Evangelhos deviam ocupar o
lugar de honra do caiam, seguidos dos Atos dos Apóstolos. A igreja oriental
costumava colocar as sete "epístolas católicas" (isto é, Tiago, 1 e 2 Pedro, 1,
2 e 3 João e Judas) antes das catorze epístolas paulinas (considerando
Hebreus de autoria paulina), enquanto a igreja ocidental colocava as epístolas
de Paulo

imediatamente depois de Atos e, em sua seqüência, trazia as


epístolas católicas. Tanto no Oriente quanto no Ocidente, o cânon era
encerrado por Apocalipse, apesar de seu status ter sido tema de
discussões durante algum tempo dentro da igreja oriental.
Que critérios foram usados para constituir o cânon? O princípio básico
parece ter sido o de reconhecimento, e não o de imposição de autoridade. Em
mitras, palavras, as obras em questão não tiveram uma autoridade
arbitrária imposta sobre si; antes, foram reconhecidas como sendo autoridade.
Para Irinetc, a igreja não cria o cânon; ela reconhece, preserva e recebe
as Escrituras ca mancas, com base na autoridade que é inerente a elas. Ao
que parece, alguns cristãos primitivos consideravam a autoria apostólica um
elemento de importância decisiva; outros estavam preparados para aceitar
livros que não pareciam ter credenciais apostólicas. Apesar de não
sabermos todos os detalhes da maneira como a seleção foi feita, é certo que
o carro foi fechado na igreja ocidental no início do século 5 o. A questão do
cânon só voltou a ser levantada na época da Reforma.

O papel da tradição

A igreja primitiva foi confrontada com um grande desafio decorrente de um


movimento conhecido como Gnosticismo. Esse movimento multiforme e
complexo, não muito diferente do fenômeno moderno da Nova Era,
alcançou uma posição de influência considerável no período correspondente
ao final do Império Romano. Não vem ao caso neste momento detalhar as
idéias básicas do Gnosticismo; cabe apenas ressaltar aqui que o Gnosticismo
parecia semelhante ao Cristianismo em vários aspectos. Por esse motivo,
muitos escritores cristãos primitivos, especialmente louca, consideraram o
movimento um desafio sério à fé cristã. Além disso, os escritores gnósticos
tinham a tendência de interpretar passagens do Novo Testamento de um modo
que espantava os líderes cristãos e levantava questões sobre a maneira
correta de interpretar as Escoraras,
Nesse contexto, tomou-se extremamente importante lançar mão da tradição.
A palavra "tradição' significa, literalmente, "aquilo que foi transmitido ou
entregue", apesar de poder se referir também ao "ato de transmitir ou entre-
Intr". trinco insistiu que a "regra de fé" (regula fidei) foi preservada fielmente
pela igreja apostólica e que havia encontrado sua expressão plena nos livros
canónicos das Escrituras. A igreja havia proclamado fielmente o mesmo evan-
gelho desde o tempo dos apóstolos até aquele dia. Os gnósticos não
podiam afirmar ter a mesma ligação contínua com a igreja primitiva. Haviam
apenas inventado idéias novas e estavam sugerindo indevidamente, que se
tratava de conceitos "cristãos". Assim, Irmeu enfatizou a continuidade dos
ofícios eclesiásticos e seus oficiais (especialmente os bispos). A tradição
adquiriu a conotação de "uma interpretação tradicional das Escrituras" ou
"uma apresentação tradicional da fé cristã" que se encontra refletida nos
credos da

igreja e em seus pronunciamentos públicos de cunho doutrinário. Essa


definição dos credos como expressão pública dos ensinamentos, da igreja
é de suma importância, como ficará claro na próxima sessão.
Tertuliano adotou um abordagem próxima. De acordo com sua argu-
mentação, as Escrituras podem ser entendidas claramente, desde que
sejam lidas como um todo. No entanto, ele admitiu que a controvérsia na
interpretação de certas passagens era inevitável. Observou com pesar que
os hereges podem fazer as Escrituras dizer praticamente tudo o que eles
querem. Por esse motivo, a tradição da igreja era de importância
considerável, uma vez que indicava a maneira como as Escrituras haviam
sido recebidas e interpretadas dentro da igreja. Assim, a interpretação
correta das Escrituras podia ser encontrada no lugar onde a verdadeira fé e
disciplina cristã haviam sido preservadas. Um ponto de vista semelhante foi
adotado por Atanásio que argumentou que os erros cristológicos de Ário
jamais teriam surgido se ele tivesse permanecido fiel à forma como a igreja
interpretava as Escrituras.
A tradição era vista, portanto, como um legado dos apóstolos pelo qual a igreja
era orientada e dirigida para uma interpretação correta das Escrituras. A
tradição não era considerada uma "fonte secreta de revelação - alem das
Escrituras, uma idéia que fusca rejeitou como sendo "gnósúca". Antes, era
um meio de garantir que a igreja permaneceria fiel aos ensinamentos dos
apóstolos em vez de adotar interpretações idiossincráticas das Escrituras.

A definição dos credos ecumênicos

Em latim, a palavra credo significa "eu creio", com a qual se inicia o Credo
Apostólico - provavelmente o mais conhecido de todos - "Creio em
Deus..... Essa expressão passou a se referir a uma declaração de fé que
resume os pontos da convicção cristã comum a todos os cristãos. Por esse
motivo, o termo "credo" nunca é aplicado a declarações de fé associadas
com denominações específicas. Estas últimas costumam ser chamadas de
"confissões" (como a Confissão de Augsburg, luterana, e a Confissão de
flesíninster, reformada). Uma "confissão" diz respeito a uma denominação e
inclui crenças e ênfases específicas relacionadas a essa denominação; um —
credo" diz respeito a toda a igreja cristã e inclui nada mais nada menos do
que uma declaração de convicções que todo cristão deve ser capaz de
aceitar e se comprometer. Um "credo" é reconhecido como uma declaração
concisa, formal, universalmente aceita e autorizada acerca dos pontos
principais da fé cristã.

Durante o período patristico, dois credos passaram a ser tratados com


autoridade e respeito por toda a igreja. Tudo indica que seu
desenvolvimento foi estimulado pela necessidade percebida de oferecer um
resumo conveniente da fé cristã apropriado para ocasiões públicas, das
quais, talvez, a mais importante fosse o batismo. A igreja primitiva costumava
batizar seus convertidos na Páscoa, usando o período de Quaresma como
tempo de preparação e instrução

para esse momento de declaração publica de fé e compromisso. Um


requisito essencial era que cada convertido que desejava ser batizado
declarasse sua fé em público. Ao que parece, os credos começarram,
a surgir como uma declaração uniforme de fé que os convertidos podiam
usar em tais ocasiões.
O Credo Apostólico é, provavelmente, a forma de credo mais conhecida nas
igrejas ocidentais. Pode ser dividido em três seções principais que tratam de
Deus, Jesus Cristo e do Espírito Santo. Também fala da igreja, do julgamento
e da ressurreição.
O Credo Niceno é a versão mais longa do credo (conhecida mais estri-
tamente como "Credo Niceno-Constantinopolitano") que inclui declarações

acerca da pessoa de Cristo e da obra do Espírito Santo. Em resposta às


controvérsias relacionadas à divindade de Cristo, esse credo traz afirmações
enérgicas da sua unidade com Deus, incluindo a expressão "Deus de Deus" e
"consubstancia) ao Pai".
O desenvolvimento dos credos foi um elemento importante no movimento em
direção a um consenso doutrinário dentro da igreja primitiva. Uma das áreas de
doutrina que testemunharam avanços e controvérsias consideráveis foi aque-
la relacionada à pessoa de Cristo, uma questão da qual trataremos a seguir.

As duas naturezas de Jesus Cristo

As duas doutrinas para as quais se pode argumentar que o período


patrístico contribui de maneira decisiva são relacionadas à pessoa de
Cristo (uma área da teologia que, conforme anteriormente observamos,
costuma ser chamada de "cristologia") e a natureza do Ser Divino. Esses dois
avanços são organicamente inter-relacionados. Em 325, a igreja primitiva havia
chegado à conclusão de que Jesus em "uma substância" (hoanoousios) com
Deus. (O termo horioousios também pode ser traduzido como "um em
existência" ou `consubstancia)".) Essa declaração cristológica teve duas
implicações: em primeiro lugar, consolidou em termos intelectuais a
importância espiritual de Jesus Cristo para os cristãos; em segundo lugar,
porém, representou um grande desafio aos conceitos simplistas acerca de
Deus. Isso porque se Jesus é reconhecido como "sendo da mesma
substância" que Deus, então toda a doutrina de Deus precisa ser
reconsiderada à luz dessa crença. Por esse motivo, o desenvolvimento
histórico da doutrina da Trindade se iniciou depois do surgimento de um
consenso cristológico dentro da igreja. Só depois que a divindade de
Cristo pôde ser tratada como um ponto de partida concordante e garantido
é que foi possível iniciara especulação teológica acerca da natureza de Deus.
Pode-se observar que as discussões cristológicas da igreja primitiva se deram,
em sua maior parte, no mundo mediterrâneo oriental, sendo realizadas na
língua grega e, com freqüência, à luz dos pressupostos das principais
escolas gregas de filosofia. Em termos práticos, isso significa que muitos
dos temos centrais da discussão cristológica da igreja primitiva são gregos,
muitas vezes com um histórico de uso dentro da tradição filosófica grega.
As principais características da cristologia patrística serão consideradas
mais detafilhadantente, adiante. Neste estágio inicial, porém, podemos
resumir os principais marcos da discussão cristológica patrística em temos
de duas escolas, duas discussões e dois concilias.

1. Escolas. A tendência da escola alexandrina era enfatizara divindade de


Cristo e interpretar essa divindade em termos do "Verbo que se fez carme".
Um texto das Escrituras de importância central para essa escola era João
1.14: "E o Verbo se fez carne e habitou entre nós". Essa ênfase sobre a idéia
da

encarnação levou a uma valorização especial das comemorações de


Natal. A escola antioquina, por outro, lado, dava ênfase
correspondente à humanidade de Cristo e considerava seu exemplo
moral particularmente importante.
2. Discussões. A controvérsia ariana do século 4° é considerada,
em geral, uma das mais expressivas da história da igreja cristã. Ário (c.
250—c. 336) argumentou que as designações escrituristicas de Cristo
que parecem apontar para sua igualdade com Deus são apenas títulos
de cortesia. Cristo devia ser considerado uma criatura, ainda que
preeminente entre as outras criaturas. Essas declarações provocaram
uma reação hostil de Atanásio, que argumentou que a divindade de
Cristo era de suma importância para a compreensão cristã da salvação
(uma área da teologia chamada de "sowriologid'). De acordo com
Atanásio, a cristologia de Ário em soteriologicamente inadequada. O
Cristo de Ário não podia redimira humanidade decaída. No final, o
Arianismo (o movimento associado a Ário) foi declarado herético. Essa
controvérsia foi seguida da discussão alsolinarianis, cujo expoente era
Apolinário de Laodicéia (e. 310 - c. 390). Oponente enérgico de Ário,
Apolinário argumentou que Cristo não podia ser considerado
totalmente humano. No caso de Cristo, o espírito humano havia sido
substituído pelo logos divino. Em decorrência disso, Cristo não possuía
uma humanidade plena. Essa posição foi considerada seriamente defi-
ciente por escritores como Gregório de Nazianzo, uma vez que
sugeria que Cristo não podia redimir plenamente a natureza humana.
3. Concilias. Constáramo, o primeiro imperador cristão, convocou o
Concilio deNicéia(325) panarlar fim às discórdias cristológicas
desestabilizadoras dentro de seu império. Esse foi o primeiro "concilio
ecumênico" (isto é, uma assembléia de cristãos provenientes de todo o
mundo cristão, cujas decisões são consideradas normativas pua as
igrejas). Nicéia (que hoje é a cidade de lznik na Turquia moderna)
decidiu a controvérsia ariana declarando que Jesus era lionuvousios
("um em ser" ou "consubstanciai") com o Pai, rejeitando, desse modo, a
posição ariana e favorecendo uma asserção enérgica & divindade de
Cristo. 0 Concilio da Calcedônia (451), o quarto concílio ecumênico, con-
firmou a decisão de Nicéia e respondeu a novas discussões acerca da
humanidade de Cristo que haviam surgido subseqüentemente.

A doutrina da Trindade
Uma vez que as discussões cristológicas da igreja primitiva haviam sido
resolvidas, as conseqüências dessas decisões passaram a ser exploradas.
Nesse período extremamente criativo e interessante da teologia cristã, a
doutrina da Trindade começou a tomar uma forma identificável. A
característica básica dessa doutrina é a afirmação da existência de três
Pessoas dentro do Ser Divino - Pai, Filho e Espírito Santo - e a necessidade
de considerá-las igualmente divinas e de mesmo status. A co-igualdade do
Pai e do Filho foi comprovada por meio das discussões cristológicas que
levaram ao Concílio de Nicéia;

a divindade do Espírito foi comprovada como conseqüência dessas mesmas dis-


cussões, especialmente por meio dos escritos de Atanásio e Basílio de Cesaréia.
As discussões triturarias se concentraram cada vez mais na maneira como a Trindade
devia ser entendida, e não em sua validade fundamental. Aos poucos, surgiram
duas abordagens diferentes, uma associada às igrejas orientais e outra às igrejas
ocidentais.
A posição do Oriente, que continua a ser extremamente importante dentro das
igrejas ortodoxas grega e russa, foi desenvolvida em sua maior parte por um
grupo de escritores da região correspondente à atual Turquia. Basilio de Cesaiem
(e. 330 - 379), Gregário de Nazismo (329 - 389), e Gregário de Nissa (c. 330 - c.
395), conhecidos como os patriarcas da Capadócia, iniciaram suas reflexões
acerca da Trindade considerando as diferentes maneiras como o Pai, o Filho e o
Espírito Santo são experimentados. A posição do Ocidente, associada
especialmente a Agostinho de Hipona, partiu da unidade de Deus e pôs-se a
explorar as implicações do amor de Deus para nossa compreensão do Ser Divino.
Trataremos dessas posições em mais detalhes numa seção mais apropriada
desta obra.
A doutrina da Trindade representa um caso raro de uma questão teológica de
interesse tanto das igrejas orientais quanto ocidentais. Voltamos nossa atenção
agora para duas discussões teológicas ligadas especificamente à igreja ocidental,
ambas, associadas particularmente a Agostinho de Hipona.
A doutrina da igreja
Uma controvérsia importante dentro da igreja ocidental girou em tomo da questão
da santidade da igreja. Os donatistas eram um grupo de cristãos do norte da África
que vivia na atual Argélia e ressentia a crescente influência da igreja de Roma
nessa região. De acordo com a argumentação donatista, a igreja era um corpo de
santos, dentro do qual não havia lugar para pecadores. Essa questão se tomou
particularmente relevante em função da perseguição promovida pelo imperador
Diocleciario em 303 que persistiu até a conversão de Contamino em 313.
Durante essa perseguição, que tomou ilegal possuir cópias das Escrituras, vários
cristãos entregaram suas cópias ás autoridades. Os que assim procederam foram
condenados imediatamente por aqueles que se rescusamar, a cedera essa pressão.
Depois que a perseguição cessou, muitos desses traditores -literalmente, "aqueles
que entregaram [suas Escrituras]- - volta-mui, pua a igreja. Os donatistas
defendiam a exclusão desses indivíduos.
Agostinho argumentou contra isso declarando que era de esperar que a igreja
fosse um "corpo misto" de santos e pecadores, e recusou expulsar aqueles que
haviam decaído sob perseguição ou por outros motivos. A validade do ministério e
da pregação da igreja não depende da santidade de seus ministros, mas da pessoa
de Jesus Cristo. A indignidade pessoal de um ministro não compromete a validade
dos sacramentos. Esse ponto de vista, que tepidamente

passou a ser normativo dentro da igreja, exerceu um, impacto profundo sobre
o pensamento cristão acerca da natureza da igreja e seus ministros.
A discussão donatista, da qual trataremos em mais detalhes em outra parte
desta obra, foi a primeira a girar em torno da questão da doutrina da igreja
(conhecida como "celesiologia") e temas relacionados, como a adminis-
tração dos sacramentos. Várias das questões levantadas pela controvérsia
voltaríam â tona no tempo da Reforma, quando os aspectos celesiológicos
passariam novamente a ocupar o primeiro plano. Pode-se dizer o mesmo
acerca da doutrina da graça, da qual trataremos a seguir.

A doutrina da graça

Durante o desenvolvimento da teologia na igreja oriental de língua grega, a


doutrina da graça não havia sido uma questão relevante. No entanto, uma
controvérsia intensa a respeito dessa questão irrompeu na segunda década
do século 5-. Pelágio, um monge asceta britânico sediado em Roma,
argumentou energicamente em favor da necessidade da responsabilidade
moral humana. Assustado com a devassidão moral da igreja romana, ele
insistiu na necessidade de auto-aperfeiçoamento constante â luz da lei do
Antigo Testamento e do exemplo de Cristo. Ao finzê-lo, causou em seus
adversários - sendo Agostinho um dos principais - a impressão de negar um
lugar real para a graça divina no princípio e continuação da vida cristã. O
Pelagianismo se tomou conhecido como uma religião da autonomia
humana, segundo a qual os seres humanos eram capazes de tomara
iniciativa de sua própria salvação.
Agostinho reagiu violentamente contra o Pelagianismo, insistindo na
prioridade da graça de Deus em todos os estágios da vida cristã, desde
seu início até o seu fim. De acordo com Agostinho, os seres humanos não
possuí= a liberdade necessária para dar os passos iniciais em direção à
salvação. Os seres humanos não possuem "liberdade de vontade", mas uma
vontade corrompida e maculada pelo pecado que os faz desviarem direção
ao mal e para longe de Deus. Somente a graça de Deus pode neutralizar
essa inclinação para o pecado. A defesa de Agostinho da graça foi tão
enérgica que ele se tomou conhecido posteriormente como "o doutor da
graça" (doctor graciae).
Um tema central do pensamento de Agostinho é o conceito da natureza
humana decaída. A imagem da "Queda" é proveniente de Gênesis 3 e
expressa a idéia de que a natureza humana "caiu" de seu estado de
pureza original. O estado presente da natureza humana não é, portanto,
aquele que Deus havia pretendido. A ordem criada não corresponde mais
diretamente â "bondade" de sua integridade original. Ela decaiu. Foi
deturpada e arruinada-porém não de modo irremediável, como fica claro na
doutrina da salvação e justificação. A imagem de uma "Queda" transmite
a idéia de que a criação se encontra agem em um nível inferior àquele
pretendido por Deus.
De acordo com Agostinho, segue-se que agora todos os seres humanos são
contaminados pelo pecado desde o momento do nascimento. Ao contrário

de várias filosofias existencialistas do século 20 (como a de Martin Heidegger)


que afirmam que o "decaimento" (Verfallenhert) é uma opção que
escolhemos (e não algo que é escolhido para nós), Agostinho retrata o pecado
como sendo inerente â natureza humana. É um aspecto integral, e não
opcional, de nosso ser. Essa visão, expressada com mais rigor na doutrina de
Agostinho acerca do pecado original, é de suma importância para sua
doutrina do pecado e salvação. Uma vez que todos são pecadores, todos
precisam de redenção. Uma vez que todos estão aquém da glória de Deus,
todos precisam ser redimidos.
Para Agostinho, se a humanidade fosse deixada por sua própria conta, não
poderia jamais iniciar um relacionamento com Deus. Nada que um ho mem
ou mulher pudesse fwcr seria suficiente para romper as cadeias do pecado.
Usando uma imagem que Agostinho teve a felicidade de não testemunhar
em seu tempo, é como um viciado em drogas tentar se livrar do domínio que a
heroína ou cocaína exerce sobre sua vida. Trata-se de uma situação que
não pode ser mudada de dentro para fora, de modo que a transformação
depende de algo externo à situação humana. De acordo com Agostinho,
Deus intervém no dilema humano. Ele não precisava ter feito isso, mas
graças ao seu amor pelos seres humanos decaídos, ele entrou na situação
humana na pessoa de Jesus Cristo a fim de redimi-la.

Pura Agostinho, a "graça" é uma dádiva imerecida concedida por Deus, pela
qual ele rompe voluntariamente o domínio do pecado sobre a humanidade.
A redenção só é possível como um dom divino. Não é algo que nós mes -
mos podemos alcançar, mas algo que é feito por nós. Assim, Agostinho
enfatiza que os recursos da salvação se encontram fora da humanidade,
no próprio Deus. É Deus quem inicia o processo de salvação, e não os seres
humanos.
Pelágio via a situação de maneira muito diferente. Ensinava que os recursos
para a salvação se encontram dentro da humanidade. Seres humanos indi-
viduais têm a capacidade de salvar a si mesmos. Não estão sob o domínio do
pecado; antes, têm a capacidade de fazer tudo aquilo que é necessário para a
salvação. A salvação é conquistada por intermédio de boas obras que
levam Deus a ter um obrigação para com a humanidade. Pelágio
marginalizou a idéia da graça, entendendo-a em termos daquilo que Deus
exige da humanidade a fim de que esta possa alcançara salvação —como os
Dez Mandamentos ou o exemplo moral de Cristo. O ethos do Pelagianismo
pode ser resumido como "salvação por mérito", enquanto Agostinho ensinava
"salvação pela graça".
É evidente que essas dutis, teologias diferentes envolvem conceitos distintos
acerca da natureza humana. Para Agostinho, a natureza humana é firaca, de-
caída e impotente; para Pelágio, é autônoma e auto-suficiente. Para Agostinho,
a humanidade precisa depender de Deus para recebera salvação; para
Pelágio, Deus simplesmente indica o que precisa ser feito para que a salvação
possa ser obtida e, então, deixa que os seres humanos cumpram essas
exigências por sua própria conta. ParaAgostinho, a salvação é uma dádiva
imerecida; pato Pelágio, a salvação é uma recompensa justamente merecida.

Convém comentar um aspecto específico da visão de Agostinho acerca da


graça. Uma vez que os seres humanos eram incapazes de se salvar e que
Deus concedeu seu dom da graça a alguns (mas não todos), seguia-se que
Deus havia "pré-selecionado" aqueles que seriam salvos. Desenvolvendo
indícios dessa idéia no Novo Testamento, Agostinho deu forma à sua
doutrina da predestinação. O termo "predestinação' se refere à decisão
original ou eterna de Deus de salvar alguns e não outros. Foi esse aspecto do
pensamento de Agostinho que muitos de seus contemporâneos, sem falarem
seus sucessores, consideraram inaceitável. Não é preciso dizer que o
pensamento de Pelágio não tem nenhum equivalente direto.

O Com ilo de Cartago (418) decidiu em favor da visão de Agostinho da


graça e do pecado e condenou o Pelagianismo com temos severos. No
entanto, formas variadas de Pelagianismo, continuaram sendo, por algum
tempo, um ponto de desentendimento. Com o fim da era patrística e o início da
Idade das trevas na Europa, várias questões permaneceram pendentes. Tais
questões seriam retomadas durante a Idade Média e, principalmente, no
tempo da Reforma.

NOMES, PALA~ E EXPRESSÕES MAIS RELEVANTES

Ao terminar este capítulo, você terá visto os seguintes termos que voltarão a
aparecer ao longo da obra. Faça o que for necessário para entendê-los.

Agostiniano Eclesiológico
Apolinarismo Encanação
Arianismo Extracanônico
Cânon Patriarcas da Capadócia
Canónico Parristico
Concílio ecumênico Patrologia
Credo Pelagianismo
Cristologia Pelagiano
Cristológico Soteriologia
Donatismo Trindade
Doraústa Trinjuírio
Eclesiologia

PERGUNTAS (1)

1. Localize as seguintes cidades ou regiões no mapa 1 (p. 35): Alexandria,


Antioquia, Capadócia, Constantinopla, Hipona, Jerusalém, Roma.
2. Agora, encontre a linha que indica a divisão entre latim 1 grego nesse
mesmo mapa. O latim era a principal língua a oeste dessa linha e o grego,
a leste da mesma. Identifique a língua predominante de cada uma das
cidades mencionadas na questão 1.
3. Que língua você associa aos seguintes escritores: Atanásio,
Agostinho de Hipona, Orgenes, Tertuliano?
4. Os seguintes movimentos foram de grande importância durante
o período patristico: Arianismo, Donatismo, Gnosticismo e Pelagirmismo.
Associe as controvérsias em tomo de cada um desses movimentos com um
dos seguintes teólogos: Atanásio, Agostinho de Hipona, Irineu de Lião.
(Observe que um desses teólogos é associado a mais de uma controvérsia.)
5. Por que houve um interesse relativamente pequeno na doutrina da
igreja durante esse período inicial?

Estudo de Caso 1.1 A Bíblia e a tradição

Uma das questões centrais da discussão teológica ao longo de toda a


história cristã diz respeito à maneira como a Bíblia é interpretada. Sempre
houve quem acreditasse que uma questão da doutrina cristã podia ser
resolvida simplesmente lançando mão da Bíblia. No entanto, as grandes
discussões teológicas do período patrístico mostraram claramente que se
trata de uma abordagem que deixa muito a desejar. O Arianismo e o
Pelagianisrro—dois movimentos que, posteriormente, foram considerados
heréticos, ainda que por motivos diferentes - lançaram mão de um conjunto
impressionante de textos bíblicos para apoiar seus ensinamentos. No entanto,
seus oponentes argumentaram que sua interpretação desses textos em
incorreta. Não bastava simplesmente citar a Efifiliw em preciso interpreta Ia de
maneira ortodoxa. Mas quem decide o que é e o que não é uma interpretação
ortodoxa? A que tomes se pode recorrer numa tentativa de definira
interpretação correta de uma passagem bíblica'?
Essas discussões vêm ocorrendo ao longo de toda a história do pensa-
mento cristão, mas for= particularmente importantes no tempo d a Reforma
No entanto, o período patrístico testemunhou uma resposta essencial para as
questões desse tipo que estavam sendo formuladas. Para vários
escritores prarísticos, um apelo à tradição era de suma importância no
conformo com ensinamentos ou interpretações não-ortodoxas das Escrituras. A
seguir, investigaremos as contribuições de três escritores para essa
discussão: Irineu (século 22), Tertuliano (século 3°) e Vicente de Lérins
(século 5`). Começamos, porém, observando a maneira como o conceito de
"tradição" se encontra inserido no próprio Novo Testamento.
Em seus primórdios, o Cristianismo se propagou por meio da transtrussão
oral de um conjunto mais ou menos fixo de ensinamentos. O termo "tra-
dição- é derivado da palavra em latim traditio, que significa "entregar" ou
"transmitir". O estudo do Cristianismo primitivo indica que os elementos
básicos da fé cristã eram "transmitidos" de um mestre para outro. Ao
escrever para a igreja em Corinto, Paulo fala de "entregar" certos temas-
chave aos seus ouvintes e leitores (ICo 15.1-4), uma referência clara à
transmissão

verbal de elementos centrais da mensagem cristã, especialmente a morte e


ressurreição de Cristo.
Também se sabe que os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas são ba-
seados em conjuntos de informações transmitidos oralmente, antes de
serem registrados por escrito naquilo que conhecemos hoje como
"Evangelhos Sinópticos". Assim, a introdução do Evangelho de Lucas faz
referência ao uso de mlatos "conforme nos transmitiram os que desde o
princípio foram deles testemunhas oculares e ministros da palavra" (Te
1.1,2). De acordo com o consenso geral entre os estudiosos do Novo
Testamento é possível identificar quatro fontes para os Evangelhos
Sinópticos:

1, O próprio Evangelho de Marcos, que parece ter sido usado como fonte
para Mateus e Lucas. Assim, 90% do conteúdo do Evangelho de Marcos
pode ser encontrado em Mateus; 53% de Marcos pode ser encontrado em
Lucas. O estilo de Marcos tem características de um texto mais antigo do
que as passagens correspondentes em Mateus ou Lucas que usam várias
expressões semíticas. É extremamente difícil explicar essa observação com
base em qualquer outra hipótese senão aquela de que tanto Mateus, quanto
Lucas se basearam em Marcos e organizaram seu conteúdo.
2. Dados que Mateus e Lucas apresentam em comum. Essa seção do tex-
to com cerca de 200 versicudos, de extensão costuma ser chamada de "Q".
Não há nenhuma evidência de que Q era um evangelho completo ou que
existiu como fonte escrita independente.
3. Dados encontrados apenas em Mateus (texto chamado normalmente
de "M"),
4. Dados encontrados apenas em Lucas (texto chamado normalmente de "L").

A explicação mais amplamente aceita para a maneira como esses três


Evangelhos Sinópticos foram compilados foi desenvolvida em detalhes em
aro forma atual na Universidade de Oxford na primeira década do século 20.
Suas asserções mais conhecidas podem ser encontradas na obra de E. H.
Streeter, Four Gospels [Quatro Evangelhos] (1924) e de W. Sanday, Studies
m the Synopti( Problem [Estudos sobre o problema sinóptico] (1911). A obra
de Streeter representa uma coleção de monografias que refletem o trabalho
realizado nos simpósios sobre esse tema realizados em Oxford nove vezes
por ano ao longo de um período de 15 anos. Apesar de essa teoria ser, por
vezes, conhecida como a "hipótese de Oxford", é chamada com mais
freqüência de -teoria das duas fontes". Observamos na seqüência suas
características básicas.

Marcos foi o primeiro evangelho a ser escrito. Tanto Mateus quanto


Lucas tiveram acesso a seu texto e o empregaram como fonte, alterando o
estilo da linguagem conforme consideraram mais apropriado, mantendo,
porém, a disposição do conteúdo. Mateus foi escrito depois de Marcos,
mas

antes de Lucas. Mateus e Lucas tiver= acesso à fonte conhecida Q. Além disso,
Mateus teve acesso a outra fonte conhecida como M; Lucas teve acesso a uma
fonte diferente, conhecida como L. Apesar de essa teoria identificar quatro
fontes (Marcos, Q, M e L), é chamada de -teoria das duas fontes" graças à
importância de Marcos e Q em relação a sua abordagem.
Essa temia encontrou mais aceitação entre os estudiosos modernos do Novo
Testamento. No entanto, não é de maneira nenhuma a única teoria a receber tal
recitação. Há estudiosos que regam, por exemplo, a existência de Q e
argumentam que Lucas simplesmente usou Mateus como fonte. J. J. Griesbach
desenvolveu uma hipótese influente de acordo com a qual Mateus foi escrito
primeiro, seguido de Lucas (que usou Mateus). Marcos foi escrito depois, usando
Mateus e Lucas. Também é preciso ressaltar que o -problema sinóptico' diz
respeito à nossa visão de como a tradição oral referente a Jesus nos foi transmitida.
Não questiona sua precisão histórica ou conflabilidade teológica, mas permite
uma compreensão mais profunda do período formativo das tradições do
evangelho, no qual as palavras e atos de Jesus foram entregues e transmitidos
entre as décadas de c. 30 - 60.
No entanto, neste estudo de caso nosso interesse diz respeito a uma questão
ligeiramente distinta, referente à idéia de "tradição" que se tomou tão importante
durante o século 2'. Um movimento conhecido como "Gnosticismo" surgiu como
ameaça séria à igreja cristã desse período, em parte devido ao fato de seus
ensinamentos serem superficialmente parecidos com os do próprio Cristianismo.
Muitos escritores gnósticos argumentavam que a salvação era obtida por meio do
acesso a um ensinamento secreto, sendo esta a única maneira de os devotos
garantirem que seriam salvos. Para alguns escritores gnósticos, o
"conhecimento secreto" em questão era quase uma forma de "senha cósmica".
Quando alguém morria, seu espírito era liberto de sua prisão física e podia, então,
começar sua longa e complexa jornada até seu destino final glorioso. Para chegar
lá, era preciso passar por uma série de possíveis obstáculos que só podiam ser
transpostos com o "conhecimento secreto",

Alguns escritores gnósticos argumentavam que esse ensinamento oral secreto


havia sido transmitido pelos apóstolos e que podia ser encontrado na Bíblia em
sua forma "velada". Somente aqueles que sabiam ler a Bíblia de determinada
maneira podiam obter acesso a esse conhecimento que não estava disponível para o
público em geral. Assim, somente aqueles que haviam sido iniciados nos mistérios
do Gnosticismo tinham esperança de ser beneficiados pela salvação que o Novo
Testamento oferecia.

Ficou claro que era absolutamente necessário a igreja refutar esse


ensinamento. Ele sugeria que, apesar de a igreja ter acesso à Bíblia, não tinha
acesso à maneira especial de ler e interpretara Bíblia necessária para compreender o
seu verdadeiro, significado. E, talvez. questão mais importante, a salvação que o
Novo Testamento prometia só estava disponível para os iniciados nas tradições
secretas do Gnosticismo. Em resposta à =caça gnóstica, um método tradiciori de
entender certas passagens das Escrituras começou a se desen-

volver. Escritores patrísticos do século 2-, como limou de Lião,


começaram a formar o conceito de um modo autorizado de interpretar
certos textos das Escrituras que, de acordo com ele, era originário do
tempo dos próprios apóstolos. Não se podia permitir que as Escrituras
fossem interpretadas de maneira arbitrária ou aleatória: deviam ser
interpretadas dentro do contexto da ligação histórica com a igreja cristã.
Os parâmetros; para essa interpretação foram determinados e
apresentados em termos históricos. Aqui, "tradição" significa
simplesmente "um modo tradicional de interpretar as Escrituras dentro da
comunidade da fé". Essa e a abordagem chamada de teoria da tradição
da fonte única.

A fim de compreender Irineu nesse ponto, examinaremos uma


passagem de sua principal obra, Contra as Heresias, na qual ele
tratada ameaça plástica se valendo, para isso, da tradição. Nesse texto,
Irineu argumenta que a comunidade cristã da época possuía uma
tradição de interpretação das Escrituras que ra negada aos hereges.
Por intermédio de sua sucessão histórica desde os apóstolos, os
bispos garantiam que suas congregações permanecessem fiéis aos
seus ensinamentos e interpretações.

1.1.1 Irineu de Lião: Acerca das Escrituras e Tradição


Quando [os hereges] são refutados com base nas Escrituras, passam
a fazer acusações contra as próprias Escrituras, como se estas não
fossem corretas ou não possuíssem autoridade, porque as Escrituras
contêm várias declarações e porque não é possível para aqueles que não
conhecem a tradição encontrara verdade em tais declarações. Pois isto
não foi transmitido por meio de escritos, mas pela "voz viva"... Todos
que desejam compreendera verdade devem considerara tradição
apostólica que foi divulgada por toda a igreja no mundo inteiro.
Podemos contar aqueles que são bispos nomeados pelos apóstolos e
seus sucessores na igreja até o presente, que não ensinaram e que não
tomaram conhecimento de nada do que essas pessoas imaginam. Pois se
os apóstolos tivessem conhecido mistérios secretos que ensinavam em
particular e em segredo para os perfeitos, teriam transmitido tais mistérios
para aqueles aos quais confiaram as igrejas. Porquanto teriam desejado
que estes que eles deixaram como seus sucessores, e aos quais
transmitiram seu próprio ofício de autoridade, fossem perfeitos e
irrepreensíveis... Portanto, uma vez que há tantas comprovações desse
fato, não é necessário procurar em nenhuma outra parte a verdade que pode
ser facilmente obtida da igreja. Pode-se dizer que os apóstolos depositaram
essa verdade em toda a sua plenitude neste depósito, de modo que todo
aquele que desejar pode se ser- vir dessa água da vida. Esta e a porta da
vida; todos os outros são ladrões e salteadores.
Observe os seguintes pontos:
I. Irineu começa identificando um dos principais argumentos gnósticos (linhas 2 -
5). Somente aqueles que "conhecem a tradição" são capazes
ar
de interpretara Bíblia corretamente. Quando a Bíblia parece contradizer
os ensinamentos griósticos, a reação grsódica é, portanto, afirmar que se trata apenas
de uma contradição superficial ou aparente. Ao ser lida de maneira apropriada, à luz
das tradições orais secretas às quais somente os gnósticos têm acesso, vê-se que
ela corrobora, e não contradiz, os seus ensinamentos. Observe particularmente que
essa tradição é oral, e não escrita. A expressão "voz viva" era usada por alguns
escritores gnósticos para se referira essa tradição secreta não-escrita.
2. Irineu contrasta isso coma tradição cristã publicamente acessível,
que é "divulgada por toda a igreja no mundo inteiro" (linhas 5 - 10). Se a tradição
é tão importante, por que foi mantida em segredo? Irineu argumentou que os
ensinamentos apostólicos, que garantem a salvação daqueles que os aceitam, são
divulgados por meio do ensino público da igreja. Os ensinamentos apostólicos
"em toda a sua plenitude" (linha 17) foram "depositados" - ou seja, tomados
disponíveis e acessíveis - por meio da igreja.

3. Observe como Irineu destaca um problema no ponto de vista gnóstico.


Se os gnósticos, dependem de uma "tradição secreta" derivada dos apóstolos, como
podem ter certeza de que esta lhes foi transmitida corretamente? A quem ela foi
confiada? E a quem essas pessoas transmitiram esse conhecimento
subseqüentemente? Irineu enfatiza que, no caso da igreja cristã, os sucessores
imediatos e subseqüentes dos apóstolos são conhecidos e seus nomes podem ser
citados (linhas 7 - 14). Para Irineu, os bispos são a personificação visível da ligação
contínua institucional e doutrinária entre os apóstolos e a igreja contemporânea. Os
apóstolos escolheram confiar seus ensinamentos a sucessores conhecidos dentro
da igreja.

Uma argumentação semelhante foi apresentada por Tertuliano numa


análise redigida no início do século 3- sobre as fontes da teologia que
visava mostrar as deficiências das idéias heréticas. Aqui, Tertuliano dá
ênfase considerável ao papel da tradição e sucessão apostólica para
a definição da teologia cristã. A ortodoxia está firmada sobre a ligação
histórica com os apóstolos e a dependência teológica dos mesmos. Os
hereges, por outro lado, não podem comprovar que possuem essa
ligação.
1.1.2 Tertuliano: Acerca do papel da tradição

A princípio, [os apóstolos] deram testemunho da fé em Jesus Cristo


por toda a Judéia e fundaram igrejas nessa região, depois de que
saíram pelo mundo e proclamaram a mesma doutrina da mesma fé às
nações. Semelhantemente, fundaram igrejas em todas as cidades, das
quais outras igrejas derivaram subsequentemente a fé e as sementes
da doutrina e continuam derivando a fim de poder se tomar igrejas. É
por meio disto que tais igrejas são consideradas "apostólicas", uma vez
que são descendentes das igrejas apostólicas... Portanto, é por esse
motivo que declaramos o seguinte parecer: se o Senhor Jesus Cristo
enviou os apóstolos para pregar, nenhum pregador além daqueles que
foram nomeados por Cristo deve ser recebido, uma vez que "ninguém
conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser
revelar"; e, ao que parece, o Filho o revelou somente aos apóstolos
que enviou para pregar aquilo que ele havia lhes revelado. Aquilo
que eles pregaram-isto é, aquilo que Cristo lhes revelou - deve, por
este parecer, ser estabelecido somente nas igrejas que esses
apóstolos fundaram por meio de sua pregação e, como dizem, pela voz
viva e, subseqüentemente, por meio de suas cartas. Se isto é verdade,
toda doutrina que concorda com essas igrejas apostólicas, a fonte e
origem da fé, deve ser considerada a verdade, uma vez que preserva
indubitavelmente aquilo que as igrejas receberam dos apóstolos, os
apóstolos de Cristo, e Cristo de Deus... Se qualquer uma dessas
[heresias] ousar localizar suas origens na em apostólica de modo a da r
a impressão de que foram transmitidas pelos apóstolos, pois existiam
sob os apóstolos, podemos dizer: que mostrem, portanto, as origens
de suas igrejas; que revelem a ordenação de seus bispos, eviden-
ciando que há uma sucessão desde o princípio, de modo que seu
primeiro bispo tivesse como seu precursor e predecessor um apóstolo
ou algum homem apostólico associado aos apóstolos.

O argumento de Tertuliano enfatiza consideravelmente a importância da


continuidade histórica. Observe como ele ressalta a importância do
vínculo histórico entre apóstolos e bispos, e especialmente a maneira
como exige que aqueles que afirmam representar ensinamentos
"apostólicos" possam provar seus vínculos históricos com os apóstolos.

A discussão sobre os ensinamentos, cristãos autênticos prosseguiu até o século 5-.


Uma das principais preocupações dizia respeito à idéia da inovação doutrinária.
Como a igreja devia se posicionar em relação a ensinamentos que alguns
afirmavam ser baseados nas Escrituras, mas que pareciam novos? Muitas
vezes, as controvérsias dentro da igreja primitiva pareciam acabar introduzindo
novas doutrinas em vez de simplesmente defenderem as doutrinas mais antigas.

Uma das principais contribuições a essa questão foi feita em 434 por Vicente de Lérias
que vivia no sul da França e em chamado por vezes pelo pseudônimo -Peregrinas".
Escrevendo depois da controvérsia pelagiana, Vicente de Lérias expressou sua
convicção de que as controvérsias da época haviam dado origem a inovações
teológicas como, por exemplo, novas maneiras de interpretar certas passagens
bíblicas. Fica claro que ele considerava a doutrina de Agostinho da dupla
predestinação (que surgiu como resposta às idéias de Pelágio acerca da graça)
um desses casos. Mas como tais inovações teológicas podiam ser
identificadas? Em resposta a essa pergunta, ele argumenta em favor de um critério
triplo pelo qual os ensinamentos cristãos podem ser definidos: ecumenicidade (crido
em toda a parte), antiguidade (crido sempre) e consenso (crido por todos). Esse
critério triplo é descrito com freqüência como "Cânon Vicentino", serid que a
palavra "cânon" neste caso remo sentido de "regra" ou "norma".

1.1.3 Vicente de Lérias: Acerca da tradição e ortodoxia

Dediquei estudo considerável e muita atenção a investigar, junto a homens de


santidade e correção doutrinária excepcionais, aquilo que pode me ser possível
estabelecer como uma espécie de princípio norteados fixo e por assim dizer geral,
para distinguir entre a verdade da fé estática e as falsidades depravadas dos
hereges... Tendo em vista sua profundidade, as Escrituras Sagradas não são
aceitas num sentido universal. As mesmas declarações são interpretadas de uma
forma por uma pessoa e de outra forma por outra e, em decorrência disso, parece
haver tantas opiniões quanto há pessoas... Portanto, diante do número e variedade
de erros, é necessário que alguém estabeleça uma regra para a interpretação dos
profetas e dos apóstolos de tal maneira que seja dirigida pela regra da igreja
católica. Na própria igreja católica tomamos todo o cuidado no sentido de crer
naquilo que é crido em toda a parte, sempre e por todas as pessoas (quod abique,
quod semper, quod ab omnibus creditam est).

Observe como Vicente identifica o problema: de que maneira as doutrinas


verdadeiramente cristãs podem ser distinguidas dos ensinamentos dos hereges?
Uma aparente resposta inicial para essa pergunta é que os ensinamentos, verdadeiros
podem ser identificados em função de sua fidelidade às Escrituras. No entanto,
Vicente, argumenta que as Escrituras são interpretadas de formas diferentes por
pessoas diferentes (linhas 5-8). Portanto, não basta apenas apclu para a Bíblia; é
preciso algo mais. Por esse motivo, Vicente argumenta em favor da necessidade
de uma "regra para interpretação dos profetas e dos apóstolos" (linhas 9-10). Ele
encontra essa "regra" naquilo que veio a ser conhecido como consensos fidelium
– "o consenso dos fiéis" que, de acordo com Vicente, é consumido de três
elementos. Uma crença ou forma de interpretar as Escrituras deve ser aceita "em
toda pane, sempre e por todas as pessoas". Em outras palavras, não deve ser
limitada a certa região geográfica, a um período específico ou a um grupo pequeno
de pessoas.

A definição de Vicente se mostrou extremamente influente e seus reflexos


podem ser observados em escritos posteriores que tratam desse tema. No final do
período patrístico, a idéia de interpretara Bíblia dentro da tradição viva da igreja
cristã era vista como um antídoto essencial para a heresia e havia se tomado pane
da forma aceita de tratar da teologia.
Estudo de caso 1.2 A controvérsia ariana: a divindade de Cristo

Durante o período patrístico, deu-se atração considerável à doutrina da pessoa de


Cristo. A discussão se desenvolveu principalmente dentro da igreja oriental e é
interessante observar que Agostinho de Hipona nunca escreveu nada relevante sobre
a cristologia. Esse período se mostrou decisivo, estabelecendo diretrizes para a
discussão da pessoa de Cristo que continuaram sendo nominativas até o início das
discussões ilutrânistas; sobre a relação enfie a fé e a História, tema do qual trataremos
num estudo de caso posterior (ver estudo de caso 4.1).
Coube aos escritores patrísticos a incumbência de desenvolver um esquema
cristológico unificado que reunisse e integrasse as várias sugestões e declarações,
imagens e modelos cristológicos encontrados no Novo Testamento – alguns dos
quais consideramos sucintamente acima–uma tarefa que se mostrou bastante
complexa. O primeiro período de desenvolvimento da cristologia girou em tomo da
divindade de Cristo e se concentrou na questão da possibilidade de descrever
Jesus Cristo como sendo legitimamente "Deus". Ao que parece, o fato de Jesus
Cristo ser humano era uma espécie de truístrio para os escritores patrísticos. Era
algo óbvio e que não exigia justificação. O que em preciso explicara respeito de
Cristo se referia à maneira como ele diferia dos outros seres humanos, e não
como era semelhante a eles.
Dois pontos de vista iniciais foram rejeitados imediatamente como sendo
heréticos. O Ebioniono, uma seita predominantemente judaica que se de-
senvolveu nos primeiros séculos da Em Cristã, considerava Jesus um homem

comum, filho humano de Maria e José. Essa cristologia reduzida foi julgada
totalmente inadequada por seus oponentes e logo caiu em esquecimento.
Um ponto de vista mais relevante e diametralmente oposto ficou conhecido
como Docerisnuí, do verbo grego dokein (parecer). Essa abordagem – que
provavelmente deve ser considerada uma tendência dentro da teologia e não
uma posição teológica definida – argumentava que Cristo era totalmente
divino e que sua humanidade era apenas uma aparência. Assim, os
sofrimentos de Cristo eram considerados igualmente aparentes, e não reais.
O Decetismo se mostrou particularmente, atraente para os escritores
gnósticos do século 2 e, período em que atingiu seu ponto culminante. A essa
altura, porém, estavam se formando outros pontos de vista que acabariam
obscurecendo essa tendência.
luxúria Mártir é o expoente de um desses pontos de vista. Considerado um
dos apologistas mais importantes do século 2°, Justino Mártir se dedicou
especialmente a mostrar que a fé cristã representou a consumação tanto
da filosofia grega quanto do Judaísmo. Adolf voo Hamack resumiu a
maneira como Justino alcançou esse objetivo: argumentou que "Cristo é o
Logos e o Nomos". É particularmente interessante observar a cristologia do
Logos desenvolvida por Justino, na qual ele explora o potencial apologético da
idéia do "Logos" corrente tanto no Estoicismo quanto no Platonismo
médio desse período. O Logos (um temo grego que normalmente é
traduzido como "palavra" – e.g., como no caso de Jo 1. 14) deve ser
considerado a fonte suprema de todo conhecimento humano. Esse mesmo
Logos é conhecido tanto pelos cristãos quanto pelos filósofos pagãos;
estes últimos, porém, têm apenas um acesso parcial a ele, enquanto os
cristãos têm pleno acesso a ele graças à sua manifestação em Cristo. Assim,
Justino reconhece que filósofos seculares pré-cristãos como Flemelito ou
Sócrates tiveram acesso parcial à verdade em função da maneira como o
Logos se encontra presente no mundo.
Uma idéia especialmente relevante neste contexto é a do logos
spermankos, que parece ter origem no Platonismo médio. O Logos divino
lartçou, sementes por toda a história humana; é de esperar, portanto, que esse
"Logos que produz sementes" seja conhecido, ainda que parcialmente,
pelos não-cristãos. Assim, Justino argumenta que o Cristianismo se
desenvolve a partir dos indícios e prenunciações da revelação de Deus
encontrados por toda a história pagã e que representa seu cumprimento. O
Logos se revelou temporariamente por meio das teofimias (isto é, aparições
ou manifestações de Deus) do

Antigo Testamento; Cristo é a revelação plena do Logos. Assim, o


universo da filosofia grega é colocado firmemente dentro do contexto
do Cristianismo: é um prelúdio da vinda de Cristo que cumpre aquilo
que, até então, era conhecido apenas parcialmente.
É nos escritos de Origenes, que a cristologia do Logos parece ser desenvolvida
mais plenamente. É importante deixar claro que a cristologia de Origens é
complexa e que, em alguns pontos, sua interpretação é bastante
problemática. A exposição a seguir é uma simplificação de sua abordagem. Na
crocaritação, a alma humana de Jesus é unida como Logos. Tendo em vista
a proximidade dessa união, a alma humana de Cristo compartilha as
propriedades do Logos. Orígenes ilustra essa idéia se valendo de uma analogia
citada com freqüência:
Se um pedaço de fiam, é morado constantemente no fogo, absorve o calor
do mesmo pelos seus poros e veios. Se o fogo for contínuo e o ferro não
for removido, este se converte inteiramente no outro... Da mesma
maneira, a alma que se encontra constantemente no Logos e Sabedoria, de
Deu,, é Deus em tudo o que faz, sente e compreende.
Não obstante, Origens insiste que o Logos deve ser considerado subor-
dinado ao Pai. Apesar de o Logos e de o Pai serem co-etemos, o Logos
é subordinado ao Pai.

Observamos antes como faturo Mártir argumentou que o Logos era acessível
a todos, mesmo que de modo fragmentário, e que sua revelação plena se
deu apenas em Cristo. Idéias relacionadas podem ser encontradas em outros
escritores que adotaram a cristologia do Logos, incluindo On gerres.
Orgenes adotou uma abordagem à revelação segundo a qual o ato revelatório
de Deus é comparado a ser iluminado pelos "raios de Deus" causados pela
"luz que é o Logos divino". Para Origens, tanto a verdade como a
salvação podem ser encontradas fora da fé cristã.
O que foi dito até aqui tem por objetivo servir de introdução a um dos
marcos mais importantes da discussão teológica do período patirístico - a con-
trovérsia ariana do século P. A controvérsia ariana continua sendo um
ponto de referência no desenvolvimento da cristologia clássica e, portanto,
requer uma discussão mais ampla. Convém observar que certos aspectos da
história

da controvérsia ainda são obscuros e provavelmente permanecerão


assim apesar de todos os esforços dos historiadores no sentido de
esclarecê-los. O que nos interessa aqui são os aspectos teológicos da
discussão que, em comparação com os aspectos históricos, são
compreendidos com mais clareza. No entanto, é preciso enfatizar que
nosso conhecimento d as idéias de Ário é proveniente, em sua maior
parte, das informações transmitidas por seus oponentes, o que levanta
a questão de uma possível tendenciosidade em suas apresentações. A
exposição a seguir é uma tentativa de apresentaras idéias distintivas de
Ário quanto à cristologia da maneira mais justa possível com base nas
fontes confiáveis relativamente escassas que temos hoje à nossa
disposição.
Ário enfatiza a auto-subsistência de Deus. Ele é a única fonte de todas as
coisas criadas; não há nada que não seja, em última análise, proveniente
de Deus. Esse conceito de Deus, que vários comentaristas sugerimos ser
decorrente mais de uma filosofia helenística do que de uma teologia cristã,
levanto inequivocamente a questão da relação entre o Pai e o Filho. Em
sua obra Contra os Arianos, Atanásio, o crítico de Ário, o apresenta fazendo
as seguintes declarações acerca dessa questão:
Deus não foi sempre um pai. Houve um tempo em que Deus estava
sozi.bo e ainda não era um pá: somente mais tarde é que ele se tornou pai. O
Filho não existe desde sempre. Tudo que foi criado veio do nada... de modo
que o Logos de Deus veio a existir do nada. Houve um tempo em que ele
não existia. Antes de ele vir a existir, ele não existia. Ele também tem,
um início em sua existência criada.

Essas declarações são de grande importância e nos conduzem ao


crime do Arianismo. Os seguintes pontos são especialmente relevantes.

1. Considera-se que a existência do Pai é anterior à do Filho. "Houve um


tempo em que ele não existia." Essa afirmação categórica coloca o
Pai e o Filho em níveis diferentes e condiz com a insistência rígida de
Ário na idéia de que o Filho é uma criatura. Somente o Pai é "não-
gerado"; o Filho, como todas as outras criaturas, é proveniente dessa
fonte única de existência. No entram, Ário toma o cuidado de
enfatizar que o Filho não é igual a todas as outras criaturas. Há uma
distinção de posição entre o Filho e as outras criaturas, inclusive os
seres humanos. Ário tem certa dificuldade em identificara natureza
exata dessa distinção. De acordo com sua argumentação, o Filho "é uma
cria-

rum perfeita e, no entanto, não como uma dentre outras criaturas; é um


ser gerado e, todavia, não como um dentre outros seres gerados". A
implicação disso parece ser de que o Filho ocupa uma posição superior às
outras criaturas e, ao mesmo tempo, compartilha da sua natureza
essencialmente criada e gerada.
2. Ário enfatiza a natureza incógnita de Deus para as criaturas, resultan-
do no fato de que o Pai deve ser incógnito para o Filho (que é, como
observamos, uma criarias). Ário ressalta o caráter absolutamente
transcendente e inacessível de Deus. Deus não pode ser conhecido por
nenhuma outra criatura. E, entretanto, como observamos acima, o Filho
deve ser considerado uma criatura, ainda que ocupe uma posição elevada
acima de todas as outras criaturas. Ário insiste em sua lógica argumentando
que o Filho não pode conhecer o Pai. "Aquele que tem um começo não se
encontra em condições de compreender ou apreender aquele que não tem
começo." Essa afirmação importante se baseia na distinção radical enfie o
Pai e o Filho. O abismo que existe crime, eles é tão imenso que este último
não pode conhecer o primeiro por si mesmo. Como todas as outras
criaturas, o Filho depende da graça de Deus para realizar as funções que lhe
foram atribuídas. São considerações como essas que levaram os críticos de
Ário a argumentar que, em se tratando da revelação e salvação, o Filho se
encontra no mesmo nível que as outras criaturas.

3. Ário argumentou que as passagens bíblicas que parecem falar da posi-


ção de Cristo em temos de divindade estavam apenas usando essa
linguagem de forma honorífica. (0 termo técnico para essa forma de uso da
linguagem é "catwxse".) Os oponentes de Ário não tiveram dificuldade em
apresentar uma série de passagens bíblicas que mostram a unidade
fundamental entre o Pai e o Filho. Com base na literatura controversa do
período em questão, fica claro que o Quarto Evangelho foi de suma
importância para essa controvérsia, sendo que João 3.35, 10.30, 12.27,
14.10, 17.3 e 17.11 aparecem com freqüência na discussão. A resposta de
Ário a esses textos é expressiva: a linguagem da "filiação" é de caráter
variado e de natureza metafórica. A referência ao "Filho-é uma forma de
expressão hortorífica, e não teologicamente precisa. Apesar de Jesus Cristo
ser chamado de "Filho" nas Escrituras, essa forma metafórica (mais
precisamente, uma catacrese) de expressão está sujeita ao princípio
controlador de um Deus totalmente diferente em essência de todos os seres
criados - inclusive do Filho.

Assim, as idéias de Ário podem ser resumidas da seguinte maneira'.


1. O Filho é uma criatura que, como todas as outras criaturas, é proveni-
ente da vontade de Deus.
2. O termo "Filho" é, portanto, utru, metáfora, um temo honorífico que visa
ressaltara posição superior do Filho entre outras criaturas. Não indica que o Pai
e o Filho compartilham o mesmo ser ou posição.
3. A posição do Filho é, em si mesma, uma conseqüência da vontade do
Pai; não é decorrente da natureza do Filho, mas da vontade do Pai.

Atanásio não deu crédito às distinções sutis de Ário. Se o Filho é ama criatura,
então ele é uma criatura como todas as outras, incluindo os seres humanos.
Afinal, que outro tipo de existência criada há? Para Atanásio, a afirmação da
existência criada do Filho tem duas conseqüências decisivas, cada uma com
implicações uniformemente negativas para o Arianismo.
Em primeiro lugar, Atanásio argumenta que somente Deus pode salvar. Deus, e
mais ninguém, pode romper o poder do pecado e nos conduzir à vida eterna. Uma
característica essencial de ser uma criatura é a necessidade de redenção.
Nenhuma criatura pode salvar outras criaturas. Somente o Criador pode redimir a
criação. Depois de enfatizar que somente Deus pode salvar, Atanásio apresenta
o argumento teológico que os arianos tiveram mais dificuldade de refutar. Tanto o
Novo Testamento quanto a tradição fiongica cristã consideram Jesus Cristo como
sendo Salvador. E, no entanto, Atanásio ressal
tou: somente Deus pode salvar. Como devemos entender isso?
De acordo coma argumentação de Atanásio, a única solução possível é aceitar
que Jesus é Deus encarnado. A lógica desse argumento é expressa, por vezes, da
seguinte forma:

1. Nenhuma criatura pode redimir outra criatura.


2. De acordo com Ário, Jesus Cristo é uma criatura.
3. Portanto, de acordo com Ário, Jesus Cristo não pode redimir a
humanidade.

Em outras ocasiões, pode-se discernir um estilo ligeiramente diferente de


argumentação com base nas declarações das Escrituras e na tradição tonifica
cristã.

1. Somente Deus pode salvar.


2. Jesus Cristo salva.
3. Portanto, Jesus Cristo é Deus.

Para Atanásio, a salvação envolve a intervenção divina. Assim, Atanásio extraio


significado de João 1.14 argumentando que o "Verbo se fez carne" em outros
palavras, Deus entrou na situação humana a fim de mudá-la.

O segundo argumento que Atanásio desenvolve é que os cristãos adoram e oram a


Jesus Cristo. Trata-se de um excelente estudo de caso da importância das práticas
de adoração e oração para a teologia cristã. No século 4L1, a adoração e oração a
Cristo eram características oficiais da maneira como o culto público era realizado.
Atanásio argumenta que se Jesus Cristo é uma criatura, então os cristãos são
culpados de adorar uma criatura em vez de Deus - em outras palavras, caíram em
idolatria. Polariza que os cristãos são absolutamente proibidos de adorar qualquer
outra pessoa ou coisa, devendo prestar culto somente a Deus. Assim, Atanásio
argumentou que Ário parecia tomar absurda a forma como os cristãos oravam e
adoravam. Ressaltou ainda que os cristãos tinham o direito de reverenciar e adorara
Jesus Cristo pois, ao fazê-lo, estavam reconhecendo sua verdadeira identidade
como Deus encamado.
A fim de que a paz pudesse ser estabelecida dentro da igreja era preciso resolvera
controvérsia ariana de alguma forma. A discussão passou a girar em tomo de dois
termos como possíveis descrições da relação do Pai com o Filho. O termo
lionimousios "de substância semelhante" ou "de ser semelhante" foi considerado
por muitos um acordo criterioso, permitindo que a proximidade entre Pai e Filho
fosse asseverada sem exigir maiores especulações acerca da natureza precisa de
sua relação. No entanto, o termo rival luavoousios, "da mesma substância" ou "do
mesmo ser" acabou prevalecendo. Apesar de diferir do temo alternativo em apenas
uma letra, representava uma visão distinta da relação entre Pai e Filho. O furor da
discussão levou o historiador britânico Edward Gibbon a comentar anistia obra
Decline and Fall of the Roman Empire ("Declínio e queda do Império Romano")
que nunca se gastou tanta energia com uma única vogal. O Credo Niceno- ou, más
precisamente, o Credo NiceitoConstiurifinopolitano - de 381, declarou que Cristo era
"da mesma substância" que o Pai. Desde então, essa declaração passou a ser
considerada amplamente como referencial da ortodoxia cristológica nas principais
igrejas cristãs, quer protestantes, católicas ou ortodoxas.
O estudo de caso que acabamos de investigar tratou de uma controvérsia referente
à questão da cristologia. O estudo de caso a seguir trata de nina discussão que
surgiu especificamente dentro da escola cristológica alexandrina em tomo dos
ensinamentos de Apolinário de Laodicéia.

Estudo de caso 1.3 A escola eristológica alexandrina: a


controvérsia altadinária

No estudo de caso 1.2, consideramos a resposta de Atanásio a Ário. Ao fazê-lo,


começamos a tratar de algumas das características da escola alexandrina de
cristologia. É apropriado, portanto, explorá-las mais detalhadamente em conjunto
com uma discussão que ilustrou a tensão dentro dessa escola. Num estudo de
caso posterior (estudo de caso 1.4), investigaremos as idéias da escola rival
solicitam.

A visão da escola alexandrina, da qual Atanásio é um representante, é in-


tensamente soteriológica. Jesus Cristo é o redentor da humanidade, sendo que
"redenção" significa "ser inserido na vida de Deus- ou "ser tomado divino", um
conceito expressado tradicionalmente em termos de deificação. A cristologia
expressa aquilo que a visão soteriológica deixa implícito. Podemos resumir a
trajetória da cristologia alexandrina do seguinte modo: a fim de ser deificada, a
natureza humana deve ser unida com a natureza divina. Deus deve se unir com a
natureza humana de tal maneira que esta última possa compartilhar da vida de
Deus. De acordo com os alexandrinos, foi exatamente isso que aconteceu na
encarnação do Filho de Deus em Jesus Cristo e por meio dela. A Segunda Pessoa da
Trindade assumiu um natureza humana e, ao fazê-lo, garantiu sua divinização. Deus
se tomou humano a fim de que a humanidade se tornasse divina

Assim, os escritores alexandrinos davam grande ênfase à idéia do Logo%


assumindo a natureza firmaria- O termo "assumir" é importante; fa ,~ ama
distinção crutre, o Logos "habitar na humanidade" (como no caso dos profetas do
Antigo Testamento) e o Logos tomar sobre si a forma humana (como na
encarnação do Filho de Deus). Nesse sentido, dava-se ênfase particular a João
1.14 ("o Verbo se fez carne"), uma passagem que veio a representar as idéias da
escola e a celebração fluírgica, do Natal. Celebrar o nascimento de Cristo era
celebrara vinda do Logos ao mundo e seu ato de assumir a natureza humana a
fim de redimi-la.
Esse ponto de vista levantou inequivocamente a questão da relação entre a
divindade e humanidade de Cristo. Cirilo de Alexandria foi um dos vários autores
dentro da escola que enfatizaram a realidade de sua união na encarnação. O Logos,
existia "sem carne" antes de sua união com a natureza humana; depois dessa
união, há somente uma natureza no sentido de que o Logos uniu a natureza
humana a si. Essa ênfase sobre a natureza única de Cristo distingue a escola
alexandrina da escola antioquina que se mostrou mais receptiva à idéia de dana
naturezas dentro de Cristo. Ao escrever no século 5-, Cirilo expressa a questão da
seguinte forma:

Não afirmamos que a natureza do Logos passou por uma mudança e se tomou
carne, ou que foi transformada em um ser humano pleno ou perfeito constituído
de carne e corpo; antes, dizemos que o Logos... uniu-se pessoalmente a natureza
humana com uma alma viva, tornou-,,c um ser humano e foi chamado de Filho do
Homem, mas não por mera vontade eu favor.

Com isso, levantou-se a questão do tipo de natureza humana que havia sido
assumida. Podemos voltar ao século 4- e investigar essa questão em mais
detalhes. Apolinário de Lturdicéia considerou preocupante a crença cada vez
mais amplamente difundida de que o Logos assumiu a natureza humana em
sua totalidade. A seu ver, isso indicava que o Logos havia sido contaminado
pelas fraquezas da natureza humana. Como era possível permitir que o Filho
de Deus Ítissemaculado por princípios diretivos puramenachumarios? De acordo
com Apolinário, a impecabilidade de Cristo tera sido comprometida se ele
tivesse assumido uma mente absolutamente humana; pois, afinal, não era a
mente humana a fonte do pecado e rebelião contra Deus? A impecabilidade de
Cristo só poderia ser mantida se a mente humana fosse substituída por uma
força motivadora e diretora divina. Por isso, Apolinário argumentava que, em
Cristo, uma mente e almaputamenac hummas foram substituídas porunta mente
e alma divina: "a energia divina cumpre o papel de animara alma e a mente
humanas" em Cristo. A natureza humana de Cristo é, portanto, incompleta.
Pode-se ver isso claramente numa carta escrita por Apolinário para os
bispos de Dioeesareia apresentando as principais características de sua
crístrilogia. A mais importante é a asserção inequívoca de que, na
encamiação, o Verbo não assumiu uma mente humana "mutável", o que
teria levado o Verbo a se ver preso no pecado humano. Antes, pressupunha
"uma mente divina imutável e celestial". Em decorrência disso, não se pode
dizer que Cristo foi totalmente humano.

1.3.1 Apolinário de Laodicéia: Acerca da mente de Cristo

Confessamos que o Verbo de Deus não desceu sobre um homem santo,


como acontecia no caso dos profetas. Antes, o próprio Verbo se tornou
carne sem assumir uma mente humana – ou seja, uma mente irritável,
escravizada por pensamentos impuros – mas existindo como uma
mente divina imutável e celestial.

Essa idéia causou espanto em muitos dos colegas de Apolinário. É possível


qu e a visão apolinariana tenha se mostrado atraente para alguns; canos,
porém, ficaram chocados com suas implicações soteriológicas. Ressaltamos
anteriormente que as considerações soteriológicas são de suma
importância para a abordagem alexandrina. A pergunta era: de que maneira a
natureza humana podia ser redimida se o Logos havia assumido apenas parte
dessa natureza? Talvez a declaração mais famosa dessa posição seja a de
Gregário de Nazianzo em sua Carta 101, na qual ele enflatizou, a
importância redentora de Cristo haver assumido a natureza humana em sua
totalidade na encartuação.

Nessa carta, escrita em grego em algum momento em 380 ou 381, Gregóriu,


ataca frontalmente a tese central do apolírutriartísmo: a idéia de que Cristo
não era inteiramente humano, no sentido de que possuía "uma mente divina
imutável e celestial" e não uma mente humana. Pua Gregário, isso é o mesmo
que negara possibilidade de redenção. Somente aquilo que o Verbo assume na
encarnação pode ser redimido. Se Cristo não possuía uma mente humana, a
humanidade não é redimida.

1.3.2 G~rio de Nazianzo: Acerca da encarnação

Que as pessoas não se enganem dizendo qu e o "Homem do Senhor", o


título que dão aquele que é, antes, "Nosso Senhor e Deus", não teve
mente humana. Não separamos a humanidade da divindade; na verdade,
asseveramos o dogma da unidade e da identidade da Pessoa que
anteriormente não era apenas humana, mas Deus, o único Filho antes de
todas as eras, que nestes últimos dias também assumiu natureza humana
para nossa salvação; possível em sua carne, impassível em sua Divindade;
sujeito a limitações em seu corpo, mas ilimitado no Espírito; ao mesmo
tempo terreno e celestial, tangível e intangível, compreensível e incompre-
ensível; para que por uma mesma pessoa, um ser humano e Deus perfeito,
toda a humanidade, decaída por meio do pecado, possa ser recriada.

Se alguém não crer que a santa Maria é Thecnokos, será excluído da


Divindade... Se alguém asseverar que a humanidade foi criada e, só mais
tarde, investida de divindade, também será condenado... Se alguém apre-
sentar a idéia de dois filhos, um de Deus o Pai, outro da mãe, pode perder
sua parte na adoção... Porquanto o Ser Divino e a humanidade são
duas naturezas, como são a alma e o corpo, mas não há dois Filhos
nem dois Deuses... Porquanto as duas naturezas são uma por meio de
combinação, o Ser Divino deificou o homem ou humanidade, ou
qualquer que seja a expressão apropriada...
Se alguém depositou nele a sua confiança como ser humano sem
mente humana, essa própria pessoa é estulta e indigna de salvação.
Pois aquilo que não foi assumido não foi curado; aquilo que é
unido à sua divindade é salvo... Que tais pessoas não ressintam de
nossa salvação total, nem reinvistara, o Salvador apenas com ossos e
nervos e mera aparência de humanidade.

Os seguintes pontos da passagem acima são particularmente


importantes e devem ser observados com atenção:

1. Gregório enfatiza que Jesus Cristo é, ao mesmo tempo, Deus


perfeito e ser humano perfeito (linhas 9-10). Apesar de a natureza
humana ter decaído em função do impacto do pecado, ainda pode ser
redimida. E, para que a totalidade da natureza humana seja redimida,
segue-se que a totalidade dessa natureza humana deve ser assumida.
2. Observe o uso do termo Theotokos (linhas 11-12) para se
referir a Maria. Para Gregório, o uso desse título (que pode ser traduzido
literalmente como "aquela que deu à luz Deus", mas que costuma
ser traduzido numa forma mais popular como "Mãe de Deus") é um con-
seqüência necessária da encartuação. Negar esse título corresponde a
negara realidade da encarnação - um ponto especialmente importante
em relação à controvérsia que surgiu dentro da escola antioquina so-
bro os ensinamentos de Nestõrio acerca dessa questão que considera-
remos num estudo de caso posterior testudo de caso 1.4).
3. Observe o argumento do último parágrafo (linhas 20-21), e
especialmente a asserção: "aquilo que não foi assumido não foi curado".
Para Gregório, somente os aspectos da natureza humana que foram
unidos com a divindade na encarnação é que são salvos. A fim de
sermos salvos na totalidade de nossa natureza humana, essa
totalidade deve ser colocada em contato com a divindade. Se Cristo é
apenas parcialmente ou aparentemente humano, então a salvação não é
possível.

Investigamos neste estudo de caso uma controvérsia importante


dentro de uma das duas escolas patristicas predominantes de
cristologia. No estudo de caso seguinte, examinaremos uma discussão
extremamente expressiva que surgiu dentro da escola antioquina.

Estudo de caso 1.4 A escola cristológicia antioquina: a


controvérsia nestoriana

No estudo de caso 1.3, observamos o desenvolvimento da escola


alexandrina de cristologia e acompanhamos a trajetória de uma controvérsia
importante dentro dessa escola. Neste estudo de caso, repetiremos esse
exercício nos concentrando na escola rival, a escola de Antioquia.
A escola de cristologia que se desenvolveu na Síria (atual Turquia) dife ria
consideravelmente de sua rival egípcia em Alexandria. Um dos pontos mais
significativos dessa diferença se refere ao contexto das especulações
cristológicas. Os escritores alexandrinos foram motivados principalmente
pelas considerações soteriológicas. Sua preocupação de que conceitos
deficientes da pessoa de Cristo estavam associados a conceitos
inadequados da salvação os levou a usar idéias derivadas da filosofia
grega secular para garantir uma imagem de Cristo coerente com a
redenção plena da humanidade. A idéia de "Logos" era particularmente
importante nesse caso, especialmente ao ser associada ao conceito de
encatmação.
Os escritores antioquinos diferiam dos alexandrinos neste ponto. Seus
interesses eram de ordem moral, e não puramente soteriológica, e não se
valeram tão extensivamente de idéias da filosofia grega. Atrajetórialiásica de
grande parte do pensamento antioquino sobre a identidade de Cristo pode ser
definida dentro das seguintes linhas. Em função de sua desobediência, os
seres humanos existem num estado de corrupção do qual são incapazes
de se libertar. A fim de que a redenção possa ocorrer, sua base deve ser
uma nova obediência da parte da humanidade. Uma vez que a humanidade
não é capaz de se libertar das amarras do pecado, Deus é obrigado a
intervir. Isso leva à vinda do redentor como aquele que me a humanidade e a
divindade e, desse modo, ao restabelecimento de um povo de Deus
obediente.
As duas naturezas de Cristo são defendidas energicamente. Cristo é, ao
mesmo tempo, Deus e ser humano. Em oposição às críticas alexandrinas de
que Lã afirmação correspondia a negara unidade de Cristo, os antioquinos
responderam que mantinham essa unidade e, simultaneamente, reconheciam
que o redentor único possuía tanto uma natureza humana perfeita quanto
uma natureza divina perfeita. Em Cristo, há uma "conjunção perfeita" das
naturezas humana e divina. A unidade completa de Cristo não é, portanto,
conflitante como fato de ele possuir duas naturezas - divina e humana.
Teodoro de Mopsuéstia enfatizou isso ao asseverar que a glória de Jesus
Cristo "vem de Deus, o Logos, que o assumiu e uniu a si mesmo... E graças
a essa conjunção exata que essescr lima-no tem com Deus o Filho, a criação
toda o honra e adora".
Então, de q ue maneira os teólogos antioquinos imaginavam o modo de
união das naturezas divina e humana em Cristo? Vimos anteriormente o
modelo da "assunção" que se tomou predominante em Alexandria, segundo o
qual o

Legas assumiu a carne humana. Que modelo foi empregado em


Antioquia? A resposta pode ser resumida da seguinte forma:

Alexandria: o Logos assume uma natureza humana geral.


Antioquia: o Logos assume uma natureza humana específica.
Teodoro de Mopsuéstia propõe em várias ocasiões que o Logos não
assumiu uma "forma humana" em geral, mas a forma de um ser humano
específico. Teodoro parece sugerir que, em vez de assumir uma natureza
humana geral ou abstrata, o Logos assumiu um indivíduo humano
concreto específico. Essa parece ser a idéia encontrada em seu
Tratado Sobre a Encarnação: "Ao vir habitar, o Logos uniu e assumiu (um
ser humano) como um todo em si e o fez compartilhar de toda a dignidade
daquele que o habita, sendo Filho de Deus por natureza".

Então, de que maneira as naturezas humana e divina se relacionavam?


Para os escritores atirioquituos, a posição dos alexandrinos resultava numa
"mistura" ou "confusão" das naturezas humana e divina em Cristo. Em vez
disso, propuseram uma forma de conceituara relação entre as duas
naturezas que mantivesse suas identidades distintas. Essa "união segundo o
bel-prazer" implica que se entenda as naturezas humana e divina de Cristo
como compartimentos herméticos dentro de Cristo. Elas nunca interagem nem
se misturam. Permanecem distintas, mantidas em união pelo bel-prazer de
Deus. A "união hipostâtica" - ou seja, a união das naturezas divina e
humana de Cristo - tem por base a vontade de Deus.
Ao que parece, isso sugere que Teodoro de Mopsuéstia considera a
união das naturezas humana e divina como sendo de ordem
puramente moral, como a união entre marido e mulher. Também gera a
suspeita de que o Logos apenas se reveste de natureza humana como
quem veste um casaco: a ação em questão é temporária e reversível e
não envolve nenhuma mudança fundamental das partes em questão.
No entanto, tudo indica que não eram essas as conclusões pretendidas
pelos escritores antioquinos. Talvez a maneira mais confiãvcl de abordar
sua posição seja sugerir que seu desejo de evitara confusão entre as
naturezas divina e humana dentro de Cristo os tenha levado a
enfatizar seu caráter distintivo-mas que, ao fazê-lo, tenham
enfraquecido involutritariamente, a ligação dessas duas naturezas na
união hipostática.

Isso se tornou motivo de controvérsia em função da maneira como Nestório


escolheu expressar seus conceitos crivológicos, o que para os seus
críticos pareceu equivaler a uma doutrina de "dois filhos" - ou seja, que
Jesus Cristo não era apenas uma única pessoa, mas duas, uma humana e
outra divina. E, no entanto, essa idéia e explicitamente excluída pelos principais
escritores dessa escola, como o próprio Nestório. De acordo com ele, Cristo
"é o nome comum das duas naturezas".

Cristo é indivisível no sentido de que ele é Cristo, mas é duplo no sentido de que
ele é tanto Deus quanto ser humano. Ele é um em sua filiação, mas é dois naquilo
que toma e que é tomado... Pois não reconhecernos, dois Cri,tos ou dois filhos ou
"migênitos" ou Senhores; não um filho e outro filho, não um primeiro
"primogénito" e um novo "primogênito", não um primeiro e segundo Cristo, mas
um único e mesmo Cristo.

De acordo com indicações de relatos contemporâneos, as idéias de


Nestório germino certo escândalo. Segue-se um trecho de uma história da
igreja compilada por volta dessa época por Suemos, também conhecido como
'Escolástico". Ainda que, provavelmente, haja alguma tendenciosidade no
relato acerca das ações e palavras de Nestório, aquilo que se encontra nessa
passagem corresponde adequadamente ao que se sabe da situação da época.
Observe como a controvérsia se concentra no fato de Maria, mãe de Jesus
Cristo, ser chamada apropriadamente de Theotokos ("aquela que deu à
luz Deus"). Aqui, Nestório é retratado num estado de confusão entre usar o
termo ou não, hesitante quanto aquilo que esse uso afirma e temeroso do
que sua negação pode implicar.

1.4.1 Um relato contemporâneo das idéias de Nestório

[Nestrario] tinha como colega o presbítero Anastácio que ele havia trazido de
Antioquia. Ele o tinha em alta consideração e o consultava acerca de
várias questões. Um dia, Anastácio estava pregando na igreja
e disse: "Que ninguém chame Maria de Mãe de Deus (Theotokos): pois
Maria foi apenas um ser humano e é impossível Deus ser nascido de um ser
humano". Isso causou grande escândalo e pesar tanto para o clero quanto
para os leigos uma vez que, até então, haviam sido ensinados a reconhecer
Cristo como Deus e a não separar sua humanidade de sua divindade em
função da economia [da salvação]... Apesar de a igreja ter se ofendido
grandemente com aquilo que foi proclamado desse modo, Nestório, que
estava ansioso para introduzira proposta de Anastácio –pois não desejava
que alguém a quem ele considerava em tão alta estiam fosse tido como
culpado de blasfêmia – continuou a instruir a igreja com frequência acerca
dessa questão. Adotou uma atitude controversa e rejeitou inteiramente o
termo Theotokos. A controvérsia sobre a questão foi entendida de uma
forma por alguns e de outra forma por outros e a discussão resultante
dividiu a igreja e começou se parecer com uma luta no escuro na qual os
envolvidos apresentavam asserções de todos os tipos, cada uma mais
confusa e contraditória do que a outra. Nestório adquiriu a reputação popular
de afirmar que o Senhor não passava de um ser humano e de tentar impor à
igreja os ensinamentos de Paulo de Samosata e Fotino. Isso levou a um
protesto tão intenso que se considerou necessário convocar um concilio
geral para decidir a questão em discussão. Uma vez que eu mesmo estudei
os escritos de Nestório, devo dizer que, a meu ver, se trata de um homem
inculto e pretendo expressar minhas próprias idéias a seu respeito. Não
posso reconhecer que ele era seguidor de Paulo de Samosata ou Fotino,
ou que em algum momento ele afirmou que o Senhor não era nada além
de um ser humano. No entanto, ele pareceu se assustar diante do termo
Theotokos, como se fosse um espectro terrível. Na verdade, a inquietação
infundada que ele demonstrou a esse respeito apenas revelou sua extrema
ignorância: pois sendo um homem de aptidão natural para falar, foi
considerado culto, mas, na realidade, é terrivelmente ignorante. O fato é
que ele não teve tempo para o trabalho árduo que uma investigação precisa
dos intérpretes antigos teria exigido e, tomado arrogante em função da sua
facilidade de expressão, não dedicou sua atenção aos antigos,
considerando-se, antes, superior a eles.

A fim de entender o que está em questão aqui, devemos investiga r


um aspecto da cristologia conhecido como doutrina da
"comunicação de atributos", um conceito discutido com frequência
usando-se a expressão em latim contrnunicatio idíontatuan. A questão
em discussão pode ser investigada da seguinte maneira. No final do
século 0, as seguintes propostas haviam se tomado amplamente
aceitas dentro da igreja:

1. Jesus é plenamente humano.


2. Jesus é plenamente divino.
Argumentava-se que, se essas duas declarações são simultaneamente
verdadeiras, aquilo que valia para a humanidade de Jesus também devia valer para
sua divindade – e vice-versa. Por exemplo:

1. Jesus Cristo é Deus;


2. Maria deu à luz Jesus;
3. Portanto, Maria é a Mãe de Deus.

Esse tipo, de argumento se tomou cada vez mais comum na igreja do século 4%
de fato, sereia com freqüência como meio de testara ortodoxia de um teólogo.
Deixar de concordar que Maria era a "Mãe de Deus" se tornou equivalente a uma
recusa em aceitara divindade de Cristo. Pode-se ver isso, por exemplo, na
resposta de Gregório de Nissa a Apolinário, observada no estudo de caso 1.3.
Mas até onde esse princípio é válido? Considere, por exemplo, a seguinte linha de
argumentação:

1. Jesus sofreu na cruz;


2. Jesus é Deus;
3. Portanto, Deus sofreu na cruz.
As duas primeiras declarações são ortodoxas e exigiam o consentimento geral da
igreja. Mas a conclusão tirada delas era considerada, quase por unanimidade,
inaceitável. Era axiomático para quase todos os escritores patrísticos que Deus não
podia sofrer. No período patrístico, teólogos se extenuaram para definir os limites
dessa abordagem. Assim, Gregório de Nazianzo insistiu na necessidade de
considerar que Deus sofria; de outro modo, a realidade da encarnação do Filho
de Deus seria colocada em dúvida. No entanto, foi a controvérsia nestoríama que
ressaltou a importância dessa questão.
No tempo de Nestório, o título Theoukos já havia se tomado amplamente aceito
tanto na piedade popular quanto na teologia acadêmica. No entanto, Nestório se
mostrou receoso de suas implicações. O termo parecia negar a humanidade de
Cristo. Por que não chamar Maria anthropotokos ("aquela que deu à luz
humanidade") ou Chrioankos ("aquela que deu à luz Cristo")? Suas sugestões
foram recebidas com ultraje e indignação em função do investimento teológico
enorme que havia se tomado associado ao termo neotokos. Pode-se dizer que a
argumentação de Nestério era inteiramente legítima; contudo, a maneira como ele a
apresentou foi motivo de ofensa considerável. Sem dúvida, a discussão foi
intensificada por uma controvérsia política impendente acerca do patriarcado de
Constantinopla. Aqueles que eram contrários ao seu sonos crescente dentro do
mundo cristão (especialmente os que eram ligados à cidade

rival de Alexandria) aproveitaram os comentários de Nestório e


exploraram sua natureza controversa para fazer frente ao sanas do
patriarcado. Esse tipo de hostilidade pode ser visto na resposta de
Cirilo de Alexandria a Nestório, o texto para o qual nos voltamos agem.
Numa seção importante de sua Cana 17, escrita por volta de 430, Cirilo
condena 12 proposições associadas à escola amioquina de teologia.
Apesar de Cirilo considerar essas idéias heréticas, em alguns
momentos sua preocupação maior parece ser coma comprovação da
supremacia da posição alexandrina m relação à posição antioquina.
Das 12 proposições, as três primeiras são articularmentíte expressivas.

1.4.2 Cirilo de Alexandria: Acerca da cristologia antioquina


 Se alguma pessoa não reconhecer que Emanuel é
verdadeiramente Deus, e que a Virgem santa é, conseqüentemente,
'Theowkos", pois deu â luz na carne ao Verbo de Deus que se fez
carne, que essa pessoa seja condenada.
 Se alguma pessoa não reconhecer que o Verbo de Deus o Pai
foi unido substancialmente coma carne, e com sua própria carne é um
Cristo, ou seja, Deus e ser humano juntos, que essa pessoa seja
condenada.
 Se alguma pessoa dividir as pessoas no Cristo único
depois de sua união, juntando-as numa mera conjunção de
acordo com sua posição, ou numa conjunção efetuada por
autoridade ou poder, e não numa combinação de acordo com a
união de naturezas, que essa pessoa seja condenada.
Os seguintes pontos são particularmente interessantes:
1. O primeiro ponto se concentra no uso do termo TheoakoY,
tornando a disposição de usar esse termo o indicador de ortodoxia
em relação à doutrina da encarnação. Para Cirilo, qualquer um que
se recusa a usar esse termo está, na verdade, negando a
divindade de Cristo e, portanto, é herege.
2.0 segundo ponto insiste numa união física de algum tipo entre a
humanidade e a divindade de Cristo. Aqui, Cirilo está criticando o
modelo antioquino de encarnação, no qual a humanidade e a divindade
e= consideradas inteiramente presentes em Cristo, mas de modo
não-interativo. Para Cirilo, somente o modelo de "assunção", no
qual a natureza divina "assume" a natureza humana, pode fazer
justiça ao ensino ortodoxo.

3. Portanto, em seu terceiro ponto, Cirilo condena a idéia de uma "união segundo
o bel-prazer de Deis", uma das características da escola antioquina.
Rejeitando-a como uma mera "conjunção", e não uma verdadeira união, Cirilo
argumenta que se trata de algo totalmente meticaz para salvaguardar os
princípios teológicos e espirituais vitais em jogo na doutrina da encarnação.
Fica claro, assim, que a cristologia foi uma questão de suma importância durante o
período patrística. Das discussões desse período, começaram a surgir os
contamos de um consenso cristão acerca desse assunto, trazendo avanços para a
discussão teológica. Há praticamente um consenso de que, uma vez que as
questões crismirigicas foram resolvidas, o tema seguinte a ser discutido era a
doutrina cristã distintiva acerca de Deus. Isso nos leva, naturalmente, à
doutrinada Trindade, o rema do próximo estudo de caso.

Estudo de caso 1.5 A doutrina da Trindade

Convém considerar o desenvolvimento da doutrina da Trindade em celação


orgânica coma evolução da cristrilogia. Tomou-se cada vez mais claro que havia
um consenso no sentido de que Jesus era "da mesma substância
(homoousios)" que Deus, e não apenas "de substância semelhante
(homoiousios)". Mas se Jesus era Deus, em qualquer sentido significativo da
palavra, o que isso indicava acerca de Deus? Se Jesus era Deus, não havia,
então, dois Deuses? Ou era apropriado que a natureza de Deus passasse por
uma reconsideração radical? Em termos históricos, é possível argumentar que a
doutrina da Trindade se encontra intimamente ligada ao desenvolvimento da
doutrina da divindade de Cristo. Quanto mais enfaticamente a igreja afirmou que
Cristo era Deus, mais se viu sob pressão para esclarecer de que maneira Cristo
era relacionado a Deus.
O ponto de partida das reflexões cristãs acercada Trindade é o testemunho do Novo
Testamento da presença e atividade de Deus em Cristo e por meio do Espírito.
Para luineu, o processo rodo de salvação, do começo ao fim, dava testemunho da
atuação do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Irineu empregou uma expressão que
adquiriu preeminência nas discussões subseqüentes da Trindade: "a economia da
salvação". É necessário esclarecer o termo "economia". A pala-vis, grega
oikonomia significa, basicamente, "a maneira como os negócios de uma pessoa
são colocados em ordem" (fica clara, portanto, a relação como uso

moderno dessa palavra). Para trinca, a "criminais da salvação- significa "a


maneira como Deus ordenou a salvação da humanidade na História".
Na época, Irineu estava sob pressão considerável dos críticos gnósticos que
argumentavam que o deus criador era inteiramente distinto (e inferior) ao deus
redentor. Na forma preferida por Márcios, a idéia adquiriu a seguinte
configuração: o deus do Antigo Testamento é um deus criador e totalmente
distinto do deus redentor do Novo Testamento. Em decorrência disso, o Antigo
Testamento deve ser rejeitado pelos cristãos que devem, então, concentrar sua
atenção no Novo Testamento. limeu rejeitou essa idéia categoricamente. Insistiu
que o processo todo de salvação, desde o primeiro momento da criação até o
último momento da História, foi obra do mesmo e único Deus. Havia somente uma
economia da salvação, na qual o Deus único - que é tanto criador quanto
redentor - estava operando para redimir sua criação.

Em sua Demonstração da Pregação Apostólica, Irmeir insistiu nos papéis


distintos, porém relacionados, do Pai, do Filho e do Espírito dentro da economia
da salvação. Afirmou sua fé em:

Deus o Pai não-criado, incontido, invisível, Deus mano, criador do universo... e


no sserb. de Deus, o Filho de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo, que... na plenitude
do tempo, a fim de reunir todas as coisas em si, tornou-se ser humano entre os
humanos, para... destruir a more, trazer a vida e obter a comunhão entre Deus e a
humanidade... E o Espírito Santo... foi derramado de maneira nova setni, nossa
humanidade a fim de nos tomar novos pia todo o mundo aos olhos de
Deus.
Essa passagem destaca com clareza a idéia de uma Trindade econômica - isto é, de
uma visão da natureza do Ser Divino de acordo com a qual cada pessoa é
responsável por um aspecto da economia da salvação. A doutrina da Trindade,
longe de ser uma especulação teológica imelevante, se baseia diretamente na
experiência humana complexa da redenção em Cristo e trata da explicação dessa
experiência.

Tertuliano conferiu à teologia da Trindade o seu vocabulário peculiar; também lhe


deu sua forma distintiva. Deus é um; não obstante, Deus não pode ser considerado
algo ou alguém totalmente isolado da ordem criada. A economia da salvação
mostra que Deus se encontra ativo na criação. Essa atividade é complexa e, ao ser
analisada, a ação divina revela, ao mesmo tempo, unidade e distinção. Tertuiliarís,
argumenta que a substância é aquilo que une os três aspectos da economia da
salvação; a pessoa é aquilo que as distingue. As três pessoas da Trindade são
distintas, porém indivisíveis; diferentes, porém não separadas ou independentes
umas das outras. A complexidade da experiência humana de redenção é
resultante, portanto, das três pessoas do Ser Divino atuando de maneiras distintas,
porém coordenadas na história humana, sem se perder, em qualquer sentido, a
unidade total do Ser Divino.
Na segunda metade do século 4-, a discussão acerca da relação entre o Pai e o
Filho já dava todas as indicações de esto resolvida. O reconhecimento de que o
Pai e o Filho eram "consubstanciais" decidiu a controvérsia ariana e estabeleceu
um consenso dentro da igreja sobre a divindade do Filho. Mas ainda eram
necessárias mais estruturações teológicas. E quanto à relação do Espírito com o
Pai? E com o Filho? Havia um consenso cada vez maior de que o Espírito não
podia ser deixado de fora do Ser Divino. Os patriarcas da Capadócia,
especialmente Basílio de Cesaréia, defenderam a divindade do Espírito em
termos tão persuasivos que lançaram os alicerces para que o último elemento
da teologia trinitária fosse colocado em seu devido lugar. Chegou-se a um
consenso quanto â divindade e co-igualdade do Pai, do Filho e do Espírito;
restava, então, desenvolver modelos trinitários que permitissem * visualização
desse conceito do Ser Divino.

Em geral, a tendência da teologia oriental em enfatizara individualidade distinta


das três pessoas, ou hipósta ves, e salvaguardar sua unidade enfatizando o fato
de que tanto o Filho quanto o Espírito eram provenientes do pai. A relação
entre as pessoas ou hipósiaseá é ontológica, baseada naquilo que essas
pessoas são. Assim, a relação do Filho com o Pai é definida pelos termos "ser
gerado" e "filiação". Como veremos adiante, Agostinho se afasta dessa
abordagem, preferindo tratar as pessoas em termos relacionais. Voltaremos a
essas questões à frente, ao tratar da controvérsia de filioque.
No entanto, a abordagem ocidental apresentava uma tendência clara de partir da
unidade de Deus, especialmente na obra de revelação e redenção, e
interpretara relação das três pessoas em temos de sua comunhão mútua.
Essa é a posição característica de Agostinho e que investigaremos posterior-
mente neste estudo de caso.
A abordagem oriental pode dar a impressão de sugerir que a Trindade é
constituída de três agentes independentes que lucra coisas bastante diferentes.
Essa possibilidade é excluída por dois avanços posteriores que normalmente
são chamados de "interpenetração mútua (pericorese)" e "apropriação". Apesar
de essas idéias encontrarem sua manifestação plena num estágio ulterior do
desenvolvimento da doutrina, são indubitavelmente sugeridas tanto por Irineu
quanto por Teraraliarto e são expressadas de maneira mais substancial nos escritos
de Gregário de Nisso. Será proveitoso considerarmos essas duas idéias neste
estádio de nossa investigação.
O termo grego perichoresis – encontrado com frequência em sua forma latina
(circumincessio – interpenetração mútua) se tornou uma expressão de uso geral
no século 62. Refere-se à maneira como as três pessoas da Trindade se relacionam
entre si. O conceito de pericorese permite que a individualidade das pessoas seja
mantida e, ao mesmo tempo, enfatiza que cada pessoa compartilha da vida das

outras duas. Uma imagem que costuma ser usada para expressar essa idéia é
a de "uma comunidade de existência", na qual cada pessoa, apesar de manter
sua identidade distinta, penetra outras e é penetrada por elas.

A idéia de "apropriação" é relacionada â pericorese e derivada dela. A heresia


modalista (que será discutida a seguir) argumentava que era possível considerar
que Deus existiu em diferentes "modos de ser- em diferentes pontos da economia
da salvação, de modo que, em um ponto, Deus existiu como Pai e criou o mundo;
em outro, Deus existiu como Filho e o redimiu. A doutrina da apropriação enfatiza
que as obras da Trindade são uma só coisa; cada uma das pessoas da Trindade
está envolvida em todas w ações visíveis do Ser Divino. Assim, Pai, Filho e Espírito
estão todos envolvidos na obra da criação, que não deve ser considerada uma obra
apenas do Pai. Agostinho de Hipona, por exemplo, ressaltou que os relatos da
criação em Gênesis se referem ao Pai, ao Verbo 1 Palavra e ao Espírito (Gn 1.1-3),
indicando, desse modo, que as três pessoas da Trindade estavam presentes e
ativas nesse momento decisivo da história da salvação. E, no entanto, é
apropriado pensar na criação como obra do Pai. Apesar do fato de as três pessoas
da Trindade estarem implicadas na criação, esta é vista propriamente como ação
característica do Pai. Semelhantemente, a Trindade toda está envolvida na obra da
redenção. Porém, é apropriado falar da redenção como obra característica do
Filho.

Considerados em conjunto, os conceitos de pericorese e apropriação


nos permitem pensar no Ser Divino como uma "comunidade de
existência" na qual tudo é compartilhado, unido e mutuamente
intercambiado. Pai, Filho e Espírito não são três compartimentos
isolados e divergentes de um Ser Divino, como três partes subsidiárias
de uma corporação internacional. Antes, são diferenciações, dentro do
Ser Divino, que se tomam evidentes dentro da economia da salvação e na
experiência humana da redenção e da graça.

A doutrina da Trindade afirma que abaixo da superfície dos aspectos


complexos da história da salvação e da nossa experiência de Deus se
encontra um único Deus, somente um Deus.

Modalismo
O temo'Snodalismo" foi introduzido pelo historiador alemão dos dogmas, Adolf
von Hamack, para descrever o elemento comum de um grupo de heresias
trinitárias associado a Noeto e Práxeas no final do século 2 v e a Sabélio
no século 3-. Cada um desses escritores se preocupou em salvaguardar a
unidade do Ser Divino, temendo um lapso em alguma forma de triteísmo
decorrente da doutrina da Trindade. (Como ficará clara adiante, um medo
bastante justificado.) Essa defesa enérgica da unidade absoluta de Deus
(chamada com frequência de "monarquianismo", das palavras gregas que
significam "princípio único de autoridade-) levou esses escritores a
enfatizarem que o Deus único se revelou de três maneiras diferentes em
ocasiões diferentes. A divindade de Cristo e do Espírito Santo deve ser
explicada em temos das três maneiras ou modos de revelação divina (daí a
designação -vandalismo"). Dentro disso, propõe-se a seguinte seqüência
trinitária:

1.0 Deus único é revelado na forma de criador e legislador. Esse aspecto de


Deus é chamado de "o Pai".
2. O mesmo Deus é revelado então na forma de Salvador, na
pessoa de Jesus Cristo. Esse aspecto de Deus é chamado de "o Filho".
3. O mesmo Deus é revelado então na forma daquele que
santifica e dá vida eterna. Esse aspecto de Deus é chamado de "o Espírito".

Assim, não há nenhuma diferença entre as três entidades em questão,


salvo de aparência e posição cronológica.

A abordagem capadócia à Trindade

Os capadócios tiveram um papel fundamental no estabelecimento da di-


vindade plena do Espírito Santo, uma decisão endossada formalmente
pelo Concilio de Constantinopla em 381. Um passo teológico decisivo
havia sido dado e o caminho estava aberto para =a declaração completa da
doutrina da Trindade. Com o reconhecimento da identidade de substanciado
Pai, do Filho e do Espírito Santo, abriu-se a porta para a exploração do seu
relacionamento mútuo dentro da Trindade. Mais uma vez, os capadócios
desempenharam um papel decisivo nesse avanço teológico importante.
A abordagem capadócia à Trindade pode ser entendida mais adequada-
mente como uma defesa da unidade divina em conjunto com um
reconhecimento de que o Ser Divino único existe em três "mudos de
existência" diferentes. A formula que expressa melhor essa abordagem é
"uma substância (ouvia)

em três pessoas (hipostaseis)'. O Ser Divino único e indivisível é comum


às três pessoas da Trindade. Esse Ser Divino único existe
simultaneamente em três "modos de existência" diferentes - Pai, Filho e
Espírito Santo.
Uma das características mais claras dessa abordagem à Trindade é a prioridade
dada ao Pai. Apesar de os escritores capadócios enfatizarem que não aceitam
que o Filho ou o Espírito são subordinados ao Pai, ainda assim declaram
explicitamente que o Pai deve ser considerado a origem ou fonte da Trindade. O
ser do Pai é comunicado ao Filho e ao Espírito, ainda que de formas diferentes:
o filho é "gerado- do Pai, o Espírito "procede" do Pai. Assim, Gregório de Nissa
escreve sobre "a pessoa única do Pai, da qual o Filho é gerado e o Espírito
procede".

De que maneira, então, uma substância pode estar presente em três pessoas? Os
capadócios respondiam a essa pergunta apelando para a relação entre o universal e
seus elementos particulares - por exemplo, a humanidade e os seres humanos
individuais. Assim, Basílio de Cesaréia argumenta que a substância única dentro da
Trindade pode ser considerada análoga ao universal, e que as três pessoas são os
elementos particulares. Uma natureza humana comum, compartilhada por todas as
pessoas, não significa que todos os seres humanos são idênticos; antes, significa
que mantêm sua individualidade apesar de compartilharem uma natureza em
comum. Gregório de Nissa coloca essa questão da seguinte maneira:

Pedra, Tiago e João são considerados três seres, humanos apesar de com-
partilharem uma humanidade em conaum... Então, como podemos conciliar
nossa convicção de que o Pai, o Filho e o Espírito Sinno têm uma única
divindade com a negação que estamos falando de três deuses?

Assim, cada uma das três pessoas dentro da Trindade tem características
particulares. De acordo com Basilio de Cesméia, o caráter distintivo de cada uma
das pessoas é o seguinte: o Pai é distinguido por sua paternidade; o Filho, por sua
filiação; e o Espírito, pela capacidade de santificar. Para Gregório de Nazianzo, o
Pai é distinguido por "ser não-gerado" (agennesis, uma palavra difícil que
transmite a idéia de "que não foi originado" ou "que não é derivado de nenhuma
outra fiente'), o Filho, por "ser gerado" (gennesis, que também pode ser
traduzido como "ser originado" ou "cujas origens são derivadas de outrem") e o
Espírito por "ser enviado" ou "procedente". A dificuldade dessa analogia para os
leitores modernos encontra-se no fato de parecer sugerir um
triteísmo. Enquanto o Platonismo de Gregônio lhe permite pensar em
"Poder, Tiago e João" como exemplos diferentes da mesma natureza
humana, a maneira mais natural de interpretara ilustração hoje em dia é com
referência a três indivíduos independentes e distintos.

O modelo de Trindade proposto por Agostinho

Agostinho trata de vários elementos do consenso que estava surgindo


acerca da Trindade. Isso pode ser visto em sua rejeição enérgica de
qualquer forma de subordinacionismo (ou seja, considerar o Filho e o Espírito
inferiores ao Pai dentro do Ser Divino). Agostinho insiste que a ação de toda
a Trindade pode ser discernida por trás das ações de cada uma de suas
pessoas. Assim, a humanidade não é apenas criada â imagem de Deus; é
criada à imagem da Trindade. Uma distinção importante é feira entre o Ser
Divino eterno e o Filho e o Espírito e seu lugar na economia da salvação.
Apesar de o Filho e o Espírito parecerem ser posteriores ao Pai, essa
consideração se aplica apenas ao seu papel dentro do processo da
salvação. Apesar de o Filho e de o Espírito parecerem subordinados ao Pai,
na eternidade eles são co-iguais. Trata-se de uma antevisão importante da
distinção feita posteriormente entre a Trindade essencial baseada na
natureza crema de Deus e a Trindade econômica, baseada na revelação
própria de Deus na Ifistôria.
É possível que o elemento mais característico da abordagem de Agostinho à
Trindade se refira à sua visão da pessoa e lugar do Espírito Santo; considera-
remos esse aspecto específico numa seção posterior como parte de nossa
discussão sobre a controvérsia de fifioque. No entanto, o conceito de
Agostinho do Espírito como o amor que une o Pai e o Filho requer nossa
atenção neste estágio inicial.
Tendo identificado o Filho com a "sabedoria", Agostinho identifica, então, o
Espírito com o "amor". Ele reconhece a falta de bases biblicas explícitas para
essa identificação; não obstante, a considera uma inferência razoável a
partir do texto bíblico. O Espírito "nos faz habitar em Deus, e Deus em nós".
Essa identificação explícita do Espírito como base da união entre Deus e
os cristãos é importante, uma vez que aponta para a idéia de Agostinho do
Espírito como doador da comunidade. O Espírito é uma dádiva de Deus que
liga a ele. Agosimiao argumenta que existe, portanto, uma relação
correspondente dentro da própria Trindade. Deus já existe no tipo de
relacionamento para dentro do qual deseja nos trazer. E, assim como o
Espírito é o vínculo de união entre Deus e o cristão, também exerce um
papel comparável dentro da Trindade, ligando as pessoas da mesma entre
si. "O Espírito Santo... nos faz habitar em Deus, e Deus em nós. Mas esse é
o efeito do amor. Assim, o Espírito Santo é Deus que é amor."
Esse argumento é complementado por uma análise geral da importância do
amor dentro da fé cristã. Baseando-se livremente em 1 Coríntios 13.13 82
("Agem, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; porém
o maior destes é o amor"), Agostinho argumenta dentro das seguintes
linhas:

1. O maior dom de Deus é o mar;


2. O maior dom de Deus é o Espirito Santo;
3. Portanto, o Espírito Santo é amor.

Essas duas linhas de argumentação são reunidas na seguinte passagem:


0 amor vem de Deus e seu efeito em nós é que habitamos em Deus, e ele
em nós. Isto sabemos porque ele nos deu seu Espírito. 0 Rspínito, por
sua vez, é Deus que é amor. Se, dentre as dádivas de Deus não
existe outra maior do que o amor e se não existe dádiva maior do que o
Espírito Santo, concluímos nastralmente que aquele do qual se diz ser
Deus e procedente de Deus, este é amor.

Esse estilo de análise foi criticado por suas deficiências óbvias, sendo uma delas
a geração de um conceito curiosamente despersonalizado do Espírito. O Espírito
parece ser um tipo de cola que liga o Pai e o Filho, e que liga os dois aos cristãos. A
idéia de "ser ligado a Deus" é uma característica central da espiritualidade de
Agostinho e talvez seja inevitável que esse interesse apareça de modo
preeminente em sua discussão da Trindade.

Uma das características mais distintivas da abordagem de Agostinho à Trindade é


seu desenvolvimento de "analogias psicológicas". O raciocínio por trás do apelo à
mente humana nesse sentido pode ser resumido da seguinte forma: não é absurdo
esperar que, ao crias o mundo, Deus tenha deixado certa marca peculiar nessa
criação. Onde encontrar, porém, essa marca (vestigium)? É razoável esperar que
Deus implantasse essa marca distintiva no ápice da criação. O relato da criação
em Gênesis nos permite concluir que a humanidade é o apure da criação de Deus.
Agostinho argumenta, portanto, que devemos procurara imagem de Deus na
humanidade.

Porém, na seqüência, Agostinho dá um passo que muitos observadores


consideram infeliz. Tomando por base uma cosmovisão platônica, Agostinho
argumenta que a mente humana deve ser considerada o ponto culminante da
humanidade. Assim, é para a mente humana individual que o teólogo deve se
voltar em sua busca pelos "vestígios da Trindade" na criação. O individualismo
radical dessa abordagem, juntamente com seu intelectualismo evidente, indica
que ele escolhe encontrara Trindade no mundo interior mental dos indivíduos e
não, por exemplo, nos relacionamentos pessoais (uma abordagem favorecida por
escritores medievais como Ricardo de São Vítor). Ademais, uma primeira leitosa
do Tratado sobre a Santíssima Trindade sugere que, para Agostinho, o
funcionamento interno da mente humana nos revela tanta coisa a respeito de Deus
quanto a economia da salvação. Apesar de Agostinho enfatizar o valor limitado
dessas analogias, ele próprio parece usá-las mais extensivamente do que sua
própria avaliação crítica permite.

Agostinho distingue uma estimara niádica no pensamento humano e ar-


gumenta que essa estrutura de pensamento é baseada no ser de Deus. Ele
próprio argumenta que a tríade mais importante de todas é a da mente,
conhecimento e amor, apesar de a tríade relacionada da memória,
compreensão e volição também receber preeminência considerável. A mente
humana é "atua imagem" - inadequada, por certo, mas ainda assim uma
imagem - de Deus. Portanto, assim como há três faculdades na mente
humana que, em última análise são entidades totalmente separadas e
independentes, também pode haver três "pessoas" em Deus.
Essa argumentação apresenta algumas deficiências óbvias e, possivel -
mente, até fatais. Como é ressaltado com freqüência, a mente humana
não pode ser reduzida a três entidades de maneira tão organizada e
simplista. No final, porém, é preciso dizer que o apelo de Agostinho a essas
"analogias psicológicas" é, na verdade, ilustrativo, e não constitutivo. O
objetivo dessas analogias é servir de auxílio na visualização (ainda que
baseadas na doutrina da criação) de insights obtidos das Escrituras e
reflexões sobre a economia da salvação. A doutrina de Agostinho acerca da
Trindade não se baseia, essencialmente, em sua análise da mente humana,
mas em sua interpretação das Escrituras, especialmente do Quarto
Evangelho.

A controvérsia de filioque

Um dos acontecimentos mais importantes do início da história da igreja foi


a discussão que se espalhou por todo o Império Romano, tanto oriental
quanto ocidental, sobre o Credo Nicerio. Esse credo tinha como objetivo
promover a estabilidade doutrinária dentro da igreja num período de
importância considerável em sua história. Parte do texto convencionado se
referia ao Espírito Sana como "sendo procedente do Pai". No século gk-o,
porém, a igreja ocidental já alterava essa frase rotineiramente, se referindo
ao Espírito Santo como "sendo procedente do Pai e do Filho". O termo em
latim filioque ("e do Filho") passou a ser usado a partir de então para se
referira esse acréscimo agora normativo nas igrejas ocidentais, e para a
teologia que ele expressa. Essa idéia de uma "processar, dupla" do
Espírito Santo foi fonte de exasperação intensa part, os escritores gregos:
ela não apenas levantava dificuldades teológicas sérias para eles como
envolvia alterações nos textos supostamente invioláveis dos credos. Muitos
estudiosos consideram esse sentimento negativo um fator contribuinte na
cisão entre as igrejas oriental e ocidental ocorrida em 1054. Apesar dessa
desenvolução (e a controvérsia resultante) ter se dado depois de 451, a
discussão subseqüente foi o resultado inevitável das idéias documentadas
neste estudo de caso, o que toma absolutamente apropriado investigar essa
controvérsia neste momento.

A controvérsia de filioque é importante tanto como tema teológico em si


quanto como questão de certa relevância nas relações contemporâneas entre
as igrejas do Oriente e Ocidente. Propomos, portanto, investigar as questões
en-

volvidas de maneira um pouco mais detalhada. O ponto central em


questão diz respeito à possibilidade de afirmar que o Espírito é
procedente somente do Pai, ou do Pai e do Filho. O primeiro caso é
associado à igreja oriental e apresentado mais amplamente nos
escritos dos patriarcas da Capadócia; o segundo caso é associado à
igreja ocidental e desenvolvido de maneira particularmente clara
no Tratado sobre a Santíssima Trindade de Agostinho.
Os escritores patrísticos gregos insistiam que havia apenas uma fonte de
existência dentro da Trindade. Somente o Pai era a causa única e suprema
de todas as coisas, inclusive do Filho e do Espírito dentro da Trindade. O
Filho e o Espírito são derivados do Pai, mas de maneiras diferentes. Em sua
busca por temos apropriados para expressar essa relação, os teólogos
acabaram se fixando em duas imagens bastante distintas: o Filho é gerado do
Pai, enquanto o Espírito procede do Pai. O objetivo desses dois termos é
expressara idéia de que tanto o Filho quanto o Espírito são derivados do
Pai, mas de maneiras diferentes. O vocabulário é desajeitado, refletindo o
fato de que as palavras gregas envolvidas são difíceis de traduzir em nossa
língua moderna.

Para ajudar na compreensão desse processo complexo, os patriarcas gre-


gos usaram duas imagens. O Pai pronuncia sua palavra; ao mesmo tempo
em que profere essa palavra, ele a sopra a fim de que ela possa ser ouvida
e recebida. A imagem usada aqui, firmemente baseada na tradição bíblica,
é a do Filho como Verbo 1 Palavra de Deus e do Espirito como sopro de
Deus. Surge aqui uma pergunta óbvia: por que os patriarcas da Capadócia e
outros escritores gregos gastaram tanto tempo e esforço fazendo essa
distinção entre o Filho e o Espírito? A resposta é importante. Caso não se
diferenciasse a forma como o Filho e o Espírito são derivados do Pai, a
conseqüência seria a idéia de que Deus tem dois filhos, o que criaria
dificuldades intransponíveis.

Dentro desse contexto, é impensável que o Espírito Santo seja procedente


do Pai e do Filho. Isso porque tal idéia comprometeria inteiramente o portei-
pio do Pai como a única origem de toda a divindade. Equivaleria a afirmar
que há duas fontes de divindade dentro de um único Ser Divino, com todas as
contradições e tensões internas decorrentes. Se o Filho compartilhasse da ca-
pacidade exclusiva do Pai de ser fonte de toda divindade, essa
capacidade deixaria de ser exclusiva. Por esse motivo, a igreja grega
considerava a idéia ocidental de "processão dupla" do Espírito, algo próximo à
mais absoluta incredulidade. No entanto, a tradição grega não era
completamente unânime nesse ponto. Citilo de Alexandria não hesitou em falar
do Espírito como sendo "pertencente ao Filho" e idéias relacionadas não
tardaram em se desenvolver dentro da igreja ocidental.

A declaração ainda incompleta da processão do Espírito do Pai e do Filho foi


elaborada e apresentada em sua forma clássica por Agostinho. Expandindo,
ao que parece, uma posição sugerida por Hilário, Agostinho argumentou que o
Espírito deve ser considerado procedente do Filho. Um dos textos principais
que ele usa como prova é João 20.22, no qual é relatado que o Cristo ressurreto

soprou sobre seus discípulos e disse: "Recebei o Espírito Santo". Agostinho


explica esse episódio da seguinte forma:

Igualmente, não podemos dizer que o Espírito Santo não procede tara,
bem do Filho. Afinal, diz-se que o Espírito é o Espírito Santo cinto do Pai
quarto do Filho [João 20.22 é citado na seqüência] . . . O Espírito Santo

procede não apenas do Pai, mas também do Filho.

Ao fazer essa declaração, Agostinho acreditava estar resumindo um con-


senso geral tanto da igreja oriental quanto ocidental. Infelizmente, ao que
parece, seu conhecimento dos gregos não era suficiente para que ele
entendesse que os escritores capadócios tinham um posição diferente. Não
obstante, fica evidente em certos pontos que Agostinho está preocupado em
defender o papel distintivo do Pai dentro do Ser Divino:

Somente Deus o Pai é aquele do qual o Verbo é nascido, e do qual o


Espírito procede essencialmente. Acrescentei aqui o termo -essencial-
mente", pois vemos que o Espírito Santo também procede do Filho.
Apesar disso, o Pai deu o Espírito ao Filho. Não é como se o Filho já
existisse e possuísse o Espírito. Tudo que o Pai deu ao Verbo wigênito, deu-
lhe ao gerá-lo. Formato, ele o gerou de tal modo que a dádiva comum seja
o Espírito de ambos.
O que Agostinho acreditava estar fazendo ao entender o papel do Espírito
desse modo? A resposta se encontra em sua visão peculiar do Espírito
como "vínculo de amor" entre o Pai e o Filli.. Agostinho desenvolveu a
idéia de relação dentro do Ser Divino, argumentando que as pessoas da
Trindade são definidas pelas suas relações umas com as outras. Assim, o
Espírito deve ser considerado a relação de amor e comunhão entre o Pai e
o Filho, uma relação que Agostinho acredita ser fundamental para a
apresentação da unidade de vontade e propósito do Pai e do Filho no
Quarto Evangelho.
Podemos resumir as diferenças essenciais entre as duas abordagens da
seguinte forma:
1. A intenção dos gregos era salvaguardara posição singular do
Pai como fonte única de divindade. Uma vez que o Filho e o Espírito são
derivados dele, ainda que de maneiras diferentes, porém igualmente
válidas, sua divindade também é salvaguardada. Para os gregos, a
abordagem latina parecia introduzir no Ser Divino duas fontes separadas de
divindade e enfraquecera distinção crítica entre o Filho e o Espírito.
Considerava-se que o Filho e o Espírito possuíam papéis distintos e, no
entanto, complementares. Para a tradição ocidental, por outro lado, o
Espírito é o Espírito de Cristo.
2. A intenção dos latinos em garantir que o Filho e o Espírito
fossem distinguidos adequadamente um do outro e, no entanto, ficasse claro
que eram mutuamente relacionados. A abordagem intensamente relacional
associada à idéia de "pessoa" tomava inevitável que o Espírito fosse
considerado dessa maneira. Sensíveis ao ponto de vista grego, escritores
latinos posteriores

enflifizararti, que não consideravam sua abordagem uma


pressuposição de duas fontes de divindade no Ser Divino. O Concilio
de Lião declarou que —o Espírito Santo procede do Pai e do Filho, mas
não como de duas origens, e sim de uma única origem". No entanto,
essa doutrina continuou sendo uma fonte de discórdia e até hoje
ainda é tema de discussão.

Estudo de caso 1.6 A controvérsia donatista


Conforme observamos em nosso resumo histórico do período patrístico, a
igreja cristã sofreu diferentes graus de perseguição sob o imperador romano
Diocleciano (284-313). Iniciada em 303, essa perseguição terminou com a
vitória de Constantino e a publicação do Édito de Milão em 313. Um édito
publicado em fevereiro de 303 ordenava que livros cristãos fossem
queimados e igrejas fossem demolidas. Os líderes cristãos que entregam
seus livros para serem queimados ficaram conhecidos como traditows -
"aqueles que entregaram". A palavra moderna "traidor" é proveniente da
mesma raiz. Um desses trítalitores ou "traidores" foi Félix de Aptunga que,
posteriormente, consagrou Ceciliano bispo de Canago em 311.
Vários cristãos da região se indignaram coma permissão de que tal pessoa
se envolvesse nessa consagração e declararam que, em decorrência disso,
não podiam aceitara autoridade de Ceciliano. A hierarquia da igreja católica
havia sido maculada por esses acontecimentos. A igreja devia ser pura e
não devia ter permissão de incluir pessoas desse tipo. Quando Agostinho
voltou para a África em 388, uma facção separatista havia se consolidado
como principal assembléia de cristãos na região, recebendo apoio
especialmente forte da população africana local. Questões sociológicas
obscureceram a discussão teológica; os dona distas receberam o apoio da
população nativa, enquanto os católicos contaram como apoio dos
colonizadores romanos.
As questões teológicas envolvidas são de relevância considerável e dire-
tamente relacionadas a tensões sérias dentro da teologia de uma figura
importante da igreja norte-africana - Cipruíria, de Cartago. Em sua obra A
Unidade da Igreja Católica (251), Cipriano havia defendido duas
convicções fundamentais relacionadas:
1. O cisma (isto é, o rompimento deliberado com a igreja) é total e abso-
lutamente injustificado. A unidade da igreja não pode ser rompida sob
absolutamente nenhum pretexto. Sair dos limites da igreja é perder
toda e qualquer possibilidade de salvação.
2. Segue-se, portanto, que um bispo apóstata ou cismático é
desprovido de toda capacidade de ministrar os sacramentos ou
atuar como ministro da igreja cristã. Ao passar para fora do âmbito da
igreja, tais pessoas perderam seus dons e autoridade espiritual. Não
devem, portanto, ter permissão de ordenar sacerdotes ou bispos.
'fados aqueles que tiverem sido ordenados por eles terão sua
ordenação anulada; todos que tiverem sido batizados por eles terão
seu batismo anulado.
Os argumentos de Cipriano contra o cisma são apresentados com grande
clareza, valendo a pena, portanto, serem observados de modo um pouco
mais detalhado.

1.6.1 Cipriano de Cartago: Acerca da impossibilidade do cisma

A noiva de Cristo não pode ser transformada em adúltera; ela é


imaculada e casta. Tem um único lar e guarda com castidade virtuosa a
santidade de um único aposento. Ela nos entrega a Deus, que arrola em
seu Reino os filhos aos quais ela dá à luz. Todo aquele que rompe com a
Igreja e se une a uma adúltera é separado das promessas da Igreja, e
qualquer um que deixa a Igreja de Cristo para trás não pode ser benefi -
ciado pelas recompensas de Cristo. Tais pessoas são estrangeiros, pros -
critos e inimigos. Quem não tem a Igreja como mãe não pode ter Deus
como Pai... Este sacramento de unidade, esse vínculo inseparável de
paz é mostrado no evangelho quando o manto do Senhor Jesus Cristo
não foi dividido nem rasgado; antes, lançaram sortes para distribuir as
roupas de Cristo... de modo que as roupas foram recebidas inteiras e o
manto foi tomado intacto, e inteiro... Essa vestimenta representa a um -
dado que vem "do alto', ou seja, do céu e do Pai, uma unidade que
não pode ser rasgada de maneira nenhuma por aqueles que a recebe-
ram e possuíram; antes, deve ser tomada intacta em sua inteireza
indestrutível. Ninguém que rasga e divide a Igreja de Cristo pode pos suir
as vestimentas de Cristo.

Convém observar os seguintes pontos:


1. Cipriano argumenta que há somente uma igreja. Aquele que escolhe
deixar a igreja num cisma passa a ocupar, então, uma posição fora dos
limites da igreja e, portanto, deixa de ter qualquer ligação com ela (linhas
4-6). É impossível se beneficiar da salvação de Cristo sem ser membro
da igreja. Isso é resumido no lema conhecido: "Quem não tema Igreja
como mãe não pode ter Deus como Pai" (linhas 7-8).

2. Observe a imagem que Cipriano usa para enfatizara


indivisibilidade da igreja. Ela é como o manto sem costura que
Cristo vestia ao se encaminhar para a crucificação. Aqui, Cipriano
menciona o episódio dos evangelhos no qual aqueles que
crucificaram Jesus lançaram sortes para ficar com seu manto,
mostrando que não desejavam rasgá-lo (ver Jo 19.23,24). Cipriano
argumenta que a igreja é semelhante a esse manto: não pode ser
rasgada nem dividida (linhas 8-16).

Fica claro, então, que Cipriano exclui o cisma energicamente. Mas o


que fazer quando um bispo apostata sob perseguição, mas depois
se arrepende? A teoria de Cipriano é profundamente ambígua e
deixa margem para duas linhas de interpretação:

1. Ao negar a fé, o bispo cometeu o pecado de apostasia


(literalmente, "abandono"). Colocou-se, portanto, fora dos limites da
igreja e não se pode mais considerar que ele ministra os sacramentos
de modo válido.
2. Pelo seu arrependimento, o bispo foi restaurado à graça e
pode continuar ministrando os sacramentos de maneira, válida.

Os donafistas adotaram a primeira interpretação, enquanto os


católicos (como seus oponentes latinos ficaram universalmente
conhecidos) adotaram a segunda.
Em decorrência disso, os donatistas acreditavam que o sistema
sacramental da igreja em sua totalidade havia se corrompido. Era
necessário, portanto, colocar no lugar dos traditores pessoas que
haviam permanecido firmes na fé durante a perseguição. Também
em necessário batizar e ordenar novamente todos aqueles que
haviam sido batizados e ordenados pelos traditoirs. O resultado
inevitável disso foi a formação de uma facção separatista. No tempo
de Agostinho, essa facção já era maior do que a igreja com a qual ela
havia rompido inicialmente.
Cipriano havia, ainda assim, lambido totalmente qualquer tipo de
cisma. Um dos grandes paradoxos do cisma donatista é que essa
separação foi resultarate, de princípios atribuídos a Cipriano e, no
entanto, contradisse esses mesmos princípios. Logo, tanto dortatistas
quanto católicos apelaram para Cipriano como autoridade—mas cada
uma aspectos bem diferentes de seus ensinamentos. Os dorratistas
ressaltaram o caráter ultrajante da apostasia; os católicos enfatizaram
com o mesmo vigora impossibilidade de um cisma. O resultado foi
um impasse que só durou atéAgostinho chegar e se tomar o bispo de
Hipona. Agostinho conseguiu resolver as tensões dentro do legado
de Cipriano e propor uma visão "agostinima" da igreja, que desde
então continua sendo extremamente, influente. A seguir,
apresentaremos um esboço das principais características dessa
abordagem distintiva.
Em primeiro lugar, Agostinho enfatizou a pecatarmosidade dos cristãos. O
propósito da igreja não e ser uma sociedade de santos, mas um -corpo
trás-to" de santos e pecadores. Agostinho encontra essa imagem em duas
parábolas biblicas: a parábola da rede que pega muitos peixes e a parábola
do trigo e do joio (observe que em nossa língua o termo Joio" tem o
sentido figurativo de "algo daninho"; na discussão a seguir, usaremos as
duas expressões de forma intercarribiável). Esta última parábola (Mt 13.24-
31) é particularmente relevante e requer uma discussão mais extensa.
A parábola fala de um agricultor que semeou sua terra e descobriu que a
safra resultante era constituída de trigo e joio -cercal e ervas daninhas. O
que fazer? Tentar separar o trigo do joio enquanto ambos estavam
crescendo poderia ter conseifinências, desastrosas; provavelmente causaria
danos ao trigo na tentativa de se livrar do joio. Mas na colheita, todas as
plantas - trigo e joio -são ceifadas e separadas sem perigo de prejudicar o
trigo. A separação entre, o bem e o mal será feita no fim dos tempos, e não
na História.
Para Agostinho, essa parábola se refere à igreja no mundo. Deve-se espe-
rar que ela inclua santos e pecadores. No entanto, uma tentativa de
separação neste mundo é prematura e inapropriada. Essa separação
ocorrerá no tempo de Deus, no final da história. Nenhum ser humano pode
tomar o lugar de Deus e fazer esse julgamento ou separação. Em que
sentido, portanto, a igreja é santa? Para Agostinho, a santidade em questão
não é a de seus membros, mas a de Cristo. A igreja não pode ser uma
congregação de santos neste mundo, uma vez que seus membros são
contaminados pelo pecado original. Todavia, a igreja é santificada e
consagrada por Cristo - um santidade que será aperfeiçoada e concretizada
definitivamente no julgamento final. Além dessa análise teológica,
Agostinho faz a observação prática de que os donatistas não viviam de
acordo com seus próprios padrões elevados de moralidade. Sugere que
os donatistas eram tão capazes quanto os católicos de se embebedar ou
bater em outras pessoas.
Em segundo lugar, Agostinho argumenta que cisma e traditio (a entrega
de livros cristãos ou qualquer tipo de apostasia) são, de fato,
pecaminosos -mas que, para Cipriano, o cisma é, de longe, o pecado mais
sério. Assim, os

donatistas são culpados de uma interpretação gravemente equivocada


dos ensinamentos do grande bispo norte-africano martirizado.
Com base nessas considerações, Agostinho argumenta que o Donatismo é
incorrigivelmente falho. A igreja é e deve ser um corpo amuo. O pecado é um
aspecto inevitável da vida da igreja na presente era e não constitui nem
ocasião nem justificativa para divisões.
No entanto, a controvérsia donatista dizia respeito a mais do que uma
visão teórica da natureza da igreja. Afetava aspectos do ministério cristão
diário, tendo em vista a insistência donatista de que apenas certas pessoas
puras podiam ministrar os sacramentos de maneira apropriada. Os donatistas
se recusavam a reconhecer que um traditor podia ministrar os sacramentos
adequadamente. Assim, argumentavam que os batismos, orderraç0es, e
eucaristias ministradas por eles não eram válidos.
Essa atitude se baseava, em parte, na autoridade de Cipriano de Cartago.
Cipriano havia argumentado que não existia nenhum sacramento
verdadeiro fora da igreja. Portanto, o batismo herege não era válido, uma
vez que os hereges não aceitavam a fé d a igreja e, conseqüentemente,
estavam fora de seus limites. Por mais incontestáveis que as idéias de
Cipriano fossem, em termos lógicos, não levavam em consideração a
situação que surgiu durante a controvérsia donatista - isto é, ministros que
confessavam a fé ortodoxa, mas que tinham uma conduta pessoal
considerada indigna de seu chamado. Os ministros doutrinariamente
ortodoxos, porém moralmente inferiores, tinham o direito de ministrar os
sacramentos? E quanto â validade desses sacramentos?

L,evarate, as idéias de Cipriara, além daqueles que pareciam ser seus limites
pretendidos, os donatistas argumentavam que as ações eclesiásticas podiam
ser consideradas inválidas em função das imperfeições subjetivas da pane
da pessoa que as ministrava. Assim, os donatistas afirmavam que aqueles
que eram batizados ou ordenados por sacerdotes ou bispos que não haviam
aderido ao movimento donatista precisavam ser batizados ou ordenados
novamente por ministros donatistas. Os sacramentos derivavam sua
validade das qualidades pessoais do indivíduo que os ministrava.
Em resposta a essa abordagern. Agostinho argumentou que o Donatismo dava
ênfase excessiva às qualidades do agente humano e peso insuficiente à
graça de Jesus Cristo. De acordo com ele, é impossível os seres
humanos decaídos distinguirem cri" quem é puro e quem é impuro, digno
e indigno. Esse ponto de vista, inteiramente coerente com seu conceito de
igreja como "corpo misto" de santos e pecadores, afirma que a eficácia dos
sacramentos não tem como base os méritos do indivíduo que os está
ministrando, mas sim, os méritos daquele que os instituiu - Jesus Cristo. A
validade dos sacramentos independe dos méritos de quem os ministra.
Em seguida, Agostinho qualifica suas asserções num contexto importante.
Argumenta que é preciso fazer uma distinção entre "batismo" e "o direito de
batizar". Apesar de o batismo ser válido, mesmo quando ministrado por

aqueles que são hereges ou cismáticos, isso não significa que o direito de batizar
é distribuído indiscriminadamente entre todos. O direito de conferir o batismo
existe somente dentro da igreja e é concedido, mais especificamente, aos ministros
que ela escolheu e autorizou para ministrar os sacramentos. A autoridade pua
ministrar os sacramentos de Cristo foi confiada por ele aos apóstolos e, por meio
deles e de seus sucessores, os bispos, aos ministros da igreja católica.
A questão teológica em jogo é representada mediante dois lemas em latim,
cada um refletindo uma visão diferente das bases para a eficácia dos
sacramentos.

1. Os sacramentos são eficazes ex opere operantis – literalmente


"em função da obra daquele que opera". Neste caso, entende-se que a eficácia
dos sacramentos depende das qualidades pessoais do ministro.
2. Os sacramentos são eficazes ex opere operato – literalmente "em
função da obra que é operada". Neste caso, entende-se que a eficácia dos
sacramentos depende da graça de Cristo, o qual os sacramentos representam e
comunicam.

A posição donatista corresponde a uma visão da causalidade sacramental ex opere


operantis e a de Agostinho, ex opere operato. Esse ultimo ponto de vista se
tomou normativo dentro da igreja ocidental e foi afirmado pelos principais
reformadores durante o século 16. O primeiro ponto de vista foi defendido
pelas alas mais radicais da Reforma e continua a ser expressivo em algumas
denominações protestantes, especialmente aquelas que enfatizam a importância
da santidade ou dos dons carismáticos.

Agostinho apresenta sua posição na passagem a seguir extraída de seu "Tratado


Sobre o Batismo". Conforme anteriormente observamos, a visão de Agostinho
acerca da igreja aceita que as congregações e sacerdotes incluam um misto de
santos e pecadores. Acaso isso anula, então, a validade dos sacramentos?
Em oposição à visão donatista segundo a qual somente os justos podem
ministrar e receber com proveito os sacramentos (a visão ex opere operantis da
eficácia sacramental), Agostinho argumenta que a eficácia dos sacramentos
tem como base o próprio Cristo, e não os méritos do ministrante ou do recipiente
(uma visão ex opere operato da eficácia sacramental, como observamos
acima).

1.6.2 Agostinho: Acerca da eficácia dos sacramentos

Para mim, é extremamente claro que, quanto à questão do batismo, devemos


considerar não aquele que o dá, mas aquilo que ele dá; não aquele que o
recebe, mas aquilo que ele recebe... Por esse motivo, portanto, aquele que está
do lado do diabo não pode macular o sacramento
que pertence a Cristo... Quando o batismo é ministrado pelas palavras do
evangelho, por maior que seja a perversidade do ministro ou do recipiente, o
sacramento em si é santo em função daquele a quem ele pertence. No caso
de pessoas que recebem o batismo de um indivíduo perverso, se elas não
recebem a perversidade do ministro, mas a santidade do mistério, sendo
unidas à igreja em boa-fé, esperança e caridade, tais pessoas receberão o
perdão de seus pecados.

Observe particularmente os seguintes pontos:


1. Agostinho faz uma distinção fundamental (linhas 2-3) entre aquele
que concede o dom e o dom propriamente dito que é concedido. As quali-
dades pessoais do "doador" (neste caso, o ministro do sacramento) não
influenciam a qualidade daquilo que é concedido (ou seja, o saeminente,
em si).
2. A eficácia dos sacramentos é derivada "daquele a quem [o
sacramento] pertence" (linha 6). Em outras palavras, aquilo que um
sacramento faz é resultante da santidade de Deus, e não da santidade (ou
falta desta) da parte do ministro.

Podemos contrastar esses pontos com as idéias de Petiliano, um escritor


donatista conhecido que atuou no início do século 5°. Petiliano, o bispo
donatista de Citra (uma cidade no norte da África) enviou uma carta
circular aos seus sacerdotes advertindo-os contra a impureza moral e erros
doutrinários da igrea católica. A resposta de Agostinho, datada de 401,
levou Petiliano a escrever uma carta mais detalhada a Agostinho. Nessa
carta, datada de 402, da qual Agostinho eira algumas passagens, Petiliano
apresenta em sua totalidade a inistência donatista na idéia de que a validade
dos sacramentos depende inteiramente da dignidade moral daquele que os
ministra. As palavras de Petiliano sao incluídas entre aspas no texto de
Agostinho.

1.6.3 Uma visão donatista da eficácia dos sacramentos

—Briscamos a consciência" diz [Pendurou], "daquele que ministra [os


sacramentos], ministrando santidade, para purificar a consciência
daquele que recebe. Pois, todo aquele que recebe 'fé' conscientemente de
um infiel, não recebe fé, e sim, culpa". E prossegue dizendo: "Entrá,
como testar isso? Pois tudo consiste de uma origem", diz ele, "e de uma
raiz; se não possui algo como sua fonte, não é nada. Da mesma fama,
nada pode receber verdadeiramente um segundo nascimento a menos que
seja nascido de novo de boa semente".

Observe como Petiliano argumenta que a santidade ou culpa do ministro afeta a


pessoa que recebe os sacramentos desse ministro (linhas 1-2). É essencial,
portanto, que os ministros sejam santos e puros a fim de que seus ministérios não
sejam corrapromettidos, pelo efeito contaminador do pecado.
A controvérsia donatista foi extremamente importante para o desenvolvimento
da igreja ocidental no século 4-. Outra controvérsia que surgiu nessa região da
igreja — também em torno de Agostinho de Hipona — dizia respeito à questão da
interação da graça divina com a liberdade humana. Voltamos nossa atenção
agora para a controvérsia pelagiana.

Estudo de caso 1.7 A controvérsia pelagiana

Essa controvérsia, que irrompeu no início do século 54, trouxe a lume uma série
de questões sobre a natureza humana, o pecado e a graça. Até então, a igreja havia
testemunhado um número relativamente pequeno de discussões acercada
natureza humana. A controvérsia pelagiana mudou isso e garantiu às questões
associadas à natureza humana um lugar próprio cri" os temas discutidos na
igreja ocidental. A controvérsia girou em tomo de dois indivíduos: Agostinho de
Hipona e Pelágio. Trata-se de uma discussão complexa tanto em âmbito histórico
quanto teológico e, tendo em vista seu impacto sobre a teologia cristã ocidental,
deve ser discutida mais demoradamente. Resumiremos os pontos principais da
controvérsia em quatro seções: (1) o conceito de "livre-arbítrio"; (2) o conceito de
pecado; (3) o conceito de graça e (4) o conceito das bases para a justificação.

O "livre-arbúWo"

Para Agostinho, a soberania total de Deus e a responsabilidade e liberdade


humanas genuínas devem ser consideradas juntas e ao mesmo tempo para que
se faça justiça à riqueza e complexidade das declarações bíblicas acerca desse
assunto. Simplificar a questão negando a soberania de Deus ou a liberdade
humana corresponde a comprometer seriamente a visão cristã da maneira como
Deus justifica o homem. Em sua época, Agostinho foi obrigado a tratar de duas
heresias que simplificaram e comprometeram o evangelho desse modo. O
maniqueísmo era uma fama de fatalismo (pela qual o próprio Agostinho foi
inicialmente atraído) que defendia a soberania total de Deus, mas negava a
liberdade humana, enquanto o Pelagiarreario defendia a liberdade total da vontade
humana e negava a soberania de Deus. Antes de considerarmos os desdo-
bramentos dessas questões, é necessário fazer algumas observações sobre a
expressão "livre-arbítrio".

A expressão "livre-arbítrio- (traduzida do latim Liberara arbitrium) não


é, em si, bíblica, mas derivada de movimentos filosóficos gregos, especial-
mente do Estoicismo. Foi introduzida na igreja ocidental por Tertuliano, um
teólogo do século 22. Agostinho manteve o termo, mas procurou resgatar um
significado mais paulino enfatizando as limitações impostas pelo pecado sobre
o livre-aflutrio, humano. As idéias fundamentais de Agostinho podem ser resu-
midas da seguinte forma: em primeiro lugar, a liberdade natural humana é afir-
mada: não fazemos as coisas por necessidade, mas por uma questão de liberda-
de. Em segundo lugar, Agostinho argumenta que o livre-arbítrio humano foi
enfraquecido e incapacitado - mas não eliminado ou destruído - pelo pecado.
A restauração e a cura do livre-arbítrio requerem a operação da graça divina.
O livre-arbítrio existe de fato; no entanto, encontra-se distorcido pelo pecado.
A fim de explicar esse ponto, Agostinho emprega uma analogia significa-
tiva. Considere uma balança com dois pratos. Um prato representa o bem e o
outro representa o mal. Se a balança estiver devidamente aferida, os argumen-
tos em favor de fazer o bem ou fazer o mal podem ser pesados e pode-se tirar
uma conclusão apropriada. O paralelo como livre-arbítrio humano é
óbvio:
pesamos os argumentos em favor de fazer o bem ou o mal e agimos
conformemente. Mas, pergunta Agostinho, e se os pratos são enchidos? O
que
acontece se alguém coloca vários pesos no prato correspondente ao mal?
A balança continua funcionando, mas, com uma forte tendência para se tomar
uma decisão em favor do mal. Agostinho argumenta que foi exatamente isso
que aconteceu à humanidade por meio do pecado. O livre-arbítrio humano apre-
senta uma propensão para o mal. O livre-arbítrio existe e é capaz de tomar deci-
sões -da mesma forma como abalança com os pesos continua a funcionar. Mas,
em vez de um julgamento equilibrado, há uma grande tendência para o mal.
Usando esta e outras analogias relacionadas, Agostinho argumenta que o
livre-
arbítrio existe nos pecadores, mas que se encontra comprometido pelo pecado.
Para Pelágio e seus seguidores (como Juliano de Eclano), poré m, a hu-
manidade possuía Lure-arbítrio total e era totalmente responsável por seus pró-
prios pecados. A seu ver, a natureza humana era essencialmente livre e bem
criada, não se encontrando comprometida ou incapacitada por alguma
fraqueza

misteriosa. De acordo com Pelágio, qualquer imperfeição em um ser


humano teria um reflexo negativo sobre a bondade de Deus. A intervenção de
Deus de qualquer maneira direta visando influenciar as decisões humanas
equivalia a um comprometimento da integridade humana. Voltando â
analogia acima, os pelagianos argumentavam que o livre-arbítrio era como
uma balança perfeitamente equilibrada, imune a qualquer propensão. A
graça divina não era necessária no sentido entendido por Agostinho (apesar
de Pelágio ter um conceito bastante distinto de graça, como veremos mais
adiante).

Em 413, Pelágio escreveu uma longa carta a Demétrias, que havia deci-
dido há pouco tempo deixar suas riquezas pua se tomar freira. Em sua
cana, Pelágio explicou com uma lógica fria as conseqüências de suas
idéias acerca do livre-arbítrio humano. Deus criou a humanidade e sabe
exatamente o que ela é capaz de fazer. Em decorrência disso, todos os
mandamentos que nos foram dados podem e devem ser obedecidos. Não é
válido argumentar que a fragilidade humana não permite que esses
mandamentos sejam cumpridos. Deus criou a natureza tramara, e exige dela
somente o que ela pode suportar. Assim, Pelágio declara implacavelmente
que, tendo em vista a perfeição ser possível para a humanidade, ela é,
também, obrigatória.

1.7.1 Pelágio: Acerca dos mandamentos divinos

[Em vez de considerarmos os mandamentos de Deus um privilégio]...


clamamos a Deus e dizemos, "Isto é fatigante demais! Isto é difícil demais!
Não podemos fazê-lo! Somos apenas humanos, e a fraqueza da carne nos
impede!-. Loucura cega! Presunção ostensiva! Com isso, acusamos o
Deus do conhecimento de uma dupla ignorância- ignorância da própria
criação de Deus e dos próprios mandamentos de Deus. Seria como se,
esquecendo-se da fraqueza da humanidade - sua própria criação -Deus
tivesse imposto sobre nós mandamentos que somos incapazes de suportar.
E, ao mesmo tempo -que Deus nos perdoe! - atribuímos injustiça ao Justo
e crueldade ao Santo; primeiro, nos queixando de que Deus ordenou o
impossível, segundo, imaginando que alguns receberão a condenação de
Deus por algo de que não são culpados; de modo que-ah! que
blasfêmia! - Deus é tido como Aquele que busca nos castigar, e não sal-
var... Ninguém conhece a extensão de nossa força melhor do que o Deus
que nos deu essa força... Deus não decidiu ordenar nada impossível, pois
Deus é justo; e não condenará ninguém por algo de que não é culpado,
pois Deus é santa.

Observe especialmente o argumento (linhas 4-7) que se desenvolve da seguinte


maneira: Deus conhece nossa fraqueza e, portanto, não requer de nós aquilo que
não podemos fazer. Uma exigência da parte de Deus corresponde, portanto, à
capacidade humana de cumprir essa exigência.

A natureza do pecado
Para Agostinho, a humanidade é afetada universalmente pelo pecado como
conseqüência da Queda. A mente humana foi obscurecida e enfraquecida pelo
pecado. Ele impede que o pecador pense com clareza e, especialmente, que
compreenda verdades e idéias espirituais mais elevadas. Semelhantemente,
como vimos, a vontade humana foi enfraquecida (porém não eliminada) pelo
pecado. Para Agostinho, o simples fato de sermos pecadores significa que nos
encontramos num estado de enfermidade grave, incapazes de diagnosticar nossa
doença adequadamente e, muito menos, de cura Ia. É somente por meio da graça
de Deus que nossa doença é diagnosticada (pecado) e a cura é oferecida (graça).
O argumento essencial de Agostinho é que não temos nenhum controle sobre
nossa pecaminosidade. Ela é algo que contamina nossa vida desde nosso
nascimento e passa a dominó-la daí em diante. É um estado sobre o qual não
exercemos nenhum controle decisivo. Podemos dizer que, na visão de Agostinho,
a humanidade nasce com uma disposição pecaminosa como parte da natureza
humana, como uma propensão inerente para os atos de pecado. Em outras
palavras, o pecado causa pecados: o estado de pecaminosidade provoca atos
individuais de pecado. Agostinho desenvolve essa questão usando três analogias
importantes: o pecado como uma "doença", como um -podei` e como "culpa".

1. A primeira analogia considera o pecado uma doença que é transmitida de


uma geração para outra. Como vimos acima, essa doença debilita a
humanidade e não pode ser curada por atos humanos. Assim, Cristo é o
médico divino, pois "pelas suas pisaduras fomos sarados" (Is 53.5), e a
salvação é entendida em termos essencialmente curativos ou médicos.
Somos curados pela graça de Deus, de modo que nossa mente possa
reconhecer Deus e nossa vontade possa responder à oferta divina da
graça.

2. A segunda analogia considera o pecado um poder que nos


mantém cativos e de cujas garras não podemos nos libertar. O livre-
arbítrio humano é capturado pelo poder do pecado e só pode ser liberto
pela graça. Assim, Cristo é visto como um libertador, a fonte da graça que
rompe o poder do pecado.
3. A terceira analogia considera o pecado um conceito
essencialmente judicial ou forense – culpa – que é transmitida de uma
geração para outra, Numa sociedade que dava grande valor à lei, como era o
caso do império Romano em seu período final, no qual Agostinho viveu e tra-
balhou, essa ilustração era de grande ajuda para entender o pecado.
Assim, Cristo vem oferecer perdão e absolvição.

Para Pelágio, porém, o pecado deve ser entendido por outra perspectiva. Em
seu raciocínio não há lugar para a idéia de uma propensão humana para o
pecado. Para Pelágio, não se deve pensar que o poder humano de amo-aper-
feiçoamento está comprometido. É sempre possível aos seres humanos
cumprirem suas obrigações para com Deus e seu próximo. Não há
justificativas para não fazê fo. O pecado devia ser entendido como um ato
cometido deliberadamente contra. Deus. Assim, o Pelagianismo parece ser uma
forma rígida de autoritarismo moral – uma insistência de que a humanidade
tema obrigação de ser impecável e uma rejeição absoluta de qualquer
desculpa para o fracasso. A humanidade e nascida sem pecado, e só peca
por atos deblieradox Pelágio insistia que, na verdade, muitas figuras do
Antigo Testamento permaneceram sem pecado. A participação na igreja é
permitida somente àqueles que são moralmente justos. Com seu conceito
de natureza humana decaída, Agostinho, por sua vez, não tinha problemas
em considerara igreja um hospital onde a Imtremulado, decaída podia se
recuperar e crescer gradativamente em santidade por meio da graça.

A natureza da graça

Um dos textos prediletos de Agostinho é João 15.5, "porque sem mim nada
podeis fazer". Para Agostinho, somos totalmente dependentes de Deus
para nossa salvação, desde o começo até o fim de nossa vida. Agostinho
faz uma distinção cuidadosa entre as faculdades humanas naturais –
concedidas à humanidade como dádiva natural – e os dons adicionais e
especiais da graça. Deus não nos deixa em nossa condição natural,
incapacitados pelo pecado e incapazes de nos redim i r; antes, ele nos dá
graça a fim de que possamos ser curados, perdoados e restaurados. Na
visão de Agostinho, a natureza humana é frágil, fraca e perdida e precisa de
assistência e cuidado divino para ser restaurada e renovada. De acordo com
ele, a graça é a atenção generosa e absolutamente imerecida que Deus dá
à humanidade pela qual esse processo de caia pode ter início. A natureza
humana precisa ser transformada pela graça de Deus que é dada com tanta
generosidade.

Pelágio usa o termo graça de maneira bem diferente. Em primeiro lugar, a


graça deve ser entendida como o conjunto de faculdades humanas naturais.
Para Pelágio, estas não se encontram corrompidas, incapacitadas ou compro-
metidas de nenhuma forma. Foram dadas â humanidade por Deus e devem ser
usadas. Quando Pelágio assevera que, por meio da graça, a humanidade pode
escolher ser impecável, ele quer dizer que as faculdades humanas da razão e
da vontade devem capacitara humanidade para escolher evitar o pecado.
Mas, como Agostinho logo demonstrou, o termo não parece ser entendido
dessa maneira no Novo Testamento.
Em segundo lugar, Pelágio entende que a graça é um esclarecimento ex-
temo que Deus provê â humanidade. Pelágio dá vários exemplos desse escla-
recimento – os dez mandamentos e o exemplo moral de Jesus Cristo,
entre outros. A graça nos informa das nossas obrigações morais (de outro
modo, não saberíamos o que devemos fazer); no entanto, ela não nos ajuda a
cumprir tais obrigações. Os ensinamentos e o exemplo de Cristo nos dão a
capacidade de evitar o pecado. Agostinho argumentou que essa idéia
correspondia a "situar a graça de Deus na lei e no ensine". De acordo com
Agostinho, o Novo Testamento via a graça como assistência divina para a
humanidade, e não apenas como orientação moral. Para Pelágio, a graça
era algo externo e passivo, algo fora de nós. Agostinho entendia a graça
como a presença real e redentora de Deus em Cristo dentro de nós e que nos
transforma, algo interno e ativo.

A base da salvação

Para Agostinho, a humanidade é justificada como um ato da graça: até mesmo


as boas obras humanas são resultados da operação de Deus dentro da
natureza humana decaída. Tudo o que leva â salvação é um dom gratuito
e imerecido de Deus, dado por amor aos pecadores. Pela morte e ressurreição
de Jesus Cristo, Deus pode tratar da natureza humana dessa forma
extraordinária e generosa, dando-nos aquilo que não merecemos (salvação)
e retendo aquilo que merecemos (condenação).
Nesse sentido, a exposição que Agostinho faz da parábola dos trabalha-
dores na vinha (Mt 20.1-10) é de importância considerável. Como veremos,
Pelágio argumentava que Deus recompensava cada indivíduo estritamente
com base nos méritos. Agostinho, por sua vez, ressalta como essa parábola
mostra que a base da recompensa dada a cada indivíduo é a promessa
feita a esse indivíduo. Agostinho enfatiza que os trabalhadores não
trabalharam o mesmo numero de horas na vinha e, no entanto, todos
receberam o mesmo salário (um denário). O dono da vinha havia prometido,
a cada trabalhador, um decano, desde que ele trabalhasse da hora que havia
sido contratado até o pôr do-sol –mesmo que para alguns isso significasse
trabalhar o dia todo e para outros, apenas uma hora.

Assim, Agostinho chega à conclusão teologicamente relevante de que a


base da nossa justificação é a promessa de graça divina que nos foi feita.

Deus é fiel a essa promessa e, portanto, justifica os pecadores. Assim como os


trabalhadores que começaram a trabalhar na vinha no final do dia não tinham
direito ao salário inteiro, exceto em função da promessa generosa do dono
da vinha, também os pecadores não têm nenhum direito à justificação e vida
checou, exceto pelas promessas que Deus faz em sua graça e que são
recebidas pela fé.
No entanto, para Pelágio, a humanidade é justificada com base em seus
méritos: as boas obras humanas resultam do exercício do livre-arbítrio
humano inteiramente autônomo para o cumprimento de uma obrigação
determinada por Deus. O não-cumprimento dessa obrigação expõe o indivíduo
à ameaça de castigo eterno. O envolvimento de Jesus Cristo na salvação se dá
apenas até o ponto em que ele revela, através de suas ações e
ensinamentos, exatamente aquilo que Deus requer de cada indivíduo. Se
Pelágio fala de "salvação em Cristo" é apenas no sentido de "salvação pela
imitação do exemplo de Criam".
Fica claro, portanto, que Pelágio e Agostinho representam dois pontos de vista
radicalmente diferentes, com visões inteiramente divergentes da maneira como
Deus e a humanidade se relacionam entre si. O Agostinianismo acabaria
predominando na tradição teológica ocidental; não obstante, o Pelagianismo
continuou a exercer sua influência sobre muitos escritores cristãos ao
longo das eras, especialmente daqueles que acreditavam que uma ênfase
sobre a doutrina da graça pode levar facilmente a uma desvalorização da
liberdade e responsabilidade humanas.
As linhas gerais da posição de Agostinho podem ser estudadas no texto a
seguir extraído de seu "Tratado Sobre a Natureza e da Graça", escrito em 415.
Aqui, Agostinho identifica as conseqüências da Queda para a natureza
humana. Criada originalmente sem nenhuma imperfeição, a natureza
humana se encontra agora contaminada pelo pecado e só pode ser redimida
pela graça.

1.7.2 Agostinho: Acerca da natureza e da graça

Sem dúvida, a natureza humana foi criadaoriginalintente impreensível e sem


nenhuma imperfeição (vitium); mas a natureza humana pela qual cada um
de nós é agora nascido de Adão requer um médico, pois não é saudável.
Todas as coisas boas que ela possui, por sua concepção, vida, sentidos e
mente, vêm de Deus, Aquele que a criou e formou. Mas a fraqueza que
obscurece e incapacita essas qualidades naturais boas e em decorrência da
qual a natureza precisa de esclarecimento e cura, não veio do Criador
irrepreensível, mas do pecado original (ex originali peccato) que foi
cometido por livre-artamo (liberara arbitrium). Por esse motivo, nossa
natureza culpada está sujeita a uma pena justa. Pois, se agora so~ mos
uma nova criatura em Cristo, ainda somos filhos da ira por natureza, como
todos os outros. Mas Deus, que é rico em misericórdia, em função do
grande amor com o qual Ele nos amou, mesmo quando ainda estava-
mos mortos por meio de nossos pecados, nos ressuscitou para a vida
com Cristo e é por sua graça que somos salvos. Mas essa graça de
Cristo, sem a qual nem os bebês nem os adultos podem ser salvos,
não é concedida como recompensa por méritos, mas dada
gratuitamente (gratis), motivo pelo qual é chamada de graça (grana).

Observe os seguintes pontos:


1. Na primeira parte da passagem, Agostinho usa principalmente a
figura médica pua descrever o impacto do pecado sobre a natureza
humana. Observe especialmente o uso que ele faz dos termos
"médico, "saudável" e "cwa" (linhas 3-6). Na seqüência, ele emprega
modelos de cunho mais legal ou penal - observe o uso que ele faz de
termos como "culpada" e "pena" (linhas 8-9).
2. Observe a ênfase sobre a integridade original da criação (linha
1). A preocupação de Agostinho aqui é defender Deus de qualquer
acusação de que Ele é, de algum modo, responsável pelo pecado e
pelo mal no mundo. A imperfeição presente do mundo não é resultante
da criação de Deus, mas do pecado original e do abuso do livre-
arbítrio humano (linhas 7-8).
3. Agostinho estabelece uma ligação entre os termos latinos gratis
("gratuitamente" ou "sem custo") e grafia ("graça", ver linhas 13-14).
Em seguida, usa isso para reforçar seu argumento de que a salvação
não pode ser considerada uma recompensa, obtida de algum modo por
mérito, status ou realização humana; antes, é uma dádiva.

Estudo de caso 1.8 Fé e Filosofia


O Cristianismo se originou na Palestina, mas se espalhou
rapidamente. Numa questão de décadas, a fé cristã começou a se
expandir ao redor do Mar Mediterrâneo. O livro de Atos dos Apóstolos
documenta a expansão rápida do Cristianismo pelo Império Romano.
Em seus 12 primeiros capítulos, o relato se concentra numa série de
acontecimentos que levaram o evangelho cristão a se arraigar
firmemente em Jerusalém e nas regiões vizinhas. O restante do livro
trata da maneira como o Cristianismo se estabeleceu gradativamente
em grande parte do Império Romano. Essa última seção da obra se
concentra em Paulo e dedica atenção especial ao seu papel na
expansão da igreja cristã da Palestina para as regiões da atual
Turquia e Grécia. Dá detalhes das três viagens missionárias que
Paulo realizou para a região oriental do Mediterrâneo e termina com
uma descrição de sua última viagem, como prisioneiro, para a própria
Roma. A implicação disso é que, por volta de 64 d.C., o Cristianismo
havia se tomado uma presença permanente em grande parte da região
oriental do mundo mediterrâneo.

A expansão do Cristianismo em regiões como Egito, Ásia Menor e Grécia,


levantou questões importantes para os escritores cristãos. Uma das mais ex-
pressivas dizia respeito à relação entre o Cristianismo e a filosofia clássica.
Grande parte do mundo civilizado nessa região falava grego e, pelo menos até
certo ponto, tinha conhecimento das idéias da filosofia clássica grega, quer na
forma do Platonismo, do Platonismo médio ou, ocasionalmente, em versões
reavivadas do paganismo clássico. Levantaram-se, portanto, as seguintes
perguntas: De que maneira o evangelho cristão se relaciona com essas linhas
de pensamento? Ele as contradiz inteiramente? Ou as linhas clássicas de
pensamento foram, de algum modo, uma preparação para o evangelho cristão
que se desenvolveu sobre seus alicerces? Adiantando a pergunta de
Tertuliano: "O que Jerusalém tema ver com Atenas?".
Há um consenso de que uma das descrições mais importantes do confronto
inicial entre o Cristianismo e o paganismo clássico se encontra no discurso de
Paulo no Areópago em Atenas, registrado em Atos 17. Tendo em vista a impor-
tância desse confronto para o pensamento cristão subsequente, sobre essa
questão durante o período patrística podemos explorá-lo em mais detalhes.
De acordo com Atos, Paulo chegou em Atenas depois de uma viagem à
Marechais inteiramente ciente da reputação da cidade e de seu potencial
para a propagação do Cristianismo. (No texto a seguir, aceitaremos o
consenso quase geral de que Atos foi escrito por Lucas e de que constitui a
segunda parte de uma obra cuja primeira parte é o evangelho que leva o nome
de Lucas.) Lucas comenta que Atenas em uma cidade repleta de ídolos,
informando-nos, provavelmerne, que além do grande número de ídolos dentro
das construções, outros eram expostos publicamente pela cidade em lugares
de importância estratégica. Um grande número de templos havia sido
construído na região da Acrópole tanto na época de Périeles quanto de
Augusto, que levantou vários edifícios, inclusive diversos santuários e estátuas
consagradas ao culto imperial. É bem possível que essas construções
impressionantes tenham inspirado o comentário de Paulo sobre santuários
feitos por mãos humanas (At 17.24). O termo "Areópago' pode significar tanto
um grupo de pessoas quanto um lugar físico. Como grupo de pessoas, em o
conselho administrativo mais importante de Atenas. Como lugar físico,
referia-se ao "Monte de Marte". Apesar de o local exato do "sermão do
Areópago" de Paulo não ser especificado, é possível que a referência
específica (At 17.18) aos filósofos epicurcus; e estóicos sugira que esse
encontro se realizou na ágora, um espaço aberto cercado de colunas (as
"stoa" que deram origem ao nome dos "estóicos").

Em seu discurso, Paulo parece argumentar que o evangelho cristão ecoa e


expande convicções centrais da filosofia estóica. Aquilo que os gregos consi-
deravam desconhecido e, talvez, impossível de conhecer, Paulo afirma ter sido
revelado por meio de Cristo. Isso fica especialmente claro em sua referência
a um altar consagrado —Ao Deus DESCONHECIDO" (At 17.23). Há
precedentes clássicos para esse tipo de consagração, especialmente de
acordo com os escritos

de Diógenes Laércio. Vários escritores cristãos do inicio do período


patrística explicaram essas palavras de Paulo fazendo referência aos
"altares anônimos" que se encontravam espalhados por toda a região
naquela época.
O argumento fundamental é que a divindade da qual a filosofia grega
possuía certa consciência implícita ou intuitiva lhes é revelada pelo nome e
plenamente. O Deus que é conhecido indiretamente por meio da criação
pode ser conhecido direta e mais plenamente na redenção. Paulo parece
usar o tema da criação cornopraparano evangelica, uma forma de introduzir
o tema da redenção em Cristo. Assim, pode-se considerar que, de algum
modo e num grau, a filosofia preparou o caminho para a vinda da revelação
cristã, de maneira bastante semelhante àquela (conforme alguns escritores
cristãos argumentavam) que o Antigo Testamento preparou o povo judeu
para a vinda de seu Messias.

Abordagens dentro dessa linha podem ser encontradas nos escritos


de teólogos patrísticos que atuaram em situações culturais nas quais
várias formas de filosofia grega clássica tinham uma presença
expressiva. Trataremos a seguir das abordagens associadas a Justino
Mártir e Clemente de Alexandria, dois escritores que se dedicaram a
mostrar que o Cristianismo é coerente com certas formas de Platonismo.
Em suas duas apologias da fé cristã escritas em grego na cidade de Roma em
algum ponto no período de 148-161, Justino apresenta uma defesa enérgi-
ca do Cristianismo, procurando relacionar o evangelho com a sabedoria
seculu. A idéia de "Logos" é de suma importância para ele e deve ser
considerada. O termo grego "Logos" (cuja tradução mais apropriada é
"Palavra") em usado no Platonismo médio para se referir ao princípio
mediador entre o universo das idéias e o universo quotidiano. O termo é
aplicado a Jesus Cristo no evangelho de João (ver Jo 1. 14, em que o
apóstolo declara que "o Logos se fez carne e habitou entre nós"). Justino usa
essa declaração para argumentar que toda sabedoria é derivada do Logos, o
qual é revelado plenamente em Jesus Cristo, porém não se restringe a ele.

Um tema central da argumentação de Justino é a idéia de que Deus espa-


lhou "as sementes (spermata) do seu Logos" por todo o mundo antes da
vinda de Cristo, de modo que a sabedoria e a verdade podem apontar, ainda
que imperfeitamente, pua Cristo. Assim, aqueles que tentaram viver de
acordo com esse "Logos" antes da vinda de Cristo não se diriam cristãos, mas
poderiam ser considerados como tais. Esse aspecto dos ensinamentos de
Justino seria

repudiado pela maioria dos outros escritores do período patrística para os


quais ele havia ido longe demais em sua tentativa de relacionar fé e filosofia.

1.8.1 Justino Mártir: Acerca da fé e da Filosofia


Ensinamos que Cristo é o primogénito de Deus e proclamamos que ele
é o Logos, do qual todas as raças tiveram parte. E aqueles que vivem
de acordo com o Logos são cristãos, ainda que talvez se
considerassem ateus —como Sócrates e flerialito, e outros como eles,
entre os gregos... Tudo aquilo que seus juristas e filósofos disseram bem
foi articulado ao encontrar algum aspecto do Logos e refletir sobre ele.
No entanto, uma vez que eles não conheciam o Logos — que é Cristo —
em sua totalidade, caíam com freqüência em contradição... Tudo aquilo
que as pessoas disseram bem pertence a nós cristãos. Porquanto
adoramos e amamos, depois de Deus, o Logos, que vem do Deus não-
gerado e inefável, uma vez que foi por nós que ele se tornou um
Senhor humano, a fim de que ele pudesse compartilhar de nossos
sofrimentos e nos trazer cura. Porquanto todos os escritores podem ver
a verdade obscuramente em função da semente implantada do Logos
que foi enxertada neles.

Observe especialmente os seguintes pontos:


1. Justino argumenta que Jesus Cristo é o Logos. Toda sabedoria
humana verdadeira é procedente desse Logos, quer explicitamente
reconhecida ou não. As tensões e contradições filosóficas surgem como
resultado de um acesso incompleto ao Logos —mas mas o acesso pleno é
possível agora por meio de Jesus Cristo (linhas 6-9).
2. Todo aquele que procura agir de acordo com esse Logos pode ser
considerado um cristão — inclusive Sócrates (linhas 1-5). Esse aspecto dos
ensinamentos de Justino foi motivo de controvérsia.
3. Tudo que é bom e verdadeiro na filosofia secular pode, portanto,
ser aceito e honrado pelos cristãos (tinhas 5-6), uma vez que é proveni-
ente do Logos.

Uma abordagem próxima foi adotada um pouco depois por Clemente de


Alexandria visando demonstrar como é possível considerar que a filosofia
I(A

clássica preparou o caminho para o evangelho. Os oito livros da


Stromata (o termo significa, literalmente, "tapetes") de Clemente
tratam demoradamente da relação entre a fé cristã e a filosofia grega.
Neste trecho da Stromata, escrito originalmente em grego no início do
século 3~, Clemente argumenta que Deus deu a filosofia aos gregos
como uma forma de prepará-los, para a vinda de Cristo, de maneira
mais ou menos semelhante àquela como deu a lei de Moisés ao povo
de Israel. Apesar de não reconhecera filosofia como revelação, Cle-
mente vai além da sugestão de Justuro Mártir de que a filosofia grega
contêm apenas sementes do Logos.

1.8.2 Clemente de Alexandria: Acerca da fé e da ~ria

Até a vinda do Senhor, a filosofia era necessária aos gregos para


que houvesse retidão. Agora, ela assiste aqueles que vêm pela fé por
meio da demonstração, como um tipo de treinamento preparatório para
a verdadeira religião. Pois, "não tropeçará o teu pé" (Pv 3.23) se
atribuíres todas as coisas boas à providência, quer pertençam aos
gregos ou a nós. Porquanto Deus é a fonte de todas as coisas boas,
algumas diretamente (como no caso do Antigo e Novo Testamentos),
outras indiretamente (como no caso da filosofia). Mas é possível que a
filosofia tenha sido dada aos gregos de maneira imediata e direta até o
tempo em que o Senhor também chamaria os gregos. Porquanto a
filosofia serviu de "aio" para conduzir os gregos a Cristo, da mesma
forma que lei conduziu os hebreus. Assim, a filosofia teve uma função
preliminar, preparando o caminho pua sua perfeição em Cristo.

Observe especialmente os seguintes pontos:

1. Considera-se que a filosofia clássica tem un, lugar definido na


"centro-nua da salvação". Em outras palavras, Clemente argumenta
que, na providência de Deus, a filosofia teve um papel na preparação
do caminho para a vinda de Cristo.
2. Depois da vinda de Cristo, a filosofia mantêm um papel
importante como "treinamento preparatório" (linhas 1-3). Fica claro que
Clemente considera a filosofia por uma óptica positiva e a vê como
um caminho que conduz ao Cristianismo, e não como uma
cosmovisão rival que provoca um desvio.

3. Observe a analogia entre a filosofia e o Antigo Testamento


(linhas 8-9). Ao que parece, Clemente argumenta que assim como
Deus proveu a lei do Antigo Testamento com o propósito de
preparar Israel para a vinda de Cristo, também proveu a filosofia
com o propósito de prepeirar os gregos para sua vinda.

Cristo é visto como a perfeição e o cumprimento da filosofia, da mesma


maneira como é considerado o comprimento e ápice da lei do Antigo Testamento.
Para Clemente (como também para Justino Mártir), pode-se dizer que Cristo é
"Logos e Nomos".

Porém, nem todos os escritores cristãos primitivos compartilhavam dessa atitude


em relação à filosofia clássica. Tertuliano é um exemplo de escritor patrístico
com sérias reservas em relação ao lugar da filosofia dentro do pensamento
cristão, pois acreditava que, em alguns pontos, tal filosofia podia ser
extremamente enganosa. De acordo com sua argumentação, a perspectiva da
filosofia era pagã e seu uso na teologia não podia resultar em outra coisa
senão heresia dentro da igreja. Em seu "Tratado Sobre a Regra dos Hereges",
escrito em latim nos primeiros anos do século 3", Tertuliaiso faz um contraste
célebre entre Atenas e Jerusalém, simbolizando a tensão entre a filosofia pagã
e a revelação da fé cristã. Observe que a referência à "Academia" não é uma
referência geral ao universo acadêmico, mas específica â Academia Platônica
em Atenas. Para Tervuliano, as idéias pagãs da "Academia" não têm lugar
dentro do Cristianismo.

1.8.3 Tertuflitito: Acerca da fé e da filosofia

A filosofia fornece o conteúdo da sabedoria pagã, declarando-se a intérprete da


natureza e dispensação divina. As próprias heresias recebem suas armas da
filosofia. Foi dessa fonte que Valentino, discípulo de Platão, obteve sua idéia
acerca das "eternidades" e da "trindade da humanidade". E foi de lá que veio o
deus de Márcion (bastante preferível, em função de sua tranqüilidade); Márcion
veio dos estóicos. Dizer que a alma está sujeita à morte é seguir o caminho de
Epicuro. E a negação da ressurreição do corpo pode ser encontrada por todos os
escritos de todos os filósofos. Dizer que a matéria é análoga a Deus é seguir a
doutrina de Xeno; falar de um deus de fogo e lançar mão de Honielito. Os
hereges e filósofos se interessam pelos mesmos assuntos. De onde vem o mal, e
por quê? De onde vem a natureza humana, e como?... O que há de comum entre
Atenas e Jerusalém? Entoe a Academia e a igreja? Nosso sistema de crenças vem
do Pórtico de Salomão, o rei que ensinou que é necessário buscara Deus com
simplicidade de coração. Tanto pior para aqueles que

falam de um Cristianismo "estóico", "platônico" ou "dialético"! Não te-


mos nenhuma necessidade de curiosidade acerca de Jesus Cristo ou de
investigação acerca do evangelho. Quando cremos, não desejamos crer
em nada mais. Pois não precisamos crerem nada mais senão que "não há
nada mais em que somos compelidos a crer".

Observe especialmente os seguintes pontos:


1. Tertuliano argumenta que, como fato histórico, as heresias
parecem ser provenientes de muitas das idéias principais da filosofia
secular (1-10). A seu ver, isso é suficiente para levantar sérias dúvidas
acerca do uso dessas filosofias na teologia.
2. Algumas das heresias específicas que Tertuliano relaciona (4-6)
são formas de Griosticismo. Na verdade, é discutível se podemos conside-
rar que o Gruisticisnar, se valeu de idéias da filosofia grega secular;
alguns estudiosos argumentaram que, na realidade, o Gnosticismo é
bastante antiintelectual.
3. Tertuliano argumenta que vários sistemas filosóficos clássicos
contêm idéias centrais (como a negação da ressurreição) incompatíveis
com o Cristianismo. Como, então, pergunta ele, esses sistemas podem
ser usados pelos cristãos, uma vez que refletem idéias tão anticristãs em
seu cerne?

A posição de Tertuliano pode, evidentemente, ser refutada argumentando-


se em favor da necessidade de apropriação conca das idéias da filosofia.
Pode-se argumentar que Justmo e Clemente fossem, talvez, indevidamente
otimistas em sua atitude para com a filosofia secular, enquanto Tertuliano
em excessivamente negativo. Nem todas as idéias encontradas na filosofia
grega são certas, assim como nem todas são erradas. É esse tipo de
abordagem que encontramos nos primeiros escritos de Agostinho, para o
qual voltamos nossa atenção agora.

Em seu "Tratado Sobre a Doutrina Crista", escrito originalmente em latim por volta
de 397, Agostinho trata com certa minúcia da relação entre Crisfiainstria, e filosofia
pagã. Usando o êxodo do Egito como modelo, Agostinho argumenta que não há
motivo para os cristãos não extraírem todas as coisas boas da filosofia e colocá-las
a serviço do evangelho. A analogia que ele usa para justificar essa abordagem
se encontra no Livro de Êxodo no Antig

Testamento, que relata as circunstâncias em que Israel deixou o Egito - um


acontecimento conhecido universalmente como —o êxodo". Enquanto estavno
Egito, o povo de Israel foi oprimido; ao escapar, o povo deixou esses fardos para
trás, mas carregou tesouros dos antigos opressores. Assim, Agostinho ar gumenta
que, da mesma maneira como Israel deixou para trás os fardos d Egito e levou
seus tesouros, a teologia pode descartar aquilo que é inútil na filosofia e explorar
aquilo que é bom e proveitoso.
1.8.4 Agostinho: Acerca da fé e da filosofa

Se aqueles que são chamados filósofos, particularmente os platônicos, disseram


algo que é verdadeiro e coerente com a nossa fé, não devemos rejeitar essa
declaração, mas nos apropriar dela para o nosso uso, sabendo que eles a
possuem ilegitimamente. Os egípcios possuíam ídolos e fardos pesados que os
filhos de Israel abominavam e dos quais fugi-

ram;noentanto,tambémpossuíamrecipientesdeouro,privaevestimentasque,aodeixar tomaram o Egito, nossos antepassados

tomaparasiemsegredo

coma intenção de usar mais apropriadamente (Êx 3.21,22; 12.35,36)...


Semelhantemente, o saber pagão não é constituído inteiramente de ensirimemos
falsos e superstições. Também contém algumas instruções excelentes,
adequadas para serem usadas pela verdade, bem como excelentes valores
morais. De fato, pode-se até encontrar no meio deles algumas verdades
relacionadas à adoração do Deus único. Essas verdades são, por assim dizer, seu
ouro e sua prata, que eles próprios não inventaram, mas que escavaram das
minas da providência de Deus que se encontram espalhadas por todo o mundo e,
no entanto, são impróprias e ilegitimamente prostituídas para o culto a demônios.
Portanto, os cristãos podem separar essas verdades de suas associações
desventuradas, levá-las embora e lhes dar o uso devido para a proclamação do
evangelho... Que coisa, senão esta, fizeram muitas pessoas boas e fiéis em
nosso meio? Veja a riqueza de ouro, prata e vestimentas que Cipriano - mestre
eloquente e mártir bem-aventurado - trouxe quando saiu do Egito! E pense
em tudo que Lactâncio trouxe com ele, sem falarem Mário Vitoria, Optam e
Hilário de Ponícis, e outros que ainda vivem! E veja quanta coisa os gregos to-
maram emprestado! E, antes de todos eles, vemos que Moisés, o servo mais fiel
de Deus, fez a mesma coisa: afinal, está escrito a seu respeito:

A passagem anterior é extremamente rica, de modo que convém nos


concentrarmos nos seguintes pontos:

1. Observe como Agostinho afirma explicitamente que a filosofia


propõe algumas coisas verdadeiras (linhas 1-3) e algumas coisas falsas
(linhas 7-8). Cabe à teologia cristã determinar e usar aquilo que é
verdadeiro. Agostinho se recusa a adotar uma abordagem positiva ou
negativa desprovida de qualquer crítica. Os cristãos podem, portanto,
separar crenças e valores verdadeiros de suas associações pagãs
(linhas 14-17).
2. A analogia do êxodo é usada para justificar essa apropriação
crítica, como foi observado acima (ver linhas 3-7). No entanto, é
usada também para desenvolver uma idéia relacionada que é explorada
ao considerar a figura de "ouro e prata' (linhas 5-6). Agostinho
argumenta que essas riquezas não foram inventadas pelos egípcios;
foram minadas. Sua disponibilidade se deve à boa providência de Deus
(linhas 11-13).
3. Agostinho apresenta dois tipos de ilustração para a maneira como
a sabedoria secular pode ser colocada a serviço da igreja cristã. A
primeira é o próprio Moisés, citado no Novo Testamento como tendo
sido "educado em toda a ciência dos egípcios" (At 7.22, ver linhas 22-
24). Fica claro que Agostinho considerava isso um preparo como
objetivo de aprimorar o serviço de Moisés a Deus. Em segundo lugar,
Agostinho se vale de uma série de escritores cristãos (incluindo
Cipriano) que se converteram do paganismo para o Cristianismo e que
puderam colocar sua erudição secular a serviço da igreja (20-21).

De acordo com um consenso amplo, o movimento dentro do


Cristianismo que explorou a relação entre a fé cristã e a filosofia de
modo mais proveitoso foi o "Escolutícismo-, um movimento que
desabrochou na Idade Média. Trataremos dessa rica tradição intelectual
no estudo de caso 2.1. Antes disso, porém, voltamos nossa atenção ao
estudo geral do próximo período relevante da história do pensamento
cristão.

C A P Í T U L O 2

AIDADE MÉDIA E 0

RENASCIMENTO, c.500-1500

0 NASCIMENTO DA IDADE MÊDU


A queda do Império Romano teve repercussões por toda a região do
Mediterrâneo e foi extremamente importante para o desenvolvimento
da teologia cristã. A fronteira setentrional do Império Romano, mais ou
menos definida pelo Rio Reno, foi invadida pelos "bârb~s" em 404.
Áreas extensas do Império Romano passaram a ser controladas por
francos, godos e vândalos. A cidade de Roma foi saqueada duas vezes,
mais notadamente em 410 porAlatrico, o Godo. Em 476 as regiões
ocidentais do Império Romano já não passavam de ruínas. A estabilidade
política da região estava abalada e, com isso, o próprio Cristianismo se
viu diante de um período de grande incerteza.
A insegurança aumentou com as invasões árabes do século 7-.
Nessa época, o Islamismo começou a ganhar influência entre o povo
árabe, o que levou ao início de uma campanha de conquista que
acabou dando aos exércitos árabes o controle de toda a região
costeira do norte da África por volta de 750. Exércitos islâmicos
também se deslocaram para o norte, representando uma ameaça
séria até para Constantinopla. Forças árabes sitiaram a cidade entre
711 e 778 e, por fim, forçaram sua rendição. A imposição do Islamismo
sobre as regiões conquistadas da Terra Santa gerou preocupação
intensa na igreja ocidental e foi um dos fatores que contribuíram
para as cruzadas no período de 1095-1204.

Outra complicação surgiu no próprio mundo cristão com as tensões cres-


centes entre os cristãos de língua grega da região oriental do
Mediterrâneo, tendo Constantinopla como cidade central e os
cristãos de língua latina da região ocidental, tendo Roma como cidade
central, durante os séculos 9- e I(P. Desentendimentos cada vez mais
sérios sobre expressões do Credo Niceno também foram importantes
para esse ambiente de tensão crescente. No entanto, outros fatores
como a rivalidade política entre Roma de língua latina e Constantinopla
de língua grega e as declarações cada vez mais categóricas de

autoridade do papa romano também contribuíram. O rompimento final entre o


Ocidente católico e o Oriente ortodoxo costuma ser datado de 1054, tratando-se,
porém, de uma data um tanto arbitrária.
É neste contexto de incerteza que devemos considerar o desenvolvimento da
teologia cristã durante esse período. No entanto, podemos começar nossa
investigação desse período tratando do surgimento de um dos catalisadores mais
importantes da teologia e espiritualidade cristã – o monastícismo.

As ORIGENS W MONASTICISMO

Uma das desenvoluções mais relevantes na história do início do Cristianismo foi o


monasticismo. Tendo em vista a importância dos mosteiros pata o
desenvolvimento da teologia cristã durante a Idade Média, convém tratarmos
desse movimento em mais detalhes. As origens do movimento costumam ser
situadas nas regiões montanhosas remotas do Egito e panes da Síria oriental do
século 3'. Um número considerável de cristãos começou a viver nessa região
procurando se afastar dos grandes centros populacionais com todas as suas
respectivas distrações. Um exemplo é Antônio do Egito que deixou a casa de seus
pais em 273 para buscar uma vida de disciplina e solidão no deserto.

O tema do afastamento de um mundo pecaminoso e repleto de distrações se tomou


essencial para essas comunidades. Apesar de algumas figuras solitárias insistirem na
necessidade de isolamento individual, o conceito de vida comuniciria em isolamento
do mundo se torriou, predominante. Um mosteiro antigo importante foi fundado por
Pacôrnio no período de 320-325. O edios desenvolvido nesse mosteiro veio a ser
normativo para o monasticismo posterior. Os membros da comunidade concordavam
em se sujeitara utru, vida comum regulada por uma Rega, sob a direção de um
superior. A estrutura física do mosteiro é expressiva: o complexo em cercado por um
muro, ressaltando a idéia de separação e afastamento do mundo. O temo grego
koimana (traduzido com frequência como "Comunhão") usado em várias ocasiões ao
longo do Novo Testamento, passou a se referir à idéia de uma vida corporativa
comunitária caracterizado pela semelhança das roupas, refeições e mobilia das celas
(como eram conhecidos os quartos dos monges) e pelo trabalho manual em
benefício da comunidade.
O ideal monástico se mostrou atraente para muitos. No século 4 j havia mosteiros
em vários lugares do Oriente cristão, especialmente na Síria e na Ásia Menor e o
movimento não tardou em ser adotado pela igreja ocidental. No século 5°,
surgiram comunidades monásticas na Itália (especialmente junto à costa ocidental),
Espanha e Gálea. Agostinho de Hipona fundou dois mosteiros no norte da África no
período de 44Q 425. Para Agostinho, a vida comuirifúria (que recebeu a
designação latina de vira conumunis) era essencial para a prática do ideal cristão
do amor. Agostinho complementos essa ênfase na vida comunitária com a
avaliação favorável da importância da atividade intelectual e do estudo espiritual.

O mimem de mosteiros dessa região cresceu consideravelmente durante o século 6


. Foi nesse período que surgiu uma das "Regras- monásticas mais abrangentes -
a "Regra de São Bento-. Bento de Núrsia (c. 480 - c. 550) fundou seu mosteiro
em Monte Cassino por volta de 525. A comunidade beneditina seguia uma regra
na qual predominava a idéia de seguir a Cristo incondicionalmente e manter uma
disciplina de oração comunitária e particular e de leitura das Escrituras.
O desenvolvimento dos mosteiros é de grande relevância para a história da teologia
cristã. Os mosteiros eram, com freqüência, centros de atividade teológica e
espiritual. Durante o período patrístico e a Idade Média, quase todos os teólogos
cristãos importantes eram membros de comunidades monásticas ou tinham uma
relação muito próxima com elas. Anselmo de Canterbury, Hugo de São Vítor,
Tomás de Aquino e Bonaventura são exemplos de escritores teológicos medievais
ocidentais expressivos associados ao monasticismo. Convém citar também a
importância dos mosteiros para a ortodoxia oriental (tanto em sua forma grega
quanto russa) e para o Cristianismo celta.

Uma forma de Cristianismo com raízes monásticas se desenvolveu nas regiões da


Europa ocidental associada aos povos celtas. Tratemos a seguir do
desenvolvimento e obscurecimento gradativo desse tipo de Cristianismo com sua
consideração particularmente elevada pela ordem natural.

O ~VOLVINIENTO W CRISTIANISMO CEL'T'A


O desenvolvimento do Cristianismo nas regiões celtas da Europa - mais
especificamente, Irlanda, Escócia, Comuália, Britânia e Gales - é de interesse
considerável, especialmente porque essa forma de Cristianismo se opôs às versões
mais romantizadas que logo se tomaram predominantes na Inglaterra. Apesar de as
origens do Cristianismo celta se encontrarem Gales, foi a Irlanda que se consolidou
como centro missionário de maior distinção nos séculos 5- e (P. Esse período
teve outros centros influentes de atividade missionária do mobilo celta, sendo o mais
conhecido o de Condida Casa (atual Whithorn, na região de Galloway, na Escócia),
fundado pelo bispo Nituano no século 5". A importância dessa estação missionária
se deve à sua localização fora das fronteiras da Britânia romana, o que lhe permitiu
funcionar sem as restrições impostas na época pelas formas romanas de
Cristianismo.
A tradição atribui a evangelização da Irlanda a um bretão romantizado chamado
Magonus Sucatas Patricius, mais conhecido por seu nome celta Patrick ou Patrício
(c. 390 - c. 460). Patrício nasceu numa família rica e foi levado cativo por um
grupo de invasores aos 16 anos e vendido como escravo na Irlanda,
provavelmente na região de Connaught. Ao que parece, foi lá que ele descobriu os
fundamentos da fé cristã antes de escapare voltar para sua família depois de
passar seis anos no cativeiro. Não se sabe ao certo o que aconte

como missionário. Umatrialiçao que remonta ao século 7-, ou 8-1 fala de


Patrício passando algum tempo na Gálio antes de voltar à Irlanda. É possível
que algumas das opiniões de Patrício acerca da organização e estimam da
igreja reflitam essa experiência pessoal com o monasticismo de certas regiões
no sul da França. Há excelentes evidências históricas de ligações
comerciais entre a Ir-latida e o Vale do Loire por volta dessa época.
Patrício voltou à Irlanda e estabeleceu o Cristianismo na região. Fica claro
que já existia uma forma de Cristianismo ali; não apenas o relato da
conversão de Patrício pressupõe que outras regiões conheciam o
evangelho como também registros contemporâneos de 429 e anos
posteriores falam de certo Paládio, bispo da Irlanda, indicando que pelo
menos uma forma rudimentar de estrutura eclesiástica já existia na região.
Também se sabe que havia representantes irlandeses presentes no Sínodo de
Artes (314). Talvez seja mais apropriado entender as realizações de Patrício
em termos de consolidação e avanço do Cristianismo, e não de
estabelecimento inicial da fé crista na região.
O conceito monástico não demorriu, a tomar conta da Irlanda. Fontes his-
tóricas indicam que a sociedade irlandesa da época era, em sua maior
parte, nômade e tribal, sem nenhum assentamento permanente de maior
importância. A busca monástica por solidão e isolamento era ideal para o
estilo de vida irlandês. Enquanto na Europa ocidental como um todo o
monasticistra, foi marginalizado dentro da vida da igreja, na Irlanda se tomou
rapidamente sua forma predominante. Não é exagero dizer que a igreja
irlandesa era monástica, tendo um abade no lugar do bispo como figura
preeminente.
Assim, as estimaras de autoridade que surgiram no Cristianismo celta
eram diferentes daquelas que vieram a dominara igreja britânico -romana
da época. O modelo monástico irlandês passou a ser visto como uma
ameaça para o modelo romano de episcopado, no qual o governo da igreja era
firmemente localizado nas mãos dos bispos. Nenhum dos abades de lona
jamais se permitiu ser ordenado formalmente por bispos, negando a
necessidade desse reconhecimento "oficial". Na Irlanda, alguns dos bispados
mais antigos (inclusive Armagh) foram reorganizados com bases monásticas,
enquanto outros foram absorvidos por mosteiros. As abadias eram
responsáveis pelo cuidado pastoral das igrejas que cresciam em seus
arredores. Assim, o sistema episcopal romano se viu marginalizado nessa
região. Os líderes eclesiásticos celtas criticavam abertamente a riqueza e
ornar mundanos, incluindo o uso de cavalos como meio de transporte e
qualquer forma de luxo. Em termos teológicos, o Cristianismo celta
enfatizava a importância da esfera da natureza como meio de conhecer a
Deus. Isso fica especialmente claro num hino irlandês antigo atribuído
tradicionalmente a Patrício, conhecido como "Peitoral de São Patrício -. O
tema do "peitoral- era comum na espiritualidade celta. Baseia-se nas refe-
rências de Paulo à -armadura de Deus" (Ef 6.10-I8), e desenvolve o tema
do cristão ser protegido pela presença de Deus e de uma ampla gama de
poderes associados. Apesar de apresentar uma estrutura fortemente trinitária,
mostra o

fascínio com o mundo natural como meio de conhecera Deus. O Deus que
fez o mundo é o mesmo Deus que protegerá os cristãos de todos os perigos.
Os mosteiros irlandeses atuavam como centros de atividade missionária, usando as
vias marítimas como canais para a transmissão do Cristianismo. Brendan
(falecido e. 580) e Columba (falecido c. 597) são excelentes exemplos desse tipo
de missionário. Num, poema chamado "A Navegação de São Brendan" (c. 1050),
ele é louvado por suas viagens para "as ilhas do norte e do leste" (normalmente
entendidas como as Ilhas órcades e Hébridas, próximas à costa da Escócia).
Columba levou o Cristianismo do norte da Irlanda para as Ilhas Hébridas
Exteriores da Escócia e fundou o mosteiro de lona como posto avançado
missionário. De lá, o Cristianismo se espalhou em direção ao sul e leste. Aidan
(falecido em 651) é um excelente exemplo de um monge de lona que atuou como
missionário dessa maneira. A convite do rei da região da Normanbria, fundou
um mosteiro missionário na Ilha de Lindisfante, próxima à costa leste do norte da
Inglaterra. O Cristianismo celta começou a penetrar a França e se tomou cada vez
mais influente nessa região.

Era impossível ignorar as tensões entre essa forma de Cristianismo e seus rivais
romanos. A fé celta ameaçava solapar o episcopado, reduzir o poder de Roma,
dificultar que o Cristianismo se tomasse culturalmente aceitável e transformar o
monasticismo em norma para a vida cristã. Em 597, o ano da morte de Columba,
o predomínio da visão celta parecia inevitável. No entanto, o século seguinte
trouxe uma série de acontecimentos que levaram ao obscurecimento gradativo
da fé celta fora das regiões centrais da Irlanda. Por uma coincidência da
História, o episódio que desencadeou esse obscurecimento ocorreu no ano da
morre de Columba. Em 597, Agostinho foi enviado pelo papa Gregário à Inglaterra
para evangelizar os ingleses. Uma vez que as formas romanas de Cristianismo se
estabeleceram na Inglaterra, surgiram tensões entre os cristãos do norte e do sul
da Inglaterra, sendo que os primeiros permaneceram fiéis ás tradições celtas
enquanto os últimos adotaram as formas romanas. Em geral, considera-se que o
Sínodo de Whitby (664) estabeleceu a predominância do Cristianismo romano na
Inglaterra. Apesar de o Sínodo ter se concentrado na questão da celebração ou
não da Páscoa (as tradições celtas e romanas diferiam nessa questão) o que estava
de fato em discussão era a influência crescente da sé de Canterbury. As invasões da
Inglaterra pelos saxões no século anterior resultaram em mudanças culturais pro-
fundas na região, tomando inevitável uma erosão gradativa da cultura celta,
inclusive de sua abordagem característica do Cristianismo.
Pode-se considerar que o ano 700 marcou o final do crescimento do
Cristianismo celta. Porém, também é tido como o marco inicial de um novo
período de consolidação cultural e intelectual enquanto a Europa entrava no que
chamamos hoje de `Idade Média". No século 11, a Europa apresentava um grau
expressivo de estabilidade, com três grupos centrais de poder que surgiram para
tomar o lugar do antigo Império Romano.

1. Bizâwio, cujo centro era a cidade de Constantinopla (na atual Turquia e


chamada hoje de `Istambul"). A forma de Cristianismo que predominou
nessa região se baseava na língua grega e era profundamente arraigada
nos escritos de estudiosos patrísticos; da região oriental do Mediterrâneo,
como Atanasio, os capadócios e João de Damasco.
1 Europa ocidental, principalmente regiões como França, Alemanha,
Países Baixos e norte da Itália. A forma de Cristianismo que se tornou
predominante nessa região tinha como centro a cidade de Roma e seu
bispo, conhecido como "o Papa". (No entanto, durante o período do
"Grande Cisma", houve cerra confusão: dois clérigos reivindicaram o
papado, um em Roma, outro no sul da França, na cidade de Avignon.) Nesse
grupo, a teologia passou a se concentrar nas grandes escolas das
catedrais e nas universidades de Paris e de outros locais, baseando-se
em sua maior parte nos escritos de Agostinho, Ambrósio e Hilário de
Poitiers.

3. O Califado, um região islâmica que abrangia a maior parte do extremo


leste e sul do Mediterrâneo. A expansão do Islamismo continuou e a queda
de Constantinopla em 1453 repercutiu em quase toda a Europa. No foral do
século 15, o Islamismo havia estabelecido uma presença marcante em duas
regiões do continente europeu: a Espanha e os Bálcãs. Esse avanço acabou
sendo contido pela derrota dos mamas; na Espanha na última década do
século 15 e pela derrota dos exércitos islâmicos fora de Viena em 1523.

Um acontecimento de suma importância para a história da igreja ocorreu


durante esse período. Por vários motivos, as relações entre a igreja do
Oriente cujo centro era Constantinopla e a igreja do Ocidente cujo centro era
Roma, se tornaram cada vez mais tensas durante os séculos 9- e W Desen-
tendimentos crescentes sobre a cláusula filioque no Credo Niceno
tiverara, um papel expressivo nesse ambiente de pressão crescente.
Outros fatores como a rivalidade política entre Roma de língua latina e
Constantinopla de língua grega e as declarações cada vez mais
categóricas de autoridade do papa romano também contribuíram. O
rompimento final entre o Ocidente católico e o Oriente ortodoxo costuma
ser datado de 1054, tratando-se, porém, de uma data um tanto arbitrária.

Um dos principais resultados dessa tensão foi a ausência quase total de um


intercâmbio teológico entre o Oriente e o Ocidente. Apesar de teólogos
ocidentais, como Tomás de Aquino, não mostrarem reservas em lançar
mão dos escritos de patriarcas gregos, a tendência era tratar de obras
anteriores a esse período, As obras de teólogos ortodoxos posteriores, como o
conhecido escritor Gregório Palomas, atraíram pouca atenção no Ocidente.
Somente no século 20 é que se pode dizer, de fato, que a teologia começou a
redescobrir as riquezas da tradição ortodoxa.

Neste capítulo, concentraremos nossa atenção na teologia européia


ocidental que teve um impacto profundo no pensamento cristão moderno.
A designação "teologia medieval" e usada com freqüência para se referir à
teologia ocidental durante essa era, enquanto a designação "teologia
bizantina" é usada para se referir â teologia da igreja oriental
aproximadamente no mesmo período, antes da queda de Constantinopla em
1453. Durante esse período da história da Europa ocidental, os centros de
teologia cristã se deslocaram gradativamente para o norte, para a Alemanha
e para o interior da França. Apesar de Roma continuar sendo o centro do
poder cristão na região, a atividade intelectual começou a migrar para os
mosteiros da França, como os de Chartres, Reinas e Bec. Com a
fundação das universidades medievais, a teologia se consolidou
rapidamente como área central de estudos acadêmicos. Uma universidade
medieval típica era constituída de quatro faculdades: a inferior de ciências e
as superiores de teologia, medicina e direito.

O ES CL ARE C~NTO DE A LG UNS T ~S


Sabemos que a definição de períodos históricos é uma tarefa difícil. Parte do
problema se deve à ausência de um consenso universal acerca da definição
d as características de eras. É o que acontece especialmente no caso da
"Idade Média", do "Renaçcimentd' e da "Era Moderna". Também há dificul -
dades consideráveis relacionadas à definição de alguns dos movimentos inte-
lectuais do período, especialmente do Humanismo.
O período em questão reste capítulo deu origem a dois dos movimentos
intelectuais mais importantes na história do pensamento: o Escolasticismo e o
Humanismo. O Escolasticismo e o Humanismo dominaram o mundo
intelectual – inclusive a esfera teológica –entre 1300 e 1500. Apesar de ser
possível argumentar que em 1500 o Escolasticismo já estava em declínio, o
movimento continuava a exercer forte influência sobre várias universidades
européias como a Universidade de Paris. A fim de compreender o
desenvolvimento da teologia cristã durante esse período ou as pressões
religiosas que deram origem à Reforma é essencial entendera natureza
desses dois movimentos. Ambos são relacionados no sentido de que o último
costuma ser considerado uma reação à pobreza cultural e rigor teológico
exagerado do primeiro. A seguir, procuraremos esclarecer alguns dos temos
empregados na literatura relacionada a esse período importante da teologia
cristã

A Idade Média

A expressão "Idade Média" foi criada por estrumes; do Renascimento e parece


ter se tomado corrente no final do século 16. Os escritores renascentistas não
hesitaram em desacreditar esse período interposto entre as glórias da anti-
guidade clássica e o seu próprio tempo. Assim, cunharam a expressão `Idade
Média" para se referir a uma fase desinteressante e estagnada que separou
dois

períodos relevantes e criativos. O adjetivo "medieval" se refere àquilo que é


"relacionado â Idade Média". A designação "teologia medieval" se tomou
corrente e, em geral, pode-se entendê-la como "a teologia européia ocidental
do período entre o fim da idade das trevas e o século 16". No entanto, é
preciso considerar que se trata de uma designação imprecisa, controversa e
que deixa margem para várias interpretações.
Como fim da idade das trevas na Europa ocidental e o advento da Idade Média, o
cenário para um =avivamento de todas as áreas de trabalho acadêmico estava
preparado. A restauração parcial da estabilidade política na França no final do
século 11 estimulou o ressurgimento da Universidade de Paris que logo se tomou,
reconhecidamente, o centro intelectual da Europa. Várias "escolas" teológicas se
estabeleceram na margem esquerda do Sena e na fie de la Cité, à sombra da
recém-construída catedral de Norte Dame, de Paris.
Nessa universidade ficava o Collège de Ia Sorborme, que alcançou tamanha
fama a ponto de a designação "Sorbonne" se tornar sinônimo da Universidade
de Paris. Mesmo no século 16, Paris ainda era amplamente reconhecida como
principal centro de estudos teológicos e filosóficos, tendo entre seus estudiosos
indivíduos preeminentes como Erasmo de Roterdã e João Calvino. Outros
centros de estudos não tardaram em se estabelecerem diversas partes da Europa.
Teve início um programa de desenvolvimento teológico voltado para a
consolidação dos aspectos intelectuais, legais e espirituais da vida da igreja
cristã.
A primeira parte do período medieval é dominada por avanços na França.
Diversos mosteiros produziram escritores e pensadores cristãos extraordinários
como, por exemplo, Lanfranc (e. 1010 – 1089) e Anselmo (e. 1033 –1109),
ambos do mosteiro de Bec, na Normaráfia. A Universidade de Paris logo se
estabeleceu como centro de investigação teológica, com estudiosos como Pedro
Abelardo (1079 – 1142), Alberto, o Grande (e. 1200 – 1280), Tomás de Aquino
(c. 1225 – 1274), e Bonaventum (c. 1217 – 1274). Os séculos 14 e 15
testemunharam uma expansão considerável do setor universitário na Europa
ocidental, com a fundação de novas universidades importantes na Alemanha e em
outros lugares.
Uma figura central para o novo interesse medieval pela teologia também é
associada a Paris. Em algum momento, logo depois de 1140, Pedro Lombardo
chegou à universidade para ocupar um cargo de professor. Uma de suas maiores
preocupações era levar seus alunos a tratar das questões mais complicadas da
teologia. Sua contribuição foi um livro didático– talvez um dos livros mais
maçantes já escritos. Em Sententiarum libri quattuor ou Quatro Livros das
Sentenças Pedro Lombardo reuniu citações das Escrituras e de escritores
patrísticos; e as organizou topicamente. A tarefa que propunha aos seus alunos era
simples: entender o sentido das citações. O livro se mostrou extremamente
importante no desenvolvimento da herança agostiniana uma vez que os alunos eram
obrigados a tratar das idéias de Agostinho e conciliar textos aparentemente
contraditórios mediante elaboração de explicações teologicamente
adequadas para as incongruências.
Alguns escritures tentaram proscrever o livro em razão de suas declarações
por vezes incautas (como as opiniões de que Cristo não existiu como
pessoa, uma idéia que veio a ser chamada de "niilismo cristológico"). No
entanto, em 1215, a obra já havia se consolidado como livro didático mais
importante dessa era. Comentara obra de Lombardo passou a ser um exercício
obrigatório p ara os: Os escritos resultantes, conheci dos como
Comentários sobre as Sentenças, tomaram-se um dos gêneros teológicos
mais conhecidos da Idade Média. Dentre os exemplos de maior destaque estão
os comentários de Tomás de Aquino, Bonaventura e Duns Sentas.

O Renascimento

O termo francês Renaissance, "Renascimenw", é usado universalmente


para designar o reavivistincino literário e artístico na Gálio dos séculos 14 e 15.
Prenunciando essa designação, em 1546 Parlo Giovio se referiu ao século
14 como "0 século venturoso no qual se considera que as letras latinas
renasceram" (renarae). Alguns historiadores, mais notadamente lacob
Burckhardt, argumentaram que o Renascimento deu origem à Em Moderna. De
acordo com Burckhardt, foi nessa era que os seres humanos começaram a
pensar de modo independente, como indivíduos. Em vários aspectos, a
definição de Barckhardt: para o Renascimento é puramente individualista e
extremamente questionável. Porém, em certo sentido, é indubitavelmente,
correta: algo novo e empolgante se desenvolveu na Itália renascentista, algo
que se mostrou capaz de fascinar gerações inteiras de pensadores.
Não se sabe exatamente o motivo pelo qual a Itália se tomou o berço
desse novo movimento magnífico na história das idéias. Todavia, é possível
identificar vários fatores que contribuir= para isso:

1. A teologia escolástica– a principal força intelectual do período


mede val – nunca foi particularmente influente na Itália. Apesar de muitos
italianos terem alcançado renome como teólogos (incluindo Tomás de Aquino
e (incluiria de Rimini), normalmente eles viveram e trabalharam no norte da
Europa. Houve, portanto, um vácuo intelectual na Itália do século 14. E, já
que os vácuos tendem a ser preenchidos, este em particular foi preenchido
pelo Humanismo renascernista.
2. A Itália estava repleta de lembranças visíveis e tangíveis da
grandeza da Antigüidade. As ruínas dos edifícios e monumentos romanos se
encontravam espalhadas por toda a parte e, ao que parece, suscitaram o
interesse na civilização da Roma antiga durante o Renascimento, servindo
de estímulo para seus pensadores resgatarem a vitalidade da cultura
clássica romana numa época culturalmente árida e infecunda.

3. À medida que o Império Bizantino começou a se desintegrar -


Constantinopla caiu, por fim, em 1453 - ocorreu um êxodo de inteleti-
tuais de língua grega pua o Ocidente. Por um acaso, a Itália era con-
venientemente próxima de Constantinopla, o que fez com que muitos
desses imigrantes se estabelecessem em cidades italianas. Assim, o
reavivamento da língua grega foi inevitável e, com ele, renovou -se
também o interesse nos clássicos gregos.

Fica claro, portanto, que um elemento central da cosmovisãodo


Renascimento italiano é uma volta às glórias culturais da Antigüidade
e uma marginalização das realizações intelectuais da Idade Média.
Os escritores renascentistas tinham pouquíssima consideração por
esta última, julgando as realizações da Antigüidade muito mais
valiosas. Para eles, o final do período clássico ofuscava
completamente os escritos teológicos da Idade Média tanto em
conteúdo quanto em estilo. De fato, o Renascimento pode ser
considerado, em parte, uma reação ao tipo de abordagem associada
cada vez mais às faculdades de ciências e teologia das universidades
do norte da Europa. Exasperados com a natureza técnica da linguagem
e das discussões dos escolásticos, os escritores do Renasemitento
os ignoraram completamente. No caso da teologia cristã, a chave
para o futuro se encontrava num contato direto com os textos das
Escrituras e com os escritos do período paltrístico. Trataremos dessa
questão mais detalhadamente adiante.

Escolasticismo

O Escolasticismo é, provavelmente, um dos movimentos intelectuais


mais desprezados da história humana. Assim, a palavra Vience- na
língua inglesa, usada para se referira uma pessoa estúpida, é
derivada do nome de um dos maiores escritores escolásticos, Duns
Scoms. Os pensadores escolásticos - os "membros das escolas"-
costumam ser representados discutindo com seriedade, ainda que
inutilmente, quantos anjos seria possível colocar sobre a cabeça de
um alfinete. Apesar de essa discussão em si nunca haver ocorrido, por
mais intrigante que, sem dúvida, teria sido seu resultado, ela resuarte,
exatamente a maneira como o Escolasticismo era visto pela maioria
das pessoas, especialmente os humanistas, no começo do século
16: uma especulação intelectual fútil e árida sobre trivialidades.
Erasmo de Roterdã, uma figura da qual trisitaremos em mais detalhes
logo a seguir, passou vários semestres do final do século 15 na
Universidade de Paris, onde o Escolasticismo era bastante
influente. Escreveu demoradamente sobre as muitas coisas que ele
detestava em Paris: os piolhos, a comida mim, as latrinas fedidas e as
discussões absolutamente tediosas que aborreciam os estudiosos.
Deus poderia ter se tomado um pepino em vez de um ser humano?
Deus podia desfazer o passado, fazendo uma prostituta se (oram uma
virgem? Apesar de haver questões sérias por trás dessas discussões,
a perspicácia rabugenta de Erasmo desviou a atenção dessas
questões em si para a maneira frívola e ridícula como estas eram
discutidas.
Pode-se argumentar que o próprio temo "Escolasficismo" é uma inven ção
de escritores humanistas que não hesitavam em desacreditar o movimento
que esse termo representava. Observamos anteriormente que a
designação "Idade Média" foi quase inteiramente uma invenção humanista,
cunhada pelos escritores humanistas do século 16 pua se referir
depreciativamente a um período desinteressante de estagnação entre a
Antiguidade (o período clássico) e a modernidade (o Renascimento). A
"Idade Média" era vista apenas como um internte=o entre a magnificência
cultural da antiguidade e seu reavivamento no Renascimento.
Semelhantemente, o termo "escolásticos" (scholastici) era usado pelos
humanistas para se referir de modo igualmente depreciativo às idéias da
Idade Média. Em seu desejo de desacreditar as idéias do período
medieval e a fim de acentuar os encantos do período clássico, os
humanistas não demonstraram praticamente nenhum interesse em fazer
distinções entre os vários tipos de "escolásticos" – como os tomistas e os
setifistio. Além de ser pejorativo, o termo "Escolasticismo" também é impreciso
– e, no entanto, o historiador não tem como deixar de usá-lo.

De que maneira se pode definir o Escolasticismo? Como vários outros


termos culturais expressivos como "Humanismo" e "Il=inismo", é difícil
apresentar uma definição precisa, capaz de fazer justiça a todas as
posições distintivas das principais escolas da bl,ide Média. Talvez a seguinte
definição funcional seja útil: O Escolasticismo pode ser considerado mais
apropriadamente o movimento medieval que se desenvolveu no período
entre 1200 –1500 e enfatizou a justificação racional da fé religiosa e a
apresentação sistemática dessas crenças. Assim, o 'Escolasticismo" não se
refere a um sistema especifico de crenças, mas a ~forma específica de
organizara teologia –um método extremamente desenvolvido de apresentar
informações fazendo distinções precisas e procurando obter uma visão
abrangente da teologia. Talvez seja possível entender por que, para os
críticos humanistas, o Escolasticismo não passava de um detalhismo lógico
exagerado.
No entanto, também há argumentos para se dizer que o Escolasticismo
produziu trabalhos de importância vital em áreas críticas da teologia cristã,
especialmente no que diz respeito ao papel da razão e lógica na teologia.
Os escritos de Tomás de Aquino, Duns Scotus e William de Ockham –
destacados com freqüência como os três escritores escolásticos de maior
influência – realizaram contribuições ponderadas nessa área da teologia e,
desde então, têm servido de referência.
Quais cram, então, os tipos de Escolasticismo? Como no caso da desig-
nação "Humanismo", "Escolasticismo" define uma abordagem ou método, e
não um conjunto específico de doutrinas resultantes da aplicação desse
método. Existem, portanto, vários tipos de Escolasticismo. Esta seção tratará
sucintamente de alguns dos principais tipos ou "escolas", dando atenção
particular àqueles que se mostraram mais relevantes para o
desenvolvimento da teologia durante o período medieval. Começamos
fazendo uma distinção entre
"realismo" e "nominalismo", duas teorias do conhecimento bastante
diferentes que tiveram grande impacto sobre o desenvolvimento do
Escolasticismo.

Realismo e Nominalismo

A distinção cri" "realismo" e "nominalismo" é de importância considerável


para a compreensão da teologia medieval, tomando necessário, portanto,
investigá-la mais detalhadamente. O início do período escolástico (c. 1200
-
c. 1350) foi dominado pelo realismo, enquanto sua parte final (c. 1350-e. 1500)
foi dominada pelo nominalismo. A diferença entre os dois sistemas pode
ser descrita da seguinte maneira. Considere duas pedras brancas. O
realismo afirma que existe um conceito universal de "brancura" que essas
duas pedras corporalizam. Essas pedras em particular possuem a
característica universal de "brancura-. Enquanto as duas pedras existem no
tempo e no espaço, o conceito universal de "brancura" existe num plano
metafísico diferente. O nominalismo, por sua vez, afirma que o conceito
universal de "brancura" é desnecessário e argumenta que devemos nos
concentrar nas características particulares. Eis aqui essas duas pedras - e
não há nenhuma necessidade de entrar num "conceito universal de
br"cwd'.

A idéia de um "conceito universal", usada aqui sem definição, precisa ser


explorada de modo mais pormenorizado. Considere Socorres. Ele é um ser
humano e um exemplo de humanidade. Considere agem Platão e
Aristineles. Eles também são seres humanos e exemplos de humanidade.
Poderíamos prosseguir desse modo indefinidamente, citando uma série de
indivíduos, mas o mesmo padrão básico fica claro: pessoas citadas
individualmente são exemplos de humanidade. O realismo argumenta que a
idéia abstrata de "humanidade" tem uma existência real própria. É um
conceito universal; pessoas em particular - como Sôcmtes, Platão e
Aristóteles - são exemplos individuais desse conceito universal. A
característica comum da humanidade que une esses três indivíduos é uma
existência real própria.

Duas "escolas" importantes do Escolasticismo influenciadas pelo realismo


dominaram o início do período medieval: o tomismo e o scorismo, pro-
venientes dos escritos de Tomás de Aquino e Duns Scoms,
respectivamente. O período posterior do Escolasticismo, porém, foi
dominado por outras duas escolas, ambas comprometidas como
nominalismo em vez do realismo e conhecidas, em geral, como a "via
moderna" (via moderna) e a "escola agostinuma moderna" (schola
Augustiniana moderna).

A via moderna

O termo via moderna tem se tomado corrente como designação mais


apropriada para o movimento outrora conhecido como "nominalismo",
incluindo entre seus adeptos pensadores dos séculos 14 e 15 como
William de Ockham, Pierre D'Ailly, Robert Holem e Gabriel Biel. Durante
o século 15,

a via moderna começou a ganhar espaço considerável nas universidades do


norte da Europa como, por exemplo, em Paris, Heidelberg e Erfurt. Além de seu
nominalismo filosófico, o movimento adotou uma doutrina da justificação que
muitos de seus críticos rotularam de "pelagiana". Foi nesse contexto que a teologia
de Lutem se formou.

A escola agostiniana moderna

Um dos baluartes da via moderna no começo do século 14 foi a Universidade de


Oxford. Também foi lá que se deu a primeira reação negativa a esse movimento. O
indivíduo responsável por essa reação foi ]Tantas Bradwardine que,
posteriormente, se tornou Arcebispo de Canterbury. Bradwardine escreveu The
Case of God against Pelagius [O Pleito de Deus contra Pelágioj, um ataque
furioso contra as idéias da via moderna de Oxford. Nesse livro, Bradwardine
desenvolveu uma teoria da justificação que representa uma volta às idéias de
Agostinho, encontradas em seus últimos escritos antipelagianos.
Por mais importante que Oxford tenha sido como centro teológico, a Guerra dos
Cem Anos, de 1337 – 1453, provocou um isolamento crescente dessa instituição
em relação ao continente europeu. Enquanto na Inglaterra as idéias de
Bradwardine foram desenvolvidas por John Wycliffe, na Europa continental, foram
levadas adiante por Gregório de Rimini na Universidade de Paris. Gregório tinha
uma vantagem particularmente importante em relação a Bradwardine: era membro
de uma ordem religiosa (a Ordem dos Eremitas de Sto. Agostinho, chamada
normalmente de "Ordem Agostiniana"). E assim corno os dominicanos propagaram
as idéias de Tomás de Aquino e os franciscanos as de Duns Scotus, os agostinianos
promoveram as idéias de Gregório de Rimini. É essa transmissão de uma tradição
agostiniana, derivada de Gregório de Rimini, dentro da ordem agostiniana, que
recebe o nome de schola Augustiniana moderna, a "escola agostiniana
moderna". Que idéias eram essas?
Em primeiro lugar, Gregório adotou uma visão nominalista da questão dos conceitos
universais. Como vários pensadores da época, para ele o realismo de Tomás de
Aquino e Duns Scotus não era de grande utilidade. Nesse sentido, apresenta mais
características em comum com os pensadores da via moderna como Robert Holem
ou Gabriel Biel. Em segundo lugar, Gregório desenvolveu uma soteriologia, ou
doutrina da salvação, que refletia a influência de Agostinho. Observamos uma
ênfase sobre a necessidade da graça, sobre a natureza decaída e pecaminosa da
humanidade, sobre a iniciativa divina na justificação e sobre a predestinação divina.
Do começo ao fim, a salvação é considerada uma obra inteiramente divina.
Enquanto os proponentes da via moderno afirmavam que o ser humano podia
iniciar sua justificação "dando o melhor de si", Gregório insistia que a justificação
só podia ser iniciada por Deus.
A via moderna afirmava que a maioria dos recursos soteriológicos necessários
(porém não todos) se encontrava dentro da natureza humana.
Os méritos de Cristo exemplificam um recurso fora da humanidade; a
capacidade de deixar o pecado e buscara retidão é, para um escritor como
Biel, um exemplo de recurso sotearíológico vital situado dentro da
humanidade. Contrastando claramente com essa posição, Gregório de
Rimará argumentou que esses recursos se encontravam exclusivamente fora
da natureza humana. Até mesmo a capacidade de abandonar o pecado e
buscar a retidão em decorrente da ação de Deus, e não da ação humana.
É evidente que essas duas abordagens representam duas maneiras total-
mente diferentes de entender os papéis do ser humano e de Deus
najustificação, Apesar de o agostinianismo acadêmico de Gregório ser
associado particularmente à ordem agostiniana, ao que parece, nem todos os
mosteiros agostinianos ou universidades adotaram tais idéias. Não
obstante, tudo indica que uma escola de pensamento de contornos
fortemente agostimanos ainda existia no final da Idade Média, às vésperas
da Reforma. Em vários sentidos, pode-se considerar que os reformadores
de Wittenberg, com sua ênfase particular sobre os escritos antipelagianos
de Agostinho, redescobriram e revitalizaram essa tradição.

Humanismo

Hoje em dia, o termo "Humanismo" se refere a uma cosmovisão que


nega a existência ou relevância de Deus ou que é associada a um perspectiva
puramente secular. No entanto, não era esse o significado do termo na época
do Renascimento. A maioria dos humanistas desse período era religiosa e
de-
sejava purificar e renovar o Cristianismo, e não eliminá-lo. Na verdade, o ter-
mo "Humanismo" é bastante difícil de definir. Podemos identificar no
passado
recente duas linhas principais de interpretação do movimento. De acordo com
a primeira linha, o Humanismo foi um movimento dedicado ao estudo da lite-
ratura e línguas clássicas; de acordo com a segunda, o Humanismo foi,
basica-
mente, um conjunto de idéias abrangendo a nova filosofia do Renascimento.
Como ficará evidente mais adiante, essas duas interpretações do
Humanismo apresentam deficiências sérias. Não há dúvidas, por exemplo, que
o Renascimento testemunhou um desenvolvimento da erudição clássica, com
um estudo extensivo dos clássicos gregos e latinos em suas línguas
originais.
Contudo, esse ponto de vista deixa de fora o motivo que levou os humanistas a
estudarem os clássicos. As evidências disponíveis indicam inquestionavelmente
que esse estudo era considerado um meio visando determinado fim, e não um
fim em si. Esse fim era a promoção da eloqüência na oratória e escrita
contem-
porâneas. Em outras palavras, os humanistas estudavam os clássicos
como
modelos de eloqüência escrita a fim de obter inspiração e instrução. A
erudição
clássica e a competência filológica eram apenas instrumentos empregados
para
explorar os recursos da Antiguidade. Como se costuma destacar com firispúên-
eis, os escritos humanistas dedicados a promoção da eloqüência na oratória ou

escrita, são muito mais numerosos do que os textos dedicados à erudição ou


filologia clássica.
De acordo com vários outros intérpretes recentes do Humanismo, o movimento
corporificou a nova filosofia do Renascimento que surgiu como reação ao
Escolasticismo. Assim, argumentava-se que o Renascimento foi uma era de
Platonismo, enquanto o Escolasficismo foi um período de aristotelistim. Para
outros, o Renascimento foi um fenômeno essencialmente anti-refigiost, que
prefigurou o secularismo do fluministrato do século 18.
Essa interpretação um tanto ambiciosa do Humanismo se deparou com duas
grandes dificuldades. Em primeiro lugar, como anteriormente vimos, tudo indica que
a preocupação central do Humanismo era a promoção da eloqüência. Apesar de
não ser verdade que os humanistas não fizeram nenhuma contribuição para a
filosofia, o fato e que seu interesse maior era pelo universo das letras. Assim, em
comparação com aqueles que se dedicavam a "buscaa eloqüência", há um número
extraordinariamente pequeno de escritos dedicados à filosofia e os textos
existentes costumam ser de natureza amadora.
Em segundo lugar, o estudo intensivo dos escritos humanistas revelou a realidade
inquietante de que o "Humanismo" era extremamente heterogêneo. Um exemplo
disso é que muitos humanistas favoreciam, de fato, o Platonismo – mas outros
favoreciam o aristotelismo. Alguns humanistas italianos apresentavam, realmente,
atitudes aparentemente anti-religiosas – mas a maioria dos humanistas italianos
era profundamente religiosa. Alguns humanistas eram, de fato, republicanos – mas
outros adotavam atitudes políticas diferentes. Estudos recentes também
chamaram a atenção para um lado menos atraente do Humanismo – a obsessão
de alguns humanistas pela mágica e superstição –algo difícil de conciliar com a
visão convencional do movimento. Em resumo, tomou-se cada vez mais claro que
o "Humanismo" parecia não ter nenhuma filosofia coerente. Nenhuma idéia
filosófica ou política específica predominou ou caracterizou o movimento. Muitos
concluíram que o termo "Humanismo" teria que ser removido do vocabulário dos
historiadores, pois não possuía nenhum conteúdo significativo. Chamar um
escritor de "humanista" na verdade não transmite praticamente nenhuma
informação concreta a respeito de suas idéias filosóficas, políticas ou religiosas.

Uma abordagem mais realista, que tem ganho aceitação ampla nos meios
acadêmicos, é considerar o burramente, um movimento cultural e educacional que
visava, em primeiro lugar, promovera eloqüência em suas várias formas. Seu
interesse pela moral, filosofia e política é de importância secundária. Ser um
humanista é se preocupar, acima de tudo, com a eloqüência e tratar de outras
questões apenas de maneira secundária. O Humanismo foi, essencialmente, um
programa cultural que lançou mão da antiguidade clássica como modelo de
eloqüência. Na arte e na arquitetura, como na escrita e na oratória, a antiguidade
era vista como um recurso cultural do qual o Renascimento podia se apropriar.
Assim, o Humanismo tratou da maneira como as idéias eram obtidas e
expressadas, e não da substância propriamente dita dessas idéias.

Um humanista podia ser platônico ou arístotelico – mas, em ambos os


casos, as idéias envolvidas eram provenientes da Antiguidade. Um
humanista podia ser um cético ou um religioso devoto – mas as duas atitudes
podiam ser defendidas usando a antiguidade.

O Humanismo norte-europeu

A forma de "Humanismo" que se mostrou partícultiraticam, importante em termos


teológicos foi o Humanismo norte-europeu, e não o italiano. Devemos, portanto,
considerar que forma o movimento assumiu no norte da Europa.
Está cada vez mais claro que o Humanismo dessa região sofreu a influência
decisiva do Humanismo italiano em todos os estágios de seu desenvolvimento.
Três canais principais de difusão dos métodos e ideais do Renascimento italiano no
norte da Europa foram identificados:

1. Por intermédio de estudiosos norte-europeus; que se mudam paira o


sul da Itália, possivelmente para estudar numa universidade italiana ou como
participantes de uma missão diplomática. Ao voltar pana sua terra natal,
trouxeram de volta o espírito do Renascimento.
2. Por meio da correspondência estrangeira com humanistas italianos.
O Humanismo visava a promoção da eloqüência escrita, de modo que a
redação de cartas era considerada um meio de corporifieaar e divulgar os
ideais do Renascimento. Houve uma troca considerável de cartas entre
humanistas italianos e estrangeiros, estendendo-se para quase todas as
partes do norte da Europa.
3. Mediante livros impressos, provenientes de fontes como a Imprensa de
Aldus Murarias de Veneza. Muitas vezes essas obras eram reimpressas por
editoras norte-européias, especialmente as da Basiléia na Suíça. Era
comum os humanistas italianos derficareir, suas obras a patronos norte-
europeus, garantindo, desse modo, que receberiam atenção em regiões
potencialmente influentes.

Apesar de o Humanismo norte-europeu apresentar variações consideráveis, dois


ideais parecem ter se tomado amplamente aceitos dentro do movimento. Em
primeiro lugar, encontramos a mesma preocupação com a eloquência na escrita
e na oratória, seguindo os moldes do período clássico à moda do Renascimento
italiano. Em segundo lugar, encontramos um programa religioso voltado para o
reavivamento corporativo da igreja cristã. O lema em latim Christianismus
renasceras, "O Cristianismo Renascendo", resume os alvos desse programa e
indica sua relação com a "renascença" das letras associada ao Renascimento.
Tendo em vista a importância do Humanismo para a Reforma na Europa, trataremos
agora de algumas de suas variações regionais fazendo referência específica à
Suíça, França e Inglaterra.
O Humanismo suíço

A Suíça se mostrou particularmente receptiva às idéias do Renascimento italiano,


fato que talvez possa ser atribuído à sua localização geográfica. A Universidade
de Viena atraiu um grande número de estudiosos dessa região. Depois de uma
revolução nos altos escalões das faculdades de ciências instigada, em grande
parte, pela influência de Konrad Ceitis, a Viena do final do século 15 se tomou,
indubitavelmente, um centro de erudição humanista, atraindo indivíduos como o
grande escritor humanista Joachim voo Watt, conhecido como Vadiano. Depois de
receber todas as honras acadêmicas possíveis em Viena, Vadiano voltou para sua
cidade natal de Saint Callen, tornando-se seu principal magistrado (burgomestre)
em 1529. A Universidade da Basiléia alcançou uma reputação semelhante na
década de 1510 e se tornou o centro de um grupo humanista (conhecido
normalmente como uma "irmandade") reunido em torno de indivíduos como
Thomas Wyttenbach.
O Humanismo suíço foi objeto de estudos intensivos, de modo que há uma
compreensão relativamente profunda de seu ethos fundamental. Para seus
expoentes, o Cristianismo era, acima de tudo, um modo de vida, e não um
conjunto de doutrinas. Uma reforma era, de fato, necessária — mas essa reforma
era relacionada principalmente à moralidade da igreja e à necessidade de
renovação moral pessoal dos cristãos como indivíduos. Não havia pressões para
uma reforma nas doutrinas da igreja.
O altos do Humanismo suíço era intensamente moralista e considerava que as
Escrituras prescreviam o comportamento moral correto para os cristãos, e não que
narravam as promessas de Deus. Esse atlas apresenta uma série de implicações
relevantes, especialmente em relação à doutrina da justificação. Em primeiro
lugar, as questões que estimularam o interesse de Lutero pela doutrina
praticamente não foram levantadas nos círculos suíços. Ajustificação não foi um
tema de discussão. Em segundo lugar, à medida que se tomou um assunto
controverso na Alemanha, desenvolveu-se nos círculos humanistas suíços da
década de 1520 certo grau de ansiedade em relação à doutrina da justificação
apresentada por Lutem. Para os humanistas suíços, Lutem parecia estar
desenvolvendo idéias que representavam uma ameaça radical à moralidade e, desse
modo, para o ethos distintivo de seu movimento.

A importância dessas observações diz respeito a Huldrych Zwingli (conhecido


como Zwinglio), um estudioso que frequentou as universidades de Viena (1498 —
1502) e da Basiléia (1502 — 1506). O programa de reforma de Zwinglio, iniciado
em Zurique em 1519, temo selo do moralismo humanista suíço. Agostinho, o
"doutor da graça", sé aparece com preeminência no pensamento de Zwinglio na
década de 1520 (e, mesmo então, sua influência é relacionada ao pensamento
sacramental de Zwinglio). Por fim, Zwinglio rompeu com o moralismo do
Humanismo suíço (provavelmente por volta de 1523, certamente até 1525), mas
até esse ponto, seu programa de reforma se baseou

no ponto de vista educacional moralista extremamente característico das


irmandades humanistas suíças desse período.
O Humanismo francês

Na França do início do século 16, o estudo da lei estava passando por um


processo de revisão radical. A monarquia absolutista francesa sob Francisco
I, com sua tendência cada vez mais forte de centralizara administração,
considerava a reforma legal um, elemento essencial para a modernização da
França. A fim de acelerar o processo de reforma que visava f orunu] ar rar,
sistema legal válido em toda a França, a monarquia patrocinou um grupo de
estudiosos das Universidades de Bourges e Orléans que estavam
trabalhando nos aspectos teóricos dos códigos gerais da lei
fundamentados em princípios universais. Um pioneiro entre estes últimos
foi Guillaume Burle que argumentou em favor de uma volta direta à lei
romana como meio ao mesmo tempo eloqüente e econômico de suprir as
novas necessidades legais da França. Contrastando com o costume
italiano (ma, italicurs) de ler os textos legais clássicos à luz de glosas e
comentários dejuristas; medievais, os franceses desenvolveram o pro-
cedimento (mos gallicus) de apelar diretamente para as fontes clássicas
legais originais em sua língua original.
Um resultado ditem do programa humanista francês de proceder direta-
mente ad fmaes foi uma impaciência marcante com as glosas (anotações
acrescentadas ao texto) e comentários. Em vez de serem consideradas
ferramentas úteis de estado, as glosas e comentários passaram a ser vistos
como obstáculos para o contato com o texto original. A interpretação de
textos clássicos legais romanos por escritores como Báriolo e Acúrsio foi
considerada irrelevante. Esses comentários eram como filtros entre o
leitor e o texto que causavam distorções. À medida que os estudiosos
humanistas adquiriram convicção de suas asserções, a conflabilidade, de
Acúrsio e outros foi, cada vez mais, colocada em dúvida. O grande estudioso
espanhol Antônio Nebrija publicou um relato detalhado dos erros que havia
detectado nas glosas deAcúrsio, enquanto Rabelais escreveu
desdenhosamente sobre "as opiniões ineptas de Acúrsio".
É preciso observara importância desses fatos para a Reforma. Um es-
tudante de Bourges e Orléans no auge desse Humanismo legal francês foi
o futuro reformador da igreja - João Calvino, que provavelmente chegou
a Orléans em 1528. Ao estudar direito civil em Orléans e Bourges,
Calvino teve contato direto com um dos principais elementos
constituintes do movimento humanista. Com isso, Calvino foi. no mínimo,
transformado num jurista competente: quando foi chamado
subseqüentemente para ajudar na corldicação, das -leis e éditos" de
Genebra, pôde se valer do seu conhecimento do carpas iuris civilis para
os modelos de contratos, leis relativas às propriedades e procedimentos
judiciários. No entanto, Calvino aprendeu mais do que isso com o
Humanismo francês.

As origens dos métodos de Calvino como, possivelmente, o maior comentarista


bíblico e pregador de sua em, podem ser situadas em seu estudo da lei no ambiente
desenvolvido de Orléans e Bourges. Há indicações de sobra de que Calvino
aprendeu com Burle sobre a necessidade de ser um filólogo competente, de
abordar um texto fundamental de maneira direto e interpreta-lo dentro dos
parâmetros lingüísticos e históricos de seu contexto e de aplicá-lo às necessidades
de sua própria época. É justamente essa atitude que fundamenta a exposição de
Calvino das Escrituras, especialmente em seus sermões, nos quais ele visa fundir
os horizontes das Escrituras com o contexto de seus ouvintes. O Humanismo
francês deu a Calvino tanto o incentivo quanto as ferramentas para permitir que
os documentos do passado interagissem com as situações da cidade de
Genebra na década de 1550.

O Humanismo inglês

É possível que o centro mais importante de pensamento humanista da Inglaterra


do início do século 16 tenha sido a Universidade de Cambridge, apesar de não
podermos subestimara importância de Oxford e Londres. Foi em Cambridge que se
iniciou a Reforma inglesa, em tomo do "Círculo do Cavalo Branco" – nome
emprestado de uma taverna posteriormente demolida situada perto de Quecn's
College onde indivíduos como Robert Barões se encontravam para discutir os
textos mais recentes de Maninho Lutero nos primeiros anos da década de 1520.
Não é de surpreender que a taverna tenha recebido logo o apelido de "pequena
Alemanha" assim como a região da tua King –outrora sede do Partido
Comunista de Cambridge – ficou conhecida como "pequena Moscou" na
década de 1930.

PRINCIPAIS TEÔWGOS

Dos vários teólogos importantes deste período de enorme criatividade, os


indivíduos a seguir são particularmente interessantes e relevantes.

Anselmo de Canterbury (e.1033 –1109)


Anselmo nasceu no norte da Itália, mas se mudou ainda jovem para a França
que, na época, estava se tomando conhecida como centro de condição. Dominou
rapidamente as ciências da lógica e da gramática e adquiriu uma reputação
formidável como mestre na abadia norturanda de Bec. No limiar do renascimento
teológico do século 12, Anselmo fez contribuições decisivas em duas áreas de
discussão: provas da existência de Deus e a interpretação racional da morte de
Cristo na cruz.
Escreveu seu Proslogion (uma palavra praticamente intraduzível) por volta de 1079.
Trata-se de uma obra extraordinária na qual Anselmo se propõe a formular um
argumento que levará à crença na existência e caráter de Deus

como bem supremo. A análise resultante, conhecida como


"argumento mitológico" conduz à derivação da existência de Deus a
partir da declaração de que ele é "um ente tal que não se pode
conceber nada maior do que ele". Apesar de essa argumentação ter
sido contestada desde sua apresentação, ainda é um dos elementos
mais intrigantes da teologia filosófica. O Prusiogion tambem é
imporiante, em função de seu apelo claro à razão para tratar de questões
teológicas e de sua valorização do papel da lógica. Em vários
sentidos, a obra antevê os aspectos mais positivos da teologia
escolástica. A frase de Anselmofides quaerens inteflectum ("a fé
buscando entendimento") se tomou uma expressão de uso corrente.
Depois da invasão da Inglaterra pelos timinandos; (1066), Anselmo foi
convidado a se tomar arcebispo de Canterbury, em 1093, garantindo,
desse modo, a consolidação da influência norneinda sobre a igreja da
Inglaterra. Não foi, porém, uma época inteiramente feliz de sua vida, pois
envolveu uma série de discussões entre a igreja e a monarquia acerca dos
direitos de propriedade. Num período que passou longe da Inglaterra
visitando a Itália, Anselmo redigiu aquela que é, possivelmente, sua obra
mais importante, CurDeus honro ("Por que Deus se tomou homem"). Nessa
obra, Anselmo procura apresentar uma demonstração racional da
necessidade de Deus se tomar homem e uma análise dos benefícios que a
encarnação e obediência do Filho de Deus trouxeram para a humanidade.
Essa argumentação, que será considerada mais detalhadantente adiante,
continua sendo de importância fundamental para qualquer discussão sobre as
"teorias da expiação" — em outras palavras, para as várias formas como a
morte e ressurreição de Cristo e seu significado para a humanidade são
entendidas. Mais uma vez, a obra apresenta características típicas dos
melhores aspectos do Escolasticismo: o apelo à razão, a organização de
argumentos lógicos, a exploração implacável de idéias e a convicção funda-
mental de que, em seu cerne, o evangelho cristão é racional e de que é
possível demonstrar esse fato.

Tomás de Aquino (e. 1225 — 1274)

Filho mais novo do Conde Landulfo de Aquiro, Tomás de Aquino nasceu no


castelo de Roccasecca na Itália. A julgar por seu apelido — "boi arado" —era
de porte corpulento. Em 1244, no final de sua adolescência, Aquino decidiu
entrar para a ordem dominicana, também conhecida como "Ordem dos
Pregadores". Seus pais se opuseram à idéia: esperavam que ele se
tomasse beneditino e, quem sabe, chegasse a ser abade de Monte Cassino,
inta, dos corgos de maior prestígio da igreja medieval. Seus irmãos o
prenderam num dos castelos da família durante um ano na tentativa de
levá-lo a mudar de idéia. Apesar dessa oposição intensa de seus familiares,
Aquino conseguiu fazer sua vontade prevalecer e, por fim, tomou-se um dos
pensadores religiosos mais importantes da Idade Média. Diz-se que um de
seus mestres comentou que "o bramido desse boi será ouvido por todo o
orando".

Aquita, começou seus estudos em Paris, antes de se mudar para Colônia em 1248.
Em 1252 voltou a Paris a fim de estudar teologia na universidade. Durante os três
anos seguintes, lecionou sobre o Evangelho de Mateus e começou a escrever a
Summa contra Gentiles, "Suma Contra os Gentios". Nessa obra de grande
relevância, Aquino apresentou argumentos importantes em favor da fé cristã,
beneficiando aqueles que atuavam como missionários entre muçulmanos e
judeus. Em 1266, iniciou o seu escrito mais famoso, conhecido por seu título em
latim, Summa Theologiae. Nessa obra, Aquino desenvolveu um estudo detalhado
de aspectos críticos da teologia cristã (como o papel da razão e da fé), bem como
uma análise minuciosa de questões doutrinárias fundamentais (como a divindade
de Cristo). A obra é dividida em três partes, sendo que cada uma das duas
primeiras partes tem duas subdivisões. A Parte 1 trata, essencialmente, de Deus
como criador; a Parte 11, da restauração da humanidade a Deus; e a Parte RI, da
maneira como a pessoa e obra de Cristo realizam a salvação da humanidade.

No dia 6 de dezembro de 1273, Aquino declarou que não podia mais escrever.
"Para mim, tudo que escrevi parece palha", disse ele. É possível que ele tenha
sofrido algum tipo de colapso, talvez como resultado de trabalho excessivo.
Aquino faleceu em 7 de março de 1274.
Erme suas principais contribuições para a teologia, estas que são relacionadas a
seguir e discutidas mais adiante são particularmente relevantes:

 As "Cinco Vias" (argumentos em favor da existência de Deus).


 O princípio de analogia que fornece uma base teológica para o
conhecimento de Deus por meio da criação.
 A relação entre a fé e a razão.

Duns Scotus (e.1265 –1308)

Scotus foi, indiscutivelmente, uma das mentes mais brilhantes da Idade Média. Em
sua vida cana, lecionou em Cambridge, Oxford e Paris e produziu três versões de
um Comentaria sobre as Sentenças. Conhecido como "o doutor sutil- em função
das distinções extremamente tênues que costumava fazer entre possíveis
significados de termos, foi responsável por várias desenvoluções importantes pua a
teologia cristã. Apenas três destas serão consideradas aqui.

1. Sentas defendeu a teoria do conhecimento associada a


Aristóteles. O início da Idade Média foi dominado por uma teoria diferente do
conhecimento que remontava a Agostinho de Hipona, segundo a qual o
conhecimento surgia de uma iluminação do intelecto humano por Deus. Scotus
criticou energicamente esse ponto de vista defendido por escritores como Henry de
Ghem.
2. Para Scotus, a vontade divina tinha precedência sobre o
intelecto divino, uma doutrina que costuma ser chamada de voluntarismo. Tomás
de Aquino havia argumentado em favor da primazia do intelecto divino; Scotus
abriu

caminho para novas abordagens à teologia, tomando por base a


hipótese da prioridade da vontade divina. Eis um exemplo que ilustra
essa questão. Pense na idéia de mérito – ou seja, uma ação moral
humana que Deus considera digna de recompensa. Em quê essa
decisão se baseia? Aquino argumentou que o intelecto divino
reconhecia o valor inerente do ato humano moral. O intelecto informava,
então, a vontade para que o ato fosse recompensado apropriada -
mente. Scoms seguiu linhas bem diferentes em sua argumentação. A
vontade divina de recompensar a ação moral vinha antes de qualquer
avaliação de seu valor inerente. Essa abordagem é de importância
considerável para as doutrinas da justificação e predestinação e será
considerada em mais detalhes adiante.

3. Scotus defendeu a doutrina da concepção imaculada de Maria,


mãe de Jesus. De acordo com os ensinamentos de Tomás de Aquino,
Maria compartilhava da condição pecaminosa do restante da
humanidade. Era, portanto, maculada pelo pecado (do termo latino
macida), como todas as outras pessoas, com exceção de Cristo.
Scotos, por sua vez, argumentou que, em virtude de sua obra
perfeita de redenção, Cristo pôde manter Maria livre da mácula do
pecado original. A influência de Sentas foi tal que, no final da Idade
Média, a "posição imaculada" (do latim immacula, 1ivre de pecia[6) em
predominante.

Wilfiam de Ockham (c. 1285 – 1347)


Pode-se considerar em vários sentidos que foi Ockham quem
desenvolveir algumas das linhas de argumentação associadas a
Sentas. Sua defesa constimite da posição voltintarista, priorizando a
vontade divina sobre o intelecto divino, é particularmente importante.
No entanto, é provável que seu lugar de notoriedade na história da
teologia cristã tenha sido garantido por sua posição filosófica. Vejamos,
dois dos principais elementos de seus ensinamentos.

1. A Navalha de Ockham, também conhecida como "princípio


da parcimônia". Ockham insistia que a simplicidade tem uma virtude
teológica e também filosófica. Sua "navalha" eliminava todas as
hipóteses que não eram absolutamente essenciais. Essa
abordagem teve implicações significativas para a teologia da
justificação. Os primeiros teólogos medievais (incluindo Tomás de
Aquino) haviam argumentado que Deus era obrigado a jusiificar a
humanidade pecaminosa mediante um "hábito criado de graça" – em
outras palavras, uma entidade sobrenatural intermediária, infundida
por Deus na alma humana, que permitia ao pecador ser declarado
justificado. Ockham, descartou essa idéia, considerando-a melevante e
desnecessária e declarou que a justificação era a aceitação (Ereta de
um pecador por Deus. Estava aberto o caminho para uma abordagem
mais personalista da justificação associada ao início do período da
Reforma.

2. Ockham foi um defensor enérgico do nortinalismo. Em parte, isso


foi resultado do uso da navalha: os conceitos universais foram
considerados hipóteses totalmente desnecessárias e, portanto,
eliminados. O impacto crescente

da via moderna na Europa ocidental tem uma divida considerável para


com Ockham. Um aspecto de seu pensamento que se mostrou especialmente
relevame é a "dialética entre os dois poderes de Deus". Essa estratégia
permitiu que Ockham contrastasse a maneira como as coisas são e a maneira
como as coisas poderiam ter sido. Apresentaremos uma discussão completa
dessa questão mais adiante. Por ora, é suficiente observar que Ockham fez
uma contribuição decisiva para as discussões acerca da onipotência divina
que continuam sendo relevantes até hoje.

Erasmo de Roterdã (e. 1469 — 1536)

Desiderius Erasmus, ou Erasmo, é considerado o escritor humanista mais


importante do Renascimento e teve um impacto profundo sobre a teologia
durante a primeira metade do século 16. Apesar de não ser protestante
em nenhum sentido dessa designação, Erasmo contribuiu de várias maneiras
na estruturação d as bases intelectuais para a Reforma, sendo uma das
mais expressivas o seu trabalho editorial extensivo, incluindo a produção
de seu primeis texto impresso do Novo Testamento em grego. Sua obra
Enchiridion militis Christiam ("Manual do Soldado Cristão") foi um marco na
área editorial religiosa. Apesar de a obra ter sido publicada inicialmente em
1503 e depois reimpressa em 1509, exerceu maior impacto em sua
terceira impressão em 1515. Desse momento em diante, a obra granjeou
inúmeros admiradores, passitado, ao que parece, por vinte e três edições nos
seis anos seguintes. Era um texto que atraía homens e mulheres leigos
instruídos, os quais Erasmo considerava o recurso mais importante que a
igreja possuía. Sua popularidade surpreendente depois de 1515 permite
sugerir que essa obra alterou de modo radical a percepção dos leigos de si
mesmos —e dificilmente pode-se ignorar o fato de que os tumores da
Reforma em Zurique e Wittenberg se iniciaram logo depois que
Enchiridion se tomou um sucesso de vendas.
O Enchiridion desenvolvia a tese revolucionária de que a igreja da época podia
ser reformada por uma volta coletiva aos escritos dos patriarcas e às
Escrituras. A leitura regular das Escrituras é apresentada como a chave
para uma nova piedade leiga, com base na qual a igreja poderia ser renovada
e retomada. Na visão de Erasmo, sua obra em um guia para os leigos lerem
as Escrituras, oferecendo uma exposição simples, porém culta, da
"filosofia de Cristo". Essa "filosofia" é, na verdade, uma forma pratica de
moralidade, e não uma filosofia acadêmica: O Novo Testamento diz respeito
ao conhecimento do bem e do mal, a fim de que seus leitores possam se
abster deste último e amar o primeiro. O Novo Testamento é a lex Christi, "a
lei de Cristo" que os cristãos são chamados a obedecer. Cristo é o exemplo
que os cristãos são chamados a imitar. Porém, Erasmo não entende a fé cristã
como uma simples observância externa de um código moral. Sua ênfase
caracteristicamente humanista sobre a religião interior o leva a sugerir que a
leitura das Escrituras transforma seus leitores, dando-U% uma nova
motivação para amara Deus e ao próximo.
Vários elementos desse livro são particularmente relevantes. Em primeiro
lugar, Erasmo entende que a vitalidade futura do Cristianismo se encontra
nos leigos, e não no cloro. Os clérigos são vistos como educadores cuja
função é permitir aos leigos alcançar o mesmo nível de entendimento que
eles próprios. Não há lugar pua superstições que dão ao clero um sintas
superior permanente em relação aos leigos sob seus cuidados. Em
segundo lugar, a fone ênfase de Erastra, sobre a "religião interior" resulta
numa visão do Cristianismo que não faz nenhuma referência à igreja —
seus ritos, sacer dotes ou instituições. Por que se dar o trabalho de
confessar os pecados a outro ser humano só porque ele é um sacerdote,
pergunta Eratutro, quando você pode confessá-los; diretamente a Deus?

Além dessas sugestões radicais, Erasmo se dedicou a projetos acadêmicos


extensos. Dois deles são particularmente importantes para o desenvolvi-
mento da teologia cristã:

1. A produção do primeiro Novo Testamento em grego. Como foi obser-


vado, essa publicação deu aos teólogos acesso direto ao texto original do
Novo Testamento e teve resultados impressionantes.
2. A produção de edições confiáveis de obras purísticas, inclusive dos
escritos de Agostinho. Assim, os teólogos passaram a ter acesso a textos
completos de obras críticas em vez de terem que se bascar em citações de
segunda mão apresentadas, com focquência, fora de contexto. Em
decorrência disso, uma nova visão da teologia de Agostinho começou a se
formar, com implicações expressivas para o desenvolvimento teológico
desse período.

PRINCIPAIS I)MENVOLUÇOES TWL0rICAS

O maior renascimento na teologia a ocomr durante esse período se cru-


centrou em várias questões, das quais as seguintes são particularmente
relevart. tes. No momento, elas são apenas caudas; uma discussão detalhada
da maioria desses pontos sem posteriormente apresentada. As seis primeiras
desenvoluções são associadas ao Escolasticismo, e as duas ultimas, ao
Humanismo.

A consolidação do legado patristico

Com o fim da idade das trevas, a tendência dos teólogos foi continuar suas
investigações do ponto em que os escritores patrísticos haviam parado. Uma
vez que a igreja ocidental era de língua latina, é natural que seus teólogos
tenham se voltado para as coleções extensas de escritos de Agostinho de
Hipona, usando-as como ponto de partida para suas próprias especulações
teológicas. As Sentenças de Pedro Lombardo podem ser consideradas uma
compilação crítica de citações ("Sentenças") extraídas em sua maior paire dos
escritos de Agostinho sobre as quais era obrigatório os teólogos medievais
tecerem seus comentários.

A investigação do papel da razão na teologia


A nova preocupação em firmara teologia cristã sobre uma base absolutamente
confiável levou a uma investigação refletida acercado papel da razão na
teologia, uma característica central e definidora do Escolasticismo. Com a con-
tinuidade do renascimento teológico no início da Idade Média, dois temas co-
meçaram a dominara discussão teológica: a necessidade de sistematizara
expandir a teologia cristã e a necessidade de demonstrar a racionalidade
inerente dessa teologia. Apesar de grande parte da teologia do início do
período medieval praticamente não passar de uma repetição das idéias de
Agostinho, havia uma pressão crescente para sistematizar e desenvolver
essas idéias. Mas de que maneira isso poderia ser feito? Havia uma
necessidade urgente de uma 'teoria de método". E com base em que sistema
filosófico a racionalidade, do Cristianismo podia ser demonstrada?

O escritor do século 11, Anselmo de Canterbury, expressou essa convicção


básica da racionalidade da fé cristã em duas frases que se tomaram
associadas ao seu norne:.fides quaerens intellectum ("fé buscando
entendimento") e credo to intellegam ("creio para poder emendei-). A seu ver,
apesar de a fé preceder o entendimento, o conteúdo dessa fé era, ainda assim,
racional. Essas fórmulas decisivas estabeleceram a primazia da fé sobre a ruão
e, da mesma maneira, asseveraram o caráter inteiramente racional da fé. No
prefácio de sua obra Monologium, Anselmo afirmou explicitamente que não
demonstraria nada das Escrituras com base nas próprias Escrituras; antes,
demonstraria tudo com base "nas evidências racionais e na luz natural da
verdade". Não obstante, Anselmo não é um nacionalista; a razão tem limites!

No século 11 e início do século 12 desenvolveu-se uma convicção de que a


filosofia podia ser um recurso valioso para a teologia cristã em dois níveis
diferentes. Em primeiro lugar, podia demonstrar a racionalidade da fé e, desse
modo, defendê-la de críticos não-cristãos. Em segundo lugar, oferecia
maneiras de explorar e organizar de modo sistemático os artigos da fé para
que pudessem ser compreendidos mais adequadamente. Mas qual
filosofia? A resposta para essa pergunta foi encontrada no redescobrimento
dos escritos de Aristóteles no final do século 12 e inicio do século 13. Por
volta de 1270, Aristóteles era considerado "o filosofe". Suas idéias dominaram
o pensamento teológico apesar da oposição violenta das alas mais
conservadoras.
Porinuminédio da influência de escritores como Tomás de Aquino e Duns
Sentas, as idéias de Aristóteles foram definidas como melhor meio de
consolidar e desenvolver a teologia cristã. As idéias da teologia cristã foram,
portanto, organizadas e correlacionadas sistematicamente com base em
pressupostos aristotélicos. Logo, algumas das famosas "provas" de Tomás de
Aquino para a existência de Deus são, na verdade, fundamentadas nos
princípios da física aristotélica, e não em conceitos distintivamente cristãos.
A princípio, muitos receberam essa proposta de maneira positiva,
considerando que ela oferecia maneiras importantes para a defesa da fé
cristã

- a disciplina conhecida como "apologética", do termo grego apologia


(defesa). A Surima contra Gentiles de Tomás de Aquino é um excelente
exemplo de uma obra teológica que se vale do aristotelismo. Em alguns
pontos, o argumento panece, funcionar da seguinte maneira: Se você pode
concordar com as idéias aristotélicas apresentadas neste texto, então você
deve se tomar um cristão. Uma vez que Arisfacles era tido em alta
consideração por muitos acadêmicos muçulmanos da época, pode-se
observar que Aquirio explora o potencial apologético desse filósofo.
Essa desenvolução começou a ser vista com preocutração por alguns os-
critorres medievais posteriores como Hugolino de Orvieto. Vários conceitos
cristãos centrais pareciam ter se perdido como resultado de uma
dependência crescente de idéias e métodos de um filósofo pagão. Uma
preocupação particular girava em tomo da doutrina da justificação. A idéia de
"retidão de Deus" passou a ser discutida segundo os conceitos aristorélicos; de
-justiça distributiva". A "retidão' (iustitia) era definida, então, como "dar a
alguém aquilo que lhe é devido". Isso parecia levar à doutrina da justificação
por mérito. Em outras palavras, a justificação se dá com base no direito, e
não na graça. É possível demonstrar facilmente que essa preocupação se
encontra por trás da antipatia crescente de Maffinho Lutero por Arístineles e
no rompimento decorrente com as doutrinas escolásticas da justificação.

O desenvolvimento de sistemas teológicos


Observamos acima a pressão no sentido de consolidar o legado patrísfico e
especialmente agostiniano. Essa pressão para sistematizar, que é parte
integrante do Escolasticismo, levou ao desenvolvimento de sistemas
teológicos sofisticados que Etienne Gilson, um conhecido historiador desse
período, descreveu como "catedrais da mente". É possível que esse avanço
possa ser visto mais claramente na Summa Theologiae de Tomás de
Aquitui que representa uma das afirmações mais enérgicas do caráter
abrangente e universal dessa abordagem à teologia cristã.

O desenvolvimento da teologia sacramental

A igreja primitiva havia sido um tanto imprecisa em sua discussão dos


sacramentos. praticamente não havia consenso com respeito ao modo como os
sacramentos devi= ser definidos e aos itens que deviam ser incluídos numa
lista de sacramentos. Em geral, aceitava-se que o batismo e a eucaristia eram
sacramentais; quanto ao restante, havia pouquíssima concordância. No entanto,
com o retrascimento teológico da Idade Média, a igreja estava começando a
desempenhar um papel cada vez mais imprimiam na sociedade. Havia uma
nova pressão para que a igreja fundamentasse seus atos públicos de adoração
sobre uma base intelectual time e consolidasse os aspectos teóricos de seu
culto. Uma consespitência foi um desenvolvimento considerável da teologia
sacramental durante esse período. Chegou-se a um consenso quanto à
defini-ção, mimem e identidade exata dos sacramentos.

O desenvolvimento da teologia da graça

Um elemento central do legado agostiniano era a teologia da graça. No


entanto, a teologia da graça de Agostinho havia sido apresentada num con-
texto polêmico. Em outras palavras, Agostinho havia sido obrigado a
declarar sua teologia da graça no calor de uma controvérsia, muitas vezes
como respos-ta aos desafios e provocações de seus adversários. Como
resultado, seus escritos sobre o assoam eram, com freqüência, assistemáticos.
Em algumas ocasiões, Agostinho desenvolveu distinções em resposta ás
necessidades do momento e não apresentou bases teológicas adequadas
para as mesmas. Os teólogos da Idade Média se viram incumbidos de
consolidara doutrina agostiniana da graça e investigar suas conseqüências.
Assim, as doutrinas da graça e da justificação passaram por um,
desenvolvimento considerável durante esse período, lançando os alicerces
para as discussões da Reforma sobre essas questões centrais.

O papel de Maria no plano da salvação

Esse novo interesse na graça e na justificação conduziu a uma preocupa-


ção inédita em entender o papel de Maria, mãe de Jesus Cristo, na
salvação. Um interesse crescente na devoção a Maria, associado a
especulações teológi-cas intensas acerca da natureza do pecado original e
da redenção, levantou uma série de questões importantes relacionadas a
Maria. Muitas delas são ligadas a Duns Scoms que deu à Matiologia (isto é,
a área da teologia que trata de Maria) uma base consideravelmente mais
desenvolvida do que aquela que o assunto possuía até então. Discussões
intensas irromperam entre os "articulistas" (que acreditavam que Maria estava
sujeita ao pecado original como rodas, as outras pessoas) e os "imaculistas"
(para os quais ela havia sido preservada da mácula do pecado). Também foi
debatida extensivamente a possibilidade de Maria ser chamada de "co-
redentora" (ou seja, de ser possível considerá-la um figura de redenção, de
maneira semelhante a Jesus Cristo).

A volta direta às fontes da teologia cristã

Um elemento central do programa humanista foi a volts ás fontes origi-nais


da cultura européia ocidental na Roma e Atenas clássicas. O equivalente
teológico desse elemento foi a volta direta ás fontes fundamentais da
teologia cristã, acima de tudo, ao Novo Testamento. Como veremos mais
adiante, foi um programa crítico parar o desenvolvimento teológico do
período. Uma de suas conseqüências mais importantes foi uma revalorização
das Escrituras como recurso teológico. Com um crescimento no interesse
pelas Escrituras, truirou-se

na época não eram adequadas. A principal delas era a "Vulgata", uma


tradução da Bíblia para o latim que adquiriu influência ampla durante a
Idade Média. No decorrer da revisão dessas traduções, especialmente
da Vulgata, ficou evidente que a revisão teológica era inevitável.
O surgimento das técnicas textuais e filológicas humanistas revelou dis-
crepâncias sérias entre a Vulgata e os textos dos quais ela supostamente era a
tradução e, assim, abriu caminho para uma consequente reforma
doutrinária. É por esse motivo que o Humanismo teve importância decisiva no
desenvolvimento da teologia medieval: demonstrou como essa tradução da
Bíblia — e, portanto, as teologias que dependiam dela — era absolutamente
inconfiável. A base bíblica do Escolasticisníci parecia estar desmoronando à
medida que o Humanismo descobria uma série de erros em sua tradução.
Investigaremos essa questão mais a fundo em seguida; sem dúvida,
trata-se de uma das desenvoluções mais momentosas da história da teologia
cristã desse período.

A crítica à tradução Vulgata das Escrituras

O programa literário e cultural do Humanismo pode ser resumido no lema


ad fontes — "de volta às fontes originais". O "filtro" dos comentários
medievais — quer sobre textos legais ou sobre a Bíblia — é colocado de lado a
fim de haver um contato direto com os textos originais. Aplicado à igreja cris -
tã, o lema ad fontes significava uma volta direta aos títulos de propriedade do
Cristianismo—aos escritores patrísticos e, acima de tudo, à Bíblia estudada em
suas línguas originais. Era necessário, portanto, um acesso direto ao texto
grego do Novo ]escamaram.
O primeiro Novo Testamento em grego a ser impresso foi produzido por
Erasmo em 1516. O texto de Erasmo não era tão confiável quanto deveria:
ele teve acesso a apenas quatro manuscritos para grande parte do Novo
Testamento e a apenas um para a parte o Livro de Apocalipse. Acontece
que esse manuscrito havia deixado de fora cinco versículos que o próprio
Erasmo teve de traduzir para o grego do latim da Vulgata. Não obstante, essa
publicação foi um marco literário. Pela primeira vez, teólogos tiveram a
oportunidade de comparar o texto grego original do Novo Testamento com a
tradução posterior para o latim, a Vulgata.
Valendo-se do trabalho anteriormente realizado pelo humanista italiano
Lorenzo Valia, Erasmo mostrou que não era possível justificar a tradução
Vulgata de vários textos-chave do Novo Testamento. Uma vez que
diversas práticas e crenças da igreja eram baseadas nesses textos, as
alegações de Erasmo foram recebidas com consternação por muitos
católicos conservadores (que desejavam manter essas práticas e crenças) e,
igualmente, com grande prazer pelos reformadores (que desejavam efirminí-
Ias). Três exemplos clássicos de erros de tradução mostram a relevância dos
estudos do texto bíblico realizados por Erasmo.

1. Uma boa paire da teologia medieval justificava a inclusão do


matrimônio na lista de sacramentos tomando por base o texto do Novo
Testamento que – pelo menos na tradução Vulgata – se referia ao
casamento como um sacramentam (Ef 5.31-32). Erasmo mostrou que o
temo grego musterion, traduzido nesse texto como "sacramento",
significava simplesmente "mistélio". Não havia nenhuma referência ao
casamento como "sacramento". Um dos textos clássicos usados pelos
medievais para corroborara inclusão do casamento na lista de sacramentos
se tomou, portanto, praticamente inútil.
2. A Vulgata traduzia as primeiras palavras do ministério de
Jesus (Mt 4.17) como "penitenciai-vos, porque esta próximo o reino dos
céus". Essa tradução sugeria que a vinda do reino dos céus tinha uma
ligação direta com o sacramento da penitência. Seguindo Valia novamente,
Erasmo mostrou que o termo grego devia ser traduzido como "arrependei-vos,
pois o Reino dos céus está próximo". Em outras palavras, enquanto a
Vulgata parecia se referir a uma prática externa (o sacramento da
penitência), Erasmo insistiu que a referência era a uma atitude
psicológica interna – a de "arrependimento". Mais uma vez, uma justificativa
importante do sistema sacramental da igreja medieval foi colocada em dúvida.
3. De acordo com a vulgata, Gabriel saudou Maria como "aquele
que é cheia de graça (grafia plena)" (Lc 1.28), sugerindo a imagem de um
reservatório repleto de graça da qual era possível se valer em tempo de
necessidade. Mas, como Erasmo deixou claro, o termo grego significava
simplesmente "favorecida" ou "aquela que encontrou lavoC. Mais uma vez
ainda, uma característica importante da teologia medieval parecia ser
contestada pelos estudos humanistas do Novo `bestamente,

Essas descobertas solaparam a credibilidade da tradução Vulgata, e abrir=


caminho para a revisão teológica com base numa compreensão mais ade -
quada do texto bíblico. Também mostraram a importância dos estudos
bíblicos em relação à teologia. Não se podia pernutir que a teologia fosse
alicerçada em erros de tradução! O reconhecimento do papel critico dos
estudos bíblicos pua a teologia cristã pode ser datado, portanto, da
segunda década do século 16. Essa conscientização também levou aos
interesses teológicos da Reforma dos quais trataremos no capítulo seguinte.

Voltamos nossa atenção agem para a teologia bizantina que se desenvolveu


na Europa orienta] durante a Idade Média. Apesar das limitações de espaço
não permitirem uma discussão detalhada de seus temas e teólogos principais,
consideraremos algumas de suas características mais relevantes.

A TEOLOGIA BIZANTINA

A 'Teologia bizantina" é assim chamada em função da cidade grega de


Bizâncio que Constantuto escolheu como loca] para sua nova capital
em 330. Nessa ocasião, o nome da cidade foi mudado para
Constantinopla ("cidade de Consuatino'). No entanto, o nome da
cidade mais antiga permaneceu e foi usado para designar o estilo
distintivo de teologia que se desenvolveu nessa região até a queda de
Constantinopla diante dos exércitos islâmicos, invasores em 1453.
Constantinopla não foi o único centro de pensamento cristão na região
oriental do Meditenâneo. Há algum tempo, o Egito e a Síria também
eram centros de reflexão teológica. Todavia, uma vez que o poder
político se concentrou cada vez mais na cidade imperial, seu status de
centro teológico cresceu de modo correspondente. No tempo de
Justímano (527 – 565), a teologia bizantina começou a surgir como
força intelectual de certa importância. À medida que igrejas do
Oriente e Ocidente se distanciaram cada vez mais uma da outra (um
processo que havia se iniciado muito antes do cisma final em 1054),
os teólogos bizantinos passaram a enfatizar com freqüência su

da teologia ocidental (como no caso da cláusula filioque), reforçando


desse modo o caráter distintivo de sua abordagem através de escritos
polêmicos. Os escritores bizantinos apresentavam, por exemplo, a
tendência de entender a salvação em termos de deificação, e não nos
termos legais ou relacionais adotados pelos ocidentais. Além disso,
encaravam com perplexidade a doutrina do purgatório que estava
ganhando prestígio nos círculos católicos ocidentais. Qualquer tentativa
de obter certo grau de reconciliação entre o Oriente e o Ocidente durante
a Idade Média era complicada, portanto, por um emaranhado de fatores
políticos, históricos e teológicos. Quando Constantinopla caiu, as
diferenças entre o Oriente e o Ocidente se encontravam maiores do que
nunca. Com a queda de Bizâncio, boa parte da liderança intelectual
e política foi transferida para a Rússia. Os russos haviam sido
convertidos pelas missões bizantinas no século 10 1 e tomaram
partido dos gregos no cisma de 1054. No final do século 15, Moscou e
Kiev estavam firmemente consolidados como patriarcados, cada uma
com seu estilo particular de teologia ortodoxa.

A fim de entendera natureza distintiva da teologia bizantina, é


necessário compreender o ethos por trás da mesma. Os teólogos
bizantinos não apresentavam uma preocupação específica com
formulações sistemáticas da fé cristã. Para eles, a teologia cristã era
algo "concedido" e que, logo, devia ser defendido de seus oponentes e
explicado para seus adeptos. A idéia de "teologia sistemática" era um
tanto estranha para o ethos bizantino. Até mesmo João de Damasco (c.
675 – c. 749), cuja obra de fide orthodoxa ("Acerca da Fé Ortodoxd') é
de importância considerável para a consolidação de uma teologia cristã
distintivamente oriental, deve ser visto como um expositor da fé, e não
como um pensador especulativo ou original. Aliás, pode-se considerar
que a teologia bizantina permaneceu fiel a um princípio definido
originalmente por Atanásio em seus escritos de incarnatione ("acerca
da encarnação") que afirmavam que a teologia era a expressão da
mente dos santos. A teologia bizantina (incluindo seus descendentes
modernos na ortodoxia grega e russa) é, portanto, voltada claramente
para a idéia de paradosis ("tmdiçã&'), particularmente com relação
aos escritos dos patriarcas gregos. Escritores como Gregário de Nissa,

Máximo, o Confessor e o escritor que adotou o pseudônimo de -Durarmo, o


Areopagita" são particularmente importantes nesse sentido.
Duas controvérsias se destacam por sua relevância. A primeira, que
irrompeu no período de 725 - 842, normalmente é chamada de controvérsia
icortoclástica (referente à "destruição de imagens"), Irrompeu em função da
decisão do imperador Leão 111 (717 - 742) de destruir os teores ao
considera-los empecilhos para a conversão dos judeus e muçulmanos. A
controvérsia foi de natureza essencialmente política, apesar de algumas
questões teológicas sérias estarem em jogo, principalmente até que pontoa
doutrina da encarnação justificava a representação de Deus na forma de
imagens. A segunda, que irrompeu no século 14, concentrou-se no
hesicasmo (do grego hesychia = silêncio), um estilo de meditação por meio
de exercícios físicos que permitia aos devotos verem a "luz divina" com seus
próprios olhos. O hesicasmo dava ênfase considerável à idéia de "quietude
numas" como meio de alcançar uma visão interior direta de Deus. Era
associado particularmente a escritores como Simeão, o Novo Teólogo e
Gregônio Palomas (c. 1296 - 1359), que foi eleito arcebispo de Tessalônica em
1347. Seus oponentes argumentavam que esses métodos tinham a tendência
de minimizara diferença entre Deus e as criaturas e se espantavam com a
sugestão de que Deus podia ser "visto".

Em resposta a essas críticas, Palomas desenvolveu a doutrina conhecida


hoje como "palamismo" que faz uma distinção entre as energias divinas e a
essência divina. Por meio dessa distinção, Palomas pôde defendera
abordagem hesicástica afirmando que ela permitia ao devoto ter contato
com as energias divinas, mas não com a essência divina invisível e inefável.
Os cristãos não podem participar diretamente da essência divina; no entanto,
podem compartilhar diretamente das energias não criadas que são o modo
pelo qual Deus se une aos fiéis. A teologia de Palomas foi defendida e
desenvolvida particularmente pelo teólogo leigo Nicolas Cabasilis (e. 1320 - c.
1390), cuja Vida ent, Cristo continua sendo uma obra clássica da
espiritualidade bizantina. Em tempos mais recentes, escritores rico-palantitas
como Vladimir Lossky e John Meyendorff se reaturopriaram, desse texto.
Constantinopla se tomou rapidamente um centro de atividade missionária. Em
algum momento, por volta do ano 860, o govemante morávio Ratislav
pediu ao imperador bizantino que enviasse missionários ao seu povo na
Europa central. Em resposta a esse pedido, foram enviados dois irmãos
gregos, Cirilo e Metódite Esse fato foi particularmente importante para a
formação da cultura européia oriental. Além de levar, posteriormente, à
predominância da ortodoxia nessa região, também teve um grande impacto
sobre os alfabetos usados nessa parte do continente europeu. Cirilo criou
um alfabeto adequado à escrita das línguas eslávicas que se tomou a base
para o atual alfabeto cirilico, assim chamado em homenagem ao mais
jovem dos dois "apóstolos eslavos". A conversão da Morávia foi seguida da
conversão da Bulgária e Sérvia mais adiante nesse mesmo século. Esta foi
seguida, então, da conversão dos russos por volta de 988.
À medida que igrejas do Oriente e Ocidente se distanciaram cada vez mais uma
da outra (um processo que havia se iniciado muito antes do cisma final em 1054),
os teólogos bizantinos passaram a enfatizar com freqüência sua divergência da
teologia ocidental (como no caso da clâusulafflioque), te-forçando desse modo o
caráter distintivo de sua abordagem por meio de escritos polêmicos. Os escritores
bizantinos apresentavam, por exemplo, a tendência de entendera salvação em
termos de deificação, e não nos termos legais ou relacionais adotados pelos
ocidentais. Além disso, encaravam com perplexidade a doutrina do purgatório que
estava ganhando prestígio nos círculos católicos ocidentais. Qualquer tentativa de
obter certo grau de reconciliação entre o Oriente e o Ocidente durante a Idade
Média era complicada, portanto, por um emaranhado de fatores políticos, históricos
e teológicos. Quando Constantinopla caiu, as diferenças entre o Oriente e o
Ocidente encontravam-se maiores do que nunca. Com a queda de Botando, boa
parte da liderança intelectual e política foi transferiria para a Rússia. Os russos
haviam sido convertidos pelas missões bizantinas no século 10-- e tomaram
partido dos gregos no cisma de 1054. No final do século 15, Moscou e ICicv
estavam firmemente consolidados como patriarcados, cada uma com seu estilo
particular de Cristianismo ortodoxo, que continuam sendo extremamente
importantes nos dias de hoje. Outras regiões convertidas â ortodoxia nesse período
incluem a Sérbia e a Bulgiuia.

É evidente que o desenvolvimento da igreja ortodoxa na Rússia durante a Idade


Média foi de grande importância para a formação da Rússia moscovita. Calcula-se
que durante os séculos 14, 15 e 16 foram fundados mais de 250 mosteiros e
conventos nessa região. O reavivamento monástico, sob a orientação de líderes
como São Sérgio de Radonezh (falecido em 1392), deu impulso ainda maior aos
trabalhos missionários da igreja russa. Durante o século 13, por exemplo, os
povos de língua finlandesa da região da Carélia for= convertidos a fé ortodoxa.

A queda de Constantinopla em 1453 provocou uma mudança importante dentro da


ortodoxia russa. Tradicionalmente, cada bispo metropolitano novo da igreja russa
era empossado pelo patriarca de Constantinopla e se sujeitava â liderança política
do imperador bizantino (sediado em Constantinopla). A igreja Russa era, em vários
sentidos, filha da igreja bizantina. Mas com a queda de Constantinopla, essa
abordagem tradicional ficou ultrapassada. O que poderia substituí-la? Com esse
acontecimento, a igreja ortodoxa oriental em Moscou se tornou autocéfala – ou
seja, autogovernaste. Em decorrência disso, as ligações políticas e culturais
entre a igreja Russa e o Estado se aprofundaram. Em 1523, as relações entre
igreja e Estado já eram tão próximas que alguns escritores começaram a chamar
Moscou de "Terceira Roma", devendo ser tratada com o mesmo respeito que
Roma e Constantinopla. Filoteu de Pskov proclamou que, agora que Roma e
Bizâncio haviam se tomado corruptas, a liderança do Cristianismo devia ser
transferiria para Moscou: "duas Romas catam; a terceira está em pé; não
haverá uma quarta".
O conteúdo apresentado neste capítulo deixa claro que tanto a teologia
cristã ocidental quanto a oriental passaram por um desenvolvimento
expressivo durante a Idade Média e o Renascimento. Gerações
subseqüentes de teólogos avaliaram esse período como um marco em
relação a diversas áreas da reflexão teológica, apresentando uma série de
escritores que podem ser considerados de importância perene. O processo de
ascensão e queda de Bizâncio é particularmente relevante para uma
compreensão plena do desenvolvimento subseqüente da ortodoxia oriental na
Rússia e Grécia, assim como o surgimento do Escolasticismo e Humanismo
foi crítico para a formação da teologia ocidental. No capítulo seguinte,
concentraremos nossa atenção na igreja ocidental e investigaremos o
surgimento do movimento conhecido como "a Reforma" que definiu as
características distintivas do Cristianismo moderno, quer católico romano ou
protestante.
No~ PALAVRAS F. EXPRESSÕES MAIS RELEVANTES:
Ad fontes Idade Média
Apologética Imaculada conceição
Argumento ontológico Medieval
Bizantino Renascimento
Cinco Vias Tominis da expiação
Escolasticismo Voluntansmo
Humanismo Vingam

PERGUNTAS (2)
1. Qual era a língua falada pela maioria dos teólogos ocidentais durante
esse período?
2.'sOs humanistas eram pessoas interessadas em estudara Roma clássica."
A seu ver, essa é uma definição útil?
3. Quais são os principais temas da teologia escolástica?
4. Por que houve um interesse tão grande na teologia dos
sacramentos durante a Idade Média?
5. A que se refere o lema ad fontes?

Estudo de caso 2.1 Argumentos em favor da existência de Deus

O "argumento ornológico- foi apresentado inicialmente no Proslogion de


Anselmo, uma obra datada de 1079. (O termo "ontológico" se refere ao
ramo da filosofia que trata do conceito de "existência".) O próprio Anselmo
chama essa discussão de argumento "ontológico". Quando seus
contemporâneos desejavam fazer referência a ela, chamavam -na de
"argumento de Anselmo". Na verdade, o argumento não possui nenhum
caráter "ontológico" da maneira como Anselmo o apresenta; e Anselmo em
momento algum apre

senta suas reflexões como um "argumento" em favor da existência de Deus.


O Proslogion é, de fato, uma obra de meditação, e não uma argumentação
lógica. No decorrer da obra, Anselmo reflete sobre a maneira como o
conceito de Deus se tomou óbvio para ele e as possíveis implicações
disso.
Em seu Prologion, Anselmo oferece uma definição de Deus como "um ente
tal que não se pode conceber nada maior do que ele (aliquid quo ~
cogitari non potest)". Ele argumenta que, se essa definição de Deus esta
correta, implica, necessariamente, a existência de Deus.

Isso porque, se Deus não existe, o conceito de Deus permanece, mesmo que
a realidade de Deus esteja ausente. E, no entanto, a realidade de Deus é
maior do que a idéia de Deus. Portanto, se Deus é "um ente tal que não se
pode conceber nada maior do que ele", o conceito de Deus deve levar à
aceitação da realidade de Deus uma vez que, de outro modo, o mero
conceito de Deus é a maior coisa que se pode conceber. E isso contradiz a
definição de Deus que fundamenta essa argumentação. Tendo em vista,
assim, a existência do conceito de Deus e a aceitação da definição de
Deus como "um ente tal que não se pode conceber nada maior do que
ele", a realidade de Deus é a conclusão lógica.

Pode ser interessante recapitular o que acabamos de dizer. Deus é


definido como "um ente tal que não se pode conceber nada maior do que
ele". O conceito desse ente e a realidade do mesmo são duas coisas
diferentes. Pensar numa nota de 100 dólares e ter uma nota de 100 dólares
em mãos também são duas coisas bem diferentes. Anselmo está dizendo,
por isso, que o conceito de algo é inferior à sua realidade. Assim o
conceito de Deus como "um ente tal que não se pode conceber nada maior
do que ele" contém uma contradição, pois a realidade de Deus seria
superior â idéia. Em outras palavras, se essa definição de Deus está correta
e existe na mente humana, a realidade correspondente também deve
existir.

2.1.1 Anselmo de Canterbury: Acerca da existência de Deus

Esta [definição de Deusl é, de fato, tão verdadeira que não se pode


conceber que não é verdadeira. Pois é plenamente possível pensar em algo
cuja não-existência não pode ser concebida. Este ente deve ser maior do
que algo cuja não-existência pode ser concebida. Portanto, se este ente
(um ente tal que não se pode conceber nada maior) pode ser con cebido
como não-existente, exatamente este tal que não se pode conceber
nada maior, não e o ente tal que não se pode conceber nada maior do
que ele. Trata-se de uma contradição. Assim, é verdade que existe algo
tal que não se pode conceber nada maior, algo que não pode ser
concebido como não-existente. E tu és este ente, o Senhor nosso Deus!
Logo, tu existes tão verdadeiramente, ó Senhor meu Deus, que não po -
des ser concebido como não-existente, e isto, justificadarmente; pois se
uma mente humana pudesse pensar em algo maior do que ti, a criatura
se elevaria acima do Criador e o julgaria; o que e obviamente absurdo. E,
na verdade, tudo mais que há além de ti pode ser concebido como não-
existente. Assim, somente tra, mais verdadeiramente do que todas as
coisas e, por isso, acima de todas as coisas, tens existência: pois tudo o
mais que existe, não existe tão verdadeiramente como tu e, portanto,
existe em menor grau.

Trata-se de uma argumentação importante e vale a pena salientarmos


alguns de seus elementos centrais:

1. Observe a definição de Deus que Anselmo apresenta (linhas 4-6).


Nenhuma justificativa é fornecida para o conceito de Deus como "um ente
tal que não se pode conceber nada maior do que ele". Essa declaração é
considerada óbvia.
2. Na seqüência, Anselmo argumenta que um ente real é maior
do que um mero conceito (linhas 4-9). Esse ponto, que ele pressupõe
ser óbvio para o leitor, é o segundo estágio crítico da sua argumentação,
sendo que o primeiro é a definição de Deus que foi apresentada na
passagem anterior.
3. A conclusão da argumentação é que, tendo em vista o conceito de
Deus ser claramente inferior à realidade de Deus, deve seguir se que Deus
existe (linhas 9-15). De outro modo, seria comprovado que a definição
apresentada para Deus é incoerente.

Apesar de essa linha de argumentação ser importante, não convenceu um de


seus primeiros críticos, um monge beneditino chamado Gratitilo, que redigiu
uma resposta conhecida como "Uma Réplica em Favor do Insensato"

(referindo-se ao SI 14.1, citado por Anselmo, "Diz o insensato em seu


coração: Não há Deus"). De acordo com Gaunilo, existe miu,
deficiência lógica evidente no "argumento" de Anselmo (é preciso
ressaltar, porém, que Anselmo não o considerou como tal). Gatinho faz
a seguinte sugestão: Imagine uma ilha tão linda que outra ilha mais
perfeita não pode ser concebida. Usando a mesma argumentação,
Gaunilo sugere que essa ilha deve existir, uma vez que a realidade da
ilha é necessariamente mais perfeita do que o mero conceito da mes-
ma. De maneira semelhante, podemos argumentar que o conceito da
nota de 100 dólares parece, de acordo com Anselmo, indicar que
temos essa nota em mãos. O mero conceito de algo — quer uma ilha
perfeita ou Deus — não garante sua existência.

2.1.2 A réplica de Gaunilo ao argumento de Anselmo

Algumas pessoas dizem que em algum lugar no oceano há uma ilha


que, em razão da dificuldade (ou melhor, â impossibilidade) de
encontrar aquilo que não existe, alguns chamaram de 1lha
Perdida". Diz-se também que essa ilha é abençoada com toda a
sorte de riquezas inestimáveis e deleites em abundância, em
quantidade muito maior do que nas Ilhas Felizes e, não tendo
nenhum proprietário ou habitante, é superior em todos os
aspectos de abundância de riquezas a todas as outras ilhas habi-
tadas por pessoas. Se alguém me disser isso, não terei nenhuma
dificuldade em entender o que está sendo dito, uma vez que não
há nada de difícil nessas palavras. Mas então, se me for dito, como
se em consequência direta de tal descrição: "Não podes duvidar que
essa ilha é mais excelente do que todas as outras terras que
existem em algum lugar da realidade, como não podes duvidar que
ela se encontra em sua mente; e, uma vez que é muito mais
excelente ela existir não apenas em sua mente, mas também na
realidade, tal ilha deve, portanto, existir. Pois se não existisse, todas
as outras ternas que existem na realidade seriam mais excelentes do
que ela, de modo que essa ilha que tu j á concebeste como sendo
mais excelente do que outras deixaria de ser mais excelente".
Digo que se essas pessoas desejassem me persuadir desse modo
de que tal ilha existe sem sombra de dúvida, eu pensaria que essas
pessoas estão brincando ou teria dificuldade em decidir quem devo
considerar mais insensato: eu mesmo, pois concordei com essas
outras pessoas, ou elas, por pensar terem provado a existência
dessa ilha tão categoricamente, a menos que tivessem me
persuadido antes que sua própria excelência existe em minha
mente precisamente como algo que existe verdadeira e
indubitavelmente, e não apenas algo irreal ou de realidade duvidosa.

A réplica apresentada por Gaunilo truz a lume uma deficiência séria na


argumentação de Anselmo. O texto de Gaunilo é tão claro que não é
necessário comentá-lo. Pode-se dizer, porém, que Anselmo não é
descartado com tanta facilidade. De acordo com parte de sua
argumentação, um elemento essencial da definição de Deus é o fato de ele
ser "um ente tal que não se pode conceber nada maior do que ele". Portanto,
Deus pertence a uma categoria inteiramente diferente daquela das filias e das
notas de dinheiro. Faz: parte da natureza de Deus transcender todo o resto.
Uma vez que o cristão entende aquilo que a palavra "Deus" significa, então
Deus existe de fato para essa pessoa. A intenção da meditação de Anselmo
é refletir sobre como a compreensão cristã da natureza de Deus reforça a
crença nessa realidade. Na verdade, o "argumente" não tem validade fora
desse contexto da fé e nunca foi a intenção de Anselmo que ele fosse usado
dessa maneira filosófica geral.

Ademais, Anselmo argumentou que Gaunilo não o havia compreendido


inteiramente. O argumento que ele apresentou em Proslogion não incluía
a idéia de que há um ente que é, de fato, maior do que qualquer outro ente;
antes, Anselmo havia argumentado em favor de um ser tão grande que uni,
ser maior não poderia nem sequer ser concebido. A discussão continua e, até
hoje, há controvérsia se a argumentação de Anselmo é genuinamente
fundamentada.

Uma abordagem (ou talvez devamos dizer, uma gama de abordagens)


bastante distinta é apresentada pelo grande escritor escolástico Tomás de
Aquino. Aquino acreditava que é inteiramente apropriado identificar sinais
que apontam para a existência de Deus na experiência humana geral do
mundo. Que tipo de sinais, então, Aquino identifica? A linha básica de
raciocínio que norteia Aquino é de que o mundo espelha Deus, uma vez que
ele é o seu Criador—uma idéia que foi expressada de maneira mais formal
em sua doutrina da "analogia do ser". Assim como um artista assina uma
pintura para identificá-la como uma obra de suas mãos, Deus estampou
uma "assinatura' divina na criação. Aquilo que observamos no mundo —
seus sinais de ordem, por exemplo—pode ser explicado com base na
existência de Deus como seu criador. Deus é, ao mesmo tempo, sua causa
primeira e seu arquiteto. Deus fez o mundo existir e imprimiu a imagem e
semelhança divinas nele.
Então, em que partes da criação podemos procurar evidências da
existência de Deus? Aquino argumenta que a ordem presente no
mundo é a prova mais convincente da existência e sabedoria de
Deus. Trata-se de uma suposição básica subjacente a cada uma das
"Cinco Vias", apesar de ser particularmente relevante no caso do
argumento que costuma ser chamado de "argumento do desígnio" ou
"argumento teológico". Consideraremos cada uma dessas — vias"
individualmente.
A primeira via começa com a observação de que as coisas no
mundo estão em movimento ou passando por mudanças. O mundo
não é estático, mas sim, dinâmico. Não é difícil citar exemplos: a
chuva cai do céu; as pedras rolam para o fundo dos vales; a terra
gim ao redor do sol (um fato que, aliás, Aquino desconhecia). Este
argumento inicial de Aquino costuma ser chamado de "argumento do
movimento"; no entanto, fica claro que o "movimento" em questão é, na
verdade, entendido em temos mais gerais, de modo que o termo
"mudança" é uma tradução mais apropriada em alguns pontos.
De que maneira, então, a natureza veio a ter movimento? Por que está
mudando? Por que não é estática? Aquino argumenta que tudo que
se move é movido por alguma outra coisa. Todo movimento tem uma
causa. As coisas não se movem simplesmente–elas são movidas.
Toda causa de movimento deve ter, ela própria, uma causa. E essa
causa deve ter outra antes dela. Assim, Aquino afirma que existe
uma série de causas de movimento por trás do mundo como o
conhecemos. Mas, a menos que haja um número infinito de causas, de
acordo com a argumentação de Aquino, deve haver uma causa única
na origem da série. Em última análise, todos os movimentos são
derivados dessa causa original. Essa é a origem da grande cadeia
de causalidade que vemos refletida na maneira como o mundo se
comporta. Partindo do fato de que as coisas estão em movimento,
Aquino argumenta, portanto, em favor da existência de uma causa
original única de todo esse movimento – e esta, conclui ele, não é
outra senão Deus.

A segunda via parte da idéia de causação. Em outras palavras,


Aquino observa a existência de causas e efeitos no mundo. Um
acontecimento (o efeito) é explicado pela influência de outro (a
causa). A idéia de movimento, da qual tratamos rapidamente acima, é
um bom exemplo dessa seqüência de causa e efeito. Usando uma
linha de raciocínio semelhante à anterior, Aquino argumenta,
portanto, que todos os efeitos remontam a uma só causa original –
que é Deus.

A terceira via diz respeito à existência de seres contingentes. Em outras


palavras o mundo contém seres (como os seres humanos) que não
estão aqui por uma questão de necessidade. Aquino contrasta esse tipo
de ser com um ser necessário (aquele que está presente por uma
questão de necessidade). Enquanto Deus é um ser necessário,
Aquino argumenta que os seres humanos são contingentes. O fato de
estarmos aqui precisa ser explicado. Porque estamos aqui? O que
aconteceu para que viéssemos a existir? Aquino argumenta que

um ser vem a existir porque algo que já existe lhe deu existência. Em outras
palavras, nossa existência é causada por outro ser. Somos efeito de uma
série de causação. Acompanhando essa série de volta até sua origem,
Aquino declara que essa causa original da existência só pode ser alguém cuja
existência é necessária — em outras palavras, Deus.
A quanta, via parte, dos valores humanos como a verdade, a bondade e a
dignidade. De onde vêm esses valores? O que os causa? Aquino
argumente que deve haver algo que é, em si mesmo, verdadeiro, bom e digno
e que dá existência aos nossos conceitos de verdade, bondade e
dignidade. A origem dessas idéias, conforme Aquino sugere, é Deus, sua
causa original.
A quinta e última via é o argumento teológico propriamente dito.
Aquino observa que o mundo mostra várias evidências de um intento,
um plano inteligente. Os processos e objetos parecem ser adaptados com
certos objetivos definidos em mente. Parecem ter um propósito. Parecem ter
sido planejados. Mas essas coisas não planejam a si mesmas: elas são
causadas e planejadas por alguma outra coisa ou pessoa. Partindo dessa
observação, ele conclui que é preciso reconhecer que a fonte dessa ordem
natural é Deus.
Fica evidente que a maioria dos argumentos de Aquino é relativamente
conhecida. Cada um depende da volta a uma causa original e da
identificação da mesma como sendo Deus. As "Cinco Vias" foram alvos dos
comentários de vários críticos de Aquino durante a Idade Média, entre
eles, Duns Sentas e William de Ockham. As seguintes observações são
especialmente importantes:

1. Por que a idéia de uma regressão infinita de causas é


impossível? O argumento do movimento, por exemplo, só funciona se for
possível comprovar que a seqüência de causa e efeito cessa em algum
lugar. De acordo com Aquino, e necessário haver um Movedor Primário que
não é movido. No entanto, ele não apresenta provas disso.
2. Por que esses argumentos conduzem â crença em
apenas um Deus? O argumento do movimento, por exemplo, poderia levar
à crença em vários Movedores Primários que não são movidos. Não parece
haver nenhum motivo premente para insistir na existência de apenas uma
causa desse tipo, exceto pela insistência fundamental cristã de que existe,
de fato, apenas um Deus.
1 Esses argumentos não comprovam que Deus continua existindo.
Depois de colocar as coisas em movimento, Deus pode ter cessado de
existir. A existência continuada de acontecimentos não significa
necessariamente que seu originador também continua existindo.
Ockham sugere que os argumentos de Aquino podem levar à crença de
que Deus existiu outrora — mas não necessariamente agora. Na
tentativa de contornar essa dificuldade, Ockham desenvolveu um
argumento um tanto complexo baseado na idéia de Deus continuar a manter
o universo.

No final, os argumentos de Aquino são apenas parcialmente válidos no


sentido de sugerir que é razoável crer em um criador do mundo, ou em
um ser inteligente que é capaz de causar efeitos no mundo. Não
obstante, ainda é necessário um passo de fé. Ainda está para ser
provado que esse criador ou ser inteligente é o Deus que os cristãos
conhecem, reverenciam e cultuam. Os argumentos de Aquino
poderiam levar à crença na existência de um deus semelhante àquele
preferido pelo filósofo grego Aristóteles – um Motor Imóvel que não é
movido, distante e indiferente ao que ocorre no mundo.

Estudo de caso 2.2 Conceitos de expiação


O período medieval testemunhou um interesse considerável na
doutrina da obra de Cristo (chamada com freqüência de "expiação") tanto
por parte da teologia acadêmica quanto da religião popular.
Um tema que se tomou especialmente expressivo na religião popular
foi a idéia de "saquear o inferno". O contexto para essa idéia é fornecido
pelo próprio Novo Testamento. Tanto no Novo Testamento quanto na
igreja primitiva pode-se observar uma forte ênfase sobre a vitória
conquistada por Cristo sobre o pecado, a morte e Satanás através da
crucificação e ressurreição de Cristo. Esse tema de vitória, com
freqüência associado liturgicamente ás comemorações da Páscoa, foi
extremamente importante dentro da tradição teológica cristã ocidental
até o Iluminismo. O tema de "Cristo vitorioso (Christus Victor)" reunia
uma série de outros temas em tomo da idéia de uma vitória decisiva
sobre a opressão e as forças do mal.
A imagem da morte de Cristo como resgate se tomou essencial para
escritores patresocos como Irineu. Mas quais foram as implicações
dessa idéia? De acordo coma argumentação de Orgenes, se a morte
de Cristo foi um resgate, este deve ter sido pago a alguém. Mas a
quem? Não pode ter sido pago a Deus, uma vez que Deus não estava
mantendo os pecadores cativos em troca de um preço. Deve ter sido
pago, portanto, ao diabo. Gregôno, o Grande, desenvolveu essa idéia em
mais detalhes. O diabo havia adquirido sobre a humanidade decaída
cenas direitos q ue Deus era obrigado a respeitar. A única maneira de
libertara humanidade do domínio e opressão de Satanás era ele ultra-
passar os limites dessa autoridade e, desse modo, ser obrigado a abrir
mão de seus direitos. De que maneira isso poderia ser feito? Gregririo
sugere que isso poderia se dar se uma pessoa sem pecado entrasse no
mundo na forma de uma pessoa comum e pecaminosa. O diabo não
notaria até que fosse tarde demais: ao declarar sua autoridade sobre
essa pessoa sem pecado, o diabo teria ultrapassado os limites da sua
autoridade e, desse modo, seria obrigado a abrir mão dela.

Gregário sugeriu a imagem de um anzol com uma isca: a humanidade de


Cristo é a isca e sua divindade, o anzol. Como um grande monstro
marinho, o diabo morde a isca – e descobre, tarde demais, o anzol. "A
isca tenta o outra para que o anzol possa ferir. Assim, nosso Senhor, ao
vir para a redenção da humanidade, transformou-se numa espécie de
anzol para causara morte do diabo."

Outros escritores exploraram imagens diferentes para ilustrara mesma


idéia de pegar o diabo numa armadilha. A morte de Cristo foi como um a
rede para pegar pássaros, ou ainda, como uma mineira. Foi esse aspecto
dessa abordagem ao significado da cruz que, posteriormente, causou maior
inquietação. A impressão era de que Deus havia usado de dissimulação. Foi
contra essa idéia de dissimulação da parte de Deus que Anselmo de
Canterbury reagiu – uma idéia à qual voltaremos adiante.
A figurada vitória sobre o diabo se mostrou extremamente atraente para o
povo em geral. A idéia medieval de "saquear o inferno" dá testemunho do
seu poder. De acordo com essa idéia, depois de morrer na cruz, Cristo
desceu ao inferno e derrubou suas portas a fim de libertar as almas
aprisionadas. Essa imagem se baseava (de modo um tanto frágil, diga-se de
passagem) em 1 Pedro 3.18-22, em que se diz que Cristo "pregou aos
espíritos em prisão". O grande hino medieval "Vós Corais da Nova
Jerusalém", escrito por Fulbert de Chantres expressa esse tema em dois de
seus versos, usando a imagem de Cristo como leão de Judá (Ap 5.5)
denotando Satanás, a serpente (Ou 3.15):

Poiso Leão de Judá rompeu suas cadeias. Esmagando a


cabeça da serpente; E clama em alta voz no reino da morte
Para despertar os mortos aprisionados.

As profundezas devoradoras, do inferno suas presas Sob a ordem do


Senhor devolvem;
Suas hostes resgatadas se encaminham;
Para onde Jesus lhes precede.

Uma idéia semelhante pode ser encontrada no mistério (peça teatral medieval)
inglês do século 14 que descreve o "saque do inferno" da seguinte forma:
 quando Cristo estava morto, seu espírito se apressou até o
inferno.
 logo ele derrubou as podas fortes que estavam injustamente
trancadas para ele... Prendeu Satanás com cadeias eternas, de modo que
Satanás permanecerá preso até o dia do juízo final. Levou consigo Adão e Eva e
Outros que lhe eram queridos todos estes ele levou para fora do inferno e
colocou no paraíso.
Uma abordagem bem diferente foi desenvolvida por Anselmo de
Canterbury que reagiu a essas idéias de que Deus enganou o diabo,
ou de que o diabo tinha "direitos" de qualquer espécie sobre a
humanidade decaída, ou ainda, de que Deus tinha qualquer obrigação
de respeitar esses "direitos". No máximo, é possível que o diabo tenha
recebido permissão de exercer um poder de facto sobre a
humanidade – um poder que existe em temos práticos, mesmo que
ilegítimo e injustificado. Porém, não se pode considerar tal poder uma
autoridade de jure – ou seja, uma autoridade firmemente alicerçada
num princípio legal ou mora]. "Nao vejo que validade isso tem", comenta
Anselmo descartando essa idéia. Anselmo também descarta qualquer
idéia de que Deus enganou o diabo no processo de redenção. A
trajetória da redenção em sua totalidade é baseada na retidão de
Deus e reflete esse atributo divino.

A ênfase de Anselmo é inteiramente sobre a retidão do Deus que


redime a humanidade de maneira totalmente coerente com essa
qualidade divina. O tratado de Anselmo Cur Deus honro ("Por que Deus
se tomou humano") trata extensivamente da possibilidade de
redenção humana, apresentando-a na forma de um diálogo. No
decorrer dessa análise, Anselmo demonstra– ainda que com sucesso
discutível – tanto a necessidade da encarnação quanto o potencial
salvador da morte e ressurreição de Jesus Cristo. A argumentação é
complexa e pode ser resumida do seguinte modo:

1. Deus criou a humanidade num estado de retidão original, com o


objetivo de conduzira humanidade a um estado eterno de glória.
2. Esse estado de glória eterna depende da obediência humana a
Deus. No entanto, em função do pecado, a humanidade não é capaz
de aleançar essa obediência necessária, o que parece frustrar o
propósito de Deus ao criara humanidade.
3. Uma vez que os propósitos de Deus não podem ser
frustrados, deve haver algum meio de remediar a situação. No
entanto, a situação só pode ser remediada mediante o pagamento de
um preço pelo pecado. Em outras palavras, é preciso fazer algo que
possa remira culpa do pecado humano.
4. Contudo, não há nenhum meio pelo qual a humanidade possa
pagar o preço necessário. Faltam-lhe os recursos para isso. Por outro
lado, Deus possui os recursos necessários para pagar esse preço.
5. Portanto um "Deus-homem" teria a capacidade (como Deus) e a
obrigação (como ser humano) de pagar o preço necessário. Assim, a
encarnação ocorre a fim que o preço possa ser pago e a
humanidade possa ser redimida.

Vários, pontos precisam ser comentados. Em primeiro lugar, o pecado


é visto aqui como uma ofensa contra Deus. O peso dessa ofensa parece
ser proporcional à condição da parte ofendida. Para muitos estudiosos,
isso sugere
que Anselmo foi profundamente influenciado pelas idéias feudais da época,
talvez considerando Deus equivalente a um "senhor ficudaF.
Em segundo lugar, a origem da idéia de um "preço" a ser pago é um ponto
controverso. É possível que essa idéia seja proveniente das leis germânicas; do
período que estipulavam que uma ofensa devia ser expiada pelo pagamento de um
preço apropriado. No entanto, a maioria dos estudiosos acredita que Anselmo
está apelando diretamente para o sistema penitencia] da igreja. Um pecador
que buscava a penitência tinha de confessar todos os pecados. Ao pronunciar o
perdão, o sacerdote exigia que o penitente fizesse algo (como realizar uma
peregrinação ou obra caridosa) como "pagamento"—ou seja, como modo de
demonstrar publicamente a sua gratidão pelo perdão. É possível que Anselmo
tenha derivado sua idéia dessa fonte.

Porém, apesar das dificuldades óbvias relacionadas à abordagem de Anselmo,


utin, avanço importante havia sido realizado. A insistência de Anselmo de que Deus
é total e absolutamente obrigado a agir de acordo com os princípios da justiça ao
longo de todo o processo de redenção da humanidade marca um rompimento
decisivo com a moralidade duvidosa da abordagem do Christus Victor. Ao
adotara abordagem de Anselmo, escritores posteriores puderam firmá-la em
bases mais sólidas usando os princípios gerais da lei.

Um dos primeiros exemplos disso pode ser encontrado na Summa Theologiae


("Suma Teológica`), obra que Tomás de Aquino começou a redigir em 1265 e
deixou inacabada quando faleceu. Nessa análise importante e influente,
considerada por muitos a maior obra da teologia medieval. Aquino desenvolve a
idéia de "pagamento" apresentada por Anselmo, tratando de várias objeções que
haviam sido levantadas contra esse conceito. Sua resposta à critica de que a
dignidade de Cristo não era suficiente para obter o perdão de Deus para o
pecado humano é particularmente interessante.

2.2.1 Tomás de Aquino: Acerca do pagamento realizado por Cristo

1. Ao que parece, a paixão de Cristo não efetuou nossa salvação por


meio de um pagamento. Pois, ao que parece, esse pagamento é responsabili-
dade daquele que peca, como fica claro diante de outros aspectos da perruên-
cia, sendo o pecador aquele que deve se arrepender e confessas Mas Cristo
não pecou. Como São Pedro diz: Cristo "não cometeu pecadd'(lPe 2.22).
Portanto, ele não pagou o preço do pecado através de sua paixão.
2. Ademais, o pagamento não pode ser feito por meio de uma ofen-
sa ainda maior. Mas a maior de todas as ofensas se deu na paixão de
Cristo, uma vez que aqueles que o mataram cometeram o mais atroz de
todos os pecados. Por esse motivo, o pagamento não pode ter sido feito a
Deus através da paixão de Cristo.
3. Ademais, o pagamento implica certa igualdade com a ofensa, uma
vez que é um ato de justiça. Mas a paixão de Cristo não parece ser igual a
todos os pecados da raça humana, uma vez que Cristo sofreu de acordo
com a carne, e não de acordo com a sua divindade. Como São Pedro diz:
"Cristo [sofreu] na carne" (11`c 4.1)... portanto, Cristo não pagou pelos
nossos pecados através de sua paixão.
Respondo dizendo que um pagamento adequado e feito quando alguém
oferece à pessoa ofendida algo que lhe dá um prazer maior do que o ódio
da ofensa. Ao sofrer como resultado do amor e da obediência, Cristo
ofereceu a Deus algo maior do que aquilo que poderia ser cobrado em
compensação por todas as ofensas da humanidade; em primeiro lugar,
graças à grandeza do amor em decorrência do qual ele sofreu; em
segundo lugar, graças ao valor da vida que ele entregou como pagamento,
que era a vida de Deus como ser humano; em terceiro lugar, graças à
abrangência de sua paixão e da grandeza da aflição que ele tomou sobre
si... Assim, a paixão de Cristo foi um pagamento não apenas suficiente,
mas superabundante pelos pecados da raça humana. Como João diz: "ele é
a propiciação pelos nossos pecados e não somente pelos nossos próprios,
mas ainda pelos do mundo inteiro" (No 2.2).

Diante disso, em resposta ao primeira ponto, a cabeça e os membros


são, por assim dizer, um só na pessoa mística e, portanto, o pagamento
de Cristo pertence a todos os fiéis como seus membros...
Em resposta ao segundo ponto, o amor de Cristo em seu sofrimento
preponderou sobre a maldade daqueles que o crucificaria... Em resposta ao
terceiro ponto, o valor da carne de Cristo deve ser considerado, não apenas
de acordo coma natureza da carne, mas de acordo com a pessoa que o assu-
miu, uma vez que é a carne de Deus, do qual adquiriu um valor infinita.

Nessa passagem, Aquino trato de vários pontos importantes, dentre os


quais devemos observar os seguintes:

1. Aquino demonstrou como o pagamento que Cristo ofereceu


na cruz pode ser considerado maior do que a ofensa cometida pela
humanidade (linhas 16-24). O valor do pagamento oferecido é determinado
por três fatores: a grandeza do amor de Cristo; o valor intrínseco de sua
vida, que é uma combinação de humanidade e divindade; e a grandeza do
fardo que ele tomou sobre si. A tendência de Anselmo em se concentrar
apenas no segundo destes três fatores; Aquino estendeu a análise do
pagamento feito por Cristo de modo a incluir elementos adicionais, reforçando,
com isso, as bases teológicas da expiação.
2. Desenvolvendo esse ponto ainda mais, Aquino enfatiza que o
valor elevado a ser atribuído à natureza humana de Cristo não deve ser
entendido puramente em termos; da natureza humana que é assumida, mas
também da divindade da pessoa que assumiu essa natureza (linhas 32-35).
3. Observe o método de argumentação distintivo de Aquino na
Summa Theologiae. Diversas objeções ou dificuldades são
apresentadas; uma resposta geral é dada (normalmente começando
com as palavras "Responde dizendo que..."); os pontos individuais são,
então, tratados separadamente.
A análise de Aquino mostra o potencial teológico do modelo de expiação do
"pagamento". No entanto, por motivos diferentes, outros escritores medie -
vais não se sentiram à vontade coma abordagem de Anselmo. Para alguns,
ele não tratou adequadamente dos aspectos subjetivos da salvação, inclusive
da apropriação pessoal da R. Outros se perguntaram se o tema do "amor de
Deus" havia, de fato, sido investigado de maneira adequada e desejaram
ver uma ênfase maior sobre a maneira como a morte de Cristo demonstrou
o amor de Deus. Talvez a declaração medieval mais importante dessa ênfase
possa ser encontrada nos escritos de Pedro Abelardo. É preciso ressaltar
que, ao contrário do que alguns de seus interpretes sugerem, Abelardt, não
reduzo significado da cote a uma demonstração do amor de Deus. Esse é
um dentre vários elementos que compõem a soteriologia de Abelardo, que
inclui idéias tradicionais com referência à morte de Cristo como um sacrifício
pelo pecado humano. O elemento distintivo é a ênfase de Abelardo sobre o
impacto subjetivo da cruz.

Para Abelardo, "o propósito e causa da encarnação foi para que Cristo
pudesse iluminar o mundo com sua sabedoria e despertá-la para amá-lo".

Nesse sentido, Abelardo repete uma idéia agostiniana da encarnação de


Cristo como uma demonstração publica da extensão do amor de
Deus visando des-pertar uma resposta de amor da parte da
humanidade. "O Filho de Deus assi-milou nossa natureza e a tomou
sobre si para nos ensinar tanto por palavra quanto, por exemplo, a
ponto de morrer, unindo-nos a si, desse modo, por meio do amor."
Essa visão é enfatizada com grande veemência à medida que o impacto
subjetivo do amor de Deus em Cristo é investigado mais a fundo:

Depois da paixão de Cristo, todos são tomados mais retos do que


antes, ou seja, mais amorosos para com Deus, pois as pessoas são
incitadas a amar... E, portanto, nossa redenção é esse grande amor
por nós deram-trado na paixão de Cristo, que não apenas nos liberta da
escravidão do pecado, mas também conquista para nós a verdadeira
liberdade de fi-lhos de Deus, de modo que devemos cumprir todas as
coisas mais por amor do que por temor.

Abelardo não apresenta uma base teológica adequada que nos permita
entender exatamente o motivo pelo qual a morte de Cristo deve ser
considera-da uma demonstração do amor de Deus. Não obstante, sua
abordagem ao sig-nificado da morte de Cristo evidenciou o impacto
subjetivo poderoso dessa morte, algo que havia sido ignorado ou
negligenciado por escritores contem-porâneos como Anselmo de
Canterbury.
Fica claro, portanto, que o período medieval testemunhou um interesse
considerável na doutrinada obra de Cristo e fez contribuições expressivas para
o seu desenvolvimento. Pode-se dizer algo parecido acerca da sua abordagem
à questão da natureza e função dos sacramentos, da qual trataremos

agora. Estudo de caso 23 A discussão sobre os sacramentos


Os primeiros séculos da tradição cristã foram caracterizados por
uma relativa falta de interesse na teologia dos sacramentos. Durante
o século 2% algumas discussões de natureza sacramental geral podem
ser encontradas em escritos como o Didaquê e nas obras de Irineu.
É somente nos escritos de Agostinho que essas questões, inclusive
de definição de um sacramento, co-meçam a ser tratadas de maneira
mais completa. Acredita-se que Agostinho definiu os princípios gerais
relacionados à definição dos sacramentos. São eles:

1. Um sacramento é um sinal. "Quando aplicados a coisas


divinas, os sinais são chamados de sacramentos."
2. O sinal deve ter alguma relação com aquilo que é representado.
—Se os sacramentos não tiverem nenhuma semelhança com aquilo de
que são sacramentos, não podem ser considerados como tal."

No entanto, essas definições ainda são imprecisas e inadequadas.

sacramento? Na prática, Agostinho entende como "sacramentos", várias


coisas que não são mais consideradas de caráter sacramental - o credo e a
oração do Pai-Nosso, por exemplo. Com o passar do tempo, tornou-se
cada vez mais claro que a definição de um sacramento simplesmente como
"um sinal de algo sagrado" era inadequada.

Foi durante o início da Idade Média - um período de desenvolvimento


sacramental por excelência-que se deu um maior esclarecimento. Neste
estudo de caso, investigaremos a área geral da definição de um sacramento.
Na primeira metade do século 12, Hugo de São Virar, um teólogo sediado em
Paris, revisou as definições extremamente imprecisas oferecidas por
Agostinho. Em seu relato abrangente da teologia dos sacramentos, escrito
na primeira metade do século 12, Hugo de São Vítor apresentou uma
definição de um sacramento que incluía a necessidade de um elemento
físico que tivesse alguma semelhança com aquilo que representava. Essa
estipulação teve a consequência importante de excluir a penitência da lista
de sacramentos; foi somente quando Pedro Lombardo alterou essa
definição (ver 2.3.2) que a formulação medieval da lista de sete
sacramentos foi padronizada.

2.3.1 Hugo de São Vitor• Acerca da natureza de um sacramento

Nem todo sinal de algo sagrado pode ser chamado propriamente de


sacramento (pois as letras dos escritos sagrados, ou estátuas e figuras são
todos "sinais de coisas sagradas", mas nem por isso podem ser chamados
de sacramentos)... Qualquer um que queira uma definição mais completa
e adequada de um sacramento pode defini-lo da seguinte forma: "um
sacramento é um elemento físico ou material colocado diante dos senti-
dos externos, representando por semelhança, significando por institui -
ção, e contendo por santificação, alguma graça espiritual invisível-. Essa
definição é reconhecida como sendo tão apropriada e perfeita que se mostra
adequada no caso de todos os sacramentos e, no entanto, apenas dos sa-
cramentos. Pois tudo que tem esses três elementos é um sacramento; e
tudo que e desprovido desses três elementos não pode ser considerado
um sacramento. Pois todo sacramento deve ter um tipo de semelhança
com aquilo de que é o sacramento, de acordo com a qual é capaz de
representara mesma coisa. Também deve ter sido instituído de tal maneira
que é ordenado para significar essa coisa. E, por fim, deve ter sido
santificado de tal maneira que contenha essa coisa, e seja eficaz em conferir
a mesma àqueles que estão para ser santificados.

Observe que existem quatro elementos essenciais no conceito da natureza de um


sacramento como "elemento físico ou material colocado diante dos sentidos
externos, representando por semelhança, significando por instituição, e contendo
por santificação, alguma graça espiritual invisível" (linhas 4-7).

1. Deve haver um elemento "físico ou material" envolvido (linhas 4-5) –


como a água do batismo, o pão e o vinho da eucaristia, ou o ólen, da
extrema unção. ("Extrema unção" é a prática de ungir com óleo consagrado
os enfermos à beira da morte.)
2. "Um tipo de semelhança" com aquilo que é significado, de modo que
possa representara coisa significada (linhas 10-12). Assim, pode-se dizer
que o vinho da eucaristia rem "um tipo de semelhança" com o sangue de
Cristo, permitindo que ele represente esse sangue num contexto
sacramental.
3. Uma forma de "instituição" por meio da qual o sacramento é "ordena-
do para significar essa coisa" (linhas 12-13). Em outras palavras, deve
haver um bom motivo para crer que o sinal em questão é autorizado para
representar a realidade espiritual pua a qual ele aponta. Um exemplo –
aliás, o exemplo primário – da "autorização" em questão é sua instituição
pelas mãos do próprio Jesus Cristo.
4. Uma eficácia, por meio da qual o sacramento é capaz de conferir os
benefícios que ele representa para aqueles que dele participam (linhas 14-
15).

O terceiro ponto é particularmente relevante. Na teologia medieval, fazia-se uma


distinção carintadosaentre os "sacramentos da Antiga Aliança" (como a circuncisão) e
os "sacramentos da Nova Aliança". A distinção essencial entre eles é que os
sacramentos da Antiga Aliança meramente significavam realidades espirituais,
enquanto os sacramentos da Nova Aliança concretizavam aquilo que eles
significavam. O escritor franciscano do século 13 Bonaventum tratou dessa
questão usando uma analogia médica:

Na Antiga Lei, havia unguentes de certo tipo, mas eles eram figurati-
vos e não curavam. A doença era letal, mas as unções eram superficiais...
Ungüentos genuinamente curativos devem trazer tanto a unção espiritual
quanto um poder vivifica ter; foi somente Cristo nosso Senhor que flez
isso, uma vez que... por meio de sua morte, os sacramentos têm o poder
de dar vida.

No entanto, a definição de Hugo de São Vitor de sacramento continuou


sendo insatisfatória. De acordo com Hugo, os seguintes itens eram —
sacramen-tos": a encarnação, a igreja e a morte. Alguma coisa ainda estava
faltando. A essa altura, havia um consenso geral de que existiam sete
sacramentos – batis-mo, crisma, a eucaristia, penitência, casamento,
ordenação e extrema unção. Mas, pela definição de Hugo, a penitência não
podia ser um sacramento, uma vez que não continha nenhum elemento
material. A teoria e a prática se cricon-travam, portanto, seriamente
desalinhadas.
A situação foi resolvida através da contribuição de Pedro Lombardo. Em
sua obra Quatro Livros das Sentenças, compilada em Paris durante os
anos de 1155 – 1158, Pedro Lembrado apresentou uma definição de
sacramen-to diferente daquela oferecida por Hugo de São Vitor, evitando
qualquer refe-rência a um elemento físico (como pão, vinho ou água).
Usando essa defini-ção, Pedro pôde definir uma lista de sete sacramentos
que se tornou definitiva para a teologia católica medieval.

2.3.2 Pedro Lombardo: Acerca da natureza dos sacramentos

Um sacramento possui uma semelhança com aquilo que ele repre-


senta. "Se os sacramentos não tiverem nenhuma semelhança com aquilo
de que são sacramentos, não podem ser considerados como tal"
(Agostinho)... Uma coisa pode ser chamada apropriadamente de
sacramento se for um sinal da graça de Deus e uma forma da graça
invisível, de modo que leva sua imagem e existe como sua causa. Os
sacramentos foram, portanto, instituídos para santificar e também para
representar... Aquelas coisas que foram instituídas com o propósito
apenas de representar não passam de sinais, e não são sacramentos,
como é o caso dos sacrifícios físicos e observâncias cerimoniais da
Antiga Lei, que nunca puderam tomar retos os seus ofertastes.

... Consideremos agora os sacramentos da Nova Lei, que são o ba-tismo,


a crisma, o pão da bênção (isto é, a eucaristia), a penitência, a
extrema unção, a ordenação e o casamento. Alguns destes, como o
batis-mo, provêem um remédio para o pecado e conferem a assistência
da gra-ça; outros, como o casamento, são apenas um remédio; e
outros ainda, como a eucaristia e a ordenação, nos fortalecem com
graça e poder... Por que, então, esses sacramentos não foram
instituídos logo depois da queda da humanidade, uma vez que
transmitem retidão e salvação? Responde-mos que os sacramentos
da graça não foram dados antes da vinda de Cristo, que é o doador
da graça, porque recebem sua virtude da morte e do sofrimento de
Cristo.

Observe os seguintes pontos:


1. Um sacramento é definido como "um sinal da graça de Deus e
uma forma da graça invisível, de modo que leva sua imagem e existe como
sua causa". Compare isto com a definição de Hugo de um sacramento
como "um elemento físico ou material colocado diante dos sentidos
externos, representando por semelhança, significando por instituição, e
contendo por santificação, alguma graça espiritual invisível". Hugo
começa insistindo na necessidade de um "elemento fisico ou material",
enquanto Pedro não faz nenhuma referência a esse tipo de elemento.
2. Observe a lista de sete sacramentos que Pedro apresenta: "o batismo,
a
crisma, o pão da bênção (isto é, a eucaristia), a penitência, a extrema
unção, a ordenação e o casamento" (linhas 10-12). Essa lista se toma-
ria normativa no pensamento e prática cristã subseqüente.

Estudo de caso 2.4 A interpretação da Bíblia


A questão de como a Bíblia deve ser interpretada sempre foi de relevância
teológica e foi discutida de maneira relativamente extensa durante o perío-
do medieval. Foi durante essa era do pensamento cristão que o
método interpretativo conhecido como "O Sentido Quádruplo das
Escrituns" recebeu sua forma final. Tendo em vista a importância desse
método e seu impacto sobre a teologia do período, trataremos dele em
mais detalhes.
Convém iniciarmos investigando o contexto do desenvolvimento desse
método no período patristico. Nessa época, uma influência importante,
especialmente dentro da escola alexandrina, foi o esentorjudert de projeção
crescente Filo de Alexandria (e. 30 a.C. - c. 45 d.C.). Filo argumentou que
era necessário olhar abaixo do significado superficial das Escrituras a fim
de discernir um significado mais lanhando que se encontrava sob a
superfície do texto. Além do sentido Ifteral- do texto, havia um sentido
"espiritual" mais profundo que podia ser descoberto tratando as passagens
em questão como alegorias, apontando para essas verdades mais
profundas.
Essas idéias foram adotadas por um grupo de teólogos sediados em
Alexandria, incluindo Orgenes. A abrangência do método alegórico
pode ser vista na interpretação de Orígetics das principais imagens do
Antigo Testamento. A conquista da terra prometida por Josué,
interpretada alegoricamente, se refere à conquista do pecado por Cristo na
cruz, da mesma forma como a legislação acerca dos sacrifícios em Levítico
apontava para os sacrifícios espirituais dos cristãos. À primeira vista, essa
abordagem pode parecer uma degeneração em eisegese, na qual o
intérprete insere no texto das Escrituras o significado de sua preferência.
Porém, como os escritos de Dídimo o Cego deixam claro, esse não é
necessariamente o caso. Ao que parece, desenvolveu-se um consenso
acerca das imagens e textos do Antigo Testamento que deveriam ser
interpretados alegoricamente. Jerusalém, por exemplo, veio a ser
considerada uma alegoria da igreja.

Contrastando com isso, a escola unioquina enfatizava a interpretação das


Escrituras â luz de contexto histórico. Essa escola, associada especialmen-te
a escritores como Diodoro de Tarso, João Crisóstomo e Teodoro de
Mopsuéstia, enfatizava a posição histórica das profecias do Antigo
Testamen-to, o que praticamente não acontece nos escritos de Origens e
outros repre-sentantes da tradição alexandrina. Assim, ao tratar das
profecias do Antigo Testamento, Teodoro enfatiza que a mensagem
profética em relevante para aqueles à qual ela havia sido dirigida em
primeira mão, tendo, porém, desen-volvido um significado para os leitores
cristãos. Todo oráculo profético deve ser interpretado como tendo um único
e constante significado histérico ou lite-ral. Em decorrência disso, Teodoro
costumava interpretar um número relativa-mente pequeno de passagens do
Antigo Testamento como sendo referências diretas a Cristo, enquanto a
escola alexandrina considerava Cristo o conteúdo subjacente de várias
passagens proféticas e históricas.
Na igreja ocidental, pode-se observar o desenvolvimento de uma aborda-gem
ligeiramente diferente que, por fim, se expressaria de maneira mais plena na
Quadriga. Em vários de seus escritos, Ambrósio de Milão desenvolveu uma
interpretação tripla dos sentidos das Escrituras: além do sentido natural, o
intérprete pode discernir um sentido moral e racional ou teológico.
Agostinho optou por seguir essa abordagem, argumentando, porém, em
favor de um sen-tido duplo — uma abordagem literal-carnal-histórica e um
sentido alegórico-mislico-espiritual, apesar de Agostinho reconhecer que
algumas passagens podem ter os dois sentidos. "Pode-se ver que os ditos
dos profetas têm um sentido triplo, uma vez que alguns tratam da ferusalém,
terrena, outros da cida-de celestial e, outros ainda, de ambas." É inaceitável
entender o Antigo Testa-mento em termos puramente históricos; a chave
para a sua compreensão se encontra em sua interpretação correta. Dentre
as principais linhas de interpre-tação "espiritual", as seguintes devem ser
observadas: Adão representa Cristo; Eva representa a igreja; a arca de Noé
representa a cruz; a portada arca de Noé representa o lado traspassado de
Cristo; a cidade de Jerusalém representa a Jeirisalém, celestial:

Estes significados ocultos das Escrituras inspiradas podem ser discernidos pelo
exercício das nassas melhores aptidões, com graus va-riáveis de sucesso. E, no entanto,
estamos convictos do princípio de que todos estes acontecimentos históricos e suas
narrativas moem sempre torna antevisão das coisas vindouras, e de que devem sempre
ser inter-pretados com referência a Cristo e sua igreja.

Usando essas linhas de análise, Agostinho pode enfatizara unidade do


Antigo e do Novo Testamento. Ainda que suas formas de expressão sejam
diferentes, ambos dão testemunho da mesma fé. Agostinho expressa essa
idéia em um texto que se tornou extremamente importante para a

Testamento: "O Novo Testamento encontra-se oculto no Antigo; o Antigo


é tomado acessível pelo Novo (In Vetem Novum lates et in Novo Vetas
patet)".
Essa distinção entre o sentido literal ou histórico das Escrituras por um lado e
entre um sentido espiritual ou alegórico mais profundo por outro, ganhou
aceitação geral na igreja durante a Idade Média. O método-padrão de
interpretação bíblica usado nesse período costuma ser chamado de Quadriga, ou "o
sentido quádruplo das Escrituras". Esse método nasceu da distinção entre o
sentido literal e o espiritual. As Escrituras apresentam, portanto, quatro sentidos
diferentes. Além do sentido literal, pode-se distinguir três sentidos não-literais: o
alegórico, que define em quê os cristãos devem crer; o tocipológico ou moral, que
define o quê os cristãos devem fazer; e o anagógico, que define o quê os cristãos
devem esperar. Os quatro sentidos das Escrituras eram, portanto:

1. O sentido literal, no qual o texto podia ser considerado da forma


como é declarado, referindo-se a certos acontecimentos históricos.
2. O sentido alegórico que interpretava certas passagens das
Escrituras de modo a produzir declarações doutrinárias. Essas passagens
costumavam ser obscuras ou ter um sentido literal inaceitável para os leito-
res por motivos teológicos.
3. O sentido trotivológico ou moral, que interpretava essas passagens
de modo a produzir orientação ética para a conduta cristã.
4. O sentido ~gôgico ou moral, que interpreta passagens de modo
a indicar as bases da esperança cristã, apontando para o cumprimento
futuro das promessas divinas da Nova Jerusalém.
Esse esquema costumava ser resumido por um dito mentrutárico em latim,
encontrado nas cartas de Agostinho da Dinamarca e de vários outros escritores do
início da Idade Média.

Cinera gesta docet, quid credos allegoria Morafis


quid agas, quid speres anagogia.
Uma tradução aproximada serra: "O [sentidol literal ensina sobre atos; o [sentido]
alegórico, ensina em quê crer; o [sentido] moral, ensina o quê fazer; o [sentido]
anagógico, ensina em quê esperar".
Uma possível deficiência foi evitada pela insistência de que não se deve crer em nada
cem base num sentido não-literal das, Escrituras a menos que essa crença possa, em
primeiro lugar, ser definida com base no sentido literal. Essa insistência na
primazia do sentido literal das Escrituras pode ser considerada uma crítica implícita
à abordagem alegórica adotada por Orígenes que permitia que os intérpretes das
Escrituras encontrassem no texto praticamente qualquer interpretação "espiritual"
que desejassem em qualquer passagem.
De que maneira, então, esse método em aplicado? A abrangência da Quadriga
bem como suas possíveis limitações podem ser compreendidas mais

facilmente através de um exemplo. No decorrer de sua exposição de Cantares


1.16, redigida em latim na primeira metade do século 12, Bernardo de
Clairvaux apresenta uma interpretação alegórica da oração "as traves da nos-sa
casa são de cedro, e os seus caibros, de cipreste". Essa referência é uma
excelente ilustração da maneira como, nessa época, o significado doutrinário ou
espiritual era "inserido" em passagens pouco promissoras. Observe espe-
cialmente o modo com que certos significados – muitas vezes praticamente sem
nenhuma ligação como texto em si – eram extraídos da passagem em questão.
As vantagens e desvantagens desse método ficam claras de imedia-to. Um
aspecto positivo é que se pode associar sentidos expressivos a passa-gens
bíblicas de outro modo aparentemente sem importância; um aspecto negativo é
que os significados em questão se baseiam com freqüência em fundamentos
frágeis ou mesmo arbitrários.

2.4.1 Bernardo de Clairvaux: Acerca do sentido alegórico das Escrituras

Pela "casa" devemos entendera grande assembléia de pessoas cristãs ligadas


àqueles que possuem poder e dignidade, governamos da igreja e do Estado, a
saber, as "traves". Estes mantêm o povo unido por meio de leis sábias e firmes;
de outro modo, se cada um operasse da maneira que lhe aprouvesse, as
paredes se inclinariam, e mirim. Os "caibros", firme-mente presos às traves e que
adiariam, a casa com realeza, devem ser enten-didos como a vida bondosa e
ordenada de um clero devidamente instruido, e com a ministrarão apropriada dos
ritos da igreja. Como, porém, o clero pode realizar seu trabalho, ou a igreja
cumprir suas incumbências, se os príncipes, como traves fortes e sólidas, não os
sustentarem por meio de sua boa vontade e munificência e os protegerem por
meio de seu poder?

Outra desenvolução de grande importância para a interpretação bíblica no final da


Idade Média foi o surgimento do Humanismo renascentista com sua ênfase
característica sobre, a volta às fontes originais em suas línguas originais. `Furtaremos
dessa questão mais detalha lamente no estudo de caso a seguir.

Estudo de caso 2.5 O Humanismo renascentista e a Bíblia


Em nosso resumo geral da Idade Média e do Renascimento, chamamos a atenção
para a importância do Humanismo em relação aos estudos bíblicos nos séculos
15 e 16 e mencionamos a importância das alterações de tradução para o
revisionismo teológico. A grande relevância desse tema requer um exa-me mais
detalhado da questão. Este estudo de caso visa apresentar as implica-ções dos
métodos e objetivos associados ao Renascimento para a teologia cristã

da época. Começamos investigando aquilo que um teólogo medieval


típico entenderia pela designação "a Bíblia".
Quando um teólogo medieval se refere às "Escrituras", trata-se quase
invariavelmente da tradução da Bíblia para o latim chamada de textos
ralearas (literalmente, o "texto comum") produzida por Jenômino, o grande
estudioso bíblico patrística no final do século 4° e início do século 5°. Apesar
de o termo "Vulgata" ter entrado em uso somente no século 16, é
perfeitamente aceitável empregá-lo para se referira essa tradução
específica da Bíblia para o latim preparada por Jeirôminto no final do século
4° e começo do século 5'. Esse texto foi transmitido aos leitores da Idade
Média de várias formas com variações consideráveis entre si. Terninho e
Alcuírio, estudiosos conhecidos da Idade das trevas, por exemplo, usaram
versões bem diferentes do texto da Vingam. Com o final da Idade das
trevas, iniciou-se no século 11 um novo período de atividade intelectual.
Tomou-se evidente que era necessário haver uma visão padronizada do
texto para atender aos novos interesses da teologia desenvolvidos como
parte desse renascimento intelectual. Se os teólogos baseassem sua
teologia em diferentes versões da Vulgata, o resultado inevitável seria uma
variação igualmente grande, se não maior, em suas conclusões.
Essa necessidade de padronização foi suprida por aquilo que parece ter
consistido nona empreendimento especulativo conjunto de alguns teólogos e
livreiros em Paris narrando 1226 que resultou na "versão de Paris" da
Vulgata. A essa altura, Paris era reconhecida como o principal centro de
teologia da Europa de modo que, apesar de suas várias imperfeições
evidentes, a "versão de Paris" da Vulgata se consolidou como texto
normativo. É preciso enfatizar que essa versão não foi comissionada nem
patrocinada por nenhuma figura eclesiástica: ao que parece, tratou-se de
um empreendimento puramente comercial. No entanto, a história é feita de
casualidades e convém observar que, na tentativa de basear sua teologia
nas Escrituras, os teólogos medievais se viram obrigados a equipará-tas
com uma edição comercial de qualidade relativamente, baixa de uma
tradução da Bíblia para o latim já repleta de imperfeições. O surgimento das
técnicas textuais e filológicas humanistas revelaria as discrepâncias infelizes
entre a Vulgata e os textos que esta supostamente traduzia – e, desse
modo, abriria caminho para referirias doutrinárias decorrentes.
Qual foi, então, a relevância do Humanismo re ei~ relação às várias ques- tões
teológicas referentes â autoridade, interpretaçã - o e aplicação da Bíblia?
Os elementos principais da contribuição humanista para essa questão
importante se encontram resumidos abaixo:

1. A forte ênfase humanista sobre a necessidade de uma


volta acifontes estabeleceu a primazia das Escrituras sobre seus
comentaristas, especialmente os da Idade Média. O texto das
Escrituras devia ser abordado diretamente, e não através de un,
sistema complicado de glosas e comentários.
2. As Escrituras deviam ser lidas diretamente em suas
línguas originais, e não na tradução em latim. Assim, o Antigo
Testamento devia ser estudado em

hebraico (exceto por alguns trechos em aramaico) e o Novo Testamento


de-via ser lido em grego. O interesse crescente dos humanistas pela língua
grega (que muitos humanistas consideravam suprema em sua capacidade
de trans-mitir conceitos filosóficos) consolidou ainda mais a importância
associada aos documentos do Novo Testamento. O ideal de emdição no final
do Renascimento em ser trumi, linguarum gnams "proficiente em três línguas
(hebraico, grego e ladra)". Faculdades trilingües foram fundadas em Alcalã
na Espanha, em Paris e em Wittemberg. O novo interesse nas Escrituras e
disponibilidade das mes-mas em suas línguas originais não tardou em
trazer a lume vários erros graves de tradução na Vulgata, alguns deles de
importância considerável.
3. O movimento humanista disponibilizou duas
ferramentas essenciais pua o novo método de estado da Bíblia. Em
primeiro lugar, tomou disponível o texto impresso das Escrituras em suas
línguas originais. 0 Nov~ lasmanernum omite, de 1516, produzido por
Erasmo, por exemplo, permitiu que os estudio-sos tivessem acesso direito
ao texto impresso do Novo Testamento em grego; enquanto Jacques Leficvre
d'Etaples forneceu o texto hebraico de uma série de Salmos importantes em
1509. Em segundo lugar, disportibilizou, manuais das línguas clássicas,
permitindo que os estudiosos aprendessem línguas que, de outro modo,
não poderiam ter sido adquiridas. A cartilha de hebraico de Reuchlin, de
rudimentis hebraicas ("Acerca dos Fundamentos do Hebraico", 1506) é um
excelente exemplo desse tipo de material. As cartilhas de grego eram
mais comuns: a imprensa de Aldus Marimais produziu uma edição da
gramática grega de Caseara em 1495, a tradução da famosa gramática grega
de Teodoro de Gaza foi publicada por Erasmo em 1516 e Melâncum
produziu uma cartilha magistral de grego em 1518.
4. O movimento humanista desenvolveu técnicas textuais
capuzes de determinar com precisão o melhor texto das Escrituras. Essas
técnicas foram usadas, por exemplo, por Lorenzo Valla para demonstrara
autenticidade da famosa Doação de Constáramo. Tomou-se possível
eliminar muitos dos erros textuais que haviam se infiltrado na edição
parisiense da Vulgata. Erasmo cho-cou seus contemporâneos ao excluir
uma pane considerável de um versículo da Bíblia (1 Jo 5.7) que não
conseguiu encontrar em nenhum manuscrito grego porjuljui Ia um acréscimo
posterior. A Vulgata traz: "Pois há três que dão teste-munho [no céu: o Pai, a
Palavra e o Espírito Santo; e estes três são um. E três são os que testificam
na terra:] o Espírito, a água e o sangue". O trecho do versículo entre
colchetes, omitido por Erasmo, certamente fazia parte da Vulgata – mas
não dos textos gregos que ela supostamente traduzia. Uma vez que essa
passa-gem havia se tornado um texto de comprovação importante da
doutrina da Trindade, muitos se indignaram com essa ação. Nesse caso, o
conservadorismo teológico triunfou sobre o progresso teológico em várias
ocasiões: até a famo-sa Versão King James de 1611, por exemplo, incluiu
esse versículo espúrio apesar da ausência de manuscritos gregos
relevantes.

S. A tendência dos humanistas era considerar os textos antigos como mediadores


de uma experiência que podia ser resgatada através de métodos literários
adequados. O tema adjantes incluía o conceito de resgatara experiência mediada
pelo texto. No caso do Novo Testamento, a experiência em questão em a da
presença e poder do Cristo ressurreto. Assim, as Escrituras eram lidas com uma
sensação de expectativa– acreditava-se que a vitalidade e empolgação da em
apostólica podiam ser recobradas no século 16 ao se ler e estudar as Escrituras
da maneira correta.
6. Em sua obra Enchiridion, que se tomou extrentamente influente em 1515,
Erasmo argumentava que os leigos biblicamente instruidos tinham a chave para a
renovação da igreja. Tanto o clero quanto a igreja desempenhavam um papel
secundário: o leitor leigo das Escrituras possuía, portanto, um guia mais do que
adequado para os fundamentos da fé cristã e, especialmente, para sua prática. Sem
dúvida, essas idéias, que foram amplamente difundidas entre os intelectuais leigos
da Europa, preparam o caminho para o programa de reforma escriturisfica de
Lutem e Zwinglio no período de 1519 – 1525,

A seguir, trataremos de duas passagens críticas nas quais os humanistas


encontraram erros de tradução e consideraremos as implicações teológicas das
mudanças de tradução introduzidas pelos acadêmicos humanistas.

1. Mateus, 4.17
Esse versículo descreve o início do ministério de Jesus e o conteúdo básico de
sua pregação nesse estágio. Na Idade Média, o evangelho de Mateus em
amplamente usado como fonte de ensino cristão em sermões paroquiais e, em
decorrência disso, esse versículo parece ter exercido um impacto considerável
sobre a visão popular da essência do Cristianismo. O texto em latim da Vingam
diz:

Exinde crepit tesas prasdicare, et dicere paeniwnüam agite


adInottinquavil cnim regram caelomm.

A passagem pode ser traduziria literalmente como: 'Então, Jesus começou a


pregar e dizer: `fazei penitência (paenitentiam agite), pois o reino do céu está
próximo–. A maneira natural de entender esse texto seria considerar que Jesus
estava se dirigindo àqueles quedesejavam respondera sua pregação acerca da vinda
do reino "fazendo penitência"– ou seja, usando o sistema penitencia) da igreja. Fica
clara a existência de uma ligação implícita entre a pregação de Jesus e a
instituição da igreja. No entanto, o original grego não tem esse significado. A
tradução mais natural dessa passagem do texto grego do evangelho de Mateus é
"arrependei-vos" e não "fazei penitência". Em outras palavras, o grego sugere uma
transformação pessoal do indivíduo, sem nenhuma ligação implícita com a
instituição ou com os sacramentos da igreja. Assim, a mudança de tradução teve
implicações teológicas consideráveis.

2. Lucas 1.28
Esse texto descreve o episódio que costuma ser chamado de "anunciação" - ou seja,
a declaração de Gabriela Maria de que ela teria um filho. O texto em latim da
Vingam diz:
et ingressos angelus at estio dixit: ave grafia plena Dominas tecum bendicta tu in
mulientais.
Uma tradução aproximada seria: "E o anjo entrou, e lhe disse: 'Salve, aquela
que e cheia de graça (ave grada plena) o Senhor é convosco, bendita sois vós
entre as mulheres—. Essa saudação tem implicações sérias, uma vez que indica
claramente que Maria deve ser considerada uma pessoa "cheia de graça". Na
teologia medieval, a graça era considerada caracteristicamente como sendo de
substância quase divina, e não uma atitude graciosa da parte de Deus. Assim, essa
passagem era entendida como uma indicação de que Maria era um vaso que
continha graça, sugerindo, portanto, que era possível ter acesso a tal graça em
tempos de aflição. Não há dúvida que esses temas se tomaram um aspecto
importante da espiritualidade mariana do final da Idade Média. No entanto,
estudiosos humanistas (como Erasmo) argumentaram que o ori-ginal grego do
evangelho não podia ser traduzido dessa maneira. A interpre-tação natural do
texto devia se referira Maria como "aquela que encontrou favor [com Deus]",
uma idéia que podia ser expressada pelo termo latino gratificala, em vez de
grafia plena. As implicações teológicas dessa mudan-ça de tradução tanto para
a teologia quanto para a espiritualidade eram, por-tanto, potencialmente críticas.

Estudo de caso 2.6 Alguns temas da teologia escolástica do final da


Idade Média

O final do período medieval testemunhou algumas desenvultições teoló-gicas


fascinantes. Elas costumam ser interpretadas (especialmente nos livros didáticos
mais antigos) como um confronto entre o "nominalismo" e o "Agosmuiunismo-
dentro da teologia escolástica do final da Idade Média. Nos últimos anos, porém,
tem-se feito grande progresso na compreensão da nature-za do Escolasticismo
medieval posterior, levando a um processo de reescrever a história intelectual do
início da Reforma. A seguir, procuraremos apresentar um relato atualizado das
tendências do Escolasticismo medieval posterior e uma análise de sua
relevância.
Uma geração anterior de estudiosos que escreveu no período de 1920 -1965
considerou o "nominalismo- uma escola religiosa de pensamento que tomou
conta da maior parte das faculdades de teologia das universidades européias no
final da Idade Média. Contudo, a identificação das características exatas dessa
teologia se mostrou uma tarefa extremamente difícil. Alguns teólogos "nominalistas"
(como William de Ockham, e Gabriel fiel) pareciam bastante

otimistas quanto às capacidades humanas, sugerindo que era possível ao


ser humano tomar todos os passos necessários para ingressar num
relacionamento com Deus. Outros teólogos "nominalistas" (como Gregório
de Rimini e Hugolino de Orvieto) pareciam profundamente pessimistas
quanto a essas mesmas capacidades, sugerindo que sem a graça de Deusa
humanidade era totalmente incapaz de ingressar nesse relacionamento.
Desesperados, os estudiosos começaram a falar de "diversidade
nominalista". Mas, por fim, encontrou-se a solução verdadeira para esse
problema: havia, na realidade, duas escolas diferentes de pensamento que
possuíam como característica comum apenas o anti-realismo. As duas
escolas adotaram uma posição nominalista com referência às questões de
lógica e teoria do conhecimento – mas assumiram posições teológicas
radicalmente distintas.

A expressão via moderna é aceita hoje como a melhor maneira de se referir ao


movimento conhecido outrora como "nominalismo", incluindo entre seus
expoentes pensadores importantes dos séculos 14 e 15 como William, de Ockham,
Piem d'Ailly, Robert Dotem e Gabriel fiel. Durante o século 15, a via moderna
começou a se expandir expressivamente em várias universidades européias como
as de Paris, Heidelberg e Erfun. Além de seu nominalismo filosófico, o
movimento adotou uma doutrina da justificação que muitos de seus críticos
consideraram —pelagiaria'. Tendo em vista a importância dessa forma de
Escolasticismo para o avanço teológico promovido por Lutem, explicaremos sua
visão da justificação de modo um pouco mais detalhado.

A característica central da soteriologia, ou doutrina da salvação, da via moderna é


uma aliança entre, Deus e a humanidade. O final da Idade Média testemunhou o
desenvolvimento de teorias políticas e econômicas baseadas no conceito de aliança
(entre um rei e seu povo, por exemplo) e os teólogos da via moderna perceberam
logo o potencial teológico dessa idéia. Assim como uma aliança política entre um
rei e o seu povo definia as obrigações do rei para com o povo, e vice-versa,
também uma aliança religiosa entre Deus e seu povo definia as obrigações de
Deus para com seu povo, e vice-versa. Evidentemente, não se tratava de aliança
negociada, mas sim, imposta unilateralmente por Deus. Os teólogos da via
moderna puderam desenvolver esse tema –já conhecido para os leitores do Antigo
Testamento – usando idéias emprestadas de seu próprio mundo político e
econômico.

De acordo com esses teólogos, a aliança entre Deus e os seres humanos definia as
condições necessárias para a justificação. Deus determinou que um indivíduo é
aceito sob a condição de cumprir, em primeiro lugar, cenas exigências. Essas
exigências foram resumidas na expressão em latim Lacere quod in se est,
literalmente, "fazer o que está dentro de ti" ou "fazer o seu melhor". Quando os
indivíduos cumpriam essa precondição, pelos termos da aliança Deus era
obrigado a acená-los. A máxima em latim usada com freqüência para expressar
essa idéia era: facienti quod in se est Deus mai denegar gradam: "Deus não
negará sua graça àqueles que fizerem o que está dentro deles".

O conhecido teólogo do final da Idade Média Gabriel Biel, que exerceu uma
influência claro sobre Lutem através de seus escritos, explicou que "fazer o
seu melhor` significava rejeitar o mal e procurar fazer o bem.
Nesse ponto, os paralelos entre a via moderna e Pelágio ficam evidentes.
Ambos afirmam que homens e mulheres são aceitos com base em seus
próprios esforços e realizações. Ambos afim~ que as obras humanas
colocam Deus sob a obrigação de recompensá-las. Tem-se a impressão de
que os escritores da via moderna estão simplesmente reproduzindo as
idéias de Pelágio ~o uma estrutura pactua] mais sofisticada. Mas, nesse
ponto, os teólogos da via moderna se valeram de uma teoria econômica
contemporânea para argumentar que não estavam, de maneira nenhuma,
repetindo Pelágio. Seu uso da teoria econômica medieval posterior é
fascinante, pois ilustra como os teólogos me-dievais estavam preparados
para explorar idéias extraídas de seu contexto so-cial. Vejamos esses
argumentos em más detalhes.
O exemplo clássico de invariabilidade citado por esses teólogos para ilus-trar a
relação cri" as boas obras e a justificação é o rei e a pequena moeda de
chumbo. A maioria dos sistemas de cunhagem medievais empregava
moedas de ouro e prata. Com isso, tinha-se a vantagem de garantir o valor das
moedas, mesmo que incentivasse a prática de "aparar' o metal precioso
das suas bor-das. A introdução das bordas serrilhadas, representa uma
tentativa de evitar a remoção de ouro ou prata dessa maneira. No entanto,
havia ocasiões em que os reis se viam numa crise financeira decorrente,
por exemplo, de uma guerra. Uma forma comum de lidar com essa crise era
tirar de circulação as moedas de ouro e prata e fundir o seu metal. O ouro e a
prata obtidos desse modo podiam, então, ser usados para financiar uma
guerra.
Entremeares, ainda era necessário fazer circular algum tipo de moeda.
Para suprir essa necessidade, cunhavam-se moedas de, chumbo que tinham o
mesmo valor das de ouro e prata. Apesar de seu valor inerente ser
insignifican-te, o valor que lhes era atribuído ou imposto era considerável. O rei
prometia substituir as moedas de chumbo por suas equivalentes de ouro ou
prata assim que a crise tivesse passado. Assim, o valor das moedas de
chumbo estava na promessa do rei de remi-las numa data posterior pelo valor
total que lhes havia sido atribuído. O valor de uma moeda de ouro é derivado
do ouro – mas o valor de uma moeda de chumbo é derivado da aliança real
segundo a qual essa moeda seria tratada como se fosse de ouro. Uma
situação semelhante existe, evidente-mente, na maioria das economias
modernas. As cédulas de papel, por exem-plo, têm um valor inerente
insignificante. Seu valor é derivado da promessa do banco que emitiu essas
notas de honrar o seu valor determinado.
Os teólogos da via moderna usaram essa analogia econômica para refu-tar
a acusação de Pelagianismo. Diante da sugestão de que estavam exageran-
do o valor das obras humanas (uma vez que pareciam considerá-las capazes
de tomar o indivíduo merecedor da salvação), responder= que não
estavam fa-zondo nada disso. Argumentaram que as obras humanas eram
como moedas de

chumbo, ou seja, de pouco valor inerente. Mas Deus havia


determinado por meio de uma aliança que as trataria como se fossem
de valor muito mais elevado, da mesma maneira como um rei podia
tratar uma moeda de chumbo como se fosse de ouro. Concordavam
que Pelágio, sem dúvida nenhuma, tratava as obras humanas como
se fossem de ouro e pudessem comprar a salvação. Mas eles
estavam argumentando que as obras humanas eram como chumbo: o
único motivo pelo qual possuíam algum valor era o fato de Deus ter se
comprometido a trará-tas como se fossem muito mais valiosas. A
exploração teológica da diferença entre o valor inerente e o valor
imposto das moedas serviu, desse modo, para tirar os teólogos da via
moderna de uma situação potencialmente difícil, mesmo que não
tenha satisfeito seus críticos mais severos, como Mar(inho Lutero.

É essa visão —pacival da justificação que se encontra por trás do avanço


teológico de Maninho Lutero, uma questão da qual voltaremos a
tratar num estudo de caso posterior. Falaremos agem de uma tendência
dentro da teologia escolástica do final da Idade Média que voltou a
adotar as idéias de Agostinho em oposição deliberada à via moderna —
o movimento conhecido como Schola Augustiniana Moderna a "escola
agostiniana moderna".
Sabe-se que a universidade de Oxford era um dos baluartes da via
moderna no início do século 14. Um grupo de pensadores, a maioria
deles sediados em Mertort College, desenvolveu as idéias de justificação
comentadas acima e características da via moderna. E foi em Oxford que
se deu a primeira reação a esse movimento. O indivíduo
responsável por essa reação foi Thomas Bradwardine que,
posteriormente, se tornou arcebispo de Canterbury e escreveu um
ataque furioso às idéias dos representantes da via moderna em Oxford
chamado De causa Dei contra Pelagium, "O pleito de Deus contra
Pelágio". Nesse livro, Bradwardine acusou seus colegas do Mertim
College de serem "pelagianos modernos" e desenvolveu uma teoria
da justificação que representa uma volta ás idéias de Agostinho
conforme estas podem ser encontradas em seus escritos
antipelagianos. Por mais importante que Oxford tenha sido como
centro teológico, a Guerra dos Cem anos acabou isolando essa
universidade do continente europeu.

Enquanto na Inglaterra as idéias de BriaIwarifine, foram desenvolvidas


por John Wycliffe, na Europa continental foram levadas adiante por
Gregório de Rimini na Universidade de Paris. Gregório tinha uma
vantagem particularmente importante em relação a Bradwardine: era
membro de uma ordem religiosa (a Ordem das Eremitas de Sto.
Agostinho, chamada normalmente de "Ordem Agostiniana"). E assim
como os dominicanos propagaram as idéias de Tomás de Aquino e os
franciscanos as de Duns Scotus, os agostinianos promoveram as idéias
de Gregório de Rimini. É essa transmissão de uma tradição agostiniana,
derivada de Gregório de Rimim, dentro da ordem agostimatari, que
costuma ser chamada de schola Augustinuma moderna, a "escola
agostiniana moderna". Suas características gerais podem ser descritas
da seguinte maneira.

Em primeiro lugar, Gregório adotou uma visão nominalista da questão dos


conceitos universais. Nesse sentido, apresenta mais características em co -
mum com os pensadores da via moderna como Robert Holcot ou Gabriel
Biel. Em segundo lugar, Gregório desenvolveu uma soteriologia, ou doutrinada
sal-vação, que refletia a influência de Agostinho. Observamos uma ênfase
sobre a necessidade da graça, sobre a natureza decaída e pecaminosa da
humanidade, sobre a iniciativa divina na justificação e sobre a
predestinação divina. Do começo ao fim, a salvação é considerada uma obra
inteiramente divina. Enquanto os proponentes da via moderna afirmavam que
o ser humano podia iniciar saiajustíficação "fazendo o seu melhor", Gregório
insistia que ajustifi-cação só podia ser iniciada por Deus. A via moderna
afirmava que a maioria dos recursos soteriológicos necessários (porém não
todos) se encontrava den-tro da natureza humana. Os méritos de Cristo
exemplificam um recurso fora da humanidade; a capacidade de deixar o
pecado e buscar a retidão é, para um escritor como Biel, um exemplo de
recurso soteriológico vital situado dentro da humanidade. Contrastando
claramente com essa posição, Gregório de Rimini argumentou que esses
recursos se encontravam exclusivamente fora da nature-za humana. Até
mesmo a capacidade de abandonar o pecado e buscara retidão era
decorrente da ação de Deus, e não da ação humana. É evidente que se
tratam de representações de duas maneiras completamente diferentes de
en-tender os papéis humano e divino riajustificação.
Apesar do Agostinianismo acadêmico de Gregório ser associado parti-
cularmente à ordem agostiniana, ao que parece, nem todos os
mosteiros agostivianos ou universidades adotaram tais idéias. Não
obstante, pode-se considerar que, em vários sentidos, os reformadores de
Wittenberg, com sua ênfase particular sobre os escritos antipelagianos de
Agostinho, redescoluiram e revitalizaram essa tradição. Uma vez que as idéias
de alguns reformadores importantes como Lutero ou Calvino parecem ser
paralelas àquelas desse Agostinianismo acadêmico, uma pergunta
freqüente é: Os reformadores fo-ram influenciados direta ou
indiretamente por essa tradição agostiniana? Apesar da complexidade
dessa questão não permitir que ela seja discutida em detalhes nesta
obra, pode-se observar que há excelentes motivos para sugerir que
ambos podem ter sido influenciados pelas correntes de pensa -mento do
final do Escolasticismo medieval (ainda que o grau e a natureza dessa
influência sejam controversos).
Podemos ilustrar isso considerando o caso de Calvino. João Calvino co-meçou
sua carreira acadêmica na Universidade de Paris na década de 1520.
Como estudos sucessivos têm deixado claro, a Universidade de Paris – e espe-
cialmente a faculdade onde Calvino estudou, o Collège Montaigu – era um
baluarte da via moderna. Durante os quatro ou cinco anos em que estudou na
faculdade de ciências em Paris, Calvino se deparou inevitavelmente com as
principais idéias desse movimento. Um ponto especialmente óbvio de
afinida-de entre Calvino e a teologia medieval posterior diz respeito ao
volumitansmo –

a doutrina segundo a qual as bases finais do mérito se encontram na vontade


de Deus, e não na bondade intrínseca de uma ação. A fim de investigar essa
doutrina, consideremos uma ação humana moral – dar dinheiro para uma
instituição de caridade, por exemplo. Qual é o valor meritório dessa ação? O
que ela vale aos olhos de Deus? A relação entre o valor moral (i.e., humano)
e meritório (Le., divino) das ações era uma preocupação central para os
teólogos do final da Idade Média. Duas abordagens distintas foram
desenvolvidas: a intelectualista e a voluntarista.
A abordagem intelectualista argumentava que o intelecto divino reconhecia o
valor moral inerente de um ato e o recompensava adequadamente. Havia uma
ligação direta entre o valor moral e o meritório. A abordagem subornariam
rejeitava essa idéia, argumentando que tomava Deus dependente de suas criaturas.
Não se podia considerar que o valor meritório de uma ação era predeterminado;
Deus devia ter a liberdade de escolher o valor que lhe aprouvesse. Assim, o valor
meritório de uma ação não se baseia em seu valor inerente; antes, se baseia
inteiramente no valor que Deus escolhe atribuir a tal ato. Esse princípio é resumido
na máxima de Duns Scotus (considerado de modo não inteiramente correto a
figura que iniciou a tendência ao voluntarismo no pensamento medieval
posterior) segundo a qual o valor de uma oferta é determinado inteiramente pela
vontade divina, e não por sua bondade inerente. A vontade divina escolhe impor
o valor que lhe apraz às ações humanas, preservando desse modo a liberdade
de Deus. No final da Idade Média, a posição voluntarista cresceu em aceitação,
especialmente dentro dos círculos agostimanos radicais. A maioria dos teólogos da
via moderna e da schola Ataivainiana moderna seguiu essa linha.
Nas Institutos, Calvino adotou exatamente essa posição voluntarista em relação
ao mérito de Cristo. A idéia fica implícita nas primeiras edições da obra, mas só
é declarada explicitamente na edição de 1559, depois da correspondência de
Calvino com Lélio Sócino tratando desse assunto. Em 1555 Calvino respondeu a
questões levantadas por Sócino com respeito ao mérito de Cristo e à certeza da fé
e, ao que parece, incorporou as respostas diretamente ao texto da edição de 1559
das Institutos.

A morte de Cristo na cruz é um foco central do pensamento e culto cristãos.


Mas por que a morte de Cristo deve ter uma importância tão grande? De que modo
a sua centralidade pode ser justificada? Por que se declarou que a morte de Cristo –
e não a de qualquer outro indivíduo – é inigualavelmente relevante? No decorrer
da correspondência, Calvino considera essa questão, conhecida tecnicamente
como ratio menti Christi (a base para o mérito de Cristo). Por que a morte de
Cristo na cruz é suficiente para comprar a redenção da humanidade? É algo
intrínseco à pessoa de Cristo, como Lutero argumentou? Para Lutero, a divindade
de Cristo era base adequada para declarar que sua morte era inigualavelmente
relevante. Ou será que Deus escolheu aceitar essa morte como sendo suficiente
para merecera redenção da humanidade?

Esse valor era inerente à morte de Cristo ou lhe era atribuído por Deus?
Calvino deixa clara a sua visão de que a base para o mérito de Cristo não se
encontra no fato de Cristo ter oferecido a si mesmo (o que corresponderia à
abordagem intelectualista do rabo menti Christi), mas sim, na decisão divina de
aceitar essa oferta como sendo de mérito suficiente para a redenção da hu-
manidade (que corresponde à abordagem voluntarista). Para Calvino "sem o bel-
prazer de Deus, Cristo não poderia ter merecido nada". Fica evidente a ligação
entre Calvino e a tradição voltantarista do final da Idade Média.

No passado, essa semelhança entre Calvino e Scotus foi considerada uma


indicação da influência direta de Scotus sobre o reformador. Na verdade,
porém, a ligação de Calvin parece ser com a tradição volumarista medieval
posterior, derivada de William de Gckham e Gregório de Rimini, em relação à
qual Scotus constitui um ponto de transição. Não se pode dar nenhum motivo para
a natureza meritório do sacrifício de Cristo, exceto que Deus decidiu be-
nevolentemente aceitá-lo como tal. Fica evidente, portanto, a ligação entre
Calvin e essa tradição posterior.

Essa observação oferece uma transição conveniente para a parte seguinte desta
obra que trata do período da Reforma propriamente dita.

CAPÍTULO 3

O PERÍODO DA REFORMA E O PERÍODO DA PÓS-


REFORMA,
1500-1750
Um dos períodos críticos da teologia cristã se iniciou no século 16, Os etilos
de teologia cristã associados â Idade Média deram lugar a novos paradigmas.
O acontecimento mais relevante foi a Reforma, um movimento que procurou
conduzira igreja ocidental a fundamentos mais bíblicos para seu sistema de
crenças, moralidade e estruturas. A princípio, a Reforma resultou na formação de
um grupo de igrejas protestantes na Europa.
Outra desenvolução importante desse período foi a expansão do Cristianismo
ocidental para além do seu contexto europeu. A chegada das comunidades
puritanas na baía de Massachusetts e de missionários espanhóis e portugueses
na América do Sul abriu caminho para mais um período de expansão do
Cristianismo que teria relevância teológica crescente durante a era moderna.

Começamos nossa discussão dessa parte crítica da história da teologia cristã


considerando as desenvoluções teológicas associadas à Reforma.

O termo "Reforma" é usado por historiadores e teólogos para se referir ao


movimento da Europa acidental que teve como expoentes Martinho Lutero, Huldrych
Zwingli (Zwinglio) e João Calvino e promoveu a reforma moral, teológica e
institucional da igreja cristã nessa região. A princípio, até cerca de 1525, pode-se
dizer que a reforma girou em tomo de Martinho Lutero e a Universidade de
Wittenberg, no nordeste da atual Alemanha. No entanto, o movimento também
ganhou força, inicialmente de modo independente, na cidade suíça de Zurique no
começo da década de 1520. Através de uma sucessão complexa de acontecimentos, a
Reforma de Zurique passou por valias mudanças políticas e teológicas e, por fim, se
tomou associada principalmente à cidade de Genebra (que agora é parte da atual
Suíça, mas que na época em uma cidade-Estado independente) e a João Calvino.

O movimento de Reforma foi complexo e heterogêneo e seu programa não


se ateve à reforma das doutrinas da igreja. Tratou de questões sociais,
políticas e econômicas fundamentais complexas demais para serem discutidas
detalhadamente na presente obra. O programa de Reforma variou de um
país para outro, sendo que questões teológicas centrais em um país (como,
por exem-plo, na Alemanha) muitas vezes tiveram pouco impacto em outros
lugares (como, por exemplo, na Inglaterra).
Em reação à Reforma, a igreja católica se mobilizou para colocar sua
própria casa em ordem. A instabilidade da Europa provocada pelas
tensões entre a França e a Alemanha não permitiu que o Papa da época
(Paulo III) convocasse um concílio de imediato. Foi só mais tarde que o
Concilio de Trento (1545) conseguiu se reunir. Esse concilio ficou incumbido de
esclarecer o pen-samento e práticas católicas e defendê-las de seus
adversários evangélicos.
A Reforma em si foi um fenômeno que se concentrou na Europa ociden-tal,
especialmente no centro e no norte da mesma, apesar do calvinismo ter
chegado ate a Hungria. No entanto, e migração de um grande número de
indi-víduos para a América do Norte, um movimento que se tomou mais
expressivo a partir de 1600, levou à exportação das teologias protestantes e
católica pós-Reforma para essa região. Harvard College é um exemplo dos
primeiros cen-tros de educação teológica da Nova Inglaterra, A Sociedade, de
Jesus também realizou operações missionárias amplas no Oriente, incluindo
a índia, a China e o Japão. A teologia cristã começou a se expandir
giudativanterate para além da sua base européia ocidental e se tomou um
fenômeno global –um aconteci-mento cuja consolidação final se deu no
período moderno, do qual trataremos mais adiante. Voltamos nossa atenção
agora para a terminologia relacionada ao período da Reforma e ao período
da Pós-Reforma.

UM ESCLARECIMENTO DE TERMOS

O termo "Reforma" é usado com vários sentidos e pode ser proveitoso


fazer uma distinção entre eles. Sua definição pode ser constituída de quatro
elementos e cada um deles será discutido resumidamente abaixo:
luteranismo; a igreja reformada, chamada com freqüência de "calvinismo";
a "Reforma radical", conhecida até hoje como "anabatismo"; e a "contra -
Reforma" ou "Refoima católica". Em seu sentido mais amplo, o termo
"Refom&' é usado para se referir aos quatro movimentos. Também é
usado num sentido mais restrito para indicar a "Reforma protestante",
excluindo a Reforma católica. Nesse caso, refere-se aos três movimentos
protestantes observados acima. Em várias obras acadêmicas, porém, o
temo "Refomd' é usado para se refe-rir aquilo que, por vezes, é chamado de
"Reforma magisterial" ou "Reforma principal" – Em outras palavras, a
Reforma associada às igrejas luterana e reformada (inclusive o
anglicanismo), excluindo assim, os anabafistas.

Convém explicara designação incomum "Rol= mgiswhal". Essa ex -


pressão chama a atenção para a maneira como os principais reformadores se

relacionavam com as autoridades seculares como os príncipes, magistrados e


conselhos municipais. Enquanto os reformadores radicais argumentavam
que essas autoridades não tinham nenhum direito sobre a igreja, os
reformadores mais moderados argumentavam que a igreja estava, pelo
menos até certo ponto, sujeita a esses órgãos governamentais seculares.
O magistrado não tinha direito de exercer autoridade dentro da igreja, da
mesma maneira como a igreja precisava contar coma autoridade do
magistrado para impor a disciplina, reprimir a heresia ou manter a ordem. A
expressão "Reforma magisterial" visa destacar essa relação estreita entre a
magistratura e a igreja que se encontra no reme do programa de reforma de
escritores como Martinho Lutero ou Martin Bucer. Esses três sentidos da
palavra 'Reforma" serão encontrados no decorrer das leituras de obras que
tratam da teologia cristã. A designação "Reforma magisterial" indica os dois
primeiros sentidos do termo (i.c., que abrangem o luteranismo e a igreja
reformada) considerados em conjunto, enquanto a designação "Refutara
radical" se refere ao terceiro (o anabatismo).
Devemos comentar sobre o termo "protestante". Esse temo é proveniente
do resultado da Dieta de Speyer (fevereiro de 1529), que votou contra a
tolerância ao luteranismo na Alemanha. Em abril do mesmo ano, seis
príncipes e catorze cidades alemãs protestaram contra essa medida
opressora, defendendo a liberdade de consciência e o direito das minorias
religiosas. O termo "protestante" vem desse protesto. Portanto, não é
estritamente correto aplicar a designação "protestante" a indivíduos antes de
abril de 1529, ou falar de acontecimentos anteriores a essa data como parte da
"Reforma protestante". O termo "evangélico" aparece na literatura como
referência ás facções reformadoras em Wittenberg e outros lugares (e.g.,
na França e na Suíça) antes dessa data. Apesar do termo "protestante" ser
usado com frequência para se referira esse período anterior, seu uso é,
estritamente falando, um anacronismo.

A Reforma luterana

A Reforma luterana é associada especificamente aos territórios alemães e ii


influência pessoal profunda de um indivíduo carismático -Martinho Martinho Lutero.
O reformador alemão se concentrou em traí" da doutrina da justificação que
constituía o cerne do seu pensamento religioso. A Reforma luterana foi, a prin-
cípio, um movimento acadêmico que se dedicou, acima de tudo, a reformar
o ensino de teologia na Universidade de Wittenberg. A universidade não era
uma instituição importante e as reformas introduzidas Lutero e seus
colegas dentro do corpo docente não atraíram muita atenção. Foram as
atividades pessoais de Lutero -como como a publicação das Noventa e Cinco
Teses (31 de outubro de 1517) - que atraíram interesse considerável e
chamaram a atenção de um público mais amplo para as idéias que circulavam
em Wittenberg.

As Noventa e Cinco Teses representavam um protesto contra a prática da


venda de indulgências visando levantar fundos para a reconstrução da basílica
de São Pedro em Roma. A teoria por trás da venda de indulgências é
confusa mas, ao que parece, se baseava na idéia de gratidão do pecador
pelo perdão de pecados. Ao receberem a garantia de que seus pecados
haviam sido perdoados pela igreja agindo em nome de Cristo, os
pecadores absolvidos teriam o desejo natural de expressar sua gratidão de
maneira prática. Aos poucos, a doação de dinheiro para instituições de
caridade e diretamente para fundos da igreja pas-sou a ser vista como a
forma normal de expressara apreciação por esse perdão. É preciso
observar que isso não era visto como a compra de perdão pelo peca-dor.
A oferta em dinheiro era resultante do perdão, e não uma condição para o
mesmo. Mas, no tempo de Lutero, esse costume se encontrava
distorcido e havia adquirido uma conotação completamente equivocada.
Ao que parece, as pessoas acreditavam que as indulgências eram uma
forma rápida e fácil de comprar o perdão dos pecados. Lutem protestou. O
perdão era uma questão de mudança de relacionamento entre o pecador
e Deus, e não uma oportunidade de especulação financeira. A idéia do
perdão pela graça havia se corrompido na idéia de compra do favor de
Deus.
Estritamente falando, a reforma luterana só teve início em 1522 quando
Lutem voltou para Wittenberg depois de seu isolamento forçado em
Wartburg. Lutem havia sido condenado por "falsidade doutrinária" pela
Dieta de Worms em 1521. Temendo que ele corresse perigo de morte,
certos defensores influ-entes do reformador o transferiram em segredo
para o castelo conhecido como Wartburg até que a ameaça à sua
segurança tivesse cessado. Durante essa ausência, Andreas
Bodenstein voo Karlstadt, um dos colegas acadêmicos de Lutem em
Wittenberg, começou um programa de reforma nessa instituição que
parecia ter se degenerado a um estado caótico. Convencido de que ele
era necessário para que a Reforma sobrevivesse à incompetência de
Karlstadt, Lidero saiu de seu refugio e voltou para Wittenberg.

Nesse momento, o programa de reforma acadêmica de Lutero se


trans-formou num programa de reforma da igreja e da sociedade. O
âmbito de ativi-dade de Lutero deixou de ser a esfera universitária das
idéias; ele passou a ser considerado o líder de um movimento de
reforma religiosa, social e política que, para alguns observadores
contemporâneos, pareceu abrir caminho para uma nova ordem social
e religiosa na Europa. Na verdade, o programa de re-forma de Lutero
foi muito mais conservador do que aquele associado a seus colegas
reformadores como Zwinglio. Ademais, ficou muito aquém do suces-
so esperado. O movimento permaneceu obstinadamente ligado aos
territórios alemães e - com exceção da Escandinávia - nunca chegou
a conquistar os centros de poder estrangeiros que pareciam estar
tão prontos para aderir as suas idéias. A visão de Lutero do papel do
"príncipe piedoso- (que, na verda-de, garantia o controle do monarca
sobre a igreja) não parece ter se mostrado tão atraente quanto o
esperado, especialmente diante das idéias republicanas de
pensadores reformados como Calvin. O caso da Inglaterra é
particular-mente ilustrativo: lá, como nos Países Baixos, a teologia
protestante que se tomou predominante foi a reformada, e não a
lutemos,

A Reforma calvinista

As origens da Reforma calvinista responsável pela constituição das igrejas


reformadas (como a igreja presbiteriana), se encontram em acontecimentos
ocorridos dentro da Confederação Suíça. Enquanto a Reforma luterana
teve suas origens num contexto acadêmico, a igreja reformada deve suas
origens a uma série de tentativas de retorrum a moral e o culto eclesiástico
(mas não necessariamente sua doutrina) de acordo com um padrão mais
bíblico. É preciso enfatizar que apesar de Calvino ter dado a esse estilo de
Reforma a sua configuração definitiva, suas, origens remontam a reformadores
mais antigos como Zwinglio e Heinrich Bullinger, sediados em Zurique, a
principal cidade da Suíça.

Apesar da maioria dos primeiros teólogos reformados, como Zwinglio,


serem provenientes de um contexto acadêmico, seus programas de
reforma não foram de natureza acadêmica. Antes, foram dirigidos à igreja
em cidades suíças como Zurique, Berna e Basiléia. Enquanto Lutero estava
convicto de que a doutrina da justificação era de importância central para o
seu programa de reforma social e religiosa, os primeiros pensadores
reformados demonstraram relativamente pouco interesse na doutrina em
geral, quanto mais em uma doutrina específica. Seu programa de reforma foi
institucional, social e ético, semelhante em vários sentidos às rervindicações,
de reforma provenientes do movimento humanista.
Costuma-se considerar que a consolidação da igreja reformada teve início
depois da morte de Zwinglio em combate (1531) com a estabilização da
Reforma de Zurique sob a coordenação de seu sucessor, Heimich Bullinger
e que se encenou com o surgimento de Genebra como seu centro de poder
e de João Calvino como seu principal porta-voz na década de 1550. A
mudança gradativa de poder dentro da igreja reformada (inicialmente de
Zurique para Berna, depois de Berna para Genebra) ocorreu no período de
1520 — 1560, estabelecendo, por fim, a predominância da cidade de Genebra,
de seu sistema político (republicanismo) e de seus pensadores religiosos
(inicialmente Calvino e, depois de sua morte, Teodoro Beza) dentro da
igreja reformada. Esse processo foi consolidado pela fundação da Academia
de Genebra (em 1559), uma instituição voltada para o treinamento de pastores
reformados.

O termo "calvinismo" costuma ser usado para se referir às idéias religio sas
da igreja reformada. Apesar de ainda ser amplamente empregado na litera-
tura relacionada à Reforma, trata-se de uma prática desestimulada nos dias
de hoje. Está cada vez mais claro que a teologia reformada do século 16 se
valeu de outras fontes além das idéias do próprio Calvino. Chamar o
pensamento reformado do final do século 16 e do século 17 de "calvinista"
sugere que era, essencialmente, o pensamento de Calvino e o consenso atual
é de que as idéias de Calvino foram modificadas sutilmente por seus
sucessores. Hoje em dia, o termo "reformado" é considerado preferível para se
referir às igrejas (especialmente na Suíça, Países Baixos e Alemanha) ou aos
pensadores religiosos
(como Teodoro Beza, William Perkins e John Owen) que se basearam no livro-
texto religioso célebre de Calvino As Instituras da Religião Cristã, ou ainda,
para os documentos eclesiásticos (como o conhecido Catecismo de Heidelberg)
com base nessa obra.
Das três alas que constituíram a Reforma protestante-luterana, reforma-da ou
calvinista e anabatista — a ala reformada se mostrou particularmente importante
para os países de língua inglesa. O puritanismo, que ocupa uma posição
preeminente na história inglesa do século 17 e é fundamental para as idéias
religiosas e políticas da Nova Inglaterra no século 17 e depois, é uma forma
específica de Cristianismo reformado. A fim de entendera história reli-giosa e
política da Nova Inglaterra ou as idéias de escritores como Jonathan Fdwwds, por
exemplo, é preciso compreender pelo menos alguns dos concei-tos teológicos e
parte da visão de mundo religiosa do puritanismo subjacente às suas aturdes
sociais e políticas.

A Reforma radical turtudiadsmo)


O termo "anabatista" significa literalmente "aquele que rebatiza" e se refere
àquele que foi, possivelmente, o aspecto mais distintivo da prática anabatista: a
insistência de que somente aqueles que haviam feito uma confis-são pessoal e
pública de fé podiam ser batizados. Ao que parece, os anabatistas surgiram ao redor
de Zurique como resultado das reformas de Zwinglio nessa cidade no início da
década de 1520. O grupo se formou em tomo de indivíduos (dentre os quais
podemos citar Conand Grebel) que argumentavam que Zwinglio não estava sendo
fiel aos seus próprios princípios reformadores. Ele pregava uma coisa e praticava
outra. Apesar de Zwinglio professar fidelidade ao princí-pio de sola scritaiora
"somente pelas Escrituras", Grebel argumentava que ele mantinha várias práticas
— inclusive a do batismo de crianças, o vínculo estreito entre a igreja e a magistratura,
e a participação dos cristãos nas guerras — que não eram sancionadas nem
ordenadas pelas Escrituras. O princípio de sola sentiram foi radicalizado por
pensadores como Grebel de modo a definir que os cristãos reformados só deviam
crer e praticar aquilo que em ensinado explicitamente nas Escrituras. Assustado com
essa reação, Zwinglio a considerou um movimento de desestabilização que visava
separara igreja reficrinadá, de Zurique de suas raízes históricas e romper sua
ligação com a tradição cristã do passado.

Vários elementos em comum podem ser observados dentro das diversas linhas
do movimento anabatista: uma desconfiança geral das autoridades ex-temas; a
rejeição do batismo de crianças em favor do batismo de cristãos adul-tos; a
posse comum de propriedades; e uma ênfase sobre o pacifismo e não-
resistência. Com relação a esse terceiro ponto: em 1527, os governos de Zurique,
Berna e Saint Gallen acusaram os anabatistas de crer que "reatam cristão
pode pagar ou cobrar juros ou honorários sobre uma soma de capital; que to-
dos os bens temporais são livres e comuns e que todos têm pleno direito de
propriedade sobre esses bens". Por esse motivo, o "anabatismo" é
com freqüência de "ala esquerda da Reforma" (Refundi H. Bainton) ou
"Rema-ma radical" (Cícorge flutuaria Williams). Para Williams, a "Reforma
radical" devia ser contrastada com a "Retomou magisterial" que ele
identificou de maneira ampla com Lutero e os movimentos reformados.
Cada vez mais, esses temos estão se tornando correntes entre os
acadêmicos reformados e é bem provável que você os encontre nos textos
mais recentes sobre o movimento.

A Reforma católica
Esse termo costuma ser usado panu, se referir ao reavivamento dentro do
catolicismo no período posterior ao início do Concílio de Trento (1545).
Nas obras acadêmicas mais antigas, o movimento é chamado com
frequência
de "Contra-Reforma": como o termo sugere, a igreja católica romana
desenvol-
veu meios de combatera Reforma protestante visando limitar sua
influência.
No entanto, está cada vez mais claro que, em parte, a igreja católica romana
se
opôs à Reforma refistriando-se também internamente a fim de remover
aquilo
que justificava as críticas protestantes. Nesse sentido, o movimento foi uma re-
forma da igreja católica e, ao mesmo tempo, uma reação à Reforma
protestante.
As mesmas preocupações por trás da Reforma protestante no norte da
Europa se manifestaram na renovação da igreja católica, especialmente
na
Espanha e Itália. O Concílio de Trento, o elemento principal da Reforma
cató-
lica, esclareceu os ensinamentos católicos acerca de várias questões
confusas
e introduziu mudanças há muito necessárias na conduta do clero, disciplina
eclesiástica, educação religiosa e atividade missionária. Esse movimento
den-
tro da igreja foi fortemente estimulado pela reforma de várias das ordens
re-
ligiosas mais antigas e pela fundação de outras ordens (como a dos
jesuítas).
Os aspectos de caráter teológico da Reforma católica serão considerados
em
relação aos seus ensinamentos sobre as Escrituras e a tradição, a
justificação
pela fé e os sacramentos. A Reforma católica acabou com vários outros
abusos
que haviam levado tanto humanistas quanto protestantes a exigirem
mudanças.

PRINCIPAIS TEÓLOGOS

A cru da Reforma é considerada, de modo geral, uma das mais criativas da


história da teologia cristã. Três teólogos costumam ser destacados por sua
relevância particular: Maninho Lutero, João Calvino e Zwinglio. Destes, os
dois primeiros são especialmente importantes. Apesar de Zwinglio ser
uma figura central por si mesmo, foi obscurecido pelo talento criativo e o
impacto teológico de Lutero e Calvino.

Martinho Lutero (1483 — 1546)


Martinho Lutero estudou na Universidade de Erfurt, dedicando-se inicialmente
â faculdade de ciências antes de começar seus estudos de teologia no

mosteiro agostiniano local. Foi nomeado professor de estudos bíblicos


na Universidade deWlacriberg em 1512 e lecionou sabre os Salmos
(1513 – 1515), Romanos (1515 – 1516), Gaiatas (1516 – 1517) e
Hebreus (1517 – 1518). Durante esse período, pode-se vera
teologia de Lutero se desenvolvendo em vários aspectos,
especialmente em relação à doutrina da justificação. Seu conta-to
próximo com textos bíblicos ao longo desses anos parece ter levado
Lutero a uma insatisfação crescente comas idéias da via moderna a
respeito dessa questão.
Lutero se expôs ao público pela primeira vez em 1517 quando publicou
suas Noventa e Cinco Teses sobre as Indulgências. Esse acontecimento
foi seguido do Debate de Leipzig Ounho-julho de 1519), no qual Lutero
adquiriu a reputação de crítico radical do Escolasticismo. Na obra Apelo â
Nobreza Cristã da Alemanha, Lutero argumentou com veemência em favor da
necessidade de reformas na igreja. A igreja do início do século 16 havia se
afastado do Novo Testamento tanto em sua doutrina quanto em suas
práticas. A linguagem incisi-va e espirituosa do reformador alemão tomou
algumas idéias teológicas extre-mamente sérias atraentes para o povo em
gemi. Incentivado pelo sucesso ex-traordinário de sua obra, Lutero escreveu
em seguida O Cativeiro Babilônico, da Igreja Cristã, Nesse texto vigoroso,
Lutero argumentou que o evangelho havia se tornado cativo da igreja
institucional. De acordo com ele, a igreja medieval havia aprisionado o
evangelho num sistema complexo de sacerdotes e sacramentos. A igreja
havia se transformado em senhora do evangelho quan-do, na verdade,
devia ser sua serva. Essa questão foi desenvolvida em mais detalhes em
A Liberdade de um Cristão, texto no qual Lutero explorou as im-plicações
para a vida cristã da doutrina da justificação pela fé.
É possível que Lutero tenha sido o reformador mais criativo. No entanto, seu
impacto teológico não se deve a nenhuma grande obra de teologia. A maioria
de seus escritos foi produzida em resposta a alguma controvérsia.
Somente os seus dois Catecismos podem ser considerados, de fato, uma
apresentação sis-temática dos conceitos fundamentais do pensamento
cristão. Sua "teologia da cruz", por exemplo, é apresentada
resumidamente num documento de 1518 (O Debate de Heidelberg) e teve
gomude, impacto sobre a teologia do século 20, conforme se pode observar
através de obras como Crucified God 10 Deus crucificado] de Jürgen
Moltmann.

João Calvino (1509 – 1564)


Calvino nasceu em Noyon, a nordeste de Paris, em 1509. Estudou na
Universidade de Paris, um meio acadêmico dominado pelo Escolasticismo,
e se mudou depois para a universidade humanista de Orienta, onde
estudou di-reito civil. Apesar de se mostrar inicialmente interessado em uma
carreira aca-dêmica, com vinte e poucos anos teve uma experiência de
conversão que o levou a se associar cada vez mais aos movimentos de
reforma em Paris que,

A segunda geração de reformadores tinha uma consciência muito maior do que a


primeira da necessidade de criar uma teologia sistemática. Calvino, a figure central
do segundo período da Reforma, viu a necessidade de uma obra que
apresentasse claramente as idéias da teologia evangélica, justificando-as com
base nas Escrituras e delendendo-as diante da crítica católica. Em 1536, ele pu-
blicou uma obra curta chamada lutirmias da Religião Cristã com apenas seis
capítulos. Durante os vinte e cinco anos seguintes, Calvino trabalhou nesse texto,
acrescentando capítulos e reorganizando seu conteúdo. Em sua edição final
(1559), a obra contava com oitenta capítulos divididos em quatro livros.
O primeiro livro trata de Deus como criador e da soberania de Deus sobre sua
criação. O segundo livro trata da necessidade humana de redenção e a mitarteira,
como esta foi realizada por Cristo, o mediador. O terceiro livro trata da maneira
como essa redenção é apropriada pelos seres humanos, enquanto o último livro
fala da igreja e de sua relação com a sociedade. Apesar de se sugerir com
frequência que a predestinação ocupa a posição central do sistema de Calvino,
esse não é o caso; o único princípio que parece governara organização de
Calvino do seu sistema teológico é uma preocupação em ser fiel às Escrituras e,
ao mesmo tempo, alcançar o máximo de clareza na apresentação.
Depois de encerrar suas atividades em Noyon no início de 1536, Calvino decidiu
se acomodar numa vida de estudo particular na grande cidade de
Estrasburgo. No entanto, o caminho de Noyon para Estrasburgo estava interdi-
tado em virtude da eclosão da guerra entre Francis 1 da França e o imperador
Carlos V. Assim, Calvino teve de fazer uma longa volta, passando pela cidade de
Genebra que havia acabado de obter a independência da cidade vizinha de
Savôia. Nessa época, Genebra se encontrava num estado de confusão, tendo
acabado de expulsar seu bispo local e iniciar um programa controverso de
refiontita dirigido pelos franceses Guillautim, Farel e Pieirc Vires- Ao ficarem
sabendo que Calvino estava na cidade, exigiram que ele ficasse lá e ajudasse na
causa da Reforma, pois precisavam de um mestre competente. Relutante,
Calvino concordou em ficar.

Suas tentativas de fornecer â igreja de Genebra uma base sólida de doutri-


na e disciplina foram recebidas com resistência intensa. Depois de uma série de
desentendimentos, os problemas culminaram com os acontecimentos da Páscoa
de 1538. Calvino foi expulso da cidade e tentou se refugiar em Estrasburgo.
Chegando em Estrasburgo dois anos depois do planejado, Calvino começou a
compensar pelo tempo perdido. Produziu em sucessão rápida uma série de obras
teológicas relevantes e, talvez o que foi mais importante, revisou e expandiu suas
Institutos (1539) e produzia a primeira tradução em francês dessa obra (1541).
Como pastor de uma congregação de língua francesa, Calvino adquiriu experi-
ência sobre os problemas práticos que os pastores reformados esuávam, enfren-
tando. Através de sua amizade com Mania Bucer, o reformador de Estrasburgo,
Calvino pôde desenvolver suas idéias sobre a relação entre a cidade e a igreja.
No tempo que Calvino passou fora de Genebra, a situação religiosa e polí-
tica se deteriorou. Em setembro de 1541 a cidade pediu que ele voltasse e
restaurasse sua ordem e segurança. O Calvino que regressou a Genebra em um
rapaz mais sábio e experiente, muito mais preparado para as tarefas que o
esperavam na cidade do que quando havia trabalhado lá três anos antes. Sua
experiência em Estrasburgo conferiu um novo realismo à sua teorização acerca
da natureza da igreja, fato que se refletiu em seus escritos subseqüentes nessa
área. Antes de seu falecimento em 1564, Calvino havia transformado Genebra
no centro de um movimento internacional que passou a levar o nome de seu
expoente. Ainda hoje, o calvinismo é um dos movimentos intelectuais mais
vigorosos e relevantes da História.

Huldrych Zwingli (1484 – 1531)


O refoturiador suíço Huldrych Zwingli, conhecido também como Zwinglio, estudou
nas universidades de Viena e da Basiléia antes de se dedicar ao imba-lho paroquial
no leste da Suíça. Fica claro que ele desenvolveu um interesse profundo pelo
programa do Humanismo cristão, especialmente pelos escritos de Erasmo e
passou a crer firmemente na necessidade de reforma na igreja de sua época. Em
1519, aceitou um cargo de ministério pastoral na cidade de Zurique onde usou o
púlpito de Grossaritutrister, a igreja mais importante da cidade, para divulgar um
programa de reforma. A princípio, a preocupação central desse programa era a
reforma da moral da igreja. No entanto, não de-morou a se ampliar de modo a
incluir críticas à teologia corrente da igreja, especialmente sua teologia
sacramental. O termo "zwingli no" é usado especi-almente para se referir à
convicção, associada a Zwinglio, de que Cristo não se encontra presente na
eucaristia, sendo que esta deve ser considerada, mais apropriadamente, uma
lembrança da morte de Cristo.

Zwinglio foi extremamente importante para a propagação inicial da Reforma,


especialmente na região leste da Suíça. Todavia, nunca chegou a causar o
mesmo impacto que Lutero ou Calvino, faltando-lhe a criatividade, do primeiro e a
abordagem sistemática do último. O leitor encontrará variações consideráveis na
grafia do nome próprio de Zwinglio, preferindo-se muitas vezes "Uliich" ou
"Huldreich" em vez de "Huldrych".

PRINCIPAIS DESENVOLUÇOES TEOLÓGICAS


A Reforma foi um movimento complexo, com UM programa extrema-mente
amplo. A discussão girou, em parte, em tomo das fontes da teologia cristã;
também tratou, em parte, das doutrinas resultantes da aplicação dessas fontes.
Consideraremos essas questões individualmente.

As fontes da teologia

A Reforma principal visava não apenas a instituição de uma nova tradição cristã,
mas também uma renovação e correção de uma tradição existente.

Argumentando que a teologia cristã era, em última análise, fundamentada nas


Escrituras, reformadores como Lutero e Calvino defenderam a necessidade de uma
volta às Escrituras como fonte primária e crítica da teologia cristã. O tema
"somente pelas Escrituras" (sola scriptura) se tornou característico dos
reformadores, expressando sua convicção básica de que as Escrituras eram a
única fonte necessária e suficiente da teologia cristã. No entanto, como vetemos
mais adiante, isso não significa que negam a importância da tradição.
Essa nova ênfase sobre as Escrituras teve várias conseqüências diretas, sendo
as seguintes de especial relevância:

1. Nos casos em que não era possível demonstrar que uma crença se
baseava nas Escrituras, essa crença devia ser rejeitada ou não devia ser imposta a
ninguém. Um exemplo disso foi a pouca atenção que os reformadores dedicaram
à doutrina da imaculada conceição de Maria (isto é, a crença de que, como mãe de
Jesus, Maria foi concebida sem a mácula do pecado). Para eles, essa doutrina não
tinha base escriturística e, portanto, a descartaram.
2. Uma nova ênfase passou a ser dada ao sanas público das Escrituras
dentro da igreja. Os sermões expositivos, o comentário bíblico e as obras de
teologia bíblica (como as Instauras de Calvino) passam a ser elementos
característicos da Reforma.

A doutrina da graça
O primeiro período da Reforma é dominado pelo programa pessoal de
Maminha Lutero. Convicto de que a igreja havia caído num Pelagianismo
involuntário, Lutero proclamou a doutrina da justificação pela fé a todos que lhe
deram ouvidos. A pergunta "Como posso encontrar um Deus cheio de
graça?" e o lema "somente pela fé" (sola file) ecoaram por grande parte da
Europa ocidental e atraíram ouvintes de uma parte considerável da igreja. As
questões envolvidas nessa doutrina são complexas e serão discutidas em
detalhes numa ocasião apropriada mais adiante.
A doutrina da justificação pela fé é associada de modo particular à Reforma
luterana. Calvino continuou a honrar essa doutrina, mas também iniciou
uma tendência que se tornou cada vez mais importante para a teologia
reformada posterior: a discussão acerca da graça em relação â doutrina da
predestinação, em vez da justificação. Para os teólogos reformados, a
declaração suprema da "graça de Deus" não estava no fato de Deus ter
justificado pecadores; antes, podia ser vista na eleição da humanidade por
Deus independente de realizações ou méritos antevistos. A doutrina da "eleição
incondicional" passou a ser considerada um resumo conciso da natureza ime-
recida da graça.

A doutrina dos sacramentos


Na década de 1520, já havia se consolidado nos círculos reformadores o conceito
de que os sacramentos eram sinais externos da graça invisível de Deus. A criação de
um elo entre os sacramentos e a doutrina da justificação (uma desenvolução
associada especificamente a Lutero e seu colega em Wittenberg, Felipe Melânclom
renovou o interesse na teologia dos sacramentos. Não tar-dou para que essa área
da teologia se tornasse um tema de grande controvérsia, com os reformadores
discordando de seus oponentes católicos quanto ao nú-mero e natureza dos
sacramentos, e Lutero e Zwinglio discutindo furiosamente se Cristo estava, de
fato, presente na eucaristia ou não.

A doutrina da igreja

Se a primeira geração de reformadores se preocupou com a questão da graça, a


segunda geração se voltou para a questão da igreja. Tendo rompido com a linha
principal da igreja católica no tocante à doutrina da graça, os reformadores se
viram sob pressão cada vez maior de desenvolver uma teoria coerente da igreja que
justificasse esse rompimento e desse uma base para as novas igrejas evangélicas
que estavam surgindo nas cidades da Europa oci-dental. Enquanto Lutero é
associado especificamente à doutrina da graça, Martin Bucer e João Calvira,
realizaram contribuições decisivas para o desen-volvimento dos conceitos
protestantes de igreja. Esses conceitos se tomaram, desde então, cada vez mais
relevantes para o Cristianismo globale serão con-siderados de modo detalhado
mais adiante nesta obra.
MOVIMENTOS PÓS-REFORMA
As Reformas, tanto a protestante quanto a católica, foram seguidas de um
período de consolidação teológica nos dois movimentos. Dentro do protes-tantismo,
tanto luterano quanto reformado (ou "calvinista"), iniciou-se o período conhecido
como "Ortodoxia", caracterizado por sua ênfase sobre normas e definições
doutrinárias. Apesar de simpatizar com essa tendência doutrinária, o puritanismo
ressaltou a aplicação espiritual e pastoral. Contrastando com isso, o pietistro se
mostrou hostil à ênfase sobre essa doutrina, acreditando que o destaque dado â
ortodoxia doutrinária obscurecia a necessidade de uma "fé viva" da parte dos
cristãos. Dentro do catolicismo romano pós-Tridentino, pas-sou-se a dar ênfase
cada vez maior à continuidade da tradição católica, consi-derando o protestantismo
inovador e, portanto, heterodoxo. Começamos nossa análise tratando do
surgimento da ortodoxia protestante.
A ortodoxia protestante

Parece ser uma regra geral da História que períodos de enorme criatividade são
seguidos de eras de estagnação. A Reforma não é exceção. Talvez num desejo
de preservar as idéias da Reforma, o período Pós-Reforma testemunhou o
desenvolvimento de uma abordagem fortemente escolástico â teologia.
As idéias dos reformadores foram codificadas e perpetuadas através do
desenvolvimento de uma série de apresentações sistemáticas da teologia
cristã.
No período depois da morte de Calvino uma nova preocupação com o
método – isto é, coma organização sistemática e dedução coerente de idéias –
ganhou impulso. Teólogos reformados se viram obrigados a defender suas
idéias diante de oponentes luteranos e católicos. O aristotelismo, que
Calvino encarou com certa suspeita, passou a ser considerado um aliado.
Tomou-se cada vez mais importante demonstrar a solidez e coerência
interna do calvinismo. Em decorrência disso, muitos escritores calvinistas, se
voltaram para Aristóteles na esperança de que seus escritos sobre método
oferecessem indicações de como a teologia reformada poderia ser
fundamentada numa base racional mais firme.

Quatro características da nova abordagem à teologia que resultou desse


esforço podem ser observadas.

1. Atribui-se à razão humana um papel central na investigação e


defesa da teologia cristã.
2. A teologia cristã foi apresentada como um sistema logicamente
coerente e racionalmente defensável, derivado de deduções silogísticas com
base em axiomas conhecidos. Em outras palavras, a teologia começou dos
princípios iniciais e passou à dedução de suas doutrinas com base nesses
princípios.
3. Considerou-se que a teologia tinha como base a filosofia
aristmélica e, particularmente, as idéias de Aristóteles acerca da natureza
do método; escritores reformados posteriores podem ser descritos mais ade-
quadamente não como teólogos bíblicos, mas sim, filosóficos.
4. A teologia se voltou para questões metafísicos e
especulativos, especialmente aquelas relacionadas à natureza de Deus,
à vontade de Deus para a humanidade e a criação e, acima de tudo, para a
doutrina da predestinação.
Assim, o ponto de partida da teologia passou a ser um conjunto de
princípios gerais, caíamo acontecimento histórico específico. 0 contrate com
Calvino fica claro. Para Calvino, a teologia girava em tomo e era derivada de
Jesus Cristo, um acontecimento histórico do qual as Escrituras dão
testemunho. Mas pua o calvinismo posterior, os princípios gerais
assumiram a posição central que, até então, havia pertencido a Cristo.
Um ponto extremamente importante aqui diz respeito a situação política da
Europa, especialmente da Alemanha, no final do século 16. Na década de
1550, o luteratinisnio e o catolicismo romano estavam consolidados em diferen-
tes regiões da Alemanha. Havia se desenvolvido um multasse religioso no qual
uma expansão do luterantismo para as regiões católicas não era mais possível.
Assim, os escritores luteranos se concentraram em defender o luteranismo em
âmbito acadêmico, demonstrando sua coerência interna e fidelidade às Escri-
turas. Acreditavam que, ao mostrar que o luterarástrio era intelectualmente res-
peitável, poderiam torneá-lo atraente para os católicos desiludidos com seu pró-
prio sistema de crenças. Os escritores católicos responderam com obras cada
vez mais sofisticadas de teologia sistemática, lançando mão dos escritos de
Tomás de Aquino. A Sociedade de Jesus (fundada em 1534) se estabeleceu
rapidamente como principal força intelectual dentro da igreja católica roma-
na. Seus escritores mais expressivos, como Roberto Belarmino e Francisco de
Suarei, fizeram contribuições importantes para a defesa intelectual do
catolicismo romano.

A situação na Alemanha se complicou ainda mais nas décadas de 1560 e 1570, ii


medida que o calvinismo começou a penetrar territórios outrora luteranos. Três
denominações cristãs principais se encontravam firmemente estabelecidas na
mesma região: linteranismo, calvinismo e catolicismo roma-no. As três estavam
sob pressão considerável para se identificar. Os luteranos se viram obrigados a
explicar de que maneira diferiam, por um lado, dos calvinistas e, por outro, dos
católicos romanos. As doutrinas se mostraram a maneira mais confiável de
identificar e explicar essas diferenças: "Cremos nisto, mas não cremos naquilo". O
período de 1559 — 1622, caracterizado por sua nova ênfase sobre a doutrina,
costuma ser chamado de "período da ortodoxia". Uma nova forma de
Escolasticismai começou a se desenvolver dentro dos círcu-los teológicos
protestantes e católicos romanos à medida que essas duas denomi-nações
procuravam demonstrara nacionalidade e sofisticação de seus sistemas.

Em vários sentidos, o luteranismo e o calvinismo eram bastante pareci-dos. Assim,


ambos afirmavam ser evangélicos e rejeitavam mais ou menos os mesmos
aspectos centrais do catolicismo medieval. No entanto, era preciso fazer distinção
entre eles. Na maioria dos pontos da doutrina, os luteranos e calvinistas
concordavam de modo geral. Havia, porém, uma questão na qual discordavam
radicalmente: a doutrina da predestinação. A ênfase que os calvinistas, deram à
doutrina da predestinação no período de 1559 — 1662 refle te, em parte, o fato de
que essa era a doutrina que os distinguia mais claramen-te de seus colegas
formares.

A importância desse ponto pode ser vista com facilidade ao se comparar


a situação da Alemanha com a da Inglaterra. A Reforma inglesa do
século 16 sob Henrique VIII (1509 — 1547) não teve quase nenhuma
relação com seu equivalente alemão. Na Alemanha, havia uma luta de
protetorado entre luteranos; e católicos romanos, cada um procurando
ganhar influência numa região con-corrida. Na Inglaterra, Henrique VIII
simplesmente declarou que haveria ape-nas uma igreja nacional em
seu reino. Por decreto real, só podia haver ma igreja cristã na
Inglaterra. A igreja reformada inglesa não estava sendo pres-sionada a
se definir em relação a outros grupos cristãos da região. A maneira como
a Reforma inglesa se deu inicialmente não exigiu nenhuma definição
própria de caráter doutrinário, uma vez que a igreja na Inglaterra foi
definida em termos sociais exatamente d a mesma maneira antes e
depois da Reforma, não obstante as alterações políticas
introduzidas. Isso não significa que não houve nenhuma discussão
teológica na Inglaterra no tempo da Reforma; antes, indica que tais
discussões não foram consideradas de importância decisiva. Não
foram vistas como debates identificadores.
Uma vez que havia se separado da igreja católica medieval, a igreja luterana da
Alemanha se viu obrigada a definir sua existência e limites. A igreja conti-
nuou a existir ao redor das regiões luteranas, forçando o luteranismo a justificar
sua existência continuamente. A igreja herniquina da Inglaterra, por outro lado,
encontrava-se suficientemente bem definida como unidade social, não necessi-
tando, portanto, de uma definição mais clara em seu nível doutrinário.
A situação na Inglaterra não sofreu grandes alterações durante o reinado de
Elizabete 1.O "Ato de Uniformidade" e o "Ato de Supremacia", ambos de
1559, determinam que haveria somente uma igreja cristã no reirio: a igreja da
Inglaterra, que manteve o monopólio da igreja pré-Reforma e, ao mesmo
tempo, substituiu-a por uma igreja que risconhecia, a autoridade real, e não
papal. O catolicismo romano, o luteranismo e o calvinismo–as três igrejas
que estavam lutando para conquistar o continente europeu – não seriam
tolerados na Inglaterra. Assim, não havia nenhum motivo específico paro a
Igreja da Inglaterra se preocupar com questões doutrinárias. Elizabetc, tomou
as medidas recessarias para garantir que a Igreja da Inglaterra não tivesse

rivais. Um dos propósitos da doutrina é separar – e não havia nada de que a


Igreja da Inglaterra precisava se separar. A Inglaterra se encontrava isolada
dos fatores que tomaram a doutrina uma questão de tanta importância na
Europa continental na Reforma e na Pós-Reforma.

As duas desenvoluções a seguir foram particularmente


relevantes nesse período.
1. Uma nova preocupação como método.
Refiarmarlimes. como Lutero e Calvino demonstraram relativamente
pouco interesse nas questões de método. Para eles, a teologia dizia
respeito, acima de tudo, à exposição das Escrituras. Na verdade, as
Instituías de Calvino podem ser consideradas uma obra de `teologia
bíblica", reunindo as idéias fundamentais das Escrituras numa
apresentação organizada. No entanto, nos escritos de Te adoro Beza,
o sucessor de Calvino na direção da Academia de Genebra (um
instituto de treinamento para pastores calvinistas de toda a Europa),
nota-se uma nova preocupação com questões de método, conforme
observado acima. A organização lógica do conteúdo e seu
embasamento nos princípios iniciais passam a ser de suma
importância. O impacto desse avanço talvez fique mais evidente na
maneira como Beza lida com a doutrina da predestinação, conforme
observaremos mais adiante.
2. 0 desenvolvimento de obras de teologia
sistemática. O crescimento do Escolasticismo dentro dos círculos
teológicos luteranos, calvinistas e cato190

ticos romanos levou ao surgimento de obras amplas de teologia sistemática,


comparáveis em vários sentidos à Suntina Theologiae de Tomás de
Aquino. Essas obras visavam servir como exposições sofisticadas e
abrangentes da teologia cristã, demonstrando as virtudes de suas idéias e as
deficiências das idéias de seus oponentes.

Os seguintes escritores devem ser observados por sua importância parti-


cular durante esse período.

1. Teodoro Beza (1519-1605), conhecido escritor calvinista, trabalhou


como professor na Academia de Genebra de 1559 a 1599. Os três volumes
de sair obra Tractationes theologicae ('Tratados Teológicos", 1570 – 1582)
fazem uma exposição racionalmente coerente dos principais elementos da
teologia reformada, usando a lógica aretotélica. O resultado é uma exposição
bem-fundamentada e racionalmente defensável da teologia de Calvino, na
qual algumas pendências dessa teologia (principalmente a doutrina da
predestinação e expiação) são esclarecidas. Alguns escritores sugerem que a
preocupação de Beza com a clareza teológica o leva a interpretar Calvino
incorretamente em vários pontos críticos; outros argumentam que Beza
simplesmente organizou a teologia de Calvino, concluindo questões que
haviam ficado em aberto.
2. Johann Gerhard (1582 – 1637), escritor luterano, foi nomeado professor
de teologia em Jena em 1616, onde permaneceu durante o restante de sua
carreira na área do ensino. Gerhard reconheceu a necessidade de uma
apresentação sistemática da teologia luterana diante da fone oposição
calvinista. A forma básica das obras luteranas de teologia sistemática havia
sido definida em 1521 quando Felipe Melâneton publicou a primeira edição
de sua Loci communes ("Lugares Comuns"), na qual os assuntos eram
tratados topicamente, e não sistematicamente. Gerhard deu continuidade a
essa tradição, mas se sentiu livre para lançar mão cada vez mais de obras
aristotélicas sobre a lógica. Sua obra Loci conunimes theologici ("Lugares
Comuns Teológicos", 1610 –1622) foi, durante muitos anos, um clássico da
teologia luterana.

Catolicismo romano

O Concilio de Trento (1545 – 1563) representou a resposta definitiva da igreja


católica à Reforma. As realizações do Concilio podem ser consideradas de
duas formas. Em primeiro lugar, o Concílio corrigiu os problemas internos da
igreja que haviam contribuído de forma substancial para o desenvolvimento
da Reforma. Foram tomadas medidas para acabar coma corrupção e o
abuso dentro da igreja. Em segundo lugar, o Concílio definiu as diretrizes dos
ensinamentos católicos em áreas centrais da fé cristã, inclusive numa série
de questões que haviam se tomado controversas como resultado da Reforma–
como a relação entre as Escrituras e a tradição, a doutrina da justificação, e a
natureza e o papel dos sacramentos. Em decorrência disso, o catolicismo
romano estava devidamente preparado para encarar os desafios de seus
oponentes protestamos. As últimas décadas do século 16 testemunharam o
surgimento de uma crítica segura, contínua e expressiva do protestantismo por
parte da igreja católica.

Um dos sinais mais claros dessa nova segurança pode ser visto nos estudos
pautuísticos realizados pelos católicos. O apelo dos protestantes ao período
patrística foi, inicialmente, tão eficaz que alguns dos escritores católicos
da metade do século 16 parecem ter considerado escritores patrísticos
como Agostinho como sendo prato-protestantes. No entanto, nos últimos
trinta anos desse século os escritores católicos se romanos tomaram mais
seguros da ligação entre eles próprios e os escritores pairsticos. A obra mais
importante que estabeleceu essa ligação foi o texto de Marguérin de Ia
Bigne, Bibliotheca Patrum (-Biblioteca dos Patriarcas"), cujos oito volumes
em formato in-fólio foram publicados em 1575. Essa obra foi seguida de
contribuições importantes de escritores como Antoura, Amauld e Pierre Nicole.
Essa nova certeza da ligação com a tradição católica levou a uma ênfase
crescente sobre a constância dos ensinamentos, católicos. O escritor mais co-
nhecido a desenvolver essa ênfase foi Jacques-Bénigne Bossuet (1627 -
1704), cuja Histoire des variations des églises protestamos (-História das
Variações das Igrejas Protestantes") se tomou uma ama importante nas
discussões entre católicos protestantes. Para Bossuet, os ensinamentos da
igreja haviam permanecido os mesmos ao longo das eras. Uma vez que os
protestantes haviam se separado desses ensinamentos, quer pela introdução
de inovações ou pela negação de alguns dos seus elementos centrais,
haviam perdido o direito de serem considerados ortodoxos. Os apóstolos
haviam transmitido aos seus sucessores um depósito fixo de verdades que
havia sido mantido ao longo de gerações sucessivas.

Os ensinamentos da igreja são sempre os mesmos... O evangelho nunca é


diferente daquilo que em antes. Portanto, se alguém em algum mo
mento disser que a fé inclui algo que não foi considerado como sendo "da
fé" ontem, isto é heterodoxia, ou seja, qualquer ensinamento diferente da
ortodoxia. Não lia dificuldade em identificar os falsos ensinamentos, ou em
argumentara respeito dos mesmos: são reconhecidos de imediato, sempre
que aparecem, simplesmente pelo fato de sereia novos.

O lema romper cadete ("sempre o mesmd') se tomou um elemento importante


nas polêmicas do catolicismo contra o protestantismo. Para Bossuet, era fácil
demonstrar que o protestantismo não passava de crin, inovação - e que,
justamente por isso, em heterodoxo.

Dos teólogos que alcançaram preeminência durante esse período me


si da teologia católica, o mais importante é, provavelmente, Roberto
Belarmino (1542 - 1621), que ingressou na Sociedade de Jesus em 1560
e, subseqüentemente, tomou-se professor de polêmica teológica em
Roma em 1576. Permaneceu nesse cargo até 1599 quando foi nomeado
cardeal. Costuma-se considerar como sua obra mais relevante a
Disputationes de Controvervie, Christianae pilei ("Discussão sobre as
controvérsias da fé cristã", 1586 — 1593), na qual ele argumentou
energicamente em favor da racionalidade da teologia católica em oposição
aos seus críticos protestantes (tanto luteranos quanto calvinistas).

Puritanismo
Um dos principais estilos de teologia associada aos países de língua inglesa
surgiu na Inglaterra no final do século 16. Pode-se definir melhor o puritanismo
como uma versão da ortodoxia reformada que deu ênfase particular aos aspectos
experienciais e pastorais da fé. Fica claro que os escritos dos teólogos puritanos
mais preeminentes como `Xilharra Perkins (1558 — 1602), Wilharia Ames (1576 —
1633), e John Owen (1618 — 1683) são fortemente influenciados pelas idéias de
Beza, especialmente com relação aos seus ensinamentos acerca da extensão da
morte de Cristo e da soberania divina na providência e na eleição.

Nos últimos anos, os estudiosos têm se concentrado de forma particular na


teologia pastoral do puritanismo. Figuras do início do século 17 como Laurence
Chadernon, John Dod e Arthur Hildersam tinham como objetivo desenvolver um
enfoque teológico para questões pastorais. Considera-se que a tradição pastoral
puritana chegou ao seu auge no ministério e nos escritos de Richaind Baxter (1615
— 1691). A reputação de Baxter se deve, em parte, à sua obra ponderosa Christian
Director ' v ("Diretório Cristão", 1673), cujas quatro partes apresentam uma visão
da teologia praticada na vida cristã diária. No entanto, sua obra mais célebre de
teologia pastoral continua sendo Refornied pastor ("Pastor Reformado", 1656), na
qual ele trata das questões ministeriais de um ponto de vista puritano.

Apesar do puritanismo ter sido uma força teológica e política importante na


Inglaterra do início do século 17, seu desenvolvimento mais expressivo se deu no
Novo Mundo. As políticas religiosas repressivas do rei Carlos I obrigaram muitos
puritartos, a deixara Inglaterra e estabelecer colônias na América do Norte. Em
decorrência disso, o puritanismo exerceu uma forte influência sobre o Cristianismo
norte-americano durante o século 17. O teólogo puritano norte-americano mais
expressivo foi Jonathan Edwards (1703 — 1758), que combinou uma ênfase puniam
sobre a soberania divina com uma disposição de tratar das novas questões que
estavam sendo levantadas com o crescimento de uma cosmovisão racional.
Apesar de Edwards ser muito requisitado como guia espiritual, especialmente
depois do "Grande Despertar" (no qual ele teve um papel preeminente e,
provavelmente, decisivo), a expressão pratica de sua teologia se encontrava
particularmente em sua ética. Sua série de sermões sobro 1 Coramos 13 foi
publicada em 1746 como título A Caridade e Seus Frutos.

Em certos sentidos, especialmente com relação às questões da experiência cristã,


o puritanismo apresenta afinidades com o pietismo, do qual trataremos agora.

Pietismo
À medida que a ortodoxia ganhou influência dentro do protestantismo, suas
deficiências também se tomaram mais claras. No sentido mais positivo, a
ortodoxia se concentrava na defesa racional das asserções cristãs da
verdade e na precisão doutrinária. No entanto, muitas vezes isso se mostrava
na forma de uma preocupação acadêmica com sutilezas lógicas, e não num
interesse pela relação entre teologia e as questões do quotidiano. O termo
"pietismo" é derivado da palavra latina pieias (cuja tradução mais exata é
"devoção" ou "piedade") e, inicialmente, era usado como termo pejorativo
pelos oponentes do movimento para descrever sua ênfase sobre a
importância da doutrina cristã para a vida diária dos cristãos.
Costuma-se considerar que o movimento pietista teve início com a publicação
da obra Pia desideria ("Desejos Piedosos", 1675) de Philip Jacob
Spener. Nessa obra, Spener lamentava o estado da igreja luterana alemã
depois da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), e apresentava propostas para
a revitalização da igreja de sua época. Dentre essas propostas, a principal
era uma nova ênfase sobre o estudo bíblico pessoal. Os teólogos
acadêmicos trataram as propostas de Spener com menosprezo; não obstante,
elas se mostraram influentes em círculos eclesiásticos da Alemanha,
refletindo uma crescente desilusão e impaciência com a esterilidade da
ortodoxia diante das condições sociais chocantes que o povo teve de
suportar durante a guerra. Para o pietismo, uma reforma doutrinária devia
sempre ser acompanhada de uma reforma de vida.
O pietismo se desenvolveu em várias direções, especialmente na Ingla terra
e na Alemanha. Dentre os expoentes do movimento, convém observar dois
em particular.

1. NikoIme, Ludwig Graf voa Zinzendorf (1700 - 1760) que fundou a


comunidade pietista conhecida como —Herribuitei`, assim chamada por causa
da vila de ferrahiu na Alemanha. Aficirado, daquilo que ele considerava um
mcionalismo árido e uma ortodoxia estéril de sua época, Zinzendorf enfatizou
a importância de uma "religião do coração", baseada num relacionamento
íntimo e pessoal entre Cristo e o cristão. Uma nova ênfase foi dada ao
papel do "sentimento" (em contraste com a razão ou a ortodoxia doutrinária)
na vida cristã, podendo-se considerar que essa ênfase lançou os alicerces
para o romantismo posterior do pensamento religioso alemão. A forma como
Zinzendorf destacava uma fé pessoalmente apropriada é expressada no
lema "uma fé viva", que se opunha à aquiescência à ortodoxia protestante.
Essas idéias seriam desenvolvidas em uma direção por F. D. E.
Schleiermacher e em outra por John Wesley, ao qual pode ser atribuída a
introdução do pietismo na Inglaterra.
2. John Wesley (1703 – 1791) fundou dentro da igreja da Inglaterra o
movimento metodista que, subseqüentemente, deu origem ao
metodismo como denominação independente. Convicto de que lhe
"faltava a fé somente pela qual somos salvos", Wesley descobriu a
necessidade de uma "fé viva" e o papel da experiência na vida cris tã
através da sua conversão num encontro na rua Aldersgate em maio
de 1738, no qual ele sentiu seu coração ser "estranhamente
aquecido". A ênfase de Wesley sobre o lado experiencial da fé cris tã,
que contrastava claramente com a falta de vivacidade do deísmo inglês
contemporâneo, levou a um grande reavivamento religioso na
Inglaterra.

Apesar de suas diferenças, vários ramos do pietismo foram bem-sucedi-


dos em tomar a fé cristã relevante para o mundo experiencial dos
cristãos comuns. O movimento pode ser considerado uma reação à
ênfase unilateral sobre a ortodoxia doutrinária e em favor de uma fé
relacionada aos aspectos mais profundos da natureza humana.

NOMES, PALAVRAS E EXPRESSÕES MAIS RELEVANTES

anabatismo ortodoxia
calvinista pietismo
confessionalismo protestante
deísmo puritano
evangélico Reforma católica
luterano reformado
metodismo

PERGUNTAS (3)
1. Qual o significado do termo "Refoma'?
2. Qual reformador é associado especificamente à doutrina da
justificação somente pela lê?
3. Qual foi a importância do Humanismo para as origens e
desenvolvimento da Reforma?
4. Por que os reformadores deram tanta ênfase â revisão das
doutrinas existentes na igreja?
5. Que fatores levaram ao desenvolvimento (a) do
confessionalismo e (b) do pietismo?
6. Por que os escritores católicos romanos pós-Midentirais (Concilio
de Tremo) deram tanta ênfase à ligação com a igreja primitiva?

Estudo de caso 3.1 A Bíblia e a tradição na Reforma

O século 16 testemunhou uma discussão importante acercada autoridade e


interpretação da Bíblia que continua a ser interessante e relevante nos dias de hoje.
A Reforma questionou os conceitos estabelecidos quanto a esses temas e forçou
uma discussão sobre um assunto que até então não havia sido considerado
particularmente importante. Este estudo de caso investigará essa discussão e as
posições associadas a três participantes: as Reformas magisterial, radical e católica,
respectivamente.
Nas palavras de William Chillingworth, "A Bíblia, e somente a Bíblia, digo eu, é
a religião dos protestantes-. Essa declaração famosa desse protestante inglês do
século 17 resume a atitude da Reforma em relação às Escrituras. Calvinis afirmou
esse mesmo princípio de modo não tão memorável, porém mais completo: "Que
seja este, então, um axioma inequívoco: nada pode ser admitido na igreja como
Palavra de Deus senão aquilo que está contido, primeiro na Lei e nos Profetas, e
depois nos escritos dos Apóstolos; e não há nenhum outro método de ensino na
igreja senão aquele de acordo com a prescrição e regra dessa Palavra°. Como
veremos, para Calvino as instituições e regulamentos tanto da igreja quanto da
sociedade deviam ser fundamentadas nas Escrituras: "Aprovo apenas as
instituições humanas que são fundamentadas na autoridade de Deus e derivadas
das Escrituras". Zwinglio chamou o tratado que escreveu em 1522 sobre as
Escrituras de Tratado Sobre a Clareza e Infalibilidade da Palavra de Deus,
afirmando que —o fundamento de nossa religião é a palavra escrita, as
Escrituras de Deus'. Essas idéias mostram como os reformadores sempre
tiveram as Escrituras em alta consideração. Convém ressaltar, porém, que não se
trata de uma posição nova; antes, representa uma ligação importante com a
teologia medieval que - com a exceção de certos escritores franciscanos
posteriores - considerava as Escrituras a fonte mais importante da doutrina cristã.
A diferença entre os reformadores e a teologia medieval nesse ponto se refere à
maneira como as Escrituras são definidas e interpretadas e não ao seu santas.
Investigaremos essas questões mais detalhadamente, a seguir.

O cânon das Escrituras

Um elemento central de qualquer programa que considere as Escrituras


normativas é a delimitação das mesmas. Em outras palavras, o que são as
Escrituras? O termo "cânon" (uma palavra grega que significa "regra" ou "norma")
passou a ser usado para se referir às Escrituras reconhecidas pela igreja como
sendo autênticas. Para os teólogos medievais, as -Escrituras" emar, "as obras
incluídas na Vulgata". No entanto, os reformadores questionaram essa definição.
Enquanto todas as obras do Novo Testamento eram aceitas como sendo
canínicas - as apreensões de Lutero quanto a haver quatro evangelhos não
obtiveram praticamente nenhum apoio - foram levantadas dúvidas em relação à
canonicidade de um conjunto de obras do Antigo Testamento.

Uma comparação entre o conteúdo do Antigo Testamento na Bíblia em


hebraico e nas versões em grego e latim (como a Vulgata) mostra que
estas últimas contêm obras que não estão presentes na primeira.
Seguindo os passos de Jerôninto, os reformadores argumentaram que os
únicos escritos do Antigo Testamento que podiam ser considerados
pertencentes ao cânon das Escrituras eram aqueles que faziam parte
originalmente da Bíblia hebraica. Assim, fez-se uma distinção entre o "Antigo
Testamento" e os "Apócrifos": os primeiros eram obras encontradas na
Bíblia hebraica, enquanto os últimos eram obras encontradas nas versões da
Bíblia em grego e latim (como a Vulgita), mas não na Bíblia hebraica. Apesar
de alguns reformadores reconhecerem que os apócrifos eram uma leitora
edificante, não havia nenhum consenso quanto à possibilidade de usar essas
obras como base doutrinária. No entanto, os teólogos medievais, seguidos
pelo Concilio de Trento em 1546, definiram o "Antigo Testamento" como "as
obras do Antigo Testamento contidas nas Bíblias em grego e latim",
eliminando desse modo a distinção entre o "Antigo'Festamento" e os
"Apócrifos".

Desenvolveu-se, portanto, uma distinção fundamental entre os pontos de vista


católico romano e protestante acerca do significado do termo "Escrita-rãs",
distinção esta que persiste até hoje. Uma comparação entre versões pro-
testantes (como a Revista e Atualizada) e católicas da Bíblia (como aBíbliade
Jerusalém) mostra essa diferença. Assim, para os reformadores, o lema sola
scriptura ("somente pelas Escrituras") indicava não apenas uma, mas duas
diferenças em relação aos seus oponentes católicos: além de associarem
um surtas diferente às Escrituras, também não concordavam quanto ao
conteúdo das Escrituras. Mas qual a relevância dessa discussão?
Deve-se dizer que, na prática, essa distinção não é de grande importância.
Sem dúvida, influencia numa prática dos católicos que os reformadores
não adotaram, a saber, a oração pelos mortos. Paris os reformadores,
essa prática tinha uma base não-bíblica (a doutrina do purgatório) e
incentivava a superstição popular e a exploração eclesiástica. Seus
oponentes católicos, porém, refutar= essa objeção mostrando que a
prática de orar pelos mortos em mencionada explicitamente nas Escrituras,
em 2 Macabeus 12.40-46. Uma vez que haviam considerado esse livro apócrifo
(e portanto, extrab(blico), os reformadores responderam que, pelo menos a
seu ver, não se tratava de uma prática escriturrística. A réplica óbvia do lado
católico foi apontar que os reformadores baseavam sua teologia nas Escrituras
somente depois de terem excluído do cânon as obras que contradiziam essa
teologia.
Um dos resultados dessa discussão foi a produção e circulação de listas
autorizadas de livros que deviam ser considerados "escritwíàlicoç". A quarta
sessão do Concílio de Trento (1546) produziu uma lista detalhada que
incluiu as obras apócrifas considerando-as autenticamente escrintrísticas,
enquanto as congregações protestantes na Suíça, França e em outros
lugares produziram listas que omitiam delibera lamente a referência a essas
obras ou as indicavam como irrelevantes para as questões doutrinárias.

A autoridade das Escrituras

Os reformadores baseavam a autoridade das Escrituras em sua relação com


a Palavra de Deus. Pua alguns, essa relação era de absoluta identidade: as
Escrituras são a Palavra de Deus. Para outros, essa relação era um pouco
mais nuançada: as Escrituras contêm a Palavra de Deus. Não obstante,
havia um consenso de que as Escrituras deviam ser recebidas como se
fossem o próprio Deus falando. Para, Calvino, a autoridade das Escrituras
era fundamentada no fato de os escritores bíblicos terem sido "secretários
do Espírito Santo". Como Heinrich flullinger colocou, a autoridade das
Escrituras em absoluta e aumaiontai: "Por serem a Palavra de Deus, as
Escritoras bíblicas sagradas têm uma posição e credibilidade adequadas em si
mesmas e de si mesmas". Via-se, Portaram, o próprio evangelho falando por
si mesmo e desafiando e corrigindo suas representações inadequadas ou
imprecisas no século 16. As Escrituras podiam não apenas julgar a igreja do
final da Idade Média (e considerá-la em falta) como também fornecer o
modelo para a nova igreja reformada que surgiria na seqüência.
No entanto, os oponentes católicos da Reforma argumentavam que, uma vez
que a igreja havia definido o cânon das Escrituras e escolhido tratar as
obras bíblicas, cataricas, como sendo investidas de autoridade, seguia-se que
a igreja tinha precedência sobre a Bíblia.
Vários pontos mostrarão a importância do princípio de sola scritpura. Em
primeiro lugar, os reformadores insistiam que a autoridade de papas, con-
cilios, e teólogos era subordinada à das Escrituras. Isso não significa,
necessariamente, que estes não tinham nenhuma autoridade; na realidade,
os principais reformadores reconheciam que certos concílios e teólogos da em
patrística possuíam uma autoridade verdadeira em questões doutrinárias.
Não obstante, esses reformadores argumentavam que essa autoridade em
derivada das Escritoras e, portanto, subordinada às mesmas. Como Palavra
de Deus, a Bíblia devia ser considerada superior aos patriarcas e concílios.
Calvino expressa a questão da seguinte forma:
Pois apesar de arrumamos que somente a Palavra de Deus se encontra além do
âmbito de nosso julgamento, e que os patriarcas e concilies possuem autoridade
apenas na medida em que concordam com o governo da Palavra, ainda damos aos
concílios e patriarcas a posição e honra que lhe são apropriadas sob Cristo.

Em segundo lugar, os reformadores argumentavam que a autoridade dentro da


igreja não é derivada do status dos oficiais eclesiásticos, mas sim da Palavra de
Deus à qual eles servem. A teologia católica tradicional tinha a tendência de
fundamentara autoridade dos oficiais no cargo em si –por exemplo, a autoridade de
um bispo reside no fato de ele ser um bispo – e enfatizar a ligação histórica do
cargo de bispo com a era apostólica. Os reformadores

fundamentavam a autoridade dos bispos (ou de seus equivalentes


protestantes) em sua fidelidade à Palavra de Deus. Como Calviro colocou
essa questão:
A diferença entre nós e os papistas é que eles crêem que a igreja não pode ser o
sustentáculo da verdade a menos que presida sobre a Palavra de Deus. Nós, por
outro lado, afirmamos que é pelo fato de a igreja se sujeitar reverentemente à
Palavra de Deus que a verdade é preservada nela e passada adiante para
outros por meio dela.
A ligação histórica é de pouca importância em relação à proclamação fiel da Palavra
de Deus. É evidente que foi negada às igrejas separatistas da Reforma a ligação com
as instituições da igreja católica: nenhum bispo católico aceitaria ordenar clérigos
protestantes, por exemplo. E, no entanto, os reformadores argumentavam que a
autoridade e funções de um bispo eram derivadas, em última análise, da fidelidade
à Palavra de Deus. Semelhantemente, as decisões dos bispos (e também dos
concílios e papas) eram autoritativas e compulsórias na medida em que eram fiéis
às Escrituras. Enquanto os católicos enfatizavam a importância da ligação
institucional ou histórica, os reformadores enfatizavam igualmente a importância da
ligação doutrinária. Apesar das igrejas protestantes em geral não terem como
oferecer uma ligação histórica com o episcopado (exceto no caso das Reformas na
Inglaterra e Suécia, nas quais houve a deserção de bispos católicos), podiam
oferecera fidelidade necessária às Escrituras - legitimando desse modo, a seu ver,
os cargos eclesiásticos protestantes. Pode ser que não haja uma continuidade
histórica ininterrupta entre os líderes da reforma e os bispos da igreja primitiva,
mas, como os refloutriadores, argumentavam, uma vez que criam e ensinavam a
mesma fé que os bispos da igreja primitiva (em vez do evangelho distorcido da
igreja medieval), a ligação necessária continuava presente.

Assim, o princípio de sola scriloura envolvia a asserção de que a autoridade da


igreja era fundamentada na fidelidade às Escrituras. No entanto, os oponentes da
Reforma refutaram essa asserção com ura, dito de Agostinho: "Não teria crido no
evangelho se não tivesse sido movido pela autoridade da igreja católica". Acaso a
própria existência do cânon das Escrituras não apontava para autoridade da igreja
sobre as Escrituras? Afinal, como vimos, a igreja havia definido o conteúdo das -
Escrituras- -o que parecia sugerir que a igreja tinha autoridade sobre as mesmas e
era independente delas. Assim, John Eck, oponente de Lutem no famoso Debate
de Leipzig de 1519 argumentou que "As Escrituras não são autênticas sem a
autoridade da igreja". Isso levanta a questão da relação entre as Escrituras e a
tradição, da qual podemos tratar agora mais apropriadamente.

O papel da tradição

O princípio de sola scriptura dos reformadores dá a impressão de eliminar


qualquer referência à tradição na formação da doutrina cristã. Na verdade,

porém, os reformadores magisteriais tinham uma visão extremamente


positiva da tradição, como veremos adiante, apesar dos reformadores
radicais terem adotado, de fato, a atitude mais negativa em relação à
tradição que o lema parece indicar. Será proveitoso começar nossa discussão
sobre essa questão investigando algumas idéias acerca do papel da tradição
durante a Idade Média; os leitores também podem voltar ao estudo de caso
1.1 que examina as questões conforme elas foram apresentadas no período
pairístico.
Para a maioria dos teólogos medievais, as Escrituras eram uma fonte
materialmente suficiente para a doutrina cristã. Em outras palavras, tudo o
que era de importância essencial para a fé cristã estava contido nas
Escrituras. Não havia necessidade de procurar em nenhum outro lugar
dados relevantes para a teologia cristã. Sem dúvida, havia questões das quais
as Escrituras não tratavam — como, por exemplo, quem escreveu o Credo
Apostólico, em que momento exatamente durante a eucaristia o pão e o vinho
se tomavam o corpo e o sangue de Cristo ou se a prática do batismo era
reservada somente para os cristãos adultos. Com referência a essas questões,
a igreja se sentia livre para interpretar aquilo que as Escrituras deixavam
implícito, apesar de suas opiniões serem consideradas subordinadas às
Escrituras.

No final da Idade Média, porém, o conceito de tradição havia adquirido uma


enorme importância em relação à interpretação e autoridade das Escrituras.
Estudiosos como Heitor A. Obertnan mostraram que, no final do período medie-
val, estavam em circulação dois conceitos bastante distintos de tradição
que podem ser chamados de "Tradição I" e "Tradição 2". Como
observamos (ver o estudo de caso 1.1), em resposta às várias
controvérsias dentro d a igreja primitiva e especialmente à ameaça do
Gnosticismo, começou a se desenvolver um método "tradicional" de interpretar
certas passagens das Escrituras. Teólogos patristicos, do século 2- como binou
de Lião começaram a desenvolvera idéia de uma forma autorizada de
interpretar determinados textos das Escrituras, argumentando que esta forma
remontava ao tempo dos próprios apóstolos. As Escrituras não podiam ser
interpretadas aleatoriamente: tinham de ser interpretadas dentro do contexto
de continuidade histórica da igreja cristã. Os parâmetros dessa interpretação
foram determinados e "transmitidos" historicamente, Oberman chama essa
visão da tradição de "Tradição 1". Nesse caso, a "tradição" é vista
simplesmente como "uma forma tradicional de interpretar as Escrituras
dentro da comunidade da fé".

Nos séculos 14 e 15, porém, desenvolveu-se uma visão um tanto diferente


da tradição. A "tradição" passou a ser entendida como uma fonte separada e
distinta de revelação além das Escrituras. Argumentava-se que as
Escrituras não tratavam de vários pontos, mas que em sua providência Deus
havia fornecido uma segunda fonte de revelação para suprir essa deficiência:
uma linha de tradições não escritas que remontava aos próprios apóstolos.
Essa tradição era transmitida de uma geração para outra dentro da igreja.
Olhermair chama essa visão de tradição de 'Tradição 2".

Resumindo essa distinção importante: a "Tradição 1" é uma teoria de uma só


fonte de doutrina: a doutrina é baseada nas Escrituras e a "tradição" se refere a
"uma forma tradicional de interpretar as Escrituras". A "Tradição 2" é uma teoria
de duas fontes de doutrina: a doutrina é baseada em duas fontes distintas, as
Escriturais e a tradição não escrita. Uma crença que não se encontra das Escrituras
pode, portanto, com base nessa teoria de duas fontes, serjustificada apelando-se para
uma tradição não escrita. Foi principalmente contra essa teoria de duas fontes de
doutrina que os reformadores dirigiram suas críticas.

Durante o século 16, representantes da Reforma radical defenderam encr.


gicarancade a opção da rejeição total da tradição. Para radicais como Tinturas
Mirrazer e Casear Schsvenkfeld, todo indivíduo tinha o direito de interpretaras
Escrituras como lhe aprazia, desde que sujeito à orientação do Espírito Santo. Para
Sebastian Frank, a Bíblia "é um livro selado com sete selos que ninguém pode
abrira menos que tenha a chave de Davi, que é a iluminação do Espírito". Abriu-se
caminho, portanto, para o individualismo, elevando a apreciação pessoal acima da
apreciação conjunta da igreja. Os radicais rejeitavam, portanto, o batismo infantil
(mantido pelos reformadotires, magisteriais) considerando-o não-escriturístico. (O
Novo Testamento não faz nenhuma referência explícita a essa prática.)
Semelhantemente, doutrinas como as da Trindade e da divindade de Cristo foram
rejeitadas por se considerar que eram fundamentadas em bases bíblicas
inadequadas. Aquilo que podemos, portanto, chamar de "Tradição W rejeita a
tradição e, com efeito, coloca a avaliação particular do indivíduo ou congregação
do presente acima da avaliação conjunta tradicional da igreja cristã acerca da
interpretação das Escrituras.

Os três conceitos principais da relação entre as Escrituras e as tradições


correntes no século 16 podem, portanto, ser resumidos da seguinte forma:

Tradição 0: A Reforma radical Tradição 1: A


Reforma magisterial Tradição 2: O Concílio
de Trento

Aprincípio, essa análise pode parecer surpreendente. Acaso os reformadores não


rejeitaram a tradição em favor das Escrituras como única testemunha? Na
verdade, porém, a preocupação dos relormadorcí, era eliminar os acréscimos ou
distorções, do testemunho escutituistico. A idéia de uma "interpretação tradicional
das Escrituras" — corporificada no conceito da "Tradição 1" — era perfeitamente
aceitável para os reformadores; magisteriais, desde que essa interpretação
pudesse ser justificada.

Como foi observado, a Reforma magisterial foi teologicamente conservadora.


Manteve as doutrinas mais tradicionais da igreja — como a divindade de Jesus
Cristo e a doutrina da Trindade — em função da convicção dos reformadores de
que essas interpretações tradicionais das Escrituras estavam corretas.
Semelhantemente, várias práticas tradicionais (como o batismo infantil) foram
mantidas em função da convicção dos reformadores de que eram práticas
coerentes com as Escrituras. A Reforma magisterial estava extremamente
consciente da ameaça de individualismo e procurou evitar essa ameaça enfatizando
a interpretação tradicional da igreja para as Escrituras sempre que essa
interpretação era considerada correta. A crítica doutrinária foi dirigida contra as
áreas em que a prática ou teologia católica parecia extrapolar ou contradizer as
Escrituras. Uma vez que a maioria dessas interpretações se desenvolveu na Idade
Média, não é de surpreender que reformadores se referissem su, período de 1200 -
1500 como uma —era de decadência" ou um "período de corrupção' que tinham a
missa(, de reformar. Também não é surpreendente que vejamos os reformadores
apelando para os patriarcas da igreja primitiva como intérpretes em geral
confiáveis das Escrituras,
Trata-se de um ponto importante e que não recebeu a atenção que murrece. Um
dos motivos pelos quais os reformadores valorizavam os escritos dos patriarcas,
especialmente de Agostinho, era o fato de os considerarem expoentes de uma
teologia bíblica. Em outras palavras. os reformadores acreditavam que os
patriarcas estavam procurando desenvolver uma teologia baseada somente nas
Escrituras - o que era, Justamente. aquilo que eles também estavam tentando fazer
no século 16. É evidente que os novos métodos textuais e filológicos
disponíveis aos reformadores significavam que eles podiam corrigir os patriarcas
quanto a alguns detalhes - mas os reformadores estavam dispostos a aceitar o
"testemunho patrística' como sendo confiável em termos gerais. Uma vez que
esse testemunho incluía doutrinas como as da Trindade e da divindade de Cristo, e
práticas como o batismo infantil, os reformadores se mostraram predispostos a
acená-tas como sendo autenticamente escrituristicas. Fica evidente, portanto, que a
alta consideração pela interpretação tradicional das Escrituras (i.e., a "Tradição
I") conferiu à Reforma magisterial uma tendência ao conservadorismo
doutrinário.

A posição católica

O Concílio de Trento, que se reuniu em 1546, respondeu à ameaça da Reforma


afirmando a teoria das duas fontes. Essa afirmação da —Pradição 2" por parte da
Reforma católica declara que a fé cristã chega a toda geração através de duas
fontes: as Escrituras e uma tradição não escrita. Deve-se considerar que essa
tradição extra-escritutristica, tema mesma autoridade que as Escrituras. Ao fazer
essa declaração o Concilio de Trento pautasse ter retomado os conceitos medievais
posteriores e menos influentes de "tradição" - deixando os conceitos mais
influentes para os reformadores. É interessante observar que, nos últimos anos,
tem havia certo grau de "revisionismo" desse ponto dentro dos círculos católicos
romanos, no qual vários teólogos contemporrânteos argumentam que Trento
excluiu a idéia de que "o Evangelho se encontra apenas em parte nas
Escrituras e em parte nas traduções-.

A quarta sessão do Concílio que encerrou suas deliberações em 8 de abril de


1546 apresentou os seguintes desafios à posição protestante:

1. As Escrituras não podiam ser consideradas a única fonte de revelação;


a tradição era um complemento essencial que os protestantes negavam de
modo irresponsável. 'Todas as verdades salvadoras e regras de conduta...
estão contidas nos livros escritos e nas tradições não escritas, recebidas da
boca do próprio Cristo ou dos próprios apóstolos."
2. Tremo determinou que as listas protestantes de livros canônicos eram
deficientes e publicou uma lista completa de obras que aceitou como sendo
atitóritativas. Essa lista incluía todos os livros apócrifos que os escritores
protestantes haviam rejeitado.
3. A edição Vingam das Escrituras foi reafirmada como sendo confiável e
autormuiva. O Concilio declarou que "a edição latina antiga chamada de
Vulgata, usada ao longo de vários séculos, foi aprovada pela igreja e deve
ser defendida como autêntica em preleções, debates, sermões ou
exposições públicas e que ninguém ouse ou tome a liberdade de rejeitá-la
em nenhuma circunstância".
4. A autoridade da igreja de interpretar as Escrituras foi defendida em
oposição aquilo que o Concílio de Trento considerou claramente o
individualismo desenfreado dos intérpretes protestantes:
A fim de controlar espíritos negligentes, este concito decreta que ai.- guém,
firmando-se em seu próprio juízo, em questões de fé e moral relacionadas
à doutrina cristã (distorcendo as Salutaltas, Escrituras de acordo com
suas idéias) deve tomara liberdade de interpretar as Escrita.,, de
maneira contrária .o sentido que a santa madre...

Estudo de caso 3.2 A justificação pela fé: Martinho Lutem


e o Concilio de Trento
Há um consenso de que a doutrina da justificação pela fé foi de impor-
tância crítica para a Reforma. Este estudo de caso se concentrará em dois
conceitos apresentados no tempo da Reforma — aquele adotado pelo
grande reformador alemão Martinho Lutem e aquele definido pelo Concílio
de Trento.
No cerne, da fé cristã se encontra a idéia de que os seres humanos, por
mais finitos e frágeis que sejam, podem ingressar num relacionamento com
o Deus vivo. O Novo Testamento articula essa idéia fundamental através
de várias metáforas ou imagens, como "salvação" e "redenção", a
princípio, nos escritos neotestamentários (especialmente nas epístolas
paulinas) e, subsequentemente, na reflexão teológica cristã com base
nesses textos. No final da Idade Média, uma imagem havia se tornado
particularmente expressiva: a da justificação.

O termo -justificação- e o verbo 'Justificar" adquiriram o sentido de "ingressar


num relacionamento correm com Deus" ou, "ser feitojusto aos olhos de Deus".
Adquiriu-se a visão de que a doutrina da justificação tratava daquilo que um
indivíduo precisava fazer a fim de ser salvo. Conforme fontes contemporâneas
indicam, essa era uma pergunta que estava se tomando cada vez mais freqüente no
início do século 16. O surgimento do Humanismo trouxe uma nova ênfase sobre
a consciência individual, uma nova percepção da individualidade humana. Um
resultado desse despertar da consciência individual foi o novo interesse na
doutrina da justificação - a questão de como os seres humanos, como
indivíduos, podiam ingressarem um relacionamento com Deus. De que maneira
um pecador podia esperar fazer isso? Essa pergunta encontrava-se no cerce dos
interesses teológicos de Martinho Lutero e se tomou predominante na fase inicial
da Reforma. Tendo em vista a minoraram de tal doutrina para esse período,
trataremos da discussão da mesma por Lutero em resposta ao Concílio de Trento.

Martinho Lutero
Em 1545, um ano antes de falecer, Lutero acrescentou um prefácio ao primeiro
volume da edição completa de seus escritos em latim no qual ele desci evia como
havia rompido com a igreja de sua época. O prefácio é redigido com clareza visando
apresentar Lutem a leitores que talvez não soubessem como ele havia desenvolvido
as idéias reformadoras radicais associadas ao seu nome. Nesse -fragmento
autobiográfica" (como costuma ser chamado), o objetivo de Lutero é oferecer aos
leitores informações contextuais sobre o desenvolvimento de sua vocação como
reformador. Depois de fatia de alguns dados históricos preliminares, estendendo
sua narrativa até o ano de 1519, ele se volta pua a descrição de suas dificuldades
pessoais como problema da' Justiça de Deus":

Certamente desejava compreender Paulo em sua carta aos Romanos. Mas o que me
impedia de fazê Ia não era tanto uma timidez, tar, sim, aquela frase no começo
do primeiro capítulo: "ajustiça de Deus se revela no evangelho" (Ria 1. t7).
Porquanto eu detestava essa expressão "a justiça de Deus", que me haviam
ensinado a entender como a justiça pela qual Deus é justo e castiga os
pecadores iníquos.
Apesar de levar uma vida irrepreensível como monge, sentia que em um pecador
com uma consciência inquieta diante de Deus. Também não podia crer que o havia
agradado com minhas obras. Em vez de amar esse Deus justo que castigava os
pecadores, na verdade eu o odiava... Estava desesperado para entender o que
Paulo queria dizer nessa passagem. Por feri, meditei dia e noite acerca das
palavras "a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está
escrito: O justo viverá por fé" e comecei a entender que a 'Justiça de Deus" é
aquela pela qual a pessoajuna vive pelo dom de Deus (fé) e que essa expressão —
aputiça de Deus se revela" se refere a um justiça passiva, pela qual o Deus

misericordioso nos justifica pela fé, como está escrito, "o justo viverá pela
fé". Isso me fez sentir, no mesmo instante, como se tivesse nascido de novo,
cort. se tivesse entuido pelas portas sfixatas do próprio paraíso. Daquele
momento em diante, vi as Escrituras sob uma nova luz... E as palavras que
eu antes detestava — "a justiça de Deus" — comecei a amar e exaltar como a
mais doce das frases, de modo que essa passagem na, texto de Paulo se
tornou, para mim, a portado paraíso.
Sobre o que Lutero está falando nessa passagem conhecida que vibra
com a eirtísilgação da descoberta? É evidente que sua visão da
expressão "justiça de Deus" sofreu uma mudança radical. Mas qual a
natureza dessa mudança?

Trata-se de uma mudança fundamental. A princípio Lutem


considerava que o pré-requisito para ajusatíficação era uma obra
humana, algo que o pecador tinha de fazer antes de poder ser
justificado. Cada vez mais convencido, através da leitura de
Agostinho, de que isso era impossível, Lutero só conseguia
interpretara "justiça de Deus" como uma justiça castigariam. Mas, nesta
passagem, ele narra como descobriu um "novo" significado para essa
expressão – uma justiça que Deus dá ao pecador. Em outras palavras,
Deus preenche esse pré-requisito concedendo graciosamente aos
pecadores aquilo de que necessitam para ser justificados. Uma
analogia (que Lutero não usou) pode ajudar a esclarecer a diferença
entre essas duas abordagens.

Suponhamos que você está na prisão e que alguém lhe oferece a


liberdade sob a condição de que você pague uma multa pesada. A
promessa é real – se você satisfizer essa precondição, a promessa
será cumprida, Como anteriormente observamos, Pelágio parte do
pressuposto do qual Lutem compartilhava inicialmente, de que você tem
guardado em algum lugar o dinheiro necessário para pagar essa multa.
Uma vez que sua liberdade vale muito mais, na verdade a oferta é
extremamente vantajosa para você. Assim, você paga a multa. Não
há nenhuma dificuldade nessa transação, desde que você tenha os
recursos necessários. Cada vez mais, Lutero veio a compartilhar do
ponto de vista de Agostinho, segundo o qual a humanidade pecadora
não possui os recursos necessários para preencher esse pré-
requisito. Voltando à nossa analogia, Agostinho e Lutero partem do
pressuposto de que, uma vez que você não tem o dinheiro, a promessa
de liberdade é praticamente irrelevante para a sua

situação. Assim, tanto para Agostinho quanto para Lutem, as boas novas do
evangelho consistem no fato de que você recebeu a soma necessária para
comprar a sua liberdade. Em ou~ palavras, o pré-requisito foi preenchido por
outrem.
De acordo com o insight de Lutero, que ele descreve nesta passagem
autobiográfica, o Deus do evangelho cristão não é um juiz severo que
recompensa indivíduos de acordo com seus méritos, mas sim um Deus
gracioso e bondoso que concede justiça aos pecadores como um dom. O
consenso geral entre os estudiosos de Lutem é de que sua teologia da
justificação passou por uma mudança decisiva em algum momento em 1515.
Um dos conceitos centrais da visão de Lutero é a doutrina da 'justificação
somente pela fé". A idéia de justificação já é conhecida. Mas e quanto à
expressão "somente pela fé"? Qual a natureza da fé justificados? "O
motivo pelo qual algumas pessoas não entendem por que somente a fé
justifica é o fato de não saberem o que é fé." Ao escrever essas palavras,
Lutero chama nossa atenção para a necessidade de investigar mais de perto
essa palavraerigarrossimente simples: "fé". Três pontos intimamente
relacionados ao conceito de Lutero acerca da fé podem ser destacados
por sua relevância particular para a sua doutrina da justificação. Cada um
desses pontos foi retomado e desenvolvido por escritores posteriores como
Calvino, indicando que Lutero realizou uma contribuição fundamental para o
desenvolvimento do pensamento da Reforma nessa questão. Eis os três
pontos:

1. A fé tem uma referência pessoal, e não apenas puramente


histórica.
2. A fé diz respeito à confiança nas promessas de Deus.
3. A fé une o cristão a Cristo.

Trataremos desses pontos individualmente.

1. Em primeiro lugar, a fé não é simplesmente um conhecimento


histérico. Lutero argumenta que a fé que se contenta em crer na
confiabilidade histórica dos evangelhos não é uma fé que justifica. Os
pecadores são perfeitamente capazes de confiar nos detalhes históricos dos
evangelhos; mas esses fatos em si não são adequados para a verdadeira fé
cristã. A fé salvadora diz respeito a crer e confiar que Cristo nasceu pra
nobis, nasceu por nós pessoalmente, e realizou por nós a obra da salvação.
2. Em segundo lugar, a fé deve ser entendida como 'confiança
(fiducia)". O conceito de confiança é preeminente na idéia reformada de fé,
como indica uma analogia náutica empregada por Lutero: –Podo depende
da fé. A pessoa que não tem fé é como alguém que deseja atravessar o mar,
mas que, de tanto medo, não consegue confiar no navio. Assim, ela fica
onde está e nunca é salva, pois se recusa a entrar no navio e fazer a
travessia". A fé não consiste apenas em crer que algo é verdadeiro;
também implica estar preparado para agir de acordo com essa convicção,
confiando nela. Usando a analogia de Lutem

a fé não consiste simplesmente em crer que o navio existe — ter fé é


entrar no navio e lhe confiar nossa vida.
3. Em terceiro lugar, a fé une o cristão a Cristo. Lutem afirma esse prin cípio
claramente em seu escrito de 1520, A Liberdade de um Cristão. A fé não é a
aquiescência a um conjunto abstrato de doutrinas, mas sim uma união entre
Cristo e o cristão. É a resposta que o crente como um ser integral dá a Deus
e que leva, por sua vez, à presença real e pessoal de Cristo no cristão.
"Conhecer a Cristo é conhecer seus benefícios", escreveu Felipe Melânciron,
colega de Lutero em Wittenberg. A fé toma tanto Cristo quanto os seus
benefícios — como o perdão, a justificação e a esperança — acessíveis para
o cristão.

Assim, a doutrina da 'justificação pela fé" não significa que o pecador é


justificado porque crê, em decorrência dessa fé. Isso seria considerar a fé
uma ação ou obra humana. Lutero insiste que Deus provê todas as coisas
necessárias para a justificação, de modo que cabe ao pecador apenas recebê-
la. Na justificação, Deus é ativo e os seres humanos são passivos. A expressão
"Jesus Cristo pela graça por meio d a fé" expressa o significado da doutrina
mais claramente: a justificação do pecador é baseada na graça de Deus e
recebida por meio da fé. A doutrina da justificação somente pela fé é uma
afirmação de que Deus faz tudo aquilo que é necessária para a salvação. Até
mesmo a própria fé é um dom de Deus, e não uma ação humana. Deus
cumpre o pré-requisito para a justificação. Assim, como vimos, a 'justiça de
Deus" não é apenas uma justiça que julga se cumprimos ou não o pré-
requisito paira a justificação, mas sim, a justiça que nos é dada para que
possamos cumprir esse pré-requisito.
Um dos insights centrais da doutrina da justificação somente pela fé ex-
pressada por Lutero é a idéia de que o pecador individual é incapaz de
justificar a si mesmo. Na justificação, é Deus quem toma a iniciativa,
provendo todos os recursos necessários para justificar esse pecador. Um
desses recursos é a ",justiça de Deus". Em outras palavras, a justiça é a base
na qual o pecador é justificado, não em função de sua própria justiça, mas em
função da justiça que lhe é concedida por Deus. Agostinho havia
apresentado essa idéia anteriormente; no entanto, Lutero lhe dá uma nova
nuança sutil que leva ao desenvolvimento do conceito de 'justificação forense".
A idéia em questão é difícil de explicar e gira em tomo da localização da justiça
justificados. Tanto Agostinho quanto Lutero acreditavam que Deus
oferece graciosamente aos seres humanos pecadores uma justiça que os
justifica. Mas onde essa justiça se situa? Agostinho argumentava que ela podia
ser encontrada dentro dos cristãos; Lutero insistia que ela permanecia fora dos
cristãos. Paro Agostinho, a justiça é uma questão interna; para Lutero, é
exuma.
Para Agostinho, Deus concede a justiça panificadora ao pecador de tal maneira
que ela se toma parte da sua pessoa. Em decorrência disso, essa justiça, ainda
que procedente de fora do pecador, se toma parte do seu ser. Para Lutero,
ajustiça é uma questão que permanece fora do pecador: é uma 'justiça alheia"

(institia aliena). Deus trota ou "considera" essa justiça como se fosse parte da
pessoa do pecador. Em suas preleções de 1515 — 1516, Lutero desenvolve
a idéia da Justiça alheia de Cristo" que nos é imputada— e não concedida—
pela fé como a base da justificação. Seus comentários sobre Romanos 4.7 são
particularmente importantes:

Os santos sempre são pecadores aos seus próprios olhos e, portanto,


sempre justificados externamente. Mas os hipócritas sempre são jus tos
aos seus próprios olhos e, portanto, sempre pecadores internamente. Uso o
termo "internamente" para mostrar como somos em nós mesmos, aos
nossos próprios olhos, de acordo com nossa própria avaliação; e o termo
"externamente" para indicar como somos diante de Deus e segundo a sua
avaliação. Poranto, somos justos externamente quando somos justos
somente pela imputação de Deus, e não de nós mesmos ou de nossas
próprias obras.

Os cristãos são justos em função da retidão alheia de Cristo que lhes, é


imputada — ou seja, é considerada como se fosse deles pela fé.
Comentamos anteriormente que um elemento essencial do conceito de
Lutero acerca da fé é o fato desta unir o cristão a Cristo. Assim, a fé
justificariam permite que o cristão seja associado à justiça de Cristo e
justificado com base na mesma. Os cristãos são, portanto, justos pela
imputação de um Deus misericordioso".
Por meio da fé, o cristão é revestido da justiça de Cristo de maneira
semelhante, conforme Lutero sugere, àquela de Ezequiel 16.8 que fala Deus
cobrindo a nossa nudez com seu manto. Para Lutero, a fé é o relacionamento
correto (ou justo) com Deus. rn Assim, o pecado e a justiça coexistem;
permane- cemos pecadores internamente, mas aos olhos de Deus somos
extrinsecamente justos. Ao confessar nossos pecados pela fé, nos
encontramos num relacionamento correto e justo com Deus. Do nosso
próprio ponto de vista somos pecadores, mas do ponto de vista de Deus,
somos justos.
Lutero não sugere necessariamente a coexistência do pecado e da justiça
em condição peritamente. A vida cristã não é estática, como se — usando
uma expressão informal — as quantidades relativas de pecado e justiça
permanecessem constantes ao longo do tempo. Lutero está perfeitamente
ciente de q ue a vida cristã é dinâmica, no sentido de que o cristão cresce
em retidão. Antes, o que ele afirma é que a existência de pecado não nega
nosso saltos de cristãos.
Com sua justiça, Deus nos separa do nosso pecado. Essa justiça é como
uma cobertura protetora sob a qual podemos lutar contra o nosso
pecado. Essa abordagem explica a persistência do pecado nos cristãos e,
ao mesmo tempo, a transformação gradativa do cristão e a eliminação futura
de todo esse pecado. No entanto, não é necessário ser perfeitamente justo
para ser um cristão. O pecado não indica incredulidade ou um fracasso da
parte de Deus; antes, indica a necessidade contínua de se entregar ao temo
cuidado de Deus. Numa frase famosa Lutero declara que o cristão é "ao
mesmo tempo, justo e pecador (simul instas et peccator)"; é Justa em
esperança, mas pecador de fato; justo aos olhos de Deus e por meio de sua
promessa e, contudo, pecador na realidade

Essas idéias foram desenvolvidas subsecutiententente, pelo seguidor de


Lutem, Felipe Melâncton, de modo a constituir a doutrina conhecida como
`justificação forense". Enquanto Agostinho ensinava que, pela justificação o
pecador é tomado justo, Melâncton afirmava que ele é considerado ou
pronunciado justo. Para Agostinho, a "justiça justificadora" é concedida;
para Melâncton, ela é imputada. Melâncton fez uma distinção clara entre o
acontecimento de ser declarado justo e o processo de ser feito justo,
chamando o primeiro de 'Justificação" e o segundo de "santificação' ou
"regeneração". Para Agostinho, ambos eram aspectos diferentes da mesma
coisa. De acordo com Melâncton, Deus profere ojulgamento divino – de que
o pecador é justo –no tribunal celestial. Essa abordagem legal à justificação
deu origem à designação "justificação forense" do termo latino foram ("praça
pública" ou "pátio") –o lugar associado tradicionalmente o exercício da justiça
na Roma clássica.

A importância dessa desenvolução se deve ao fato de marcar um rompimento


completo com os ensintantentís, da igreja até então. De Agostinho em diante,
a justificação havia sido entendida como uma referência ao acontecimento
de ser declarado justo e ao processo de ser tomado justo. O conceito de
Melânetor, de justificação forense divergia radicalmente dessa idéia. Ao ser
adotado subseqüentemente pela maioria dos reformadores, passou a represen-
tar, a partir de então, uma diferença característica entre os protestantes e os
católicos romanos. Além de suas diferenças quanto à maneira como o pecador
era justificado, havia agora a discordância quanto à natureza exata do termo
justificação. Como veremos adiante, o Concílio de Trento, a resposta definiti-
va da igreja católica romana ao desafio protestante, reafirmou as idéias de
Agostinho acercada natureza da justificação e condenou as idéias de Melâncton.

O Concílio de Trento

Estava claro que a igreja precisava dar uma resposta oficial e definitiva a
Lutero. Em 1540, Lutero já havia se tomado um nome conhecido por toda a
Europa. Seus escritos estavam sendo tidos e estudados com diferentes graus de
entusiasmo, mesmo nos círculos eclesiásticos mais elevados na Itália. Algo pre-
cisava ser feito. O Concilio de Trento, convocado em 1545, começou o longo
processo de formular uma resposta abrangente a Lutero. Uma de suas priorida-
des foi a doutrinada justificação.

A sexta sessão do Concilio de Trento foi encerrada em 13 de janeiro de 1547.


Pode-se dizer que o Decreto Tridentino da Justificação, como o produto extenso
dessa sessão ficou conhecido, representa a realização mais expressiva desse
concilio. Seus dezesseis capítulos apresentam os ensinamentos católicos ortuímos,
acerca da justificação com um grau considerável de clareza. Uma série de 33 carentes
condena opiniões específicas atribuídas aos oponentes da igreja católica romana,
inclusive Lutero. É interessante observar que o conselho não parece estar ciente
da ameaça que Calvino representava e, portanto, dirige a maior parte de suas
críticas contra as idéias que se sabia serem defendidas pelo próprio Lutero.

A crítica de Trento à doutrina da justificação defendida por Lutero pode ser dividida
em quatro seções:

1. A natureza da justificação.
2. A natureza da justiça justificados.
3. A natureza da fé justificados.
4. A certeza da salvação.

Trataremos de cada uma dessas quatro questões individualmente.

1. A natureza da justificação

Em sua fase inicial, por volta dos anos 1515 – 1519, a tendência de Lutero era
entendera justificação como um processo de transformação, no qual o cristão
era conformado gradativamente à semelhança de Jesus Cristo através de um
processo de renovação interna. A analogia que Lutero usa de uma pessoa enferma
sob cuidados médicos competentes indica essa visão ilajustificação, como também
o faz sua famosa declaração nas preleções sobre Romanas em 1515 – 1516, "a
justificação diz respeito à transformação". Porém, em seus escritos posteriores
datados da metade da década de 1530 em diante, talvez sob a influência da
abordagem mais forense de Melâncton à justificação, Lutem tende a tratar da
justificação como uma questão de ser declarado justo, e não como um processo
de ser tomado justo. Cada vez mais, Lutero veio a considerara justificação um
acontecimento que era completado pelo processo distinto da regeneração e
renovação interna por meio da atuação do Espírito Santo. A justificação altera o
status externo do pecador aos olhos de Deus, enquanto a regeneração altera a
natureza interna do pecador.

Trento se opôs fortemente a essa idéia e defendeu energicamente a idéia


associada originalmente a Agostinho de Hipona de que a justificação é
um processo de regeneração e renovação dentro da natureza humana que
realiza uma mudança tanto no ornas externo quanto na natureza internado
pecador. O capítulo quatro apresenta as seguintes definições precisas da
justificação:
A justificação do pecador pode ser definida sucintamente como uma
transladação de um estado no qual o ser humano é nascido filho do primeiro
Adão paio o estado de graça e adoção dos filhos de Deus por meio do segundo
Adão, Jesus Cristo nosso Salvador. De acordo com o evangelho, essa
transladação só pode se dar pela purificação da regeneração ou um desejo pela
mesma, como está escrito, "quem não nascer da água e do Espírito não pode
entrar no reino de Deus" (Jo 3.5).

Assim a justificação inclui a idéia de regeneração. Essa declaração sucinta


é expandida no capítulo sere que enfatiza que a justificação "não é ao-
mente uma remissão de pecados, mas também a santificação e renovação
do ser interior por meio da recepção voluntária da graça e dos dons pelos
quais uma pessoa iníqua se torna uma pessoa justa". Esse ponto é ainda
mais enfatizado pelo cânon 11, que condenava qualquer um que ensinasse
que a justificação ocorre "somente pela imputação da justiça de Cristo ou
somente pela remissão dos pecados, excluindo a graça e a caridade... ou
que a graça pela qual somos justificados é apenas a benevolência de Deus".
Para Trento, a justificação é intimamente ligada aos sacramentos do
batismo e da penitência. O pecador é justificado inicialmente pelo batismo;
porém, em razão do pecado, essa justificação pode ser perdida. No
entanto, pode ser renovada pela penitência, como o capítulo catorze deixa
claro.
Aqueles que por meio do pecado perderam a graça recebida dejustificação podem
ser justificados novamente quando, movidos por Deus, se esforçarem para
recuperar por meio da penitência, através dos méritos de Cristo, a graça que foi
perdida. Essa fome de justificação é restauração para aqueles que caíram em

pecado. Os santos patriarcas chamaram isso apropriadamente de "segunda


prancha depois do naufrágio da graça perdida". Pois Jesus Cristo instituiu o
sacramento da penitência em favor daqueles que caem em pecado depois do
batismo... O arrependimento de um cristão depois de cair em pecado e, portanto,
bem diferente daquele por ocasião do batismo.
Assim, Trento declara em poucas palavras a tradição medieval que re -
monta a Agostinho, que considerava a justificação como sendo
constituída tanto de um acontecimento quanto de um processo — o
acontecimento de ser declarado justo através da obra de Cristo, e o
processo de ser tomado justo através da operação interna do Espírito Santo.
Reformadores como Melânetom e Calvino fizeram distinção catre essas duas
questões, considerando o termo `justificação" uma referência somente ao
processo de ser declarado justo;

o processo respectivo de renovação interna, que eles chamaram de "santificação" ou


"regeneração" era considerado por eles teologicamente distinto.
O resultado foi uma confusão séria: tanto os católicos romanos quanto os
protestantes usavam a mesma palavra, "justificação", para se referira coisas
diferentes. Trento empregou o termo 'justificação" para designar aquilo que os
protestantes consideravam justificação e santificação.

2. A natureza daJustiçajushificatk)ritt

Lutem enflutizou o fato de que os pecadores não possuíam nenhuma jusúÇa em si


mesmos. Não tinham nada dentro de si que pudesse ser considerado a base para a
decisão graciosa de Deus de justificá-los. A doutrina de Lurem da "justiça alheia de
Cristo (ftístitia Cluimi aliena)" deixou claro que a justiça que justifica os
pecadores estava fora deles. Era imputada, e não concedida; era externa, e não
interna.
Os primeiros críticos da Reforma argumentavam, seguindo Agostinho de Hipona,
que os pecadores eram justificados com base numa justiça interna infundida ou
implantada graciosamente por Deus no ser interior. Essa justiça era, ela própria,
concedida como um ato de graça; não era algo merecido. No comuto,
argumentavam eles, devia haver algo dentro dos indivíduos que podia permitir que
Deus os justificasse. Lutem rejeitou essa idéia. Se Deus havia decidido justificar
alguém, podia muito bem flizê-lo de maneira direta em vez de usar um dom
intermediário de justiça.
Trento defendeu energicamente a idéia agostiniana de justificação com
base numa justiça interna. O capítulo sete apresenta esse ponto com clare-
za inequívoca:
A causa formal (ou justificação) única é a justiça de Deus -nãoajustiça pela qual
ele próprio é justo, mas ajustiça pela qual ele nos torrajustos, de modo que, ao
sermos dotados da mesma, somos "[renovados] no espírito do [nosso]
entendimento" (Ef 4.23), e não apenas considerados justos, mas chamados, de
fato, de justos... Ninguém pode ser justo senão pela transmissão por Deus dos
méritos da paixão de nosso Senhor Jesus Cristo a rase indivíduo, o que ocorre ma
justificação do pecador.
A expressão "causa formal única" deve ser explicaria. Uma causa "formal"
é uma causa direta ou mais imediata de algo. Assim, Trento está declarando
que a causa direta da justificação é a justiça que Deus nos concede em sua graça
— contrastando com causas mais distantes de justificação, como a "causa
eficiente" (Deus) ou a "causa meritória" (Jesus Cristo). No entanto, é preciso
observar também o uso da palavra "única". Uma proposta de acordo entre
católicos romanos e protestantes que se tomou particularmente preeminente no
Colóquio de Ratisboar em 1541 foi a de que se devia reconhecer duas causas de
justificação — uma justiça externa (a posição protestante) e uma justiça interna (a
posição católica). Esse acordo parecia relativamente promissor.

No entanto, Trento não lhe deu atenção. O uso da palavra "única" foi
deliberado, visando eliminara idéia de que podia haver mais de uma causa.
A causa direta única riajustificação era o dom interior clajustiça.

3. A natureza da fé justificadora

A doutrinada justificação somente pela fé defendida por Lutem foi alvo de


críticas severas. O cânon 12 condena um aspecto central do conceito de Lutero
de fé justificadora ao rejeitara idéia de que "a fé justificadora não é outra coisa
senão a confiança na misericórdia de Deus que perdoa os pecados por amora
Cristo". Em parte, essa rejeição da doutrina dajustificação de Lutero reflete a
ambigüidade antes observada referente ao significado do termo "Justificação".
Trento se espantou com a idéia de que alguém viria a crer que poderia
serjustificado — no sentido Tridentino do termo—pela fé, sem nenhuma
necessidade de obediência ou renovação espiritual. Interpretando a `justificação"
como o começo da vide crista e também sua continuação e crescimento, Trento,
acreditava que Lutero estava sugerindo que o simples fato de crer em Deus (sem
nenhuma exigência de que o pecador fosse transformado e renovado por Deus)
servia de base para toda a vida cristã.
Na verdade, Lutero não estava dizendo nada disso. Antes, estava afirmando
que a vida cristã começava por meio da fé, e somente da fé; as boas obras eram
uma decorrência rIajustificação, e não a sua causa inicial. O próprio Concilio de
Trento estava perfeitamente disposto a aceitar que a vida cristã se iniciava pela fé,
se aproximando desse modo da posição de Lutero. Conforme o capítulo oito do
Decreto acerca da Justificação afirma, "somos declarados justificados pela fé,
pois a fé é o princípio da salvação humana, a base e raiz da justificação, sem a
qual é impossível agradara Deus". Talvez este seja um exemplo clássico de um
mal-entendido teológico baseado no significado controverso de um termo
teológico importante.

4. A certeza da salvação

Para Lutero, como para os reformadores em geral, um pessoa podia ter certeza
da sua salvação. A salvação era alicerçada na fidelidade de Deus às suas
promessas de misericórdia; deixar de ter certeza da salvação era, na verdade, o
mesmo que duvidar da conflabilidade, e fidelidade de Deus. E, no entanto, essa
certeza não deve ser vista como uma confiança suprema em Deus sem nenhum
traço de dúvida. Fé não é o mesmo que certeza; apesar do alicerce teológico da fé
cristã permanecer firme, a percepção humana desse alicerce e seu compromisso
com o mesmo podem vacilar.
Calvino, considerado com freqüência o reformador mais seguro quanto às
questões de fé, fala claramente dessa relação entre certeza e percepção,
apresentando do seguinte modo a sua definição de fé:

Mas teremos num definição caneta de fé se dissermos que ela é o


conhecimento conserto, e cento, da benevolência divina para conosco,
fundamentado na verdade da promessa graciosa de Deus em Cristo, e
e,velar, à nossa mente e selado em nosso coração pelo Espírito Santo.

No entanto, de acordo com Calvino, a certeza dessa declaração não con-


duz necessariamente à segurança psicológica. É perfeitamente coerente
com uma luta contínua do cristão com a dúvida e ansiedade:

Quando enfatizamos que a fé deve ser certa e segura, não temos em


mente uma certeza sem dúvida, ou ..a segurança sem ansiedade. Antes,
afirmamos que os enxutos oravam, U. luta perpétua com sua própria falta
de fé e estão longe de ter uma consciência tranqüila que nunca é agitada
por alguma perturbação. Por outro lado, desejamos negar que eles podem
abandonar ou se afastar da sua confiança na misericórdia divina, por mais
perturbados que estejam.

O Concílio de Trento considerou a doutrina da certeza da salvação de-


fendida pelos Tefortriadirres, com grande ceticismo. O capítulo nove do
Decreto acerca da Justificação chamado "Contra a certeza vã dos hereges"
criticava a "certeza ímpia" dos reformadores. Apesar de ser verdade que
ninguém deve duvidar da bondade e generosidade de Deus, os
têmintadores, caíam em crio sério ao ensinar que "ninguém é absolvido
dos pecados e justificado se não crer com certeza que foi absolvido e
justificado, e que a absolvição e justifica ção são realizadas somente por
essa fé". Trento insistiu que "ninguém pode saber com certeza de fé isenta
de erro, se obteve a graça de Deus".

Trento argumentou que os reformadores pareciam estar fazendo da con-


fiança ou ousadia humana a base da justificação, de modo que a
justificação era fundamentada numa convicção humana, e não na graça de
Deus. No entanto, os reformadores enfatizaram que a justificação se
baseava nas promessas de Deus; deixar de crer ousadamente nessas
promessas era o mesmo que duvidar da confiabilidade de Deus.
A discussão entre Trento e a Reforma continua sendo importante, como os
diálogos ecumênicos recentes entre diversas denominações protestantes e a
igreja católica romana deixam claro. Pode-se dizer o mesmo das discussões
da Reforma sobre os sacramentos, tema do nosso próximo estudo de caso.
Estudo de caso 3.3 A natureza da presença real: Lutem, Zwinglio
e o Concilio de Vento

O que acontece na eucaristia? De que maneira o pão e o vinho


eucarísticos se transformam, se é este o caso, como resultado de serem
usados nessa ministração? Várias abordagens à questão foram exploradas
durante o século 16; destas, três são particularmente importantes.
Investigaremos essas
abordagens individualmente, começando com o conceito católico
tradicional de transubstanciação, segundo o qual a realidade interna
do pão e vinho eucarísticos é transformada no sangue e corpo de Cristo.

Transubstanciação

A doutrina da transubstanciação, definida formalmente pelo Quarto


Concílio de Latrão (1215) se baseia em fundamentos aristotélicos – mais es-
pecificamente, na distinção feita por Aristóieles entre "substância" e
"acidente". A substância de algo é sua natureza essencial, enquanto seus
acidentes são suas aparências externas (como, por exemplo, cor, forma,
odor, e assim por chame). A teoria da transubstanciação afirma que os
acidentes do pão e do vinho permanecem inalterados no momento da
consagração, enquanto sua substância passa daquela de pão e vinho para
aquela de corpo e sangue de Cristo.
Como veremos adiante, este conceito da natureza da presença real foi
contestado no início do século 16. Maninho Lutero apresentou uma
abordagem que costuma ser chamada de "consubstanciação" que diferia
desse conceito em alguns pontos (apesar de também apresentar
semelhanças expressivas, como ficará claro). De modo mais radical,
Zwinglio adotou uma abordagem partarmente simbólica ou "memorial"
da questão. Porém, o Concílio de Trento defendeu energicamente o ponto
de vista tradicional.

No decorrer da sua décima terceira sessão, encerrada em 11 de outubro


de 1551, o Concílio de Trento apresentou uma declaração definitiva de
sua visão da natureza da presença real de Cristo na eucaristia,
afirmando que o temo "transubstauciação" era apropriado para se
referirá mudança de substância do pão e do vinho resultante de sua
consagração. O Decreto começa com uma declaração enérgica da
presença real e substancial de Cristo: "Depois da consagração do pão
e do vinho, nosso Senhor Jesus Cristo se encontra verdadeira e
substancialmente contido no sacramento venerável da sagrada eucaristia
soba aparência de coisas físicas". Assim, o Concilio defendeu com
veemência tanto a doutrina quanto a terminologia da transubstanciação:
Terdo em vista Cristo nosso Redentor haver declarado que era verda-
deiramente o seu corpo que ele estava oferecendo sob a espécie de pão,
sempre foi a convicção da Igreja de Deus, que este concílio restituía,

que pela consagração do pão e do vinho ocorre uma mudança na qual toda a
substância do pão se toma a substância do corpo de Cristo nosso Senhor e toda
a substância do vinho se tom. a substância do seu sangue. À essa mudança, a
Igreja Católica dá o nome apropriado e cometa de "transubstanciação".

Observe especialmente a defesa enérgica da mudança da substância de


pão e do vinho para a de corpo e sangue de Cristo, que pode ser
considerada o cerne teológico dessa doutrina.

Lutero; consubstanciação

Essa idéia, associada especialmente a Maninho Lutem, insiste na pre -


sença simultânea tanto do pão quanto do corpo de Cristo. A substância
não passa por nenhuma mudança; a substância do pão e a substância do
corpo de Cristo estão presentes juntas. Para Lutero, a doutrina da
transubstanciação parecia um absurdo, uma tentativa de racionalizar um
mistério. A seu ver, o ponto crucial era o fato de Cristo estar verdadeiramente
presente na eucaristia — e não uma teoria específica acerca da maneira
como ele estava presente. Lutem toma uma imagem emprestada de Origens
para apresentar sua argumentação: quando colocado no fogo e aquecido, o
ferro se torna incandescente — nesse feno incandescente se encontram
presentes tanto o ferro quanto o calor. Por que não usar uma analogia
simples do quotidiano como esta para ilustrar o mistério da presença de
Cristo na eucaristia, em vez de racionalizar esse mistério através de uma
sutileza escolástica?

Da minha grade, se não sou capar, de sondara maneira como o pão é o corpo de
Cristo, ainda assim levarei cativo o meu pensamento â obedienvia de Cristo e,
simplesmente me apegando as suas palavras, crerei firmemente não apenas que o
corpo de Cristo está no pão, mas que o pão é o corpo de Cristo. Minha justificativa
paio isso são as palavras: "to-ateu o pão; e, tendo dado graças, o partiu e disse:
Isto [ou seja, este pão, que ele havia tomado e partido] é o meu corpo" (1 Co
11.23-24).

Não é na doutrina da transubstanciação que se deve crer, mas apenas na


realidade de que Cristo está verdadeiramente presente na eucaristia. Esse
fato é mais importante do que qualquer teoria ou explicação.
Esses pontos podem ser vistos claramente em seu tratado O Cativeiro
Babilônico da Igreja, de 1520, no qual Lutero apresentou uma crítica
fundamental aos ensinamentos da igreja medieval acerca dos sacramentos e
argumentou que o conceito de "transubstanciação" é indefensável. Ao
mesmo tempo em que Lutero insiste numa doutrina da presença real de
Cristo na eucaristia, ele se recusa a aceitar a interpretação especificamente
aristotélica associada à transubstanciação.

33.1 Marrinho Lutem: Acerca da doutrinada trarráudistandação

Por mais de mil e duzentos anosa igreja creu corretamente, sendo


que durante esse período os santos patriarcas nunca, em nenhum
momento ou lugar, mencionaram essa 'Iransubstanciação" (uma
palavra e uma idéia pretensiosas), até que a pseudofilosofia de
Aristóteles começou a se infiltrar na igreja nestes últimos trezentos
anos, durante os quais muitas coisas foram definidas
incorretamente como, por exemplo, que a essência divina não é
gerada nem gera: ou que a alma é a forma substancial do corpo
humano... Mas por que Cristo não poderia incluir seu corpo na subs-
tância do pão tanto quanto a inclui nos acidentes? No ferro
incandescente, por exemplo, as duas substâncias, fogo e ferro, se
encontram de tal modo combinadas que todas as partes são tanto ferro
quanto fogo. Por que não seria ainda mais possível o corpo glorioso
de Cristo estar contido em todas as partes da substância do pão?...
Aquilo que vale para Cristo um-bem vale para os sacramentos. A fim
de a divindade habitar num corpo humano não é necessário a natureza
humana ser transubstanciada e a divindade ser contida sob certos
acidentes da natureza humana. As duas naturezas simplesmente estão
presentes em sua totalidade e é correto dizer: "Este homem é Deus;
este Deus é homem". A filosofia não pode entender isso, mas a fé
pode. E a autoridade da Palavra de Deus é ainda maior do que a
capacidade de nosso intelecto de compicendê-la. Semelhantemente,
não é necessário que rio sacramento o pão e o vinho sejam
trarsubstanciados e que Cristo seja contido sob certos acidentes a fim
de que o corpo real e o sangue real estejam presentes. Ambos
permanecem lá ao mesmo tempo e diz-se verdadeiramente: "Este
pão é o meu corpo; este vinho é o meu sangue", e vice-versa.
(Entenderei desse modo por ora tendo em vista a honra das palavras
sagradas de Deus, contra as quais não permitirei que se cometa
nenhuma violência por meio de argumentos humanos insigni-
ficantes, como também não permitirei que sejam distorcidas de modo a
significar algo diferente do seu sentido verdadeiro.)

Zwinglio: memorial

Para Zwinglio, a eucaristia é'um mentonal do sofrimento de Cristo, e


não um sacrifício-. Por motivos que investigaremos mais adiante,
Zwinglio insiste que estas palavras "isto é o meu corpo" não podem ser
entendidas literalmente, eliminando, desse modo, qualquer idéia de
"presença real de Cristo" na eucaristia. Assim como um homem, ao partir
numa longa viagem, pode deixar um anel com sua esposa para que ela
se lembre dele, também Cristo deixa para sua igreja uma recordação para
que ela se lembre dele até o dia em que ele voltar em glória.

Mas e quanto às palavras "isto é o meu corpo" (Mt 26.26), que haviam servido
de pedra angular para as idéias católicas da presença real e que Lutero havia
usado para defender essa mesma presença? Zwinglio argumentou que "há
inúmeras passagens nas Escrituras nas quais a palavra V quer dizer 'se -
proscrita—. A questão a ser tratada, portanto, é
Se as palavras de Cristo em Matruz 26, "isto é o meu corpo" também podem ser
entendidas memfaricariaen[e ou in tropice. Já ficou claro o suficiente que neste
contexto a palavra "é" não pode ser entendida literalmente. Segue-se, portanto,
que deve ser entendida melaffidca ou figuriucamente Nas palavras "isto é o meu
~', o termo "isto" se refer, ao pão e o termo "corpo", ao corpo que foi morto por
nós. Logo, a palavra "é" não pode ser entendida literalmente, pois o pão não é
o corpo.

João Calvino
Como anteriormente vimos, a discussão central entre Lutem e Zwinglio dizia
respeito à relação entre o sinal sacramental e o dom espiritual que este
representava. Pode-se dizer que Calvino ocupa uma posição mais ou menos
intermediária entre esses dois extremos. Argumenta que, nos sacramentos,
há uma ligação tão próxima entre o símbolo e o dom que ele simboliza que
podemos "facilmente passar de ura, para o outro". O sinal é visível e físico,
enquanto aquilo que é representado é invisível e espiritual — e, no entanto,
a ligação entre o sinal e aquilo que é representado é tão íntima que é
permissível aplicar um ao outro. Aquilo que é representado é realizado pelo
seu sinal.

Os cristãos devem sempre viver segundo esta regra: sempre que verem símbolos
determinados pelo Senhor, devem pensar e se convencer de que a verdade
daquilo que é representado está presente ali. Pois, por que o Senhor colocaria
em tuas mãos o símbolo de seu corpo se não estivesse certo de que
participarias de fato dele? E se é verdade que um sinal visível nos é dado para
selara dádiva de algo invisível, havendo recebido o símbolo do corpo,
estejamos certos de que o próprio corpo também nos foi dado.

Desse modo, Calvino pode manter a diferença entre o sinal e aquilo que é
representado e, ao mesmo tempo, insistir que o sinal aponta, de fato, para o
dom que ele representa.

Digo, portanto... que o mistério sagrado da Ceia do Senhor consiste em duas


coisas: sinais físicos que, quando colocados diante de nossos olhos, xtim,sentano
para nós (de acordo com nossa capacidade débil) coisas invisíveis; e verdade
espiritual que é, ao mesmo tempo, representada e apresentada através dos
símbolos em si.

Existe a possibilidade de considerara posição de Calvino uma tentativa de


conciliar as idéias de Zwinglio e Lutero, um exercício de diplomacia eclesi-

ástica num momento oportuno da história da Reforma. Na verdade,


porém, há poucas evidências que apóiem essa sugestão; a teologia
dos sacramentos de Calvino não pode ser considerada um acordo
obtido com bases políticas; antes, reflete sua visão da maneira como o
conhecimento de Deus nos é dado, particularmente em relação à idéia
de "acomodação".
Fica claro que havia uma discordância considerável dentro do Cristia -
nismo do século 16 acerca dessa questão importante, algo que persiste até
os dias de hoje.

Estudo de caso 3.4 A doutrina da igreja: tendências dentro do


protestantismo

A Reforma surgiu dentro de utra contexto que deu nova ênfase à impor-
tância desse grande escritor do final do século 5- e começo do século 6',
refletida na publicação da edição de Amerbach das obras de Agostinho em
1506. Em vários sentidos, porém, as idéias dos reformadores acerca da
igreja são o seu calcanhar-de-aquiles. Os reformadores foram confrontados
com dois pontos de vista firmes, porém opostos, acerca da igreja, dotados
de uma lógica com a qual não conseguiam competir – os pontos de vista
de seus oponentes dentro do catolicismo e da Reforma radical. Para os
primeiros, a igreja era uma instituição visível e histórica que possuía uma
ligação histórica com a igreja apostólica; para os últimos, a verdadeira igreja
estava no céu e nenhuma instituição aqui na terra era digna de ser
chamada pelo nome de "igreja de Deus". Os reformadores magisteriais
tentaram se colocar numa posição intermediária entre esses dois pontos de
vista opostos e, em decorrência disso, acabaram envolvidos em
incoerências graves. Neste estudo de caso, investigaremos os diversos pontos
de vista acerca da doutrina da igreja encontrados na Reforma protestante,
observando os paralelos extraordinários com a controvérsia donatista
(da qual tratamos no estudo de caso 1.6).

Lutem estava certo de que a igreja de seu tempo e de sua era havia
perdido de vista a doutrina da graça, que ele considerava o centro do
evangelho cristão. Convicto de que a igreja católica havia se
desviado dessa doutrina, Lutem concluiu (ao que parece, com certa
relutância) q ue havia perdido seu direito de ser considerada uma
igreja cristã autêntica. Os católicos responderam a essa sugestão com
desprezo: Lutem estava apenas criando uma facção separatista sem
nenhuma ligação com a igreja. Em outras palavras, era um cismático
– e, acaso, o próprio Agostinho não havia condenado o cisma e dado
grande ênfase à unidade da igreja dentro da qual Lutem ameaçava
causar separação? Podemos observa aqui um ponto de referência
histórico importante que teria um papel crítico nas discussões sobre a
igreja no século 16: a Reforma pode, pelo menos em alguns sentidos,
ser considerada uma reprise da controvérsia donatista do século 4-. Ao
que parece, Lutem só podia defender a doutrina de Agostinho acerca
da graça rejeitando a doutrina de Agostinho acerca da igreja.
"Considerada internamente, a Reforma foi apenas o triunfo final

da doutrina da graça de Agostinho sobre a doutrina da igreja de Agostinho'


(Benjamin B. Warfield). É no contexto dessa tensão entre dois aspectos do
pensamento de Agostinho que se mostraram incompatíveis no século 16 que
devemos ver os conceitos da Reforma acerca da natureza da igreja.
Lutem foi um cismático relutante. No período em que atuou como
reformador acadêmico, Lutero compartilhou um profundo desgosto pela
separação. Até mesmo a controvérsia em tomo das Noventa e Cinco
Teses sobre as indulgências de 31 de outubro de 1517 não persuadiu
Lutero a romper com a igreja. No século 20, estamos acostumados com o
fenômeno do "denominacionalismo" – mas até a simples idéia de a igreja
ocidental se fragmentar em partes menores era completamente estranha ao
período medieval. Em temos claros, o cisma era impensável. Como o próprio
Lutero escreveu no início de 1519: "Se, infelizmente, há coisas em Roma que
não podem ser melhoradas, não há –e não pode haver – nenhum motivo
para se separar da igreja em cisma. Antes, quanto piores as coisas ficam,
mais é preciso ajudar e apoiar a igreja, pois nada pode ser resolvido com
cisma e desprezo". As idéias de Lutero neste caso são paralelas às de
outros grupos reformadores de toda a Europa: a igreja deve ser reformada
de dentro para fora.

A suposição de que a alienação crescente da Reforma de Wittenberg da


igreja católica era puramente temporária parece estar por trás de grande
paire do pensamento dos escritores luteranos do período de 1520 – 1541.
Tudo indica que a facção evangélica de Wittenberg acreditava que igreja
católica acabaria, de fato, se reformando, talvez através da convocação,
dentro de alguns anos, de um concilio visando esse fim. Os luteranos
poderiam, então, se juntar novamente â igreja renovada e reformada.
Assim, a Confissão de Augsburg (1530), que apresenta os pontos principais
da crença luterana é, na verdade, extraordinariamente conciliatória em
relação ao catolicismo. No entanto, essas esperanças de reunião foram
despedaçadas na década de 1540. Em 1541, o Colóquio de Regensburg
(também conhecido como Colóquio de Rafisbon), no qual um grupo de
teólogos protestantes e católicos se reuniu para discutir suas diferenças,
pareceu não oferecer nenhuma esperança de reconciliação. As discussões
terminaram em fracasso.
Em 1545 o Concilio de Trento finalmente se reuniu para organizar uma
resposta católica à Reforma e instituir um grande programa de reforma
no meio eclesiástico. Alguns dos participantes do Concílio, como o
cardeal Reginald fole, tinham esperanças de que se mostraria conciliatório
em relação ao protestantismo. Mas as decisões do Concilio acabaram com
essas esperanças. As igrejas protestantes precisavam reconhecer que sua
existência como entidades separadas era permanente, e não temporária.
Tinham de justificar sua existência como "igrejas" cristãs junto a uma
instituição que parecia ter muito mais direito de usar esse titulo – a própria
igreja católica.
Com base nessa introdução histórica sucinta, fica evidente que o imergisse
dos reformadores na teoria da igreja começou a se desenvolver mais expres-

sivamente a partir da década de 1540. Foi uma questão que preocupou


a segunda geração de reformadores, e não a primeira. Se Lutero
estava preocupado com a questão, "Como posso encontrar o Deus
da graça?", seus sucessores foram obrigados a tratar da questão
decorrente — "Onde posso encontrara verdadeira igreja?". Era
necessário apresentar umaiustificativa teórica para a existência separada
das igrejas evangélicas. O mais influente dos reformadores da segunda
geração é, evidentemente, João Calvino, e é em seus escritos que en-
contramos, aquelas que talvez sejam as contribuições de maior
importância para essa discussão. Investigaremos a seguir algumas
discussões seminais do século 16 acerca da natureza da igreja.

Matúnho Lutero

Como anteriormente vimos, os primeiros reformadores tinham a convicção


de que a igreja medieval havia se corrompido e que sua doutrina se encon-
trava distorcida em decorrência, por um lado, de um afastamento das
Escrita ras; e, por autua, dos acréscimos humanos às Escrituras. As primeiras
idéias de Lutero acerca da natureza da igreja refletem essa ênfase sobre a
Palavra de Deus: a Palavra de Deus avança conquistando e onde quer que
ela conquiste e obtenha a verdadeira obediência a Deus, a igreja está
presente.

3.4.1 Maninho Lutero: Acerca da natureza da igreja

Deve-se reconhecer que o povo cristão santo possui a palavra santa


de Deus, mesmo que nem todos a possuam na mesma medida,
como diz São Paulo (ICo 3.12-14). Alguns a possuem completa e
puramente, outros não tão puramente. ... Esta coisa sagrada e a
coisa sagrada verdadeira, a verdadeira unção que unge com vida
eterna, ainda que não tenhas uma coroa papal ou o chapéu de um
bispo, e que morras desguarnecido e nu, feito crianças (como
somos todos), que são batizadas nuas sem nenhum adorno desse
tipo. Mas estamos falando da palavra externa, pregada oralmente
por pessoas como tu e eu, pois foi isso que Cristo deixou como
sinal externo, por meio do qual sua igreja, ou seu povo cristão no
mundo, deve ser reconhecido... Onde quer que ouvires ou veres
essa palavra ser pregada, confessada, criada e praticada, não
duvides de que a verdadeira ecelesia santa canholica. um povo
cristão souto' está lã, ainda que em número muito pequeno.

Observe que as idéias de Lutero nessa passagem enfatizam o papel


central da palavra de Deus na constituição da verdadeira igreja. Um
ministério episcopalmente ordenado não é, portanto, necessário para
salvaguardara existência da igreja, enquanto a pregação do evangelho é
essencial para a identidade dessa

igreja, "Onde a palavra está, h á fé; e onde há fé, a verdadeira igreja


está presente". A igreja visível é constituída da pregação da Palavra de
Deus: nenhuma assembléia humana pode dizer `igreja de Deus" a menos que
esteja alicerçada nesse evangelho. A ligação histórica com a igreja primitiva
não é suficiente para determinar suas credenciais nesta questão. A visão de
Lutero da igreja é, portanto, funcional, e não histórica: aquilo que legitima a
igreja ou seus oficiais não é a ligação histórica com a igreja apostólica,
mas sim a ligação teológica com a mesma. É mais importante pregar o
mesmo evangelho que os apóstolos do que ser membro de uma instituição
que é historicamente proveniente deles.

A Reforma radical

Para os radicais como Sebastian Franck, a igreja apostólica havia sido


inteiramente comprometida em razão de suas ligações estreitas como
Estado que remontavam â conversão do imperador Constáramo. Aqui, Franck
apresenta o ponto de vista radical bastante característico de que a verdadeira
igreja deixou de existir depois dos apóstolos. Sua referência freqüente às
"coisas externas (externa)" é uma referência às cerimônias externa,
incluindo os sacramentos, que ele considerava "decaídos (lapsos)". A
verdadeira igreja só virá a existir no fim dos tempos, quando Cristo voltar em
glória part, reunir o povo disperso de sua igreja em seu reino. Até então, a
verdadeira igreja permanecerá oculta.

Afirmo, contra todos .,, doutores, que todas as coisas externas que esta vam
em uso na igreja dos apóstolos foram abolidas e que nenhuma delas deve
ser restaurada ou reinstituída, ainda que eles tirâmir, ido além da sua
autorização ou chamado e tentado restaurar esses sacramentos decaídos.
Porquanto a igreja permanecerá dispersada entre os pagãos até o tim do
mundo. De fato, o Anticristo e sua igreja só serão derrotados e eliminados na
vinda de Cristo, que reunirá o seu remo, Israel, que foi dispersado pelos
quatro cantos do mundo... As obras [daqueles que entenderam isto] foram
reprimidas como heresias ímpias e discursos bombásticos, e o lugar de honra
foi dado a insensatos como Ambrósia Agostinho, Ierônimo, Gregõrio – dos
quais nenhum conheceu a Cristo nem foi enviado por Deus paio ensinar.
Antes, todos foram e continuarão sendo apóstolos do Anticristo.

Assim como a maioria dos radicais se mostrava absolutamente lime em sua


aplicação do princípio de sola scriptura, também foram igualmente firmes em
suas idéias acercada igreja institucional. A verdadeira igreja estava no céu,
enquanto na tem estavam apenas suas paródias institucionais.
Ao respondera essa abordagem radical, Lutem foi obrigado a lidar com
duas dificuldades. Se a igreja não era institucional, mas sim definida pela
pregação do evangelho, de que maneira ele podia distinguir suas idéias
daquelas desses radicais? Ele próprio havia reconhecido que "a igreja é suam
mesmo

onde os fanáticos (o termo que Lutero usava para os radicais)


predominam, desde que não neguem a palavra e os
sacramentos". Atento para as realidades políticas de sua
situação, ele respondeu asseverando a necessidade de uma
igreja institucional. Da mesma maneira que temperou as
implicações radicais do princípio de sola scriptura com um
apelo â tradição (ver estudo de caso 3.1), Lutero temperou
suas idéias potencialmente radicais acerca da natureza da
verdadeira igreja com a insistência de que ela devia ser
considerada uma instituição histórica. A instituição da igreja era o
meio divinamente ordenado da graça. Mas ao refutar os radicais
afirmando que a igreja era, de fato, visível e institucional, Lutero
teve dificuldade de distinguir suas idéias das de seus opositores
católicos. Ele próprio avaliou esse problema:

Confessamos da nossa parte que há muita coisa boa e cristã sob o


papado; na verdade, tudo o que é cristão e bom pode ser encontrado
lá e veio a nós de,,,. fonte. Confessamos, por exemplo, que na
igreja papal estão presentes as verdadeiras Escrituras Sagradas, o
verdadeiro batismo, os verdadeiros sacramentos do altar, as
verdadeiras chaves para o perdão dos pecados, o verdadeiro ofício
do ministério, o verdadeiro catecismo na forma da oração do Pai-
Nosso, dos Dez Mandamentos e dos artigos dos Credos.
Assim, Lutero é levado a declarar que "a igreja falsa tem apenas a apa-
rência, apesar de também possuir oficiais cristãos". Em outras palavras,
a igreja medieval podia se parecer com a igreja verdadeira, m as na
realidade era algo diferente.
Nesse sentido, pode ser proveitoso discutirmos o paralelo com a controvérsia
doratista (ver estudo de caso 1.6). Os donatistas eram membros de um
movimento separatista da igreja do norte da África que insistia que a
igreja católica de seu tempo estava comprometida por causa de sua atitude
em relação às autoridades romanas durante o período de perseguição.
Somente aqueles que não haviam comprometido sua integridade religiosa
pessoal podiam ser reconhecidos como membros da verdadeira igreja.
Agostinho argumentou em favor dos católicos: era preciso reconhecer
que a igreja possuía uma membresia mista, formada de santos e
pecadores. Os justos e os ímpios coexistiam dentro da mesma igreja e
nenhum ser humano linha autoridade de extirpar os perversos da
congregação.

Agostinho usou a "parábola do trigo e do joio" (Mt 13.24-3 1) para apoiar sua
argumentação. Nessa parábola, o proprietário de um campo descobre certa
manhã que há trigo e joio crescendo lado a lado em suas terras. Uma vez
que não existiam herbicidas seletivos naquele tempo, ele se mostra
relutante em tentar remover o joio: ao fazê-lo acabaria, inevitavelmente,
danificando também uma pane do trigo. Sua solução para o problema é
esperar até o trigo estar pronto para a colheita e, então, separa m do joio.
De acordo com Agostinho, essa parábola se aplica à igreja. Como o campo
da parábola, a igreja tem tanto trigo quanto joio, os justos e os ímpios, que
coexistem até o dia do julgamento.

Nesse dia, Deus fará distinção entre eles – e nenhum ser humano tem
permissão de realizar antecipadamente o julgamento de Deus. Assim, até o
fim dos tempos, haverá tanto o bem quanto o mal dentro da igreja. Agostinho
argumenta que o retino "católico" (que significa, literalmente, "inteiro"),
conforme este é aplicado à igreja, descreve sua membresia mista de santos e
pecadores.
Os conceitos "donatistas" e "agostinianos" de igreja são, portanto, bas -
tante distintos. Lutem aceitou a visão de Agostinho de que a igreja é uma con-
gregação "nisto", enquanto os radicais desenvolveram uma visão donatista
da igreja corno uma congregação dos justos e somente destes. Como os
donatistas, os radicais exigiam de seus membros a perfeição moral. A
igreja e o mundo eram tão opostos quanto a luz e as trevas e não havia lugar
em seu pensamento para considerar aquilo que, para eles, não passava de
transigência política da parte de Lutero e Zwinglio. Para Lutero, porém, é
possível encontrar membros corruptos dentro da igreja "como é possível
encontrar excrementos de rato no meio de grãos de pimenta ou Joio no meio
do trigo". Trata-se de um dos fatos eclesiásticos d a vida que Agostinho
reconhece e com o qual Lutem concorda. A Reforma magisterial conduz,
portanto, ao estabelecimento de uma igreja, enquanto a Reforma radical
conduz à formação de seitas. A distinção sociológica entre os dois
movimentos reflete seus conceitos diferentes da natureza da igreja. Nesse
ponto, a teologia e a sociologia se encontram estreitamente ligadas.
(Observamos anteriormente a máxima conhecida que representa a Reforma
como o triunfo da doutrina de Agostinho acercada graça sobre a sua
doutrina acerca da igreja: é necessário observar aqui que Lutero e
outros reformadores magisteriais mantiveram pelo menos esse aspecto da
teoria de Agostinho acerca da igreja.) Mas que justificativa Lutero tem, então,
para se separar da igreja católica? Esse aspecto da sua teoria da igreja não
indica, necessariamente, que sempre haverá corrupção dentro da
verdadeira igreja? Tomando por base a teoria de Agostinho, a corrupção
da igreja católica não significa, obrigatoriamente, que ela é uma Igreja falsa".

João Calvino

Um dos reformadores que mais lutaram com o problema proposto pela


doutrina da igreja foi Calvino. A primeira discussão mais relevante da teoria da
igreja se encontra na segunda edição de suas Institutos da Religião
Cristã, publicada em 1539. Apesar de Calvino tratar do assunto na primeira
edição de suas Instituías (1536), nessa época ele ainda era bastante
inexperiente, nas questões de administração ou responsabilidade
eclesiástica, o que explica a natureza curiosamente vaga de sua discussão.
Quando da segunda edição de sua obra, Calvino havia adquirido mais
experiência com os problemas apresentados pelas novas igrejas
evangélicas.

Para Calvino, a verdadeira igreja era caracterizada pela pregação da


Palavra de Deus e pela ministração correta dos sacramentos. Uma vez
que a igreja católica romana não se encaixava nem mesmo nessa definição
minimalista de igreja, os evangélicos tinham justíficativas de sobra parir deixá-
la. E, uma vez

que as igrejas evangélicas se conformavam a essa definição de igreja,


não havia justificativas para mais divisões no meio delas. Trata-se de um
ponto particularmente importante, refletindo a visão política de Calvino
de que a fragmentação das congregações evangélicas seria desastrosa
para a causa da Reforma.
Em 1543, Calvino já havia adquirido mais experiência nas responsabili-
dades eclesiásticas, especialmente durante o tempo que passou em
Estrasburgo. Marfim Bucer, o impulso intelectual por trás da Reforma em
Estrasburgo, tinha uma reputação sólida de administrador eclesiástico e é
provável que a teoria posterior de Calvino acerca da igreja reflita a
influência pessoal de Bucer. A divisão quádrupla do ofício eclesiástico nos
cargos de pastor, doutor (ou mestre), presbítero e diácono deve suas
origens a Bucer. Pode-se dizer o mesmo da distinção entre a igreja
visível e a invisível (da qual trataremos adiante). Não obstante, a sugestão
de Bucer de que a disciplina eclesiástica era uma característica
(tecnicamente, um "sinal" ou "marca") essencial da igreja não encontra
ressonância em Calvino. Apesar de Calvino incluir o "exemplo de vida"
entre "certas marcas inequívocas" da igreja na edição de 1536 das
Instituías, edições posteriores enfatizam, a pregação correta da palavra de
Deus e a administração dos sacramentos. A disciplina fortalece a igreja —
mas a doutrina salvadora de Cristo firma o seu coração e a sua alma.

Calvino faz uma distinção importante entre a igreja visível e a invisível. Em


um nível, a igreja é a comunidade de cristãos, um grupo visível. No entanto,
também é a comunhão dos santos e a companhia dos eleitos—uma entidade
invisível. Em seu aspecto invisível, a igreja é a assembléia dos eleitos,
conhecidos somente por Deus; em seu aspecto visível, é a comunidade dos
cristãos na terra. A primeira consiste somente dos eleitos; a segunda
inclui tanto os justos quanto os ímpios, os eleitos e os réprobos. Aprimeira
é um objeto de fé e esperança, a última é uma experiência presente. Calvino
enfatizo que, apesar das fraquezas da igreja visível, todos os cristãos têm o
dever de hormi-la e permanecer comprometidos com ela em função da igreja
invisível, o verdadeiro corpo de Cristo. Não obstante, existe apenas uma
igreja, uma única entidade que tem Jesus Cristo como cabeça.

A distinção entre a igreja visível e a invisível tem duas conseqüências im-


portantes. Em primeiro lugar espera se que a igreja visível inclua tanto os
eleitos quanto os réprobos. Agostinho de Hipona argumentou em favor
desse fato contra os donatistas usando como base a parábola do trigo e
do joio (Mt 13.24-31). Está além da competência humana discernira
diferença, correlacionando qualidades humanas com favor divino (de
qualquer modo, a doutrina de Calvino acerca da predestinação não
permite tal fundamento para a eleição). Em segundo lugar, porém, é
necessário perguntar qual das várias igrejas visíveis corresponde â
igreja invisível. Assim, Calvino reconhece a necessidade de articular
critérios objetivos pelos quais a autenticidade de determinada igreja
pode ser julgada. Dois critérios desse tipo são estipulados: "Onde quer
que vejamos a Palavra de Deus sendo pregada puramente e ouvida e os
sacramentos sendo ministrados segando a instituição de Cristo, não
podemos duvidar que a igreja

existe lV. Assim, não é a qualidade de seus membros, mas a presença do meio
autorizado da graça que constitui a verdadeira igreja. Isso pode ser visto clara-
mente na discussão de Calvino sobre as características identificadoras de uma
igreja, o assunto do qual trataremos a seguir.
3.4.2 João Calvino e as características distintivas da igreja

Onde quer que vejamos a Palavra de Deus sendo pregada puramente e ouvida e
os sacramentos sendo ministrados segundo a instituição de Cristo, não se pode
duvidar de maneira nenhuma que existe uma igreja de Deus... Se o ministério
tema Palavra e a honra, se tem a ministraÇão dos sacramentos, merece, sem
dúvida alguma, ser julgado e considerado uma igreja... Quando dizemos que o
ministério paro da Palavra e o modo puro de celebrar os sacramentos são
penhore garantia suficientes pelos quais podemos reconhecer uma igreja em
qualquer sociedade, queremos dizer que no lugar em que essas duas mamas
existem, a igreja não deve ser rejeitada, ainda que repleta de falhas em outros
aspectos. E mais, algumas faltas podem se infiltrar na trutristração da doutrina
ou dos sacramentos, mas isso não deve nos afastar da comunhão com essa igreja.
Pois nem todos os artigos da verdadeira doutrina têm o mesmo peso. Alguns
desses artigos devem, necessariamente, ser conhecidos e permanecer in-
contestáveis e indiscutids e ser considerados por todos artigos próprios para a
religião, como: Deus é um; Cristo é Deus e o Filho de Deus; nossa salvação se
baseia na misericórdia de Deus e assim por diante. Há outros [artigos de doutrina]
que são discutidos entre as igrejas e que, ainda assim, não rompem a unidade
da fé... Não estou sendo conivente com o erno, por mais insignificante que seja,
nem desejo incentiva M. No entanto, estou dizendo que não devemos desertar
uma igreja em função de um desacordo secundário caso esta preserve a sã
doutrina no tocante à piedade e o uso dos sacramentos instituídos pelo Serlhor.

Observe especialmente a ênfase constante de Calvino sobre o papel central da


pregação da Palavra de Deus e da minisaração correta dos sacramentos. Uma vez
que para Calvino há uma ligação estreita entre a Palavra de Deus e sua
corporificação ou representação nos sacramentos, é compreensível que ele escolha
associar essas duas questões. Também podemos observar que em sua definição de
igreja, Calvino não faz nenhuma referência a bispos ou a uma ligação histórica
com a igreja primitiva. Para Calvino, essas questões podem ser úteis, atas não
são decisivas. O que importa é que a igreja creia nos ensinamentos dos apóstolos e
pregue esses ensinamentos que se encontram registrados no Novo Testamento.

Estudo de caso 3.5 Teologia e astronomia: as


discussões de Nicolau Copérnico e Gafileu Galilei

Um dos avanços mais expressivos durante o período em questão é a im-


portância crescente das ciências naturais e o reconhecimento das possíveis
implicações de muletas e métodos novos para a teologia crista. Neste estudo
de caso examinaremos a controvérsia em tomo das idéias de Nicolau
Cotamico e Galileu Galilei com referência ao sistema solar.
Em maio de 1543, a obra de Nicolau Copérnico De revolutambris armara
coelestmin ("Sobre a revolução dos corpos celestes") foi, finalmente, publicada.
De acordo com uma tradição bastante antiga, o livro foi lançado
exatamente em tempo de Copérinico ver uma cópia antes de sua morte em 24
de maio desse ano. O livro apresentava uma visão heliocêntrica do sistema
solar. De acordo com Copérnico, a Terra e os outros planetas giravam ao
redor do sol que ocupava o centro do sistema solar. (Concordava-se,
evidentemente, que a lua girava em tomo da Terra.) Essa proposta marcou
uma renúncia clara das idéias mais antigas segundo as quais todos os corpos
celestes — inclusive o sol e os planetas — giravam em tomo da Terra.
O modelo antigo (que costuma ser chamado de teoria `geocêntrica") era
amplamente aceito pelos teólogos da Idade Média que estavam tão acos-
tumados a ler a Bíblia de um ponto de vista geocêntrico que tiveram cena
dificuldade em lidar com essa nova abordagem. As primeiras defesas da
teoria copernicana a serem publicadas (como o Tratado sobre as Escrituras
Sagradas e o movimento da terra de G. J. Rlieticis, considerada a mais anti-
ga obra conhecida a tratar explicitamente da relação entre a Bíblia e a teoria
copernicamo tiveram, portanto, de lidar com duas questões. Em primeiro
lugar, tiveram de apresentar as evidências baseadas em observações que le-
varam à conclusão de que a terra e os outros planetas giravam ao redor
do sol. Em segundo lugar, tiveram que demonstrar que esse ponto de vista
era coerente com a Bíblia, que durante tanto tempo havia sido lida como
se apoiasse uma visão geocêntrica do Universo.
O avanço da teoria heliocêntrica do sistema solar levou os teólogos a
reexaminarem o modo como certas passagens bíblicas eram
interpretadas. Três abordagens amplas podem ser identificadas na tradição
cristã da interpretação bíblica.

1. Uma abordagem literal segundo a qual a passa gem em


questão deve ser entendida ao pé da letra. Uma interpretação literal
do primeiro capítulo de Gênesis, por exemplo, argumentaria que a
criação se deu em seis períodos de vinte e quatro horas.
2. Uma abordagem alegórica que enfatiza que certos trechos
da Bíblia são escritos num estilo que não permite uma interpretação
absolutamente literal. Durante a Idade Média, foram reconhecidos três
sentidos não-literais das Escrituras o que, para muitos escritores do
século 16, era um tanto complexo demais. De acordo com essa
abordagem, os primeiros capítulos de Gênesis são relatos

poéticos ou alegóricos dos quais se pode extrair princípios teológicos e


éticos; eles não são considerados relatos históricos literais das origens da
terra.
3. Uma abordagem buscada na idéia de acomodação. Esta é, de longe, a
abordagem mais importante em relação à interação da interpretação
bíblica com as ciências naturais. Essa abordagem argumenta que a
revelação ocorre de maneiras e formas cultural e antropologicamente
condicionadas, tendo como resultado a necessidade de serem interpretadas
apropriadamente. Essa abordagem tem uma longa tradição de uso dentro do
Judaísmo e, subseqüentemente, dentro da teologia cristã, sendo possível
mostrar sem dificuldade que exerceu influência no período patrístico. Não
obstante, seu desenvolvimento maduro pode ser encontrado no século
16. Essa abordagem argumenta que os primeiros capítulos de Gênesis
usam uma linguagem e imageria apropriadas para as condições culturais de
seu público original; não devem ser entendidos "literalmente", mas
interpretados para os leitores contemporâneos pela extração das idéias-
chave que foram expressas em formas e termos adaptados ou "acomodados"
especificamente ao público original.

A terceira abordagem se mostrou particularmente relevante durante as


discussões sobre a relação entre a teologia e a astronomia ao longo dos
séculos 16 e 17. Pode-se dizer que o famoso reformador João Calvino
(1509 — 1564) fez duas contribuições importantes e positivas para a
apreciação e desenvolvimento das ciências naturais. Em primeiro lugar,
ele incentivou o estudo das ciências naturais; em segundo lugar, eliminou
um grande obstáculo para o desenvolvimento desse estudo através de sua
visão de como a Bíblia devia ser interpretada em termos de
"acomodação" (conforme explicado acima). Sua primeira contribuição é
ligada especificamente â sua ênfase sobre a organização da criação; tanto o
mundo físico quanto o corpo humano dão testemunho da sabedoria e
caráter de Deus:

A fira de que ninguém seja excluído do meio de obter essa felicidade, aprouve a
Deus não apenas colocar em nossa mente as sementes da religião sobre as quais já
falamos, mas também tomar conhecida sua perfeição em toda a estimara do
universo e colocar-se às nossas vistas diaramente de maneira que não podemos
abrir nossos oflios, sem sermos compelidos a observá-lo... Para provar essa
sabedoria extraordinária, tanto os céus quanto a terra nos temerem evidências
incontáveis — não apenas as provas mais avançadas que a astronomia, a
medicina e todas as outras ciências naturais têm o propósito de ilusicar, mas
também as provas que chamam a atenção até do camponês mais iletrado que
não é capaz de abrir seus olhos sem vê-las.

Assim, Calvino louva o estudo tanto da medicina quanto da astronomia.


Essas ciências são capazes de sondar o mundo natural mais profundamente
do que a teologia e, desse modo, descobrir mais evidências da
organização da criação e da sabedoria do seu criador. Pode-se argumentar,
portanto, que Calvino

deu uma nova motivação religiosa para a investigação científica da


natureza. Esse estudo passou a ser visto como um novo meio de
discernir a mão sábia de Deus na criação. A Confissão Belga (1561),
uma declaração calvintista, de fé que exerceu influência particular no
norte da Europa, especialmente na Bélgica e Países Baixos (uma
região que se tomaria conhecida por seus botânicos e físicos), afirma
que a natureza, "perante nossos olhos, é como um livro formoso, em
que todas as criaturas, grandes e pequenas, servem de letras que nos
fazem contemplar 'os atributos invisíveis de Deus — . Assim, Deus
pode ser discernido no estudo detalhado da criação por meio das
ciências naturais.
A segunda grande contribuição de Calino foi eliminar um grande obstáculo
para o desenvolvimento das ciências naturais — o literalismo bíblico.
Calvino ressalta que a Bíblia trata, acima de tudo, do conhecimento de
Jesus Cristo. Não é um livro didático de astronomia, geografia ou biologia. E,
ao interpretara Bíblia, é importante ter em mente que Deus se "ajusta" às
faculdades da mente e do coração humano. A fim de que haja revelação,
Deus precisa descer ao nosso nível. Assim, a revelação apresenta-nos uma
versão em escala reduzida ou "acomodada" de Deus a fim de ir ao
encontro de nossas habilidades limitadas. Assim como uma mãe se
inclina a fim de se aproximar do seu filho pequeno, Deus se inclina ao
nosso nível. A revelação é um ato divino de condescendência.
No caso dos relatos bíblicos da criação (Gênesis 1), Calvino argumenta que
são adaptados às faculdades e horizontes de um povo relativamente sim -
ples e ingênuo; não visam ser entendidos como representações literais da
realidade. De acordo com ele, o autor de Gênesis "foi ordenado para ser um
mestre dos incultos e simples, bem como dos eruditos; não lhe seria
possível, portanto, alcançar seu objetivo sem lançar mão de meios mais
rudimentares de instrução. A expressão "seis dias de criação" não designa
seis períodos de vinte e quatro horas; é apenas uma adaptação à maneira
humana de pensar e se referir a um período extenso. As "águas sobre o
firmamento" são apenas uma forma adaptada de falar sobre as nuvens.
O impacto dessas duas idéias sobre a teorização científico, especialmente
durante o século 17, foi considerável. O escritor inglês Ldeard Wrigia. por
exemplo, defendeu a teoria heliocêntrica de Copérnico do sistema solar dos
literalistas bíblicos com o argumento de que, em primeiro lugar, as
Escrituras não se preocupavam com a física e, em segundo lugar, sua forma
de expressão era "ajustada ao entendimento e modo de falar do povo
comum, como amas que conversam com crianças pequenas". Esses dois
argumentos são derivados diretamente de Calvino que, nesse sentido, fez
uma contribuição fundamental para o desenvolvimento das ciências naturais.

Argumentos semelhantes surgiram na Itália durante as primeiras décadas do


século 17 com o itinorrutrimento de uma nova controvérsia sobre o modelo
heliocêntrico do sistema solar. Um dos resultados dessa controvérsia foi a con-
denação de Galiler, Galilei pela igreja católica romana, uma decisão
considerada um etro, claro de julgamento da parte de alguns burocratas
eclesiásticos. Galileu apresentou uma defesa momentosa da teoria
copermicana do sistema solar e, a princípio, suas idéias foram bem recebidas
dentro dos círculos mais elevados da igreja, em parte graças à alta
consideração que Giovanni Ciampoli — um favorito do papa — tinha por
Galileu. Quando Ciampoli perdeu sua posição de poder, Galileu ficou sem o
apoio dos círculos papais, o que provavelmente abriu caminho para a
condenação de Galileu por seus inimigos.
A controvérsia ao redor de Galileu costuma ser retratada como uma polê-
mica entre ciência e religião, ou entre liberalismo e autoritarismo, mas,
na verdade, a questão central era a interpretação correm da Bíblia.
Acredita-se que, no passado, uma compreensão correta desse aspecto da
controvérsia não foi possível em razão de uma falha dos historiadores em
dar atenção às questões teológicas (mais precisamente, lhernuenêuticas) da
discussão. Pode-se ver como, em parte, isso reflete o fato de que muitos
dos estudiosos interessados nessa controvérsia em particular eram
cientistas ou historiadores da ciência que não estavam a par da
complexidade das discussões sobre a interpretação bíblica desse período
extraordinariamente intrincado. Não obstante, fica claro que a questão que
dominou a discussão entre Galileu e seus críticos foi a maneira de
interpretar certas passagens bíblicas. A questão da acomodação foi de suma
importância para essa discussão, como veremos adiante.
Uma obra expressiva publicada em janeiro de 1615 pode nos ajudar na
investigação dessa questão. Em sua Lettera sopra 1'opinione de'
Pittagorici e del Copernico ("Carta sobre a opinião dos pitagóricos e de
Copémico"), o frade carmelita Paolo Antonio Foscarmi argumentou que o
modelo heliocêntrico do sistema solar não era incompatível com a Bíblia.
Foscaritui não introduziu nenhum princípio novo de interpretação bíblica em
sua análise; antes, apresentou e aplicou as regras tradicionais de
interpretação:

Quando as Escritmits, Sagradas atribuem a Deus ou a qualquer outra criatura


algo que, de outro modo, seria impróprio ou incompatível, tal coisa deve ser
interpretada ou explicaria através de uma ou mais das seguintes maneiras. Em
primeiro lugar, diz-se que ta] atribuição é feita de maneira metafórica ou
proporcional, ou por semelhança. Em segundo lugar, diz-se... que é concorde
com nosso modo de consideração, apreensão, entendimento, conhecimento, etc.
Em terceiro lugar, diz-se que é feita de acordo com a opinião vulgar e o modo
comum de falar.
A segunda e terceira maneiras que Foscarim identifica costumam ser cem-
sidetuidas, tipos de "acomodação", o terceiro modelo bíblico de interpretação
observado acima. Como vimos, essa abordagem à interpretação bíblica
remonta aos primeiros séculos da Era Cristã e não era considerada
controversa.
A inovação de Foscartítui não estava no método interpretativo adotado, mas nas
passagens bíblicas às quais ele o aplicou. Em outras palavras, Foscarina su-
geriu que certas passagens que, até então, muitos interpretavam literalmente,
deviam ser interpretadas de acordo coma acomodação empregada. As
passagens às quais ele aplicou essa abordagem fortim aquelas que pareciam
sugerir que a terra permanecia parada enquanto o sol se movia. Eis a sua
argumentação:

As Escrituras falam de acordo como nosso modo de entender, e de


acordo com as aparências, e com respeito a nós. É por isso que
esses corpos parecem estar relacionados a nós e são descritos pela
forma co mum e vulgar de raciocínio humano, a saber, a terra parece
estacionária e imóvel e o sol parece girar ao redor dela.
ConseqUerrtamente, as Escrituras nos servem falando da maneira
vulgar e comum; pois do nosso ponto de vista parece, de fato, que a
terra está firmemente no centro e que o sol gira ao redor dela, e não o
contrário.

O envolvimento cada vez maior de Galileu com a posição copernicarra o


levou a adotar uma abordagem à interpretação bíblica semelhante a de
Foscarini.
A questão em pauta era como interpretara Bíblia. Os críticos de Galileu
argurarentavam, que algumas passagens o contradiziam. Diziam, por
exemplo,
que Josué 10.12 mostrava o sol parado por ordem de Josué. Isso não
provava
sem sombra de dúvida que era o sol que se movia ao redor da terra?
Em sua
Carta à Grã Condessa Christina, Galileu refutou dizendo que se tratava sim-
plesmente de um modo de falar. Não se podia esperar que Josué
soubesse dos
detalhes da mecânica celeste e, portanto, usou uma forma "acomodada" de
falar.

A condenação oficial desse ponto de vista se baseou em dum considerações:

1. As Escrituras devem ser interpretadas de acordo com "o


significado apropriado das palavras". A abordagem da acomodação
adorada por Foscarini é, portanto, rejeitada em favor de uma
abordagem mais literal. Conforme anteriormente ressaltamos, os dois
métodos de interpremção eram aceitos como sendo legítimos e tinham
um longo histórico de uso dentro da teologia cristã. A discussão girou
em remo da definição de qual método era apropriado para a passagem
em questão.
2. A Bíblia deve ser interpretada "de acordo com a interpretação
comum e a visão dos Santos Padres e de teólogos doutos", Em outras
palavras, argumentava-se que, tendo em vista nenhuma figura
importante haver adotado a interpretação de Foscarini no passado, esta
devia ser rejeitada como inovação.

Em decorrência disso, as idéias tanto de Galileu quanto de Foscarini


deviam ser rejeitadas como inovações sem precedente no pensamento
cristão.
Esse segundo ponto é extremamente relevante e deve ser examinado
com mais atenção dentro do contexto da discussão longa e amarga
alimentada no século 17 pela Guerra dos Trinta Anos (1618 – 1648)
entre o protestantismo e o catolicismo quanto a este primeiro ser uma
inovação ou uma restauração do Cristianismo autêntico. A idéia de
imutabilidade da tradição católica se tornou parte integrante da
polêmica dos católicos romanos contra os protestantes. Como Jacques-
Bénigne Bossuet (1627 – 1704), um dos mais formidáveis apologistas do
catolicismo murara expressou em 1688:

Os ensinamentos da igreja são sempre os mesmos... O evangelho nunca é


diferente daquilo que era antes. Portanto, se alguém em algum momento disser
que a fé inclui algo que não foi considerado como sendo da fé ontem, isto é
heterodoxia, ou seja, qualquer ensinamento diferente da ortodoxia. Não há
dificuldade em identificar os falsos enâminuenas, ou em argumentar a respeito dos
mesmos: são reconhecidos de imediato, sempre que aparecem, simplesmente pelo
fato de serem novos.

Esses argumentos foram amplamente usados no início do século e se encontram


refletidos e corponficados; claramente na crítica oficial a Foscarim. Ele oferecia
uma interpretação que jamais havia sido oferecida – e que era, por esse único
motivo, errada.
Fica claro, portanto, que essa discussão crítica sobre a interpretação da Bíblia
deve ser colocada dentro de um contexto complexo. O ambiente extremamente
tenso e politizado da época prejudicou seriamente a discussão teológica por medo
de que concessões a qualquer nova abordagem pudessem ser vistas como uma
concessão indireta à alegação protestante de legitimidade. Reconhecer que
ensinamentos católicos romanos sobre qualquer questão tivessem "mudado" era
o mesmo que, possivelmente, abriras comportas e levar a uma exigência inevitável
de reconhecimento da ortodoxia dos principais ensinamentos cristãos –
ensinamentos que a igreja católica romana havia conseguido rejeitar até então
como "inovações".

Assim, era inevitável que as idéias de Galileu sofressem resistência. O fator


crítico era a inovação teológica: concordar com a interpretação de Galileu para
certas passagens debilitaria seriamente as críticas dos católicos contra o
protestantismo, críticas estas que envolviam a asserção de que o protestantismo
introduzia interpretações novas (e, portanto, errôneas) de cenas passagens
biblicas. Era apenas uma questão de tempo até que suas idéias fossem rejeitadas.
Há um consenso de que a boa reputação de Galileu nos círculos eclesiásticos
durante um período surpreendentemente longo era ligada ao seu relacionamento
próximo comum predileto do papa, Gitovantri Ciampoli. Quando Ciampoli perdeu os
favores papais na primavera de 1632, Galileu se viu numa posição seriamente
enfraquecida, talvez fatalmente comprometida. Sem a proteção de Ciampoli,
Galileu ficou vulnerável às acusações de "heresia por inovação" feitas contra ele
por seus críticos.

A controvérsia ao redor de Galileu costuma ser apresentada em livros didáticos


de maneira extremamente simplificada, em geral, como um exemplo típico do
"conflito entre as ciências e a religião". Como este estudo de caso deixou claro,
as questões eram muito mais complexas do que isso. A controvérsia deve ser
colocada dentro do contexto da política palaciana, de conflitos de personalidade e
de uma luta ferrenha da paire da igreja católica para se defender do
protestantismo–bem como de uma tentativa genuína de entender a Bíblia
corretamente!

CAPÍTULO 4

DO PERÍODO MODERNO, 1750


- ATÉ O PRESENTE

Durante a segunda metade do século 15, o Cristianismo se tomou cada vez mais
uma religião européia. O islã havia iniciado um jihad ("guerra sana") contra o
Cristianismo vários séculos antes. Por volta de 1450, como conseqüência direta de
suas conquistas militares, o islã se encontrava firmemente estabelecido nas
regiões sudoeste e sudeste da Europa. Apesar de comunidades cristãs
continuarem a existir fora da Europa (principalmente no Egito, Etiópia, índia e
Síria), o Cristianismo estava se tomando geograficamente restrito e seu futuro
parecia incerto.
Um dos acontecimentos mais dramáticos desses últimos séculos foi a
recuperação do Cristianismo dessa crise. No século 20, o Cristianismo já se
encontrava firmemente estabelecido como religião predominante nas Améri-
cas, Austrália, sul da África e em várias nações insulares do Pacífico sul. Ao
longo deste capítulo, investigaremos de que maneira isso ocorreu. No entanto,
apesar dessa expansão dramática fora da Europa, o Cristianismo sofreu uma
série de retrocessos internos em seu antigo centro — a Europa ocidental.

O =CIMENTO DA INDIFERENÇA PELA RELIGIÃO NA EUROPA

Com o fim das Guerras Religiosas Européias, certo grau de estabilidade se


espalhou pelo continente. Apesar das controvérsias religiosas continuarem
de modo intermitente, passou-se a aceitar que certas partes da Europa eram
luteranas, católicas, ortodoxas ou reformadas. A sensação de exaustão
causada pelas Guerras Religiosas gerou interesse pela tolerância religiosa. O
argumento clássico em favor da tolerância da diversidade nas questões de
religião pode ser encontrado na obra de John Locke Ixuers Concerning
7oleration ("Cartas sobre a tiderância', 1689 — 1692). Locke argumenta em
favor da tolerância religiosa com base em três considerações gerais.

Em primeiro lugar, é impossível o Estado servir de árbitro entre duas partes


religiosas rivais que alegam declarar a verdade. Isso não significa que não existe
uma verdade absoluta em questões religiosas ou que todas as religiões são iguais no
que se refere aos seus insightà da realidade. A visão moderna associada, e
escritores como John Hick, de que todas as religiões são igualmente
válidas pode ser considerada uma extrapolação de uma avaliação política
para um plano metafÉsico. Antes, Locke ressalta que nenhum juiz terreno
pode ser chamado para resolver a questão. Por esse motivo, a diversidade reli-
giosa deve ser tolerada.
Em segundo lugar. Locke argumenta que mesmo que fosse possível
determinar que uma religião é superior a todas as outras, a imposição legal
dessa religião não levaria ao objetivo desejado da mesma. Neste caso, o
arguntretro de Locke é baseado no conceito segundo o qual "a religião
verdadeira e salvadora consiste na persuasão interior da mente, sem a qual
nada é aceitável a Dei,. E a natureza do entendimento é tal que este não
pode ser compelido a crer em nada por força externa". (É interessante
observar que o argumento de Locke nesse caso é moldado pelo conceito
cristão de salvação; uma religião que exige cordoronidade externa a um
conjunto de regras não se encaixa em sua análise.)
Em terceiro lugar, Locke argumenta, com bases pragmáticas, que os re-
saltados de se tentar impor a urrolormidade religiosa são bem piores do que as
conseqüências de se continuar a haver diversidade. A coerção produz
desarmonra interna ou até mesmo guerra civil. Assim, Locke argumenta que
a ver dado religiosa na(, pode ser determinada com certeza. Mesmo que
pudesse ser determinada com certeza, sua imposição não produziria a fé
interior. E se fosse imposta, os resultados negativos excederiam em muito as
vantagens obtidas.
No entanto, para Locke essa tolerância à diversidade religiosa não conduz à
diversidade moral. As controvérsias teológicas podem ser toleradas justamente
porque, na opinião de Locke, exercem um impacto sobre a concordância
moral essencial que seu sistema político pressupõe. Na verdade, Locke
sugere em várias ocasiões que as religiões — judaica, cristã e muçulmana —
são coerente, com a numalidade, pública e a sustentam. Alexis de Tocquevitle
argir. montou extensivamente em favor dessa idéia no século 19
observando que, apesar de haver "uma profusão incontável de seitas nos
Estados Unidos", ainda assim havia um consenso quanto ao dever e à
moralidade.
Pode-se considerar que a análise de Locke levou à idéia de que a religião é
uma questão privada indiferente para o âmbito público. Aquilo em que os
indivíduos crêem deve ser considerado privado, sem nenhuma relevância
para a esfera pública. Essa abordagem defendeu a tolerância religiosa e, ao
mesmo tempo, indicou que a religião não passa de um assunto particular.
Essa percepção foi forraflecida pelo surginticruto do Iluminismo, para o qual
as religiões eram expressões diferentes da mesma realidade suprema que
podia ser conhecida por meio da razão.
O conceito de tolerância religiosa foi particularmente importante em
relação à formação dos Estados Unidos da América durante o século 18.
Tramarmos agora dessa questão.

O CRISTIANISMO NA AMÉRICA rai, NORTE.: o GRANDE DESI`EREAR


E A REVOLUÇÃO NORTE-AMERICANA

Nos dias de hoje, os Estados Unidos da América são considerados


em geral a nação cristã mais importante. Uma vez que o
Cristianismo tem um papel expressivo na política nacional e
internacional dessa superpotência, e importante entender de que
maneira ele se tomou tão relevante para a vida dessa nação. Como
anteriormente observamos, o Cristianismo foi levado para a América
do Norte principalmente pelos refugiados que estavam tentando
escapar das perseguições religiosas endêmicas na Europa da época.
Em 1620, os primeiros peregrinos navegaram para Plymouth. Entre
1627 e 1640, cerca de quatro mil pessoas fizeram a travessia perigosa
do oceano Atlântico e se estabeleceram na baía de Massachriseus. Os
primeiros colonos na América do Norte eram, em geral, indivíduos
profundamente comprometidos coro suas convicções cristãs. A maioria
em de protestantes de língua inglesa, mas uma exceção importante é o
caso de Maryland, uni encrave católico durante a década de 1630. (A
comunidade católica dessa região só expandiu no século 19 com a
chegada de um grande mirrem de imigrantes católicos da Irlanda e Itália.)
Um interesse renovado na fé cristã resultou no "Grande Despertar" que
começou na cidade de Noilhariptor, no Maissacluíseus; na década de
1730 e, a princípio, girou em torno do ministério de Jurariam Edwards
(1703 — 1758). Os primeiros sinais de reavivamento foram observados
em 1727 por Thesidoar, Freylinghausen, um pastor holandês que
ministrava numa congregação em Raritan Valley, Nova Jersey. Mas foi
só no inverno de 1734 — 1735 que o reavivamento começou de fato em
Northampton. Esse movimento continuou durante o novo ano,
chegando ao seu auge nos meses de março e abril de 1735. Edwards
publicou relatos dos acontecimentos em Northampton na forma de
um livro A Faitíti`lí! Narrative of the Surprising Work of God [Uma
narrativa fiel da obra surpreendente de Deus], que atraiu atenção
internacional para o despertar. Entre 1737 e 1739 o livro passou por
três edições e vinte impressões. O obreiro inglês recém-chegado
George Whitefield (1714 — 1770), deu um novo rumo ao reavivamento
que estava em andamento na Nova Inglaterra. No outono de 1740,
Whitefield percorreu as colônias pregando, começando na Geórgia, no
sul, e chegando a Mame, no norte. Suas viagens causaram grande
sensação entre as colônias e diz-se que multidões de até oito mil
pessoas foram ouvi-lo pregar todos os dias durante quase um mês.
Benjamin Franklin ouviu Whitefield pregar na Filadélfia e ficou
admirado com o tamanho da multidão que havia se reunido para ouvi-lo
e coma qualidade de sua voz.

Esse reavivamento teve um impacto duradouro sobre o Cristianismo norte-


americano. Consolidou o papel dos pregadores ronronares que não tinham liga
ção com nenhuma denominação. Solapou a autoridade do clero das igrejas
estabelecidas que se sentiram profundamente ameaçadas pelo
irrompimento do interesse religioso popular. Os alicerces de uma cultura
popular massificirela haviam sido lançados e, nesse contexto, o Cristianismo
deixou de ser reservado a uma elite clerical dedicada à preservação da ordem
social existente e se tomou um movimento extremamente atraente paira as
massas. O clero oficial se recusou a deixar Whitefield pregar em suas igrejas;
ele respondeu pregando nos campos ao redor dass, cidades e atraindo um
público numeroso que jamais teria cabido dentro das igrejas n as quais ele havia
sido proibido de pregar. É possível que o grupo mais araneaçado por esses
acontecimentos tenha sido o clero colonial da Igreja da Inglaterra – os
guardiões da ordem social em vigor. Não é exagero dizer que as raizes da
Revolução Norte-Americana se encontram no afastamento crescente da nova
religião popular norte-americana da religião oficial da Inglaterra. Uma geração
depois do Grande Despertar as colônias se rebelaram.
As causas da Revolução Norte-Americana são complexas e envolvem várias
questões nutrir relacionadas. Talvez o tema predominante seja o desejo de se
libertar da influência da Inglaterra que passou a ser vista cada vez inais como
uma metrópole paternalista, opressora e exploradora. Esse desejo de liberdade
se expressou nos âmbitos político, econômico e religioso. A Igreja da
Inglaterra passou a ser vista, cada vez mais, como a dimensão religiosa do
colortialisnusi bunimeu. Durante a década de 1760, os protestantes se
esforçam para resistir à expansão da autoridade da Igreja da Inglaterra na
região. Essa igreja havia sido instituída por lei como igreja oficial das colônias
do sul e Iodo indicava que sua influência estava em ascensão. O Ato de
Quebec de 1774, que instituiu o catolicismo como religião oficial das colônias
de língua francesa do Carradá foi considerado particularmente prosocativo. Se
a Grã-Bretanha podia determinar a religião oficial do Canadá, o que faria nas
colônias da sua vizinha norte-americana? As suspeitas e hostiflidades
cresceram desenfreadamente.
A imposição do Imposto do Selo (1764) provocou clamores de —iiiiii que-
remos tributação sem representação". A decisão do parlamento britânico
em 1773 de dar à Companhia das índias Orentais o trarropnólio da
comircializaçao de chá na América do Noite provocou a 'Testa do Chá de
Bostim" [N. da T. – Ato de protesto dos colonos norte-americanos contra o
governo britânico. Os colonos lançaram no mar 342 caixotes de chá (num
valor estimado de dez mil libras) de três navios britânicos aportados em
Bristirtil e produziu inquietação geral em Massachusetts. Tropas inglesas
foram enviadas para restaurar a ordem, uma medida que foi interpretada pelos
colonos como um ato de guerra. Uma série de batalhas travadas em 1775
levou à Declaração da Independência no dia 4 de julho de 1776. Seguiu-se
uma guerra pela independência durante a qual os púlpitos das igrejas
serviram, em inúmeras ocasiões, de pontos de encontro pua comícios e
atividades revolucionárias. A Revolução acabou unindo grupos cristãos de
praticamente todos os credos a serviço de um objetivo maior. A Igreja da
Inglaterra ficou isolada e não tardou a perder todos os privilégios dos quais
havia desfrutado até então.
A Primeira Emenda da Constituição declarava que "O Congresso não pode
criar nenhuma lei referente à instituição de religiões ou à restrição do seu
exercício livre". Assim, a Constituição impedia a instituição formal de uma

religião oficial, o que significava que nenhuma igreja cristã (como a


Igreja da Inglaterra) poderia ter uma condição legal privilegiada pelo
Estado. Apesar de alguns teoristas constitucionais modernos
argumentarem que a intenção era removera religião da vida pública
norte-americana, fica claro que a Constituição visava simplesmente
evitar a concessão de primazia legal ou social a um grupo cristão
específico.
Nos Estados Unidas, a Revolução Norte-Americana consolidou o Cristia-
nismo. No entanto, no continente europeu, outra revolução estava
prestes a incomper. Neste caso, as conseqüências forno muito mais
abrangentes e negativas.
O DIVISOR IME ÁGUAS NA EtuttiPA: A REVOLuçÃo FRANCESA

A Revolução Francesa costuma ser destacada como o indicador do


auge do sentimento anti-religioso na Europa. Em 1789, a estrutura
social vigente na França foi abalada em suas bases por uma
insurreição popular que, por fim, deu cabo da monarquia e instituiu
uma república secular. A igreja e a monarquia eram os dois
sustentáculos da ordem vigente (conhecida como ancien régime).
Aquilo que começou como uma tentativa de reformar essas duas ins-
titunçoes terminou em uma revolução na qual o poder foi transferido
definitivamente da antiga aristocracia feudal para as classes médias em
ascensão.
Não havia praticamente nenhuma indicação de que uma mudança
tão radical estava a caminho. Poderia se traçar um paralelo com a
Revolução Norte-Americana da década anterior que havia levado â
consolidação da influência de várias famas de Cristianismo protestante
na região. Enquanto a religião oficial dessa região (a religião do poder
colonial —a Igreja da Inglaterra) sofreu um forte revés, outras formas de
Cristianismo fortaleceram sua posição. Considera-se, em geral, que a
separação enfie Igreja e Estado na América no Norte contribuiu para o
sucesso futuro do Cristianismo nessa região. Na França, porém, a
situação era bem diferente.
Estava claro que os dois pilares da sociedade francesa tradicional — a
monarquia e a igreja — precisavam ser reformados. Mesmo no final
do verão do ano momentoso de 1789 ainda havia uma impressão
geral de que o monarca francês havia permitido uma série de medidas

que aboliriam o feudalismo e atenderiam a algumas queixas do povo


em relação ao poder e aos privilégios da igreja. No dia 2 de
novembro, selou-se um acordo pelo qual todas as terras da igreja
seriam estatizadas e os clérigos receberiam um salário mínimo gama-
tido pelo Estado. A Constituição Civil do Clero (julho de 1790) rejeitou a
autoridade do Papa, reorganizou e reduzi u as dioceses e o clero
catedral. Apesar de serem radicais. essas medidas não se mostraram
contrárias ao Cristianismo. O clero se dividiu entre aqueles que
desejavam permanecer leais a Roma e aqueles que desejavam se
sujeitar à nova autoridade civil.

Tudo isso mudou logo em seguida. Uma facção revolucionária radical,


liderada por Robespierre, conseguiu subir ao poder e deu início ao seu
famoso "Reino de Terror". Luis XVI foi guilhotinado em praça pública em
21 de janeiro

de 1793 e, no período de 1793 — 1794 foi implantado um programa de


descristiantização. O culto à Deusa da Razão recebeu sanção oficial. O
calendário antigo foi substituído pelo calendário republicano que eliminou
os domingos e as festas cristas, colocando em seu lugar alternativas
seculares. Clérigos foram pressionados a renunciar sua fé e teve início um
programa para o fechamento das igrejas. Ao que parece, o impacto dessas
medidas foi sentido mais intensamente nas áreas urbanas, mas, ainda assim,
causou perturbações e dificuldades consideráveis para a igreja em todas as
partes da França.
As políticas religiosas da Revolução Francesa não demoraram a se espa-
lhar para as regiões vizinhas. Em novembro de 1792, os exércitos
revolucionarios franceses embarcaram numa campanha de conquista na
região. Em 1799, seis repúblicas-satchtes já haviam sido fundadas,
abrangendo áreas como os Países Baixos, Suíça, panes do noite da Itália e
regiões da Remonia. Em levemiro de 1798, os Estados papais foram
ocupados e o Papa foi deportado para a França, onde triont-eu seis meses
depois. Pam muitos, parecia que Revolução Francesa havia destruido não
apenas a igreja francesa, mas também o papada.
No limiar do século 19, o futuro do Cristianismo na Europa parecia,
portanto, extremamente incerto. Muitos o consideravam uma religião
atrelada às políticas de uma era ultrapassada, um obstáculo para o
progresso e a liberdade. Sua fé e suas instituições pareciam estar em
recheou irreversível. Na verdade, essa impressào se mostraria falsa. As
experiências revolucionária, com um estado secular acabaram
fracassando. Sob Napoleão, as relações com o Papa seriam
testabelecidas, ainda que em termos diferentes daqueles em vigor antes
da Revolução.
A monarquia Bourbon foi restaurada: em 1814, Louis XVIII voltou para
reivindicar o mino da França e restabeleceu o catolicismo. Em momento
algum foi uma situação fácil e as tensões reais entre a igreja e o Estado
continuam intensas ao longo de quase todo o século 19. Não obçtante, a
igreja conseguiu recobrar paire da influência, do prestígio e dos clérigos que
havia perdido. O período entre 1815 — 1848 testemunhou uma série de
reavivamentos populares (chamados de 1e Rêveil") na Europa de língua
francesa.
É evidente que parte da força da Revolução Francesa veio da visão
racionalista que impregnava as obras dos principais escritores franceses
da época como Denis Diderot (1713 — 1784), Jean-Jacques Rousseau
(1712 — 1778), e Voltante (1694 — 1778). Isso nos leva à consideração de
algumas das cosmovisões que dominaram o pensamento ocidental no
período moderno e seu impacto sobre o Cristianismo. A mais importante
destas é o movimento que costuma ser chamado de "lluminismo", do qual
imitarmos a seguir.

0 ILUNIÊNISNIO

O temo "Iiuminismo" só foi incorporado att vocabulário geral nas últimas


décadas do século 19. A expressão em alemão die Atifflartang
(literalmente, "o aclarmento") e a expressão em francês les lumières ("as
luzes") são do

século 18 mas não transmitem muita informação sobre a


natureza do movimento em questão. — fluministrio" é um termo
vago e difícil de definir com precisão que engloba um conjunto
de idéias e atitudes características do período entre 1720 —
1780, como o uso livre e construtivo da razão na tentativa de
demolir mitos antigos que, para muitos, eram cadeias que
prendiam os indivíduos e sociedades à opressão do passado. Se
há um elemento sublacente, comum em todo o movimento, talvez
se refira mais à maneira como os simpatizantes dessa
cosmovisão pensavam, do que ao conteúdo de seu pensamento.
A designação "Era da Razão" usada com freqüência como sinônimo
do Iluminismo é enganosa. Sugere que a razão havia sido, até
então, ignorada e marginalizada. E, no entanto, como
anteriormente vimos, a Idade Média foi uma "Era da Razão"
tanto quanto o Iluminismo; a diferença crucial se encontra na
maneira como a razão era usada e nos limites que se considerava
serem impostos sobre a mesma. O século 19 também não se
mostrou sempre racional em todos os sentidos. Na verdade, o
Iluminismo incluiu uma variedade extraordinária de movimentes
anti-racionais, como o mesmerismo e os rituais maçônicos. Não
obstante, uma ênfase sobre a capacidade humana de raciocinar e
penetrar os mistérios do mundo pode ser considerada
corretamente uma característica definidora do Ilutranimuito.
O termo "râcionalismo" também deve ser usado com cautela para
fazer referência ao finuninismo. Em primeiro lugar deve-se
observar que esse termo é empregado com freqüência de
maneira indiscriminada e imprecisa para designar o ambiente
geral de otimismo com base na crença no progresso científico e
social que permeou grande parte dos escritos desse período. O
uso do termo é confuso e deve ser evitado. Em seu sentido
correto, o racionalismo é, possivelmente, melhor definido como a
doutrina segundo a qual o mundo extemo pode ser conhecido
única e exclusivamente pela razão. Essa doutrina, que
écaracteiristicados primeiros escritores do período como
Descartes, Leibritz. Spinoza e Wolff, foi alvo de criticas intensas
no final do século 18, à medida que a influência da
cpistemologia empirista de John Locke se tornou amplamente
difundida. Kant que, com freqüência, é retratado como um
expoente da suficiência da razão pura, estava, na realidade,
extremamente consciente de suas [mutações, A teoria do
conhecimento desenvolvida em Critique of Pune Reastin, [Crítica
da ruão pura] (1781) pode ser considerada uma tentativa de
sintetizar as idéias acerca do racionalismo puro (que se baseia
somente na razão) e do empirismo puro (que se vale apenas da
experiência). Pode-se dizer que essa obra encerrou o período
inicial de racionalismo. Apesar de atribuir à razão um papel
expressivo em seu pensamento (como se vêem Refigion tinida
the Limits of Reason Alone [A religião dentro dos liames da
simples razão]), Kant mostrou uma consciência profunda das
implicaçoes, da ênfase empirista sobre a experiência sensorial.
Não obstante, as atitudes racionalistas persistiram durante boa
parte do século 19 e constituem um elemento importante da
crítica geral do Iluminismo ao Cristianismo.

O Iluminismo deu início a um período de grande incerteza para o


Cristianismo na Europa ocidental e América do Norte. O trauma da Reforma
e das Guerras Religiosas resultantes mal havia passado no continente
europeu e surgiu um desafio novo e mais radical para o Cristianismo. Se a
Reforma do século 16 desafiou a igreja a repensar suas formas externas e
a maneira como expressava suas crenças, no Iluminismo as credenciais
intelectuais do próprio Cristianismo (e não apenas de uma das suas
formas específicas) se viram seriamente ameaçadas em várias frentes. As
origens desse desafio remontam ao século 17 com o surgimento do
carresiarnistra, na Europa continental e a influência crescente do deismai
na Inglaterra. A ênfase cada vez maior sobre a necessidade de descobrir as
raizes racionais da religião teve implicações negativas consideráveis para o
Cristianismo, como os acontecimentos subseqüentes revelariam.

Nesse ponto, convém observar que foi a teologia protestante, e não seus
comelativos católicos romanos ou ortodoxos orientais, que se mostrou
especialmente aberta para as novas correntes que surgiram do Iluminismo e de
seus resultados. Essa desenvolução parece ter sido influenciada por vários
fatores, dos quatis os seguintes são particularmente relevantes:

1. O protestantismo era mais forte nas regiões da Europa em


que a influência do Iluminismo foi mais intensa.
2. As instituições eclesiásticas protestantes eram mais fracas
do que seus conelativos católicos romanos e, em decorrência disso,
professores de universidades e seminários protestantes desfirmavara de
mais liberdade acadêmica do que seus correlativos católicos romanos.
3. O protestantismo tinha ligações particularmente estreitas
com várias universidades do norte da Europa. Logo, as mudanças na cultura
acadêmica foram sentidas com mais força nas faculdades protestantes de
teologia.

Como ficará claro pelos textos apresentados na seção seguinte, isso sig-
nifica que todo relato da influência do Iluminismo sobre a teologia moderna se
concentrará na teologia protestante.

A crítica do Ilturtiraismo à teologia cristã: uma visão geral

A crítica do Iluminismo ao Cristianismo tradicional se baseou no printei pio da


omnicompetência da razão humana. Podemos discernir vários estágios do
desenvolvimento dessaidéia. Em primeiro lugar, argumentou-se que as cren-
ças do Cristianismo eram racionais e, portanto, poderiam ser submetidas ao
escrutínio crítico. Esse tipo de abordagem pode ser encontrada na obra de
John Locke Reasonableness ofChristiarniv [Razoabilidade do Cristianismo]
(1695), e no início da escola Wolífiana na Alemanha. Uma vez que o
Cristianismo em

um complemento racional para a religião natural, manteve-se o


conceito de revelação divina.
Nora segundo momento, argumentou-se que as idéias básicas do Cristia-
nismo, sendo racionais, podiam ser derivadas da própria razão. Não havia
necessidade de lançar mão da idéia de revelação divina. De acordo
com esse conceito, conforme foi desenvolvido por John Toland em
Christianity not Mysterious [Cristianismo não misterioso] ( 1696) e
por Manhew Tindal em Chrinâmily as 01d as Coraram [Cristianismo
tão antigo quanto a criação] (1730), o Cristianismo era,
essencialmente, a reedição da religião da natureza. Não transcendia a
religião natural; antes, era apenas um exemplo da mesma. Toda a
"religião revelada", por assim dizer, não passava, na verdade, de uma
reconfirmação daquilo que pode ser conhecido através da reflexão
racional acerca da natureza. A "revelação" era apenas uma reafirmação
racional das verdades morais que já se encontravam disponíveis para a
razão esclarecida.
No estágio seguinte, afirmou-se a capacidade da razão de julgar a revela-
ção. Uma vez que a razão crítica era omnicompetente, argumentou-se
que possuía a qualificação suprema para julgar as crenças e práticas
cristãs visando eliminar quaisquer elementos irracionais ou
supersticiosos. Essa visão, associada a Hermann Samuel Reinamos na
Alemanha e aos philosophes na França situou a razão firmemente
acima da revelação e pode-se vê-Ia simbolizada na entronização da
Deusa da Razão em Notre Datrac de Paris em 1793.
O Iluminismo foi, em sua maior parte, um fenômeno europeu e
americano e, portanto, ocorreu em culturas nas quais a forma de
religião numericamente mais expressiva era o Cristianismo. Trata-sede
uma observação histórica importante: a crítica do Iluminismo à religião
em geral foi, com frequência, particularizada como uma critica ao
Cristianismo em geral. Foram as doutrinas cristãs que passaram por
avaliações criticas realizadas com um vigor sem precedentes. Foram os
escritos sagrados do Cristianismo — e não do Islamismo ou hinduísmo
— que sofreram um escrutínio crítico sem precedentes, tanto em
termos retóricos quanto literários, que trataram a Bíblia "como se
fosse um livro qualquer" (Benjamin Josvctt). Foi a vida de Jesus de
Nazaré — e não a de Maomé ou Burla — que passou por uma
reconstrução crítica.
A atitude do Iluminismo em relação à religião se mostrou sujeita a um
grau considerável de variações regionais, refletindo diversos fatores locais
peculiares a diferentes situações. Dentre esses fatores, um dos mais
importantes é o pietismo, conhecido principalmente em sua forma
inglesa e norte-americana de metralisarto. Como anteriormente
observamos, esse movimento dava grande ênfase aos aspectos
experanciais da religião — ver, por exemplo, o conceito de John Wesley
de "religião experimental" (observe que Wesley usa o termo
"experimental" com o sentido de "experiencial"). Essa preocupação
com a experiência religiosa serviu para tomar o Cristianismo relevante e
acessível para a situação experiencial das massas, contrastando
claramente como imelecatrafistra, de outras formas de Cristianismo — como,
por exemplo, a ortodoxia luterana —

que foram consideradas irrelevantes. O pietismo formou uma ligação forte


entre a fé cristã e a experiência e, desse modo, transformou o Cristianismo
numa questão não apenas da mente, mas também do coração.
Como vimos, no final do século 17, o pietismo já se encontrava inteira-
mente consolidado na Alemanha, mas se desenvolveu na Inglaterra
apenas durante o século 18 e nem sequer chegou na França. Assim, o
Iluminismo antecedeu o desenvolvimento do pietismo na Inglaterra e, em
decorrência disso, os grandes reavivamentos do século 18 enfraqueceram
consideravelmente a influência do racionalismo sobre a religião. Na
Alemanha, porém, o Iluminismo veio depois do surgimento do pietismo e,
desse modo, se desenvolveu numa situação que havia sido moldada de
maneira expressiva pela fé religiosa, apesar de vir a representar um desafio
sério às formas e idéias recebidas dessa fé. (É interessante observar que o
deísmo inglês começou a ganhar influência na Alemanha mais ou menos na
mesma época que o pictivitiro alemão começou a se tornar influente na
Inglaterra.) A energia intelectual mais intensa do Ilaministrus alemão se
concentrou, então, em dar nova forma (e não rejeitar ou desatou) à fé cristã.

Na França, porém, o Cristianismo era visto de um modo geral como uma


religião opressora e irrelevante; como resultado, os escritores do fluitirriarísirar
francês - chamados com freqüência apenas de les philosophes - puderam
defender uma rejeição total do Cristianismo como um sistema de crenças
arcaico e desacreditado. Em seu Tratado sobre a ialerância, Denis Diderm
argumentou que o deísmo inglês havia feito uma série de concessões,
perinítindo que a religião sobrevivesse onde deveria ter sido inteiramente
crirarficada.

A crítica do Iluminismo à teologia cristã:


questões específicas
Depois de esboçarmos os princípios gerais do desafio iluminista, ao pen-
suarento cristão tradicional, convém explorar agem como esses princípios
tise= impacto sobre questões específicas de doutrina. A religião racional do
Iluminismo se viu em conflito com seis áreas centrais da teologia cristã.

A possibilidade de milagres

Uma parte considerável da apologética cristã acerca da identidade e sig-


nificado de Jesus Cristo era baseada nas "evidências miraculosas" do Novo
Testamento, culminando com a ressurreição. A nova ênfase sobre a
regularida-- de mecânica e organização do universo, talvez o legado intelectual
mais impor tante do newtotuarinismo, levantou dúvidas acerca dos relatos de
acontecimentos miraculosos encontrados no Novo Testamento. A obra de
Hume, Essas on Mira, les [Ensaio sobre milagres] (1748) foi amplamente
reconhecida como uma demonstração comprobatória da impossibilidade dos
milagres. Hume, enfiranizou, a inexistência de análogos contemporâneos dos
milagres do Novo Testamento

como a ressurreição, o que obrigava os leitores do Novo Testamento a


confiar inteiramente no testemunho humano de tais milagres. Para
Hume, era axiomático que o testemunho humano não era adequado
para provara ocorrência de um milagre na ausência de um análogo
contemporâneo. Remaras e G. E. Lessing negaram que o testemunho
humano de um acontecimento passado (como a ressurreição) fosse
suficiente para torná-lo crive] caso parecesse ser desmentido por
experiências diretas do presente, por mais bem documentado que esse
acontecimento passado tivesse sido.
Semelhantemente, Diderot declarou que, ainda que toda a população de
Paris lhe garantisse que um homem morto havia acabado de ser
ressurreto, ele não acreditaria numa só palavra. Esse ceticismo cada vez
maior em relação às "evidências miraculosas- do Novo Testamento
obrigou o Cristianismo tradicional a defendera doutrina da divindade de
Cristo com base em argumentos não relacionados a milagres - o que,
na época, ele se mostrou singularmente incapaz de fazer. Sem dúvida,
é preciso observar que outras religiões que envolviam evidências
miraculosas foram tratadas pelo Iluminismo com o mesmo tipo de
crítica cética. O Cristianismo acabou sendo escolhido como alvo de
comentários específicos em função do domínio religioso que exercia
no ambiente culrum] em que o Iluminismo se desenvolveu.

O conceito de revelação

Esse conceito ocupava uma posição central na teologia cristã tradicional.


Muitos teólogos cristãos (como Tomás de Aquino e João Calvino)
reconheceram a possibilidade do conhecimento natural de Deus, mas
também insistiram que esse conhecimento precisava ser
complementado pela revelação divina sobrenatural, como aquela da qual
as Escrituras dão testemunho. Durante o Iluminismo, desenvolveu-se
uma atitude cada vez mais crítica em relação à própria idéia de
revelação divina. Em parte, essa nova atitude crítica também se deveu
à depreciação iltirminista da História.
Para Lessing, havia uma "vala enorme e feia" entre a razão e a
História. A revelação se deu na História - mas qual era o valor das
verdades contingentes da História em comparação com as verdades
necessárias da razão? Os plorlosopires em particular asseveraram que
a História podia, na melhor das hipóteses, confirmar as verdades da
razão, mas não era capaz de determinar essas verdades por si
mesma. As verdades acerca de Deus eram cremas, abertas para a
investigação da razão humana, mas incapazes de serem reveladas em
"acontecimentos" como a história de Jesus de Nazaré.

A doutrina do pecado original

A idéia de que a natureza humana é, de algum modo, imperfeita ou


corrompida, expressa na doutrina ortodoxa do pecado original, foi
combatida energicamente pelo fiontinismo. Voltaire e Jean-Sirgues
Rousseau criticaram
a doutrina considerando que ela estimulava o pessimismo com respeito às
capacidades humanas e, desse modo, impedia o desenvolvimento social e
político humano e incentivava atitudes de Iaissez-
faire. Pensadores do Iluminismo
alemão tinham a tendência de criticar a doutrina pelo fato de ter raizes
históricas no pensamento de Agostinho de fifiporta, datado dos séculos 4 o e 5°,
o que, para eles, indicava que não tinha validade nem relevaram.
A rejeição do pecado original se mostrou, particularmente importante, uma
vez que a doutrina cristã da redenção se baseava na suposição de que a
humanidade precisava ser liberta da escravidão do pecado original. Para o
Iluminismo, era a idéia do pecado original em si que causava a opressão
da qual a humanidade precisava ser liberta. Essa libertação intelectual era
oferecida pela crítica do Iluminismo à doutrina.

O problema do mal

O Iluminismo testemunhou uma mudança fundamental na atitude para com


a existência do mal no mundo. No período medieval, a existência do mal não
era considerada uma ameaça para a coerência do Cristianismo. Acontradi-
ÇãG implícita na existência simultânea de uma onipotência divina
benevolente e do mal não era tida como um obstáculo para a fé, mas apenas
um problema teológico acadêmico. Durante o Iluminismo essa situação
mudou radicalmente. A existência ao mal se transformou num desafio à
credibilidade e coerência da própria fé cristã. O romance de Voltaire,
Candide, foi uma das muitas obras a ressaliar as dificuldades impostas à
cosmovisão cristã pela existência do mal natural (como o famoso terremoto de
Lisboa). O termo "teodicéia", criado por Leibniz, se originou nesse período e
rellete um crescente reconhecimento de que a existência do mal estava
adquirindo uma nova relevância dentro da crítica do Iluminismo à religião.

O strituis e a interpretação das Escrituras

Dentro do Cristianismo ortodoxo, quer protestante ou católico romano, a Bíblia


ainda era considerada, de um modo geral, uma fonte divinamente inspirada
de doutrina e moral que devia ser distinguida de outros tipos de literatura. Com
o surgimento da abordagem crítica às Escrituras durante o Iluminismo, essa
suposição passou a ser questionada. Trabalhando com idéias que já erain
correntes no decano, os teólogos do fanatismo alemão desenvolveram a
tese de que a Bíblia era uma obra de vários escritores que, por vezes,
apresentava contradições internas e estava aberta ao mesmo método de
análise e interpretação texma] que qualquer outra obra literária. Pode-se ver
formas mais desenvolvidas dessa idéia nos textos de J. A. Emesti (1761) e
J. J. Semler (1771). Essa mudança de visão enfraqueceu ainda mais o
conceito de "revelação sebicriatrial- e colocou em dúvida a relevância
permanente desses documentos fundamentais da fé cristã.

A identidade e o significado de Jesus Cristo

Uma última área na qual o Iluminismo desafiou seriamente a fé cristã


ortodoxa diz respeito à pessoa de Jesus de Nazaré. Dois acontecimentos
importantes devem ser observados: as origens da "busca pelo Jesus
históricd' e o surgimento da "teoria moral da expiação".
Tanto o deísmo quanto o Iluminismo alemão desenvolveram a tese
de que havia uma séria discrepância entre o Jesus real da História e a
interpretação do Novo Testamento da sua importância. Por trás do retrato
neotestamentario de um redentor sobrenatural da humanidade se
escondia uma simples figura humana, uru exaltado que ensinava
apenas o bom senso. Enquanto um redentor sobrenatural era
inaceitável pua o racionalismo iluminista, a idéia de um mestre moral
esclarecido era perfeitamente cabível.
Essa idéia, desenvolvida de maneira particularmente rigorosa por
Remontas, sugeria que era possível olhar por trás dos relatos
inartestamentários. de Jesus e descobrir uma figura mais humana e
simples de Jesus que seria aceitável para o novo espírito daquela era.
Iniciou-se, assim, a busca pelo "Jesus histórico" mais real e crível. Essa
busca estava fadada a fracassar, mas o Iluminismo posterior a
considerou essencial para a credibilidade de Jesus dentro do contexto
da religião natural racional. A autoridade moral de Jesus estava na
qualidade de seus ensinamentos e personalidade religiosa, e não na
sugestão ortodoxa inadmissível de que ele era Deus encamado.
A segunda área na qual as idéias da ortodoxia com referência a
Jesus foram desafiadas diz respeito ao significado da sua more.
Para a ortodoxia, a morte de Jesus na cruz em interpretada do ponto
de vista da ressurreição (que o Iluminismo não estava preparado
para aceitar como um acontecimento histórico) como um meio de
Deus perdoar os pecados da humanidade. Durante o flumunismos
essa "teoria da expiação" se tomou o alvo de um número cada vez
maior de criticas pelo fato de envolver, supostamente, hipóteses
arbitrárias e inaceitáveis como a do pecado original.
A morte de Jesus na cruz foi reinterpretada em termos de um
exemplo moral supremo de abnegação e dedicação que visava inspirar
abnegação e dedicação semelhantes da parte dos seus seguidores.
Enquanto para a ortodoxia a morte (e ressurreição) de Jesus tinha mais
importância inerente do que seus ensinamentos religiosos, o Iluminismo
marginalizou sua morte e negou sua ressurreição a fim de enfatizara
qualidade dos seus ensinamentos morais.

08 MOVIMENTOS T ~) G I C O S OCIDENTAIS
DESDE O ILUMINISMO

As observações acima deixam claro que o Iluminismo teve um forte


impacto sobre a teologia crista, levantando uma série de questões
críticas acerca de suas fontes, métodos e doutrinas. No entanto,
apesar de continuar influente no período moderno, costuma-se definir
que o Iluminismo chegou ao seu auge

no tempo da Revolução Francesa. Uma série de acontecimentos desde


então afastou a teologia cristã do programa desse movimento, apesar de
ainda ser possível sentir sua influência em alguns pontos. A seguir,
trataremos dos principais acontecimentos dentro da teologia cristã desde o
tempo do Iltânimismo.
No decorrer da discussão desses movimentos, consideraremos as contri-
buições de vários teólogos importantes. Tomaremos, em particular, dos
seguintes expoentes da teologia cristã: F. D. E. Sebleiemacher
(romantismo); Kar] Baríli (neo-ortodoxia); Paul Tillich (protestantismo
liberal). No entanto, o período moderno abrange uma galáxia de estrelas,
não sendo nossa proposta ressaltar escritores individuais para discussões
específicas.

Rrutrantistrim
Na última década do século 18, um número crescente de apreensões co-
meçou a ser expressado em relação à qualidade árida do racionalismo. A
razão, outrora vista em seu papel de libertadora, passou a ser considerada
cada vez mais como =a forma de escrarvização espiritual. Essas
ansiedades não formo, em sua maioria, expressadas nas faculdades de
filosofia das universidades, mas sim nos círculos artísticos e literários,
especialmente da capital da Prússia, Berfim, onde os irmãos Friedrich e
August William Schlegel se tomaram particularmente, influentes.
0 -romantismo" é conhecido por ser um movimento difícil de definir. Pode
ser considerado uma reação a certos temas contrais do futurismo, prin-
cipalmente à afirmação de que a realidade pode ser conhecida pela razão
humana. Essa redução da malidade a uma série de elementos simples
racionalivados parecia, para os românticos, uma interpretação equivocada,
grosseira e censurável. Enquanto os ilutrunistas; apelaram para a razão
humana, os românticos se valeram da imaginação humana que é capaz de
reconhecer a sensação profunda de mistério que surge da percepção de
que a mente humana não é capaz de compreender nem sequer o mundo
finito, quanto mais o infinito além dele. Esse ethos é expressado de maneira
adequada pelo poeta inglês William Wordsworth, que falou da imaginação
humana transcendendo as limitações da razão humana, indo além dos limites
deste mundo de modo a experimentar o infinito através do fimito. Em suas
palavras, a imaginação:
Não passa de outro nome para o poder absolun,
E para o discernimento mais elam, a amplitude da mente E a Rano é
seu modo mais exaltado.

Assim, o romantismo se mostrou igualmente insatisfeito tanto com as doutrinas


cristãs tradicionais quanto com os chavões morais do fluirimismo: nenhum dos
dois foi capaz de fazer justiça à complexidade do mundo, numa tentativa de
reduzir o ' mistério do universo" - usando uma expressão encontrada nos
escritos de August William Schlegel - a uma fórmula perfeita.

Uma limitação clara da competência da razão pode ser discernida


nessas idéias. A razão ameaça limitar a mente humana aquilo que ela é
capaz de deduzir; a imaginação é capaz de libertar o espírito humano
dessa escravidão auto-imposta e permitir que ele descubra novas
dimensões de realidade—um "algo-vago e torturante que pode ser
discernido no mundo das realidades quotidianas. O infinito se
encontra, de algum modo, presente no finito e pode ser conhecido
através dos sentimentos e da imaginação. Nas palavras de John Ketits,
"Nao tenho certeza de nada senão da santidade das afeições do
coração, e da verdade da imaginação-.
Essa reação à aridez da razão foi complementada, portanto, por uma
ênfase sobre a importância epistemológica dos sentimentos e emoções
humanos. Sob a influência de Novalis (Friedrich vor, Hardenberg), o
romantismo alemão desenvolveu dois axiomas em relação a das
Gefáh1. (Esse irrita, alemão pode ser traduzido como "emoção" ou
"sentimento", apesar de nenhuma dessas palavras transmitir a gama
completa de significados associados ao termo original. Por esse
motivo, costuma ser usado sem tradução; os leitores que não se sentem
à vontade com o uso de termos em língua estrangeira podem substituí-
lo por "sentimento",) Em primeiro lugar, o "sentimento" diz respeito ao
pensador individual subjetivo que se conscientiza da sua
subjetividade e individualidade interior. Enquanto o racionalismo pode
ter se mostrado atraente para a razão individual, mas o romantismo
manteve a ênfase sobre o indivíduo, colocando no lugar da
preocupação coma razão um novo interesse pela imaginação e
persona interior; sentimento. A introspecção, do Iluminismo buscou a
razão humana; a introspecção do romantismo buscou os sentimentos
humanos, vendo nestes "o caminho para todos os mistérios" (Nuvalis).
Em segundo lugar, o "sentimento" é voltado para o infinito e eterno
e fornece a chave para essas esferas superiores. De acordo com
Novalis, é por esse motivo que o Iluminismo rejeitou a imaginação e
sentimento, considerando-os "heréticos" uma vez que davam acesso
ao "idealismo mágico" do infinito; em seu uso rígido e exclusivo da
razão, o Iluminismo tentou reprimir o conhecimento desses mundos
superiores através de um apelo à aridez da filosofia. A subjetividade e
interioridade humanas passaram a ser vistas como um espelho do
infinito. Uma nova ênfase passou a ser dada à música como "reve-
lação de uma ordem mais elevada do que qualquer moralidade ou
filosofia" (Bettina von Arnim).
O desenvolvimento do romantismo teve implicações consideráveis
para o Cristianismo na Europa. Os aspectos do Cristianismo
(especialmente do catolicismo romano) que o racionalismo considerou
ofensivos cativaram a imaginação dos românticos. O racionalismo foi
considerado experiencial e emocionalmente deficiente, incapaz de suprir
as necessidades humanas reais tratadas e satisfeitas tradicionalmente
pela fé cristã. Como F. R. de Chateaubriand comentou sobre a
situação da França na primeira década do século 19, "havia uma
necessidade de fé, um desejo de consolo religioso decorrentes
justamente

da falta desse consolo por tanto tempo". Idéias semelhantes podem ser citadas em
relação ao contexto alemão nos últimos anos do século 18.
Acontecimentos na Inglaterra, Alemanha e América do Norte deixam claro que o
racionalismo fracassou em sua tentativa de solapar a religião. A nova força
evidente no pietismo alemão e no evangelicalismo inglês do século 18 comprova
o insucesso do racionalismo em prover uma alternativa convincente para a
sensação humana prevalecente de necessidade pessoal e significado. A filosofia
passou a ser vista como uma disciplina estéril e "acadêmica" no pior sentido da
palavra, uma vez que se encontrava separada tanto das realidades; exteriores da
vida quanto da existência interior da consciência humana.
É neste contexto de crescente desilusão com o racionalismo e nova simciação pelo
"sentimento" humano que a contribuição de Friedrich Daniel Estíst Schleiermacher
(1768 – 1834) deve ser vista. Schleiermacher capitalizou esse interesse no
sentimento. Argumentou que a religião em geral e o Cristianismo em particular são
uma questão de sentimento ou "autmonsciência". Sua principal obra de teologia
sistemática The Christian Farth [A fé cristal (1821; revisada em 1830), é uma
tentativa de mostrar como a teologia cristã é relacionada a um sentimento de
"dependência absoluta". A estrutura de A fé cristã é complexa e gira em tomo da
dialética entre o pecado e a graça. A obra é organizada em três pames. A primeira
trata da consciência de Deus, concentrando-se em questões como a criação. A
segunda trata da consciência do pecado e suas implicações, como um percepção
da possibilidade de redenção. A última par te reflete sobre a consciência da graça,
e trata de questões como a pessoa e a obra de Cristo. Desse modo,
Schleiermacher argumenta que "tuclo é relacionado à redenção realizada por
Jesus de Nazaré".
A contribuição de Scideietenacher para o desenvolvimento da teologia cristã é
considerável e será examinada em maior profundidade no penas apregoado desta
obra. No entanto, voltamos nossa atenção agora para um movimenta que, apesar
de não ser estritamente teológico – alias, poderia ser chamado de ateufrigico –
exerceu um grande impacto sobre a teologia ocidental moderna. O movimento em
questão é o marxismo.

Maindsmo

O marxismo, provavelmente uma das cosmovisões mais expressivas a se


desenvolver no período moderno, exerceu um grande impacto sobre a teologia
cristã no século passado e é provável que continue a ser um companheiro de
diálogo importante nos anos por vir. O marxismo pode ser considerado um
conjunto de idéias associado ao escritor alemão Kml Marx (1818 – 1883). Até
pouco tempo atrás, porém, o termo também era usado para se referir a uma
ideologia política, característica de vários Estados da Europa oriental e outras
partes do mundo que consideravam o Cristianismo e outras religiões reacionários
e adotaram medidas repressoras para climiná-los.

O conceito de materialismo é fundamental para o marxismo. Não se


trata de uma doutrina metafísica ou filosófica segundo a qual o mundo é
constituído somente de matéria. Antes, é uma asserção de que a visão
correm dos seres humanos deve começar com a produção material, A
maneira como os seres humanos respondem às suas necessidades
materiais determina todo o restante. Idéias, incluindo idéias religiosas,
são respostas à realidade material. São a superestrutura erigida sobre a
subestrutura socioeconômica. Em outras palavras, idéias e sistemas
de crença são uma resposta a um conjunto bastante definido de
condições sociais e econômicas. Se estas forem radicalmente alte-
radas (como, por exemplo, por uma revolução), os sistemas de crenças
que geraram e mantiveram também deixarão de existir.
A primeira idéia flui naturalmente para a segunda: a alienação da huma-
nidade. Uma série de fatores causa a alienação dentro do processo
material, sendo possível destacar dois deles: a divisão do trabalho e a
existência da propriedade privada. O primeiro causa a alienação do
trabalhador de seu produto, enquanto o segundo provoca uma
situação na qual o interesse do indivíduo não coincide mais como
interesse da sociedade como um todo. Uma vez que as forças de
produção pertencem a apenas um pequena minoria da população,
segue-se que ris sociedades são divididas em classes e que o poder
político e econômico se concentra nas mãos da classe dominante.
Na opinião de Marx, se essa análise estava correta, seguia-se então a
na-cera conclusão natural: o capitalismo— a ordem econômica descrita
acima—era inerentemente instável em razão das tensões geradas pelas
forças de produção. O resultado dessas contradições internas seria,
então, o colapso do sistema. Algaras versões do marxismo apresentam
esse colapso como algo que ocorro- ria sem ajuda. Outras o
apresentam como resultado de uma revolução social liderada pela classe
trabalhadora. As últimas palavras do Manifesto Comunista (1848)
parcelem sugerir esta última opção: "O proletariado não tem nada a
perder exceto seus grilhões. Temo mundo a ganhar. Proletários do
mundo, uni-Nci .
De que maneira, então, essas, idéias são relacionadas à teologia
cristã? Em seus manuscritos políticos e econômicos de 1844, Mars,
desenvolve a idéia de que a religião em geral (não faz distinção entre
religiões individuais) é uma resposta direta às condições sociais e
econômicas. "O mundo religioso é apenas o reflexo do mundo real."
Não há nenhuma alusão óbvia ou importante aqui à crítica de
Feirerbach da religião da qual trataremos numa seção posterior. Assim,
Mam argumenta que "a religião é apenas o sol imaginário que, para o
homem, parece girar ao seu redor, até que ele percebe que ele
mesmo é o centro da sua própria revolução". Em outras palavras,
Deus é simplesmente uma projeção das preocupações humanas. Os
seres humanos "procuram por um ser sobre-humano na realidade
fantástica do céu e não encontram nada lá senão o seu próprio reflexo".
Mas o que justifica a existência da religião? Se Marx está certo, por
que as pessoas continuam a crer numa ilusão tão cruel? Aresposta de
Marx gira em

tomo do conceito de alienação. "São os seres humanos que fazem a religião,


e não a religião que faz os seres humanos. A religião é a autoconsciência e
autoestima de pessoas que não se encontraram ou que se encontraram e se
perderara outra vez." A religião é o produto da alienação social e econômica.
Surge dessa alienação e, ao mesmo tempo, a estimula através de uma forma
de intoxicação espiritual que toma as massas incapazes de reconhecer sua
situação e fazer algo a respeito da mesma. A religião é um consolo que permite
as pessoas suportarem sua alienação econômica. Na ausência dessa
alienação a religião se toma desnecessária.
O materialismo afirma que os acontecimentos do mundo material trazem
mudanças correspondentes no mundo intelectual. Assim, a religião é
resultado de um conjuntu de condições sociais e econômicas. Se essas
condições forem mudadas de forma a eliminar a alienação econômica, a
religião deixará de existir. Não terá mais nenhum propósito. As condições
sociais injustas produzem a religião e são, por sua vez, apoiadas por ela. "A
luta canoa a religião é, portanto, indiretamente, uma luta contra o mundo
do qual a religião é a fragrância espiritual."
Assim, Marx argumenta que a religião contintuatá a existir enquanto suprir uma
necessidade na vida das pessoas alienadas. —0 reflexo religioso do mundo
real só poderá desvanecer quando as relações práticas da vida diária
oferecerem ao homem somente relações perfeitamente inteligíveis e razoáveis
com referência aos seus semelhantes e à natureza." Em outras palavras, é
trecessãrio que o mundo real passe por uma transformação para que este
se livre da religião. Marx argumenta, portanto, que quando um ambiente
econômico e social não-alienante for criado através do comunismo, as
necessidades que deram origem à religião desaparecerão. E com a
eliminação das necessidades materiais, a fome espiritual também deixara de
existir.
Na prática, o marxismo não teve quase nenhuma influência até o período da
Primeira Guerra Mundial. Pode-se atribuir esse fato, em parte, a algumas
divergências dentro do movimento e, em parte, a uma falta de
oportunidade real de expansão política. Os problemas internos são
parficrilarmente interessarrês. A sugestão de que a classe trabalhadora
poderia se libertar da opressão e realizar um revolução política não tardou
em se mostrar ilusória. Logo ficou claro que os marxistas não eram
provenientes dos meios proletários polificamente conscientes; eram
membros da classe média (como o próprio Maus). Ciente desse problema,
Lênin desenvolveu a idéia de um "partido de vanguarda". Os
trabalhadores eram tão politicamente ingênuos que precisavam ser
liderados por revolucionários profissionais, sendo que só estes poderiam
prover a visão geral e orientação prática necessárias para realizar e manter
uma revolução mundial.
A Revolução Russa deu ao marxismo a oportunidade de que precisava. No
entanto, apesar do marxismo ter se consolidado numa forma modificada
(marxismo-leninismo) dentro da União Soviética, não teve sucesso em outras

partes. Seu sucesso na Europa oriental depois da Segunda Guerra


Mundial pode ser atribuído principalmente a uma combinação de
força militar e desestabilização política. Na África, seu sucesso se
deveu principalmente ao apelo sedutor do conceito cuidadosamente
elaborado por Lênin de "imperialismo' que permitiu aos elementos
alienados de certos países africanos e asiáticos atribuir o seu atraso à
exploração cruel e sistemática de agentes externos do capitalismo
ocidental, e não a quaisquer deficiências inerentes.
O fracasso econômico e a estagnação política resultantes quando
esses países tentaram implantar o marxismo nas décadas de 1970 e
1980 não demoraram a causar desilusão com essa nova filosofia. Na
Europa, o marxismo entrou em franca decadência. Seus principais
defensores se tornaram cada vez mais recostas abstratos,
desligados das raizes do proletariado e praticamente sem
experiência política. A idéia de uma revolução socialista perdeu, aos
poucos, sua atratividade e credibilidade. Nos Estados Unidos e
Canadá, o marxismo exerceu pouca ou nenhuma atração social,
apesar de sua influência na esfera acadêmica ter sido mais perceptível.
A invasão soviética da Checoslováquia em 1968 provocou um
arrefecimento claro do entusiasmo marxista nos círculos intelectuais.
No entanto, devidamente modificadas, as idéias de Marx
conseguiram se infiltrar na teologia cristã. A teologia da libertação na
América Latura lan. çou mão de insights de Marx ainda que o
movimento não possa ser descrito, de fato, como sendo "marxista".
Trataremos da teologia da libertação numa seção posterior.

Protestantismo liberal

O protestantismo liberal é, sem sombra de dúvida, um dos


movimentos mais importantes a surgirem no pensamento cristão
moderno. Suas origens são complexas. Contudo, pode-se considerar
que o movimento se desenvolveu em resposta ao programa proposto
por E D. E. Selleiermacher, especialmente em relação à sua ênfase
sobre o "sentimento- humano e a necessidade de relacionar a fé cristã
com a situação humana. O protestantismo liberal clãssico se originou
na Alemanha da metade do século 19, em meio a uma consciência
crescente de que tanto a fé cristã quanto a teologia precisavam ser
reconstruídas à luz do conhecimento moderno. Na Inglaterra, a
recepção cada vez mais positiva da teoria da seleção natural proposta
por Charles Darwin (conhecida popularmente como a "teoria
darwiniana da evolução") criou um clima no qual alguns elementos da
teologia cristã tradicional (como a doutrina dos sete dias da criação)
começaram a parecer cada vez mais indefensáveis. Desde seu início,
o liberalismo se dedicou a servir de ponte entre a fé cristã e o
conhecimento moderno.
O programado liberalismo exigiu um alto grau de flexibilidade correlação
à teologia cristã tradicional. Seus principais escritores argumentaram que
a

reconstrução da fé era essencial para que o Cristianismo continuasse a ser


uma opção intelectual séria no mundo moderno. Por esse motivo, exigiram
um grau de liberdade tanto em relação à herança doutrinária do Crisaí artismo
quanto em relação aos métodos tradicionais de interpretação bíblica. Nos
casos em que as maneiras tradicionais de interpretar as Escrituras ou as
crenças tradicionais pareciam ser comprometidas por avanços do
conhecimento humano, era intípcrativo que eles as descartassem ou
reiriterpretassem de modo a alinhá-las com aquilo que já se sabia acerca do
mundo.
Essa mudança de rumo teve implicações teológicas importantes. Várias
convicções cristãs passam a ser consideradas seriamente destoante das
normas culturais modernas e tiveram um destes dois destinos:

1. Foram abandonadas por se basearem em suposições


ultrapassadas ou equivocadas. Um exemplo é a doutrina do pecado original
que foi ateilatida a unia interpretação equivocada do Novo Testamento à luz
dos escritos de Agostinho, cuja opinião acerca dessa questão havia sido
obscurecida por seu envolvimento excessivo com uma seita fatalista (os
muniqueus).
2. Foram reinterpretadas de maneira mais condizente com o espírito
da atualidade. Várias doutrinas centrais relacionadas à pessoa de Jesus
Cristo podem ser incluídas nessa categoria; um exemplo é a doutrina da
sua divindade (que foi reinterpretada como uma alumação de que Jesus
exemplificou qualidades que a humanidade como um todo poderia procurar
imitar).

Juntamente com esse processo de rentíterpretação doutrinária (que continuou


no movimento da "história do dogma") pode-se ver uma nova preocupação em
basear a fé cri stã no mundo da humanidade — acima de tudo, na experiência
humana e na cultura moderna. Diante de possíveis dificuldades decorrentes do
embasamento da fé cristã exclusivamente nas Escrituras ou na pessoa de
Jesus Cristo, o liberalismo procurou aneorar essa fé na experiência humana
comum e interpretá-la de maneiras que fizessem sentido dentro da cosmovisão
moderna.
O liberalismo foi inspirado pela visão de uma humanidade em ascensão
rumo a novas esferas de progresso e prosperidade. A doutrina da
evolução revitalizou essa idéia que foi alimentada por evidências fortes de
estabilidade cultural na Europa acidental no final do século 19. A religião
passou a ser vista cada vez mais como sendo relacionada ás necessidades
espirituais da humaiudade moderna e oferecendo orientação ética para a
sociedade. Essa dimensão fortemente ética do protestantismo liberal fica
especialmente clara nos escritos de Albrecht Benjamin Ritschl.
Para Ritschl, a idéia de "reino de Deus" em extremamente importante.
Ruschi mostrava uma tendência de pensar nisso como um reino estático de
nalares éticos quesustermiriam o desenvolvimento da sociedade alemã
naquele

momento de sua história. Argumentava que a história estava no processo


de ser divinamente conduzida rumo à perfeição. A civilização é vista
como parte desse processo de evolução. No decorrer da história
humana, vão aparecendo indivíduos que são reconhecidos como
portadores de discernimento divino especial. Jesus foi um deles. Ao
seguir seu exemplo e compartilhar sua vida interior, outros seres
humanos conseguiram se desenvolver. O movimento demonstrava um
otimismo enorme e irrestrito quanto à capacidade e potencial humanos.
Argumentava-se que a religião e a cultura eram praticamente idênticas.
Críticos posteriores desse movimento o apelidaram de "protestantismo
cultural(Kulturprotestantismus) em razão de sua convicção de que
dependia excessivamente de normas culturais aceitas.
Vários críticos - como Karl Barth na Europa e Reinhold Niehbur na
América do Norte- consideraram que o protestantismo liberto se baseava
numa visão absurdamente otimista da natureza humana. Para esses
críticos tal visão havia sido destituída pelos acontecimentos da
Primeira Guerra Mundial e, dali para frente, perderia credibilidade
cultural. No entanto, essa avaliação se mostrou equivocada. Na melhor
das hipóteses, pode-se dizer que o liberalismo é um movimento dedicado
à reformulação da fé cristã em formas aceitáveis à cultura
contemporânea. O liberalismo continua se considerando um mediador
entre duas alternativas inaceitáveis: a mera repetição da fé cristã
tradicional (normalmente descrita por seus críticos liberais como
"tradicionalismo" ou "fundamenwlismo") e a rejeição total do
Cristianismo. Os escritores liberais se mostram firmemente decididos a
encontrar um meio-termo entre essas duas alternativas.

Talvez a apresentação mais desenvolvida e influente do protestantismo


liberal possa ser encontrada nos escritos de Paul Tillich (1886 - 1965), que
alcançou a fama nos Estados Unidos nos últimos anos de sua carreira, entre
o final da década de 1950 e início da década de 1960, e que é
considerado o teólogo norte-americano mais influente desde Jonathan
Edwards. O programa de Tillich pode ser resumido em termos de
"correlação". Ao falar de "método de correlação", Tillich estava se
referindo à tarefa da teologia moderna de estabelecer um diálogo entre a
cultura humana e a fé cristã. Tillich reagiu com espanto ao programa teológico
proposto por Karl Barth, considerando-o uma tentativa equivocada de separara
teologia da cultura. Para Tillich, as questões existenciais - ou "questões
primordiais" como ele costumava chartuí-Ias - são levantadas e reveladas
pela cultura humana. A filosofia, literatura e artes modernas apontam para
perguntas referentes aos seres humanos. Cabe à teologia, então, formular
respostas a essas perguntas; ao fazê -lo, estará correlacionando o
evangelho com a cultura moderna. O evangelho deve ser relevante para a
cultura e isso só pode acontecer se as perguntas levantadas por essa
cultura forem, de fato, ouvidas. Para David Tracy da Universidade de
Chicago, a imagem de um diálogo entre o evangelho e a cultura controla
essa proposta: esse diálogo envolve uma correção e enriquecimento
mútuo tanto do evangelho quanto da cultura. Existe, portanto, uma relação
muito próxima entre a teologia e a apologética, uma vez que a teologia é
considerada responsável por interpretara resposta cristã para as
necessidades humanas reveladas pela análise cultural.
Assim, parece mais apropriado interpretar o touro "liberal" em referência a
"um teólogo na tradição de Sclileierrinacher e Tillich, voltado para a naonsun-
ção da fé em resposta à cultura contemporânea", uma descrição que
corresponde a vários escritores modernos conhecidos. No entanto, é preciso
observar que o termo "liberal" é considerado por muitos como sendo impreciso
e confuso. O teólogo britânico John Macquarrie observa esse fato com clareza
característica:

A que se refere a teologia "liberal"? Se significa apenas que o teólogo ao


qual o adjetivo é aplicado se mostra aberto a outros pontos de vista, então é
possível encontrar teólogos liberais em todas as escolas de pen,,uncruo. Mas
se o termo, "liberal" se toma, ele próprio, um rótulo parti-dão., tinia
normalmente acaba se mostrando extrinuarrente, iliberal.

Na verdade, um dos paradoxos mais curiosos da teologia cristã recente é


que alguns dos seus representantes mais dogmáticos afirmam ser liberais!
No sentido tradicional e honroso da palavra, o liberalismo traz uni respeito
inalienável pelas idéias de outros e abertura para as mesmas; como tal,
deve ser um elemento fundamental de todos os ramos da teologia cristã
(inclusive da neo-ortodoxia e do evangelicalismo, dos quais trataremos
adiante). Todavia, o termo desenvolveu outro significado que, com freqüência,
envolve nuanças de desconfiança, hostilidade eu impaciência em relação
às formulações e doutrinas cristãs tradicionais. Isso pode ser visto
claramente no uso popular do termo que, habitualmente, inclui idéias como
negação da ressurreição ou da singularidade de Cristo.

O liberalismo foi criticado em vários pontos, dos quais os seguintes são


típicos:

1. Apresenta a tendência de enfatizar o conceito de experiência


religiosa humana universal. Contudo, trata-se de uma idéia ambígua e
mal-definida que não pode ser examinada e avaliada publicamente.
Também há excelentes motivos para sugerir que a "experiência" é
moldada pela interpretação num grau muito mais elevado do que o liberalismo
reconhece.
2. Para os críticos do liberalismo, essa abordagem coloca uma
ênfase excessiva em aspectos culturais passageiros e, em decorrência
disso, parece muitas vezes ser motivada indiscriminadamente por progra -
mas seculares.
3. Foi sugerido que o liberalismo se mostra pronto demais a abrir mão
de doutrinas cristãs distintivas num esforço de se tomar mais aceitável para
a cultura contemporânea.

É provável que o liberalismo tenha chegado ao seu auge na América do


Norte no final da década de 1970 e começo da década de 1980. Apesar
de continuara ter uma presença distinta em seminários e instituições
de ensino religioso, hoje em dia é considerado um movimento em
declínio tanto na teologia moderna quanto na vida da igreja em geral.
As deficiências do liberalismo foram objeto das críticas dos membros
da escola pós-liberal, da qual trata-temos à frente. Muitas dessas
mesmas críticas foram dirigidas contra um movimento conhecido pela
designação indefinida de "modernismo", para o qual voltamos agora a
nossa atenção.

Modernismo

O termo "modernista" foi usado pela primeira vez para se referira


uma escola de teólogos católicos romanos que atuaram no final do
século 19 adotando uma visão crítica e cética das doutrinas cristãs
tradicionais, especialmente daquelas relacionadas à cristologia e à
soteriologia. Esse movimento estimulava uma atitude positiva em
relação irerítica bíblica radical e enfatizava a dimensão ética da fé em
vez de suas dimensões mais teológicas. Em vários sentidos, pode-se
considerar o modernismo uma tentativa de escritores da igreja católica
romana de entrar num acordo com a visão de mundo iluminista que
havia, até então, sido em sua maior parte ignorada.
Porém, o termo "modernismo" é um tanto vago e não se pode
entender que sugere a existência de uma escola distinta de
pensamento comprometida com certos métodos em comum ou que
deve suas idéias a certos mestres em comum. Sem dúvida, a maioria
dos escritores modernistas se preocupou em integrar o pensamento
cristão como espírito do Iluminisarro, especialmente quanto aos novos
conceitos da História e das ciências naturais que estavam, em
ascendência. Semelhantemente, alguns se inspiraram em
escritores como Maurice Blondel (1861 – 1949), que argumentou que o
sobrenatural era intrínseco à existência humana ou Henri Bergson (1859
– 1941), que crufatrizou, a importância da intuição sobre o intelecto. No
entanto, não existem elementos comuns em número suficiente entre os
modernistas franceses, ingleses e norte-americanos, nem entre o
modernismo católico romano e protestante para permitir que o termo
seja entendido como a designação de urna escola rigorosa e claramente
definida.

Dentre os escritores católicos modernistas, deve-se dar atenção


particular a Alfred Loisy (1857 – 1940) e George Tyrnell (1861 –
1909). Durante a década de 1890, Loisy se estabeleceu como critico
das interpretações tradicionais dos relatos bíblicos da criação e
argumentou que o verdadeiro desenvolvimento da doutrina podia ser
discernido dentro das Escrituras. Sua obra mais expressiva LWangüe
et Véglise [0 evangelho e a igreja] foi publicada em 1902. Esse
texto importante foi uma resposta direta às idéias de Adolf voa
Harnack que, dois anos antes, publicou a obra W7iat is Cirrisnarrav? [0
que é Cristianismo?] sobre as origens e a natureza do Cristianismo. Loisy
rejeitou a

sugestão de Hamack de que havia uma descontinuidade radical entre Jesus e a


igreja; no entanto, fez concessões ao relato protestante liberal de Hamack das
origens cristãs, incluindo a aceitação do papel e validade da critica bíblica na
interpretação dos evangelhos. Em decorrência disso, as autoridades católicas
romanas incluíram sua obra na lista de livros proibidos em 1903.
O jesuíta britânico George Tyffell seguiu Loisy em sua crítica radical ao dogma
católico tradicional. Como Loisy, criticou o relato das origens cristãs de Hamack
em Ckristianity ar the Crosvroads [O Cristianismo na encruzilhada] (1909),
rejeitando a reconstrução histórica que Hamack apresenta de Jesus como "a
reflexão de um rostri protestante liberal vista no fundo de um poço de grande
profundidade". Seu livro também incluía uma defesa da obra de Loisy
argumentando que a hostilidade católica romana oficial "em relação ao livro e seu
autor criou a impressão geral de que é uma defesa da posição protestante liberal
em contraste com a posição católica romana e de que o 'modernismo' é
simplesmente um movimento de protestarifização e racionalização".

Em parte, pode-se atribuir essa percepção à influência crescente das atitudes


modernistas dentro das principais denominações protestantes. Na Inglaterra, a Liga
dos Clérigos foi fundada em 1898 com o propósito de promover o pensamento
religioso liberal; em 1928, mudou o seu nome para Liga dos Clérigos Modernos.
Dentre os indivíduos associados especificamente a esse grirpo, podemos citar
Hastítigs Rashdall (1858 — 1924), cuja obra Idea ofAtonennent in Christian
Theology [0 conceito de expiação na teologia cristã] (1919) ilustra a tendência
geral do modernismo inglês. Valendo-se de modo um tanto indiscriminado de
escritos anteriores de pensadores protestantes liberais como Ritselil, Rashdall
argumentou que a teoria da expiação associada ao escritor medieval Pedro
Abelardo era mais aceitável para as formas de pensamento modernas do que as
teorias tradicionais que lançavam mão do conceito de sacrifício substitutivo. Essa
teoria fortemente moral ou exemplarista da expiação, que interpretava a morte de
Cristo quase exclusivamente como uma demonstração do amor de Deus, causou
um impacto considerável no pensamento inglês e especialmente no pensamento
anglicano nas décadas de 1920 e 1930. Não obstante, os acontecimentos da
Primeira Guerra mundial, a ascensão subseqüente do fascismo na Europa na
década de 1930 solaparam a credibilidade do movimento. Foi só na década de
1960 que um modernismo renovado ou radicalismo se tomou uma característica
expressiva do Cristianismo inglês.

O desenvolvimento do modernismo nos Estados Unidos seguiu um padrão


semelhante. O crescimento do protestantismo liberal no final do século 19 e
começo do século 20 foi considerado por muitos um desafio direto às idéias
evangélicas mais conservadoras. A obra de Newman Smyth Passing
Prolestantisan and Coming Cattiolicism [0 protestantismo passageiro e o cato-
licismo vindouro] (1908) argumentava que o catolicismo podia servir de mentor para
o protestantismo norte-americano em vários sentidos, sendo um dos mais
importantes, na crítica do degrau e em seu conceito histórico do desenvolvi-

mento doutrinário. A situação se tomou cada vez mais polarizada com o


crescimento do fundamentalismo em resposta às atitudes modernistas.
A Primeira Guerra Mundial deu início a um período de autoquestitartamento que foi
intensificado por meio do realismo social radical de escritores como H. R.
Niehbur. Na metade da década de 1930, o modernismo parecia ter perdido o seu
ramo. Num artigo de grande influência no periódico The Christimi Century [0
século cristão] de 4 de dezembro de 1935, Hany Emerson Fosdick declarou a
necessidade de ir além do modernismo. Em sua obra Realistic Theology
[Teologia realista] (1934), Walter Marshall Hortum falou do desbambrancura das
forças liberais na teologia norte-americana. No entanto, o movimento recobrou
sua segurança no período pós-guerra e, pode-se dizer, que chegou ao seu auge
no período correspondente à guerra do Vietnã.
Devemos, porém, voltar ao início do século 20 e considerar uma reação mais
antiga ao liberalismo que é associada especialmente ao nome de Karl Barth: a
neo-ortadoxia.

Neo-ortodoxia
A Primeira Guerra Mundial testemunhou uma desilusão, porém não uma rejeição
definitiva da teologia liberal que havia sido associada a Schleiermacher e seus
seguidores. Vários escritores argumentaram que Sebleiemacher havia, com efeito,
reduzido o Cristianismo a pouco mais do que uma experiência religiosa,
tomando-o, desse modo, centrado no ser humano, e não em Deus. De acordo
com os críticos, a guerra havia destruido a credibilidade dessa abordagem. A
teologia liberal parecia dizer respeito a valores humanos – e como estes podiam
ser levados a sério se haviam gerado conflitos globais de grande escala? Ao
enfidizarrem, o "caráter distinto" de Deus, escritores como Karl Barth, (1886 – 1968)
acreditavam que poderiam escapar da teologia antropocêntrica do liberalismo que
estava condenada à extinção.
Barth expôs essas idéias de forma sistemática em Church Dogmatics [Teologia
dogmática eclesiástica] (1936 – 1969), possivelmente a realização teológica mais
expressiva do século 20. Uma vez que Barth não viveu para concluir essa
empreitada, sua exposição da doutrina da redenção ficou incompleta. O tema
central que ressoa por toda a obra é a necessidade de considerar a revelação
própria de Deus em Cristo por meio das Escrituras com extrema seriedade. Apesar
dessa declaração parecer pouco mais do que reiteração de temas já associados
firmemente a Calvino e Lutero, Barth realizou seu trabalho com uma criatividade
que o consolidou como grande pensador por seus proprios, méritos.

A obra e dividida em cinco volumes, sondo que cada um apresenta, ainda,


subdivisões. O Volume I trata da Palavra de Deus que, para Barth, é a fonte e
ponto de partida tanto da fé cristã quanto da teologia cristã. O Volume II trata da
doutrina de Deus, e o Volume III, da doutrina da criação. O Volume IV aborda a
doutrina da reconciliação (ou, talvez se possa dizer, da expiação;

o temo alemão Versó)inung pode ter os dois significados) e o Volume V, in-


completo, trata da doutrina da redenção.
Além da designação previsível (e, relativamente não-informativa) "bartianismo",
dois termos são usados para descrevera abordagem associada a Barth. A
designação "teologia dialética" é usada em função da idéia encontrada
especialmente no comentário de Barth à Epístola de Romanos, publicado em
1919, de uma —dialética entre o tempo e a eternidade" ou uma "dialética entre
Deus e a humanidade-. O termo chama a atenção para, a insistência característica
de Barth de que há uma contradição ou dialética, e não uma continuidade, entre
Deus e a humanidade. A segunda designação é "neo-ortodoxia" que chama a
atenção para a afinidade entre Barth e os escritores do período da ortodoxia
Reformada, especialmente do século 17. Em vários sentidos, pode-se considerar
que Barth entrou num diálogo com vários escritores Reformados importantes
desse período.

Talvez a característica mais distintiva da abordagem de Barth seja sua "teologia


da Palavra de Deus". De acordo com Barth, a teologia é a disciplina que procura
manter a proclamação da igreja cristã fiel ao seu alicerce em Jesus Cristo, conforme
este nos foi revelado nas Escrituras. A teologia não é uma resposta à situação
humana ou às perguntas humanas; é uma resposta à Palavra de Deus, que exige tal
resposta em função de sua natureza intrínseca.
A neo-ortodoxia foi criticada em vários pontos. Os seguintes são particularmente
importantes:

1. Sua ênfase sobre a transcendência e "caráter distinto" de Deus faz


que Deus seja visto como sendo distante e potencialmente irrelevante. Foi
sugerido em várias ocasiões que essa idéia gera um ceticismo extremo.
2. Há certa circularidade na afirmação de que a neo-ortodoxia é baseada
somente na revelação divina, uma vez que esta não pode ser verificada de nenhum
outro modo senão através de um apelo a essa mesma revelação. Em outras
palavras, não existem pontos de referência externos reconhecidos pelos quais as
asserções da verdade da neo-ortodoxia possam ser verificadas. Isso levou muitos
críticos a sugerirem que se trata de uma forma de fideísmo, ou seja, um sistema de
crenças impérvio a todas as críticas externas.

3. A neo-ortodoxia não apresenta nenhuma resposta útil para aqueles que


são atraídos por outras religiões, sendo obrigada a considerar essas crenças como
distorções ou perversões. Outras abordagens teológicas são capazes de justificar a
existência dessas outras religiões e situá-las em relação à fé cristã.
Catolicismo romano

Há um consenso de que os acontecimentos mais importantes dentro do


catolicismo romano moderno tiveram sua origem no período que antecedeu
imediatamente o Segundo Concílio do Vaticano (1962 - 1965). Seria injusto dizer
que "pouca coisa aconteceu" na história da teologia católica romana durante os
séculos 18 e 19. Não obstante, as condições em que a igreja católica encontrou a
Europa durante esse período não se mostraram particularmente apropriadas para a
reflexão teológica. Na região predominantemente protestante do norte da
Europa, a igreja se viu, com freqüência, colocada numa posição defensiva, de modo
que a polêmica, e não a teologia construtiva, SC tornou essencial. Foi assim até
mesmo durante o século 19, quando Bismarck lançou sua Kulturkampf (`suta pela
cultura") contra a igreja católica romana na Alemanha. Forças secularizadoras
também tiveram um papel importante. A Revolução Francesa e seus resultados
representaram um desafio poderoso à igreja e, mais uma vez, a colocaram na
defensiva.

No comuto, também houve motivos religiosos para essa falta de criatividade. O


catolicismo romano havia sido profundamente influenciado pelas idéias de
Bossuet, particularmente por sua ênfase sobre a constância da tradição católica. A
teologia foi entendida, muitas vezes, em termos de repetição fiel do legado do
passado, uma tendência incentivada pelo Primeiro Concílio do Vaticano (1869 -
1870). Um acontecimento de relevância particular nesse sentido foi a decisão do
Papa Leão XIII de conferir um natas privilegiado aos escritos de Tomás de
Aquino, estabelecendo Aquino efetivamente (senão intencionalmente) como sendo
normativo em questões de teologia.

Apesar disso, indícios claros da tendência a uma renovação teológica podem ser
discernidos no século 19. O catolicismo romano alemão foi profundamente tocado
pelo desenvolvimento do idealismo do movimento romântico que reavivou o
interesse em vários aspectos da prática e fé católica, inclusive em seus aspectos
experienciais. Esse novo interesse na experiência pode ser visto na ascensão da
escola católica de Túbingen durante a década de 1830, quando escritores como
Johann Sebastian voo Drey (1777 - 1853) e Johann Ai= Móhler (1796 - 1838)
começaram a enfatizara idéia de tradição como voz viva da igreja. John Henry
Newman (1801-1890),ofigináriodoanglicanismo, também deu uma injeção de
segurança e discernimento teológico na teologia católica do final do século 19,
mesmo que sua influência tenha, sem dúvida, sido maior no século 20 do que em
seu próprio tempo. Talvez sua contribuição mais importante piado avanço da
teologia católica seja relacionada às áreas de desenvolvimento da teologia e do
papel dos leigos na igreja.
Depois da Segunda Guerra Mundial (1939 - 1945), pode-se ver sinais de um
reavivamento expressivo na teologia católica. Um dos temas mais importantes
é o do resgate da herança patrística e medieval do catolicismo, evidente nos
escritos de Henri de Lulhae e Yves Congar. O Segundo Concílio

do Vaticano promoveu o interesse na discussão acerca da natureza e papel


da igreja e dos sacramentos e também criou um ambiente mais positivo
para a atuação dos teólogos católicos. Os escritos de Hans Ung, Piet
Schoonenberg e Edward Schillebeeckx ilustram essa nova vitalidade dentro
da teologia católica desde o Concílio.
Há um consenso de que os dois teólogos mais representativos do catoli-
cismo do século 20 são Hans Urs vor, Balthasar (1905 — 1988) e Karl Rahner
(1904 — 1984). A principal obra de von Balthasar, publicada no período de
1961 — 1969, traz o título Herrlichkeit [A glória do Senhor]. Apresenta a idéia
do Cristianismo como resposta à revelação própria de Deus, dando ênfase
especial ao conceito de fé como resposta ii visão da beleza do Senhor.
Uma das realizações mais impressionantes de Karl Rahner é o resgate do
ensaio como instrumento de construção teológica. A fonte mais relevante do
pensamento de Rahner não é uma obra substancial de teologia dogmática,
mas sim uma coleção relativamente informal e desorganizada de ensaios
publicados no período de 1954 — 1984, conhecida como Investigações
Teológicas. Esses ensaios, que ocupam mais de dezesseis volumes em
seu original em alemão (Schrifien zur Theologie) e vinte volumes em sua
edição ainda incompleta em inglês, mostram como uma abordagem
relativamente assistemática da teologia pode, não obstante, dar origem a um
programa teológico provido de coerência. Talvez o aspecto mais importante
do programa teológico de Rabner seja seu "método transcendental' que,
para ele, era a resposta cristã para a perda secular da transcendência de
Deus. Enquanto gerações anteriores tentaram encarar esse desafio através
de concessões liberais ou modernistas, Rahner argumentou que a
recuperação de um senso de transcendência só podia ser realizada através
de uma reapropriação das fontes clássicas da teologia cristã, especialmente de
Agostinho e Tomás de Aquino. A abordagem específica de Rahner envolve a
fusão do tomismo com aspectos centrais do idealismo e existencialistra,
alemães.

Um documento extremamente importante foi publicado em 1994. O Catecismo


da Igreja Católica representa um resumo lúcido de alguns dos temas
principais do pensamento católico romano, atualizados à luz do Segundo
Concílio do Vaticano. Trota-sede um sumário conveniente do pensamento
católico romano contemporâneo que será citado ocasionalmente mais adiante
nesta obra.

A ortodoxia oriental

A tradição bizantina continuou a se desenvolver depois da queda de


flizáricio, ainda que de mornas modificadas. Coma queda de Constantinopla
diante dos invasores islâmicos, os maiores centros de pensamento cristão
oriental se mudaram para a Rússia e, mais especificamente, para as
cidades de Kiev e Moscou. Escritores como A. S. Khomyakov (1804 — 1860) e
Vindinifir Soloviev (1853 — 1900) contribuíram grandernente, para o
desenvolvimento dos fundamentos intelectuais da teologia ortodoxa tussa
durante o século 19.

No entanto, as políticas religiosas repressivas associadas à Revolução


Russa impossibilitaram que a educação teológica tivesse continuidade
na pátria da ortodoxia. Vários escritores russos que deixaram o país
como Georges Florowsky (1893 — 1979) e Vladimir Lossky (1903 —
1958), continuaram a desenvolver a tradição no exílio. Apesar do
colapso da União Soviética ter aberto caminho para o
restabelecimento de uma tradição vigorosa da teologia e espiritualidade
ortodoxa russa em sua pátria, é provável que os imigrantes rasos
provenientes da drásticas continuem a ser de grande importância
nesse sentido, particularmente nos Estados Unidos.

A Grécia foi finalmente liberta do domínio turco na década de 1820,


o que abriu caminho para uma renovação dessa tradição teológica
dentro ortodoxia. Contudo, essa renovação só começou a tomar
forma na década de 1960. De fato, uma boa parte dos escritos
teológicos gregos do século 19 mostra um grau considerável de
dependência de idéias ocidentais bastante atípicas da Grécia. Desde
então, escritores como John Zizioulas e Christos `mancas ofereceram
grande estímulo partu, a recuperação das idéias características da
tradição cristã oriental. Apesar da importância crescente dos imigrantes
gregos em cidades como Nova York e Melhoram, parece provável que
a própria Grécia continue a exercer uma influência teológica expressa
dentro da ortodoxia no futuro.

Feminismo

O feminismo se tomou um elemento importante da cultura ocidental


moderna. O feminismo é, essencialmente, um movimento global em prol
da emancipação das mulheres. A designação mais antiga para o
movimento —"emancipação feminina" — expressava o fato de que se
trata, fundamentalmente, de um movimento de emancipação que
concentra seus esforços no sentido de obter igualdade para as
mulheres na sociedade moderna, especialmente através da remoção
de obstáculos — inclusive crenças, valores e atitudes — para o avanço
desse processo. Ultimamente, o movimento tem se tomado cada vez
mais heterogêneo, em parte a uma disposição de reconhecer
uma diversidade de abordagens empregadas pelas mulheres dentro
de diferentes culturas e grupos étnicos. Assim, os escritos de
mulheres negras na América do Norte, por exemplo, são chamados de
"teologia feminista negra".

O feminismo entrou em conflito como Cristianismo (como fez com a


maioria das religiões) em razão da impressão de que as religiões
tratam as mulheres como seres humanos de segunda categoria,
tanto em temos dos papéis que essas religiões reservam para as
mulheres quanto em temos da maneira como se entende que elas são
a imagem de Deus. Os escritos de Simone de Beauvoir — como The
Second Sex [0 segundo sexo] (1945) — desenvolveram essas idéias
detaffiradamente. Várias feministas pós-cristãs como Mary Daiy em sua
obra Beyond God lhe Father [Além de Deus o Pai] (1973) e Daphne
[tímpano em Theology and Feminista [Teologia e feminismo] (1990),
argumentam que o Cristianismo, com seus símbolos masculinos de
Deus, sua figura
masculina de salvador e sua longa história de líderes e pensadores do sexo
masculino, trata as mulheres com preconceito e não tem como ser corrigido. Seus
apelos são no sentido de que as mulheres deixem esse ambiente opressor. Outras,
como Carol Christ em Laughter q(Aphrodite [O riso de Afrodite] (1987) e Naomi
Ruth Goldenberg em Changing of the Gods [A mudança dos deuses] (1979),
argumentam que as mulheres podem encontrar emancipação religiosa resgatando
as antigas religiões da deusa (ou criando outras religiões desse tipo) e abandonando
inteiramente o Cristianismo tradicional.
No entanto, a avaliação que o feminismo faz do Cristianismo não é, de maneira
nenhuma, tão hostil quanto esses escritores podem sugerir. Escritoras feministas
enfatizaratt, como as mulheres foram ativas na tarefa de moldar e desenvolvera
tradição cristã do Novo Testamento em diante e tiveram papéis importantes de
liderança ao longo de toda a história do Cristianismo. Na verdade, escritoras
feministas mais equilibradas mostraram a necessidade de reavaliar o passado
cristão dando honra e reconhecimento a incontáveis mulheres fiéis cuja prática,
defesa e proclamação da fé haviam, até então, passado despercebidas para
grande parte da igreja cristã e para seus historiadores (homens, em sua
maioria).
Pode-se dizer que a contribuição mais expressiva do feminismo pua o
pensamento cristão foi o seu desafio às formulações teológicas tradicionais.
Argumenta-se que estas são, com frequência, patriarcais (refletem urna crença na
dominação masculina) e machistas (têm preconceitos contra as mulheres). As
seguintes áreas da teologia são especialmente expressivas nesse sentido.

1. A masculinidade de Deus. O uso persistente de pronomes


masculinos para Deus dentro da tradição cristã é alvo de críticas de várias
escritoras feministas. Argumenta-se que o uso de pronomes femininos é, no
mínimo, tão lógico quanto o uso de seus correlativos masculinos, e pode contribuir
para corrigir uma ênfase excessiva sobre os modelos masculinos para Deus. Em sua
obra Sexism anal God-Talk [O machismo e a teologia] (1983), Rosemary
Radford Ruether sugere o termo "Deusla" como uma designação comia para
Deus, apesar da forma desajeitada do termo não contribuir para sua atratividade.
Em Metaphorical Theology [Teologia metafórica] (1982), Sallie McFague
argumenta em favor da necessidade de resgatara idéia dos aspectos metafóricos
dos modelos de Deus, como, por exemplo, "pai": as analogias costumam enfatizar
semelhanças entre Deus e os seres humanos; as metáforas afirmam que, em meio
a essas semelhanças, há diferenças significativas entre Deus e os seres humanos
(como, por exemplo, no que diz respeito aos gêneros masculino e feminino).

2. A natureza do pecado. Várias escritoras feministas sugeriram que


os conceitos de pecado como orgulho, ambição ou auto-estima excessiva são fun-
damentalmente de caráter masculino. Argumenta-se que isso não corresponde â
experiência das mulheres, cuja tendência é experimentar o pecado como falta

de orgulho, falta de ambição e falta de auto-estima. Nesse contexto,


um elemento particularmente importante é o apelo feminista ao conceito
de relacionamentos não-competitivos que evitam os padrões de baixa
auto-estima que sempre foram reações femininas tradicionais
características à sociedade dominada pelos homens. Esse argumento é
apresentado de maneira bastante enérgica por Judith Plaskow em Sex,
Sin and Grace [Sexo, Pecado e Graça] (1980), uma crítica incisiva à
teologia de Reinhold Niehbw de um ponto de vista feminino.

3. A pessoa de Cristo. Várias escritoras feministas, com maior


destaque para Rosemary Radford Ruether em Sexism and God-MIk,
sugeriram que a cristulogia é a principal causa de grande parte do
machismo dentro do Cristianismo. Em sua obra Conjorder Jesus: Waves
rifRenremal m Cliristology [Considere Jesus: ondas de renovação na
cristologra] (1990), Elizabeth Johnson investiga a maneira como a
masculinidade de Jesus foi alvo de abusos teológicos e sugere
correções apropriadas. Pode-se observar duas áreas de importância
particular.
Em primeiro lugar, a masculinidade de Cristo é usada, por vews,
como base teológica para as idéias de que somente os seres humanos
do sexo masculino podem refletir, adequadamente, a imagem de Deus,
ou de que os homens fornecem modelos ou analogias apropriadas para
Deus. Em segundo lugar, a masculinidade de Cristo é usada, por
vezzs, como alicerce para um conjunto de crenças a respeito de
padrões referentes à humanidade. Argumentou-se com base na
masculinidade de Cristo que o padrão da humanidade é masculino,
enquanto o sexo feminino é, de algum modo, ma parte de segunda
classe da humanidade ou que fica aquém do ser humano ideal. Tomás
de Aquirro, que descreve as mulheres como homens mal gerados (ao
que parece, com base numa biologia arístotélica obsoleta) ilustra
essa tendência que teve implicações importantes para a questão da
liderança dentro da igreja.

Em sua resposta a essas questões, as escritoras feministas


argumentaram que a masculinidade de Cristo é um aspecto contingente
de sua identidade, no mesmo nível de sua emicidade judaica. É um
elemento contingente de sua realidade histórica, e não um aspecto
essencial de sua identidade. Assim, não se pode permitir que essa
carracteristicasirva de base para a dominação masculina sobre as
mulheres da mesma maneira como não legitima a dominação dos
gentios pelos judeus ou dos encanadores pelos carpinteiros.

A relevância da crítica feminista à teologia tradicional será observada em


ocasiões apropriadas ao longo desta obra.

Pós-modernismo

O pós-modernismo costuma ser considerado uma espécie de


sensibilidade cultural sem absolutos, sem certezas permanentes e sem
fundamentos, que aprecia o pluralismo e divergência e que visa repensar
o "caráter estabelecido"

radical de todo pensamento humano. O pós-modernismo é um conceito vago e mal


definido que poderia talvez ser descrito como uma visão intelectual geral que
surgiu depois do colapso do modernismo. Apesar de vários escritores ainda
afirmarem que o modernismo continua vivo e ativo, essa atitude está se
tornando cada vez mais rara.
Além disso, é preciso observar que o modernismo em si é uma idéia vaga. Pode-se
argumentar que a própria idéia de pós-modernismo "pressupõe que nossa em é
unificada o suficiente para que possamos falar do seu fim" (David Kolb); ainda assim,
grande parte da cultura ocidental discorda. O trauma de Auschwitz é uma acusação
poderosa e clicaante, contra "as pretensões da outra criação, a aversão â tradição, a
idolatria do eu" (Kolb) características do modernismo. Foi o modernismo,
especialmente com seu desejo compulsivo de romper inteiramente com o passado,
que deu origem ao holocausto nazista e aos extermínios promovidos por Stalin. A
confiança do flutrunistrio no poder da razão de fornecer bases para um conhecimento
universalmente válido do mundo, incluindo Deus, se extinguiu. E, com o fim dessa
confiança em critérios universais e necessários acerca da verdade, o relativistro, e
pluralismo flotesmnim.
É praticamente impossível elaborar uma definição completa de pós-
modernismo; ainda assim, suas principais características são identificáveis na
medida em que podem ser encontradas pelo estudante de teologia cristã,
especialmente nas faculdades e campos universitários da América do Norte.
Trata-se de um comprometimento prévio com o relativismo ou o pluralismo em
relação 6 questões da verdade. Usando uma linguagem que se tomou ca-
racterística do movimento, pode-se dizer que o pós-modernismo representa um
situação na qual o sinal (ou significados) tomou o lugar daquilo que é
significado como foco de orientação e valor.
Em termos da lingüística estrutural desenvolvida inicialmente por Ferdinand de
Saussure e, subseqüentemente, por Rortuar, Jakobson e outros, o reconhecimento
da arbitrariedade do sinal lingüístico e sua interdependência de outros sinais
marca o fim da possibilidade de significados fixos e absolutos. Assim, escritores
como Jacques Derrida, Michel Foucault e Jean Baudrillard argumentaram que a
linguagem era variável e caprichosa e que não refletia nenhuma lei lingüística
abrangente e absoluta. Era arbitrária e, portanto, incapaz de revelar significado.
Baudrillard argumentou que a sociedade moderna estava presa numa rede
interminável de sistemas de sinais artificiais que não significavam nada e apenas
perpetuavam os sistemas de crenças de seus criadores.

Um aspecto do pós-modernismo que ilustra essa tendência de modo


particularmente adequado e que, ao mesmo tempo, mostra sua obsessão por
textos e linguagem, é a descontração – o método crítico que, em termos práticos,
declara que a identidade e as intenções do autor de um texto são irrelevantes para a
interpretação desse texto antes de insistir que, de qualquer modo, não se pode
encontrar nenhum significado no mesmo. Todas as interpretações são igualmente
válidas ou igualmente sem sentido (dependendo do seu ponta de vista). Como Paul
de Man, um dos principais proponentes norte-americanos dessa

abordagem declarou, a própria idéia de "significado" tinha ares de


fascismo. Sugeria que alguém tinha autoridade de definir de que maneira
uma obra de literatura devia ser entendida e negava a outros a
oportunidade de exercitar a liberdade de interpretação, reprimindo, desse
modo, a sua criatividade. Essa abordagem, que se desenvolveu na
situação cultural dos Estados Unidos depois da guerra do Vietnã,
recebeu respeitabilidade intelectual de acadêmicos como de Man,
Ciesiffiney Hartman, Harold Bloom e J. Hillis Miller.
Em termos teológicos, as duas desenvoluções a seguir devem ser
observadas por sua importância especial. Apesar de não catar claro qual
pode ser sua influência em longo prazo, é provável que continuem se
mostrando relevantes nos anos por vir.

1. A interpretação bíblica. A interpretação bíblica acadêmica


tradicional havia sido dominada pelo método histórico-crítico. Essa
abordagem, que se desenvolveu durante o século 19, enfatizava a
importância da aplicação de métodos históricos críticos como a
definição do Sitz iro [Ara ou "situação de vida" das passagens do
evangelho. Foi desafiado nas décadas de 1970 e 1980 pelo surgimento
do estruturalismo e pós-estrintortífismo.
Vários críticos literários importantes da década de 1980 (como Harold
Bloom e Frank Kermode) realizaram incursões no campo da
interpretação bíblica e desafiaram idéias como as de interpretações
"itistinteitinalmente legitimadas" ou "academicamente respeitáveis" da
Bíblia. A idéia de que existe um significado para o texto bíblico - quer
este seja definido por uma autoridade eclesiástica ou pela comunidade
acadêmica - é considerada com grande suspeita dentro do pós-
modemismo.
Dentre as influências específicas sobre a interpretação bíblica, as
seguintes são especialmente interessantes. A análise de Michel Foticault
do relacionamento de poder entre o intérprete e a comunidade
levantou uma série de perguntas relevantes quanto à forçar,
potencialmente repressiva dos intérpretes bíblicos "autorizados". As
obras de Jacques Derrida levar~ questões sobre como =a ampla
gama de versões conflitantes das Escrituras pode ter sido criada
pela interpretação diferencial de textos bíblicos. Jean François
Lyotard sugeriu que aquilo que ele chamou de les grands terás, as
grandes narrativas bíblicas, atinham-se quase inteiramente a perpetuar
ideologias seculares baseadas vagamente nessas narrativas. Isso
levantou a questão de como a Bíblia podia ser interpretada de modo a
desafiar, e não apoiar, os pressupostos do capitalismo ocidental (apesar
dos escritos de teólogos da libertação latino-americanos - ver adiante -
sugerirem que esse problema não é, de modo algum, tão grave
quanto a retórica de Lyotard sugere).

2. Teologia sistemática. O pós-modeiraistrat é, por sua própria


natureza, hostil ao conceito de "sistematização" ou qualquer menção de
uto, -significado" discernido. O estudo de Mark Tay]or, Erring [Erro] é
uma excelente ilustração

do impacto do pós-modernismo sobre a teologia sistemático. Com a


imagem do "eao" – em vez das abordagens mais tradicionais da construção de
sistemas teológicos – Taylor desenvolve uma teologia anti-sistemática que
oferece abordagens polivalentes a questões referentes à verdade ou
significado. O estudo de Taylor representa uma exploração das
conseqüências da declaração de Nietz,che, da "morte de Deus". Com base
nisso, Taylor argumenta em favor da eliminação de conceitos corno o eu, a
verdade e o significado. A linguagem não se refere a nada, e a verdade não
corresponde a nada.

Teologia negra

"Teologia negra" é o movimento, particularmente representativo nos


Estados Unidos durante as décadas de 1960 e 1970, que se concentrou
em garantir que as realidades da experiência negra fossem representadas num
contexto teológico. A primeira evidência clara de um movimento em direção à
emancipação teológica dentro da comunidade negra norte-americana pode
ser vista em 1964 na publicação da obra Black Religion [Religião negra] de
Joseph Washington, uma declaração poderosa do caráter distinto da
religião negra dentro do contexto norte-americano. Washington enfatizou a
necessidade de integração e assimilação de insights da teologia negra no
protestantismo em geral; no entanto, essa abordagem foi praticamente
descartada depois da publicação da obra de Albeir Cleage, Black Messiah
[Messias negro]. Cleage, pastor do Santuário da Madona Negra na cidade
de Detroit, instou o povo negro a se libertar da opressão teológica dos
brancos. Argumentando que as Escrituras haviam sido escritas porjudeus
negros, Cleage afirmou que o evangelho de um Messias negro havia sido
deturpado por Paulo em sua tentativa de romã-lo aceitável aos europeus.
Apesar de seus exageros consideráveis, essa obra se tornou um ponto
central ao redor do qual os cristãos negros se reuniram determinados a
descobrir e afirmar sua distinta.

O movimento fez várias declarações categóricas de seu caráter teológico


distintivo em 1969. O "Manifesto Negro", publicado na munião da Fundação
finter-religiosa para a Organização Comunitária em Detroit, Michigan, colocou
a questão da experiência negra entre os pontos de investigação
teológica. A declaração do Comitê Nacional de Clérigos Negros enfatizou a
libertação como tema central da teologia régua:

A teologia negra é uma teologia da libertação dos negros. Visa sondar a condição
dos negros à luz da revelação de Deus em Jesus Cristo de modo que a
comunidade negra possa ver o evangelho como sendo emeusanalo comas
realizações da humanidade negra. A teologia negra e uma teologia da "negritude".
É a afirmação da humanidade negra que emancipa o povo negro do racismo
branco e, desse modo, proporciona liberdade verdadeira para o povo branca e
negro.

Apesar de haver afinidades claras entre essa declaração e os objetivos e ênfases da


teologia da libertação latino-americana, é preciso enfatizar que, nesse estágio, não
havia nenhuma interação formal entre os dois movimentos. A teologia da libertação
se desenvolveu principalmente dentro da igreja católica na América do Sul,
enquanto a teologia negra se concentrou nas comunidades protestantes da
América do Norte.
Podemos identificar as origens desse movimento no despertar da consciência
negra que foi uma característica bastante distintiva da história norte-americana
da década de 1960. Três estágios podem ser distinguidos em seu
desenvolvimento.

1. 1966 — 1970. Durante essa fase inicial de desenvolvimento, a


teologia negra surgiu como aspecto expressivo da luta pelos direitos civis
em geral e como uma reação contra o dormiria dos brancos tanto nos
seminários quanto nas igrejas. Nesse estágio. a teologia negra foi
desenvolvida dentro de igrejas de liderança negra sem apresentar ama
perspectiva particularmente acadêmica. As questões de maior relevância se
concentraram no uso da violência para obter justiça e na natureza do
amor cristão.

2. 1970-1977. Nesse período de consolidação, o movimento parece ter


se deslocado das igrejas para os seminários à medida que se tomou cada
vez mais aceito dentro dos círculos teológicos. O enfoque do movimento
passou das questões de ordem prática para questões mais explicitamente
teológicas, como a natureza da libertação e o significado do sofrimento.

3. 1977 em diante. Uma nova consciência do desenvolvimento dos


movimentos de libertação em outras partes do mundo, especialmente na
América Latina, ganhou importância dentro da teologia negra. Juntamente
com esse novo senso de perspectiva ocorreu uma renovação no
compromisso de servir as igrejas de liderança negra e de promovera
comunhão e colaboração eive essas igrejas.
Costuma-se considerar que o escritor mais expressivo desse movimento foi fores
H. Cone, cuja obra Black Theology of Liberation [A teologia negra da
libertação] (1970) se valeu do conceito central de um Deus preocupado com a
luta negra por libertação. Observando a forte preferência de Jesus pelos oprimidos,
Cone argumentou que "Deus era negro" — isto é, que ele se identificava com os
oprimidos. No entanto, o uso que Cone fez de conceitos bartianos foi motivo de
críticas: Por que, perguntaram alguns, um teólogo negro usaria conceitos de
urna teologia branca para articulara experiência negra? Por que ele não havia
usado mais a história e cultura negras? Em obras posteriores, Cone respondeu a
essas críticas fazendo uso mais amplo da "experiência negra" como recurso
central na teologia negra. Não obstante, Cone

continuou a manter uma ênfase bartiana sobre a centralidade de Criam como


revelação própria de Deus (identificando-o, ao mesmo tempo, como "o Messias
Negro") e sobre a autoridade das Escrituras na interpretação da experiência
humana em geral.

Pós-liberalismo
Uma das desenvoluções mais importantes na teologia desde cerca de 1980 foi
um ceticismo crescente acerca da plausibilidade da cosmovisão liberal. Vários
acontecimentos acompanharam esse afastamento do liberalismo, dentre os
quais talvez o mais importante tenha sido o resgate dos pontos de vista mais
conservadores. Uma dessas desenvoluções foi o pós-libemlismo que passou a
ser associado especificamente à Yale Divinity School. Seus principais
fundamentos são abordagens narrativas â teologia, como as desenvolvidas por
Hans Frei e as escolas de interpretação social que enfatizam a importância da
cultura e da linguagem na geração e interpretação da experiência e do
pensamento.

Desenvolvendo suas idéias a partir do trabalho de filósofos como Alasdair Maclntyre,


o pós-liberalismo rejeita tanto o apelo do Ilurtunismo tradicional à "nacionalidade
universal" quanto a suposição liberal de uma experiência religiosa imediata comum
a toda a humanidade. Argumentando que todo pensamento e experiência é histórico
e socialmente mediam, o pós-liberalismo baseia seu programa teológico numa
volta às tradições religiosas, cujos valores são internamente apropriados. O pós-
liberalismo é, portanto, antitundavreanal (rejeita a idéia de um maduraram
universal do conhecimento), comunitário (no sentido de que lança mão dos
valores, experiências e linguagem de uma comunidade em vez de priorizar o
indivíduo) e historicista (no sentido de que insiste na importância das tradições e
suas respectivas comunidades históricas na formação da experiência e do
pensamento).
A declaração mais expressiva do programa do pós-liberalismo continua sendo a
obra de George Luitfilbeck, Nature of Doetrine [A natureza da doutrina] (1984).
Rejeitando as abordagens "cognitivo-proposicionais" da doutrina como sendo
pré-modernas em teorias "experienciais-expressivas" como sendo incapazes de
explicara diversidade humana experiencial e o papel mediador da cultura no
pensamento e experiência humanos, Lindbeck desenvolve uma abordagem
"cultural-lingüística" que corporifica as principais características do pós-
liberalismo.

A abordagem "cultural-lingüística" nega a existência de uma experiência humana


universal não mediada e independente da linguagem e cultura humanas. Antes,
enfatiza que o cerne, da religião se encontra na vivência dentro de uma tradição
religiosa histórica específica e na interiorizaçao de suas idéias e valores. Essa
tradição se baseia num conjunto de conceitos historicamente mediados para os
quais a narrativa é um meio de transmissão especialmente apropriado.

O pós-liberalismo é particularmente importante em relação a duas áreas da


teologia cristã.

1. Teologia sistemática. Considera-se que a teologia é, acima de


tudo, uma disciplina descritiva que trata da exploração dos fundamentos
normativos da tradição cristã, mediados pela narrativa escriturística de Jesus
Cristo. A verdade pode ser equiparada, pelo menos em parte, coma
fidelidade às tradições doutrinárias distintivas da fé cristã. Essa idéia levou
críticos do pós-liberalismo a acusarem-no de se retirar do âmbito público e
se recolher numa espécie de gueto cristão. Se a teologia cristã é, como
sugere o pós-liberalismo, intrasistemática (ou seja, uma disciplina que tratada
exploração das relações internas da tradição cristã), sua validade deve ser
julgada de acordo com seus próprios padrões internos, e não segundo
critérios definidos por um consenso público ou universal. Essa asserção
também suscitou críticas daqueles que sugerem que a teologia deve ter
critérios externos, sujeitos ao escrutínio público, pelos quais sua validade
pode ser testada.

2. Ética cristã. Stanley Hauerwas é um dentre vários escritores que


exploraram a abordagem pós-liberal à ética. Rejeitando a idéia iluminista de
um conjunto universal de ideais ou valores morais, Hauerwas argumenta
que a ética cristã se refere a identificação da visão moral de uma
comunidade histórica (a igreja) e à concretização dessa visão na vida de seus
membros. Assim, a ética é intra-sistemática no sentido de que se refere ao
estado dos valores morais internos de uma comunidade. Ser moral é
identificara visão moral de determinada comunidade histórica, apropriar-
se dos seus valores morais e praticâ-tos dentro dessa comunidade.

Evangelicalismo
O termo "evangelicalismo- pode ser datado do século 16, quando foi usado para
se referir aos escritures católicos que desejavam voltara crenças e práticas mais
bíblicas do que aquelas associadas à igreja no final do período medieval. Foi
usado especialmente na década de 1520, quando os termos évangélique
(francês) e evangelisch (alemão) começaram a ganhar preeminência nos escritos
do início da Reforma. Nos dias de hoje, o termo é usado de maneira ampla para
se referir a uma tendência muistlenominacional na teologia e espiritualidade que dá
ênfase específica ao lugar das Escrituras na vida cristã. O evangelicalismo
apresenta quatro pressuposições centrais:

1. A autoridade e suficiência das Escrituras.


2. A singularidade daredenção por meio da morte de Cristo na cruz.
3. A necessidade de conversão pessoal.
4. A necessidade, propriedade e urgência do evangelismo.

Todas as outras questões podem ser consideradas adiafóricas, "questões de


indiferença', em relação às quais se pode aceitar um pluralismo considerável.
A questão da eclesiologia é particularmente importante e trataremos dela mais
adiante nesta obra. Em termos históricos, o evangelicalismo nunca se associou a
determinada teoria da igreja, julgando o Novo Testamento aberto a várias
interpretações a esse respeito e considerando as distinções denominacionai s como
sendo de importância secundária em relação ao evangelho propriamente dito. Isso
não significa, de maneira nenhuma, que os evangélicos não têm um compromisso
com a igreja como corpo de Cristo; antes, significa que não têm um compromisso
cura nenhuma teoria da igreja. Para eles, o conceito corporativo da vida cristã não
deve ser associado especificamente a nenhuma visão dernaninacional da
natureza da igreja. Em certo sentido, trata-se de uma eclesiologia "minimalista';
em outro, representa um reconhecimento de que o Novo Testamento não
estipula com precisão nenhuma forma específica de governo eclesiástico que
possa ser considerada obrigatória para todos os cristãos. Essa visão apresenta
várias conseqüências importantes, das quais as seguintes são mais relevantes
para uma compreensão mais apropriada desse movimento.

1. O evangelicalismo é transdenominacional. Não se restringe a nenhuma


denominação nem é, em si mesmo, uma denominação. Não é incoerente falar de
"anglicanos evangélicos", "presbiterianos evangélicos", "metodistas evangélicos"
ou mesmo, "católicos romanos evangélicos".
2.0 evangelicalismo não é uma denominação em si, com uma eclesiologia distintiva,
mas sim uma tendência dentro das principais denominações.
3. O próprio evangelicalismo representa um movimento ecumênico. Há uma
afinidade natural entre os evangélicos, não obstante suas afiliações
denominacionais, proveniente de um compromisso comum com um conjunto de
crenças e pontos de vista semelhantes. A recusa característica dos evangélicos de
não permitir que determinada eclesiologia seja normativa e, ao mesmo tempo, a
insistência em honrar as que são claramente fundamentadas no Novo Testamento
e na tradição cristã, significam que questões de ordem e governo da igreja que
poderiam causar divisões são consideradas de importância secundária.

Uma questão essencial que exige esclarecimento neste ponto diz respeito à relação
entre o fundamentalismo e o evangelicalismo. O fundamentalismo surgiu dentro
de algumas igrejas norte-americanas como reação ao avanço da cultura secular.
Foi, desde o princípio, e continua sendo, um movimento contracultural, usando
afirmações doutrinárias centrais para definir seus limites culturais. Certas
doutrinas centrais — especialmente a autoridade literal absoluta das Escrituras e a
segunda vinda de Cristo antes do fim dos tempos (uma doutrina que costuma ser
chamada de "volta premilenar de Cristo") —

foram tratadas como barreiras que visavam alienara cultura secular e, ao


mesmo tempo, dar aos fundarrieratifistas um senso de identidade e propósito.
Uma mentalidade isolacionista se tomou característica do movimento;
contraconatrídades, fundamentalistas se consideravam cidades muradas, ou
(trazendo à lembrança o espírito dos pioneiros) círculos de carroçoes,
defendendo seu caráter distinto dos ataques de uma cultura incrédula.
A ênfase sobre a volta premilenar de Cristo é particularmente relevante. Essa idéia
tem uma longa história, mas antes do século 19, nunca chegou a ser muito
expressiva. Mas, ao que parece, o fundamentalismo discerniu nessa idéia uma arma
importante contra o conceito cristão liberal de um reino de Deus na tecia que pode
ser alcançado pela ação social. O "dispensacionalismo", especialmente do tipo
premilenar, se tomou paire integrante do fundamentalismo.
No entanto, o fundamentalismo norte-americano passou por um período claro de
inquietação no final da década de 1940 e começo da década de 1950. O neo-
evangelicalismo (como veio a ser chamado posteriormente) começou a se
desenvolver determinado a retificara situação inaceitável criada pelo avanço do
fundamentalismo. Pode-se diferenciar o fundamentalismo e o evangelicalismo em
três níveis gerais.

1. Em termos bíblicos, o fundamentalismo é inteiramente hostil â idéia


de qualquer tipo de criticismo bíblico e adota uma interpretação literal das
Escrituras. O evangelismo aceita o princípio do criticismo bíblico (insistindo,
porém, que seja aplicado com responsabilidade) e reconhece a diversidade
de formas literárias dentro das Escrituras.
2. Em termos teológicos, o fundamentalismo se mostra estreitamente
comprometido com um conjunto de doutrinas que o evangelicalismo
considera, na melhor das hipóteses, periféricas (como as doutrinas associadas
especificamente ao dispensacionalismo) e, na pior das hipóteses, inteiramente
irrelevantes. Há uma superposição de crenças (como a autoridade das
Escrituras) que pode mascarar com facilidade diferenças profundas de ponto
de vista e tendências.
3. Em temos sociológicos, o fundamentalismo é um movimento reacio-
nário contracultural com critérios rígidos de trembresia, associado
especialmente a indivíduos da classe trabalhadora. O evangelicalismo é um
movimento cultural com um critério de definição própria cada vez mais
vago e mais associado a membros de classes mais altas. O elemento de
irracionalidade associado com freqüência ao fundamentalismo não se
encontra presente no evangelicalismo, que tem produzido textos
importantes nas áreas da filosofia da religião e apologética.

O rompimento entre o fundamentalismo e o neo-evangelicalismo no final da década


de 1940 e inicio da década de 1950 mudou tanto a natureza quanto a forma deste
último ser visto pelo público. Billy Gratuita, um dos representantes mais
publicamente visíveis desse novo estilo evangélico, tomou-se uma figura
extremamente conhecida nos países de língua inglesa e um exemplo para
uma geração mais jovem de pastores evangélicos. O reconhecimento
geral na América do Norte da nova importância e visibilidade pública do
evangelicalismo pode ser datado do início da década de 1970. A crise na repu-
tação do Cristianismo liberal norte-americano no final da década de 1960 foi
interpretada de modo geral como uma indicação da necessidade do
surgimento de uma nova forma de fé cristã com mais credibilidade pública. Em
1976, os Estados Unidos se viram no "Ano dos Evangélicos", com um cristão
evangélico (Jimmy Camer) ocupando a presidência e um interesse sem
precedentes por parte da iníclia, no evangelicalismo, associado a um
envolvimento cada vez maior dos evangélicos na atuação política organizada.
Vários teólogos evangélicos se mostraram expressivos dentro do movi-
mento desde a Segunda Guerra Mundial. Cari E. H. Henry (nascido em 1913) é
conhecido por sua obra de seis volumes God, Revelation and Authority [Deus,
revelação e autoridade] (1976 – 1983), que representa uma defesa enérgica
das abordagens evangélicas tradicionais à autoridade bíblica. Donald G
Bloesch (nascido em 1928) mantêm essa ênfase, especialmente em sua obra
EssentraIs of Evangelical Theology [Princípios básicos da teologia
evangélica] (1978 –1979), apresentando uma teologia evangélica distinta tanto
do liberalismo quanto do funstamentalisino. Jantes; I. Packer (nascido em 1926)
também manteve uma ênfase sobre a importância da teologia bíblica e foi
um pioneiro na investigação da relação entre a teologia sistemática e a
espiritualidade em sua obra Knowing God [Conhecendo a Deus] (1973).
Uma das áreas de atividade teológica mais importantes do evangelicalismo é o
campo da apologética, no qual escritores como Edward John Camell (nascido
em 1919) e Clark H. Pinnock (nascido em 1939) realizaram contribuições
consideráveis. No entanto, apesar do renascimento teológico crescente dentro
do movimento, o evangelicalismo ainda não causou um impacto
significativo dentro da teologia corrente. Sem dúvida, essa situação não
ficará assim, especialmente se o pós-
liberalis-mo continuara expandir sua influência na América do Norte e em outras
partes do mundo. Apesar das grandes diferenças entre esses dois
movimentos, está cada vez mais claro que também há convergências
importantes, facilitando uma contribuição evangélica para as discussões
correntes.

O movimento pentecostal e o movimento carismático

Uma das desenvoluções mais importantes do Cristianismo no século 20 foi o


surgimento de grupos carismáticos e pentecostais, segundo os quais o
Cristianismo moderno pode redescobrir e se reapropriar do poder do Espírito
descrito no Novo Testamento, especialmente no Livro de Atos dos Apóstolos.
O termo "carismático" é derivado da palavra grega charismota ("dons", par-
ticularmente, "dons espirituais") que, de acordo com os cristãos
carismáticos, se encontram disponíveis nos dias de hoje. O termo relacionado
"pentecostal"

se refere aos acontecimentos do Dia de Pentecostes (At 2.1-12) que,


para os cristãos carismáticos, determinou o padrão para a vida cristã
normal.
A redescobena moderna dos dons espirituais é ligada a um movimento
conhecido como pentecostalismo, considerado o primeiro movimento
moderno a demonstrar tendências claramente carismáticas. Em seu
estudo do desenvolvimento dos movimentos carismáticos do século
20, C. Peter Wagner distingue três "ondas" dentro do movimento.
Aprimeira onda foi o pentecostalismo clássico que surgiu no início do
século 20 e foi caracterizado por sua ênfase sobre o dom de línguas. A
segunda onda ocorreu entre as décadas de 1960 e 1970 e foi associada
às principais denominações, inclusive ao catolicismo romano, que
adotaram as curas espirituais e outras práticas carismáticas. A terceira
onda, exemplificada por indivíduos como John xVimber, enfatiza os
"sinais e maravilhas".
Apesar de ser possível argumentar que o movimento carismático
tem raízes históricas profundas, costuma-se considerar que seu
desenvolvimento no século 20 teve origem no ministério de Charles
pós Parham (1873 - 1929). Em 1901, Parham apresentou as idéias

básicas que se tornariam determinantes para o pentecostalismo,


inclusive a prática de "falar em línguas" e a convicção de que o
"batismo do Espírito Santo" era uma segunda bênção depois da con-
versão de um cristão. Essas idéias foram desenvolvidas e
consolidadas por Joseph William Seymour (1870 - 1922), um pastor
negro que liderou um grande reavivanuento carismático na missão da
ma Azuza no centro de Los Angeles durante os anos de 1906-1908. A
maioria dos gmpos pentecostais norte-americanos, como a Assembléia
de Deus, data suas origens desse período.
No entanto, o impacto total do movimento carismático pode ser
datado da década de 1960.0 incidente que chamou a atenção do
público para o movimento ocorreu em Van Nuys, na Calilómia, em
1959, quando um pároco episcopal local disse à sua congregação
que havia sido enchido com o Espírito Santo e falado em línguas.
Isso levou a atenção geral a se concentrar na renovação carismática
dentro das principais igrejas da Europa, América do Norte e África do
Sul. O crescimento rápido de grupos pentecostais na América Latina
também pode ser datado desse período.

O movimento mais recente de "sinais e maravilhas" que dá ênfase


considerável à mr~cia da cura espiritual tem provocado controvérsia.
Alguns críticos argumentam que o movimento apresenta o evangelho
em termos que não fazem nenhuma referência ao arrependimento e
perdão, acusações estas que foram apresentadas de maneira
particularmente enérgica depois da Conferência de Guerra Espiritual
em Sidnei, Austrália, em 1990. Outras controvérsias giram em tomo
da teologia da cura em si. Contudo, fica clara que um movimento
importante está em processo de formação, apresentando o potencial de
articular sua própria teologia distintiva. Uma nova consciência e
experiência da presença do Espírito Santo na igreja moderna provocou
uma série de discussões sobre a naturezado batismo do Espírito e
sobre quais dos "dons espinhais- (charismata) são mais importantes em
relação à fé pessoal, à espiritualidade e à edificação da igreja como um
todo.

O CRESCIMENTO DO CRISTIANISMO NOS PAÍSES


EM DESENVOLVIMENTO

Apesar do Cristianismo ter se originado na Palestina, espalhou-se rapidamente


por todo o mundo Mediterrâneo. Ainda que várias de suas regiões iniciais
de influência tenham passado, posteriormente, por um processo de
islamização como resultado das invasões árabes do século 7° em diante,
a Europa permaneceu cristã. Até mesmo a Turquia, a nação mais islâmica
da Europa, manteve uma presença cristã significativa (em sua maior
parte, na forma de cristãos armênios) até o genocídio promovido pelo
governo islâmico que provocou a eliminação quase total do Cristianismo na
região até o fim da Primeira Guerra Mundial. À medida que as grandes
potências européias -como Inglaterra, França, Portugal e Espanha -
começaram a expandir suas esferas de influência, o Cristianismo também
entrou num processo de transformação, deixando de ser fundamentalmente
europeu e se transformando numa fé global.

A instituição pela igreja católica da comissão de propaganda fide ("para a


propagação da fé") na segunda metade do século 16 deve ser considerada
um marco nesse processo. Refletiu a consciência da igreja católica das
grandes populações em territórios recém-descobertos fora da Europa e da
necessidade de criar agências missionárias e pastorais para resolver a questão
dos territórios que não possuíam nenhum sistema formalmente instituído de ad-
ministração eclesiástica.
Os protestantes se mostraram muito mais lentos na tarefa de encarar o
desafio dos territórios recém-descobertos em lugares como as Américas.
Apesar de se saber de um missionário calsinista que atuou no Brasil no
século 16, o quadro geral da situação missionária foi dominado pela igreja
católica, na qual a Companhia de Jesus teve um papel particularmente
importante. O reavivantento, evangélico na Inglaterra durante o século 18
provocou um aumento dramático no número de missionários evangélicos
ativos em regiões nas quais a Grã-Bretanha tinha interesses políticos ou
económicos. Um empreendimento missionário de grandes proporções
começou a tomar forma na África, índia e nos vastos territórios insulares
espalhados pelo sul do Pacifico.
O resultado dessa transformação pode ser visto claramente numa estatística
simples. No início do século 19, a grande maioria dos cristãos vivia no
hemisfério norte e se concentrava principalmente na Europa. Na metade
do século 20, esse quadro mudou claramente. Nos dias de hoje a maioria
dos cristãos se encontra no hemisfério sul. Nem a Europa nem a América do
Norte constituem o centro numérico da fé cristã. Hoje, as maiores
concentrações de cristãos se encontram na América do Sul, no sul da África e
em partes da Ásia.
De que maneira o Cristianismo entrou nessas sociedades? A seguir,
investigaremos as origens e desenvolvimento do Cristianismo em várias regiões
importantes do mundo, começando com o caso da América Latina.

A América Latina: a teologia da libertação

Espanha e Portugal foram as potências coloniais que dominaram a


América do Sul. Durante o século 16, essas duas nações
estabeleceram sua presença nessa região e a consolidaram nos
séculos seguintes. Surgiram povoados missionários formados
especialmente pelos jesuítas. Partindo de suas bases na América
Latina, esses missionários se deslocaram para o norte e fundaram
missões na região dos atuais Estados da Califórnia, Novo México,
Texas e Arizona. Apesar das disputas entre Portugal e
Espanha terem sido, com freqüência, um obstáculo para o trabalho
missionário, no final do século 18 a América do Sul já se encontrava
amplamente cristianizada.
Várias desenvoluções mais recentes são particularmente interessantes e
trataremos de uma delas — a teologia da libertação latino-americana —
a seguir.
O termo "teologia da libertação" poderia, teoricamente, ser aplicado
a qualquer teologia voltada para situações de opressão ou referente
as mesmas. No entanto, na prática, essa designação é usada para uma
forma bastante característica de teologia que se originou na situação
latino-americana nas décadas de 1960 e 1970. Em 1968, os bispos
católicos da América Latina se reuniram para um congresso em
Medellín, Colômbia. Essa reunião — conhecida como CELAM II — teve
repercussões por toda a região ao reconhecer que a igreja havia, em
várias ocasiões, tomado partido de governos opressivos da região e
ao declarar que, no futuro, a igreja ficaria do lado dos pobres.
Essa posição pastoral e política foi logo complementada por uma base
teológica sólida. Em sua obra Theology of Liberation [Teologia da
libertação] (1971), o teólogo peruano Gustavo Gutiérrez apresentou os
temas característicos que viriam a definir o movimento e que
investigaremos adiante. Outros escritores de expressão foramo
brasileiro Leonardo Boff, o uruguaio Juan Luis Segundo e o
argentino José Míguez Bonino. Este último é atípico por ser uma
voz protestante (mais precisamente, metodista) num diálogo
dominado por escritores caffilicos.
Os temas básicos da teologia da libertação latino-americana podem ser
resumidos da seguinte forma.

1. A teologia da libertação é voltada para os pobres e oprimidos. 'Os


pobres são a fonte teológica genuína para a compreensão da verdade e
prática cristg' (Saíamo). Na situação da América Latina, a igreja está
do lado dos pobres. "Deus está cima e inequivocamente do lado dos
pobres" (Bonino). Do fato de Deus estar do lado dos pobres segue-se
outro conceito: os pobres ocupam uma posição de importância especial
na interpretação da fé cristã. Toda a teologia e missão cristã devem ter
como ponto de partida o 'Ponto de vista dos mais humildes", os
sofrimentos e aflições dos pobres.

A teologia da libertação envolve =a reflexão crítica sobre a prática. Nas


palavras de Guterrez, a teologia é "uma reflexão crítica sobre a práxis
cristã à luz da Palavra de Deus". A teologia não é, e não deve ser, desligada do
envolvimento social ou da ação política. Enquanto a teologia clássica ocidental
considerava a ação um resultado da reflexão, a teologia da libertação inverte a
ordem: a ação vem primeiro, seguida da reflexão crítica. "A teologia precisa
parar de explicar o mundo e começar a transformá-lo" (Bonina). O verdadeiro
conhecimento de Deus nunca pode ser desinteressado ou indiferente;
antes, deve se dar dentro e por meio do compromisso com a causa dos
pobres. Há uma rejeição fundamental da visão iluminista de que o
compromisso é uma barreira para o conhecimento.

Nesse ponto, fica clara a dívida da teologia da libertação para com a


teoria marxista. Vários observadores ocidentais criticaram o movimento por
esse motivo, considerando-o uma aliança profana entre o Cristianismo e o
marxismo. Os teólogos da libertação defenderam energicamente seu uso
de Mans com base em dois argumentos. Em primeiro lugar, o marxismo é
visto como "um instrumento de análise social" (Gutiérrez) que permite a
aquisição de um conhecimento mais profundo acercada natureza atual da
sociedade latino-americana e o meio pelo qual a situação lastimável dos
pobres pode ser melhorada. Em segundo lugar, fornece o programa político
pelo qual o sistema social atual injusto pode ser eliminado e uma sociedade
mais justa pode ser criada. Na prática, a teologia da libertação é
extremamente crítica em relação ao capitalismo e favorável ao socialismo.
Teólogos da libertação observam a maneira como o escritor escolástico
medieval Tomás de Aquino usou Aristóteles em seus escritos, argumentando
que estão apenas fazendo a mesma coisa, usando um filósofo secular para
substanciar crenças fundamentalmente cristãs. É preciso enfatizm que a
teologia da libertação afirma que a preferência de Deus pelos pobres e seu
compromisso com eles é um aspecto fundamental do evangelho, e não um
acréscimo decorrente da situação latino-americana ou baseado puramente
na teoria política marxista.

Fica claro que a teologia da libertação é de grande importância para a


discussão teológica recente. As Escrituras, por exemplo, são lidas como uma
narrativa de libertação. Dá-se ênfase particular à libertação de Israel da
escravidão do Egito, à condenação da opressão pelos profetas e à
proclamação do evangelho por Jesus aos pobres e excluídos. As Escrituras
não são lidas com um desejo de compreender o evangelho, mas com a
preocupação de aplicar seus insigias de libertação à situação latino-
americana. A teologia acadêmica ocidental costuma considerar essa
abordagem com certa impaciência, crendo que ela não deixa espaço para
os insigios ponderados dos estudiosos bíblicos acerca da interpretação
dessas passagens.
A teologia da libertação também demonstra um interesse considerável pela
natureza da salvação. Em várias ocasiões, parece equiparar salvação com
libertação e enfatiza os aspectos sociais, políticos e econômicos da
salvação. O movimento deu ênfase particular ao conceito de "pecado
estrutural",

observando que é a sociedade que se encontra corrompida e carente de


redenção, e irão seus membros individuais. Para os seus críticos, a teologia
da libertação reduziu a salvação a uma simples questão mundana e
negligenciou sana dimensões transcendentes e eternas. É provável que esse
aspecto do movimento tenha se refletido parcialmente no crescimento
rápido de formas de Cristianismo (como o movimento carismático) que
enfatizam os elementos transcendentes e espirituais da vida.

O sudeste da Ásia

Em 1521, o grande explorador espanhol Fernando Magalhães descobriu um


grupo de 3.141 ilhas. Enquanto essas ilhas, hoje conhecidas como "Filipinas", se
encontravam sob o domínio da Espanha, várias ordens religiosas, especialmente
os franciscarros e dominicanos, realizaram um programa de evangelização da
região. Em 1898, as ilhas passaram a ser governadas pelos Estados Unidos e se
tornaram independentes em 1946. As Filipinas são incomuns no sentido de que
constituem o único país predominantemente cristão do sudeste asiático.
Apesar de o catolicismo ser a principal forma de Cristianismo na região
atualmente, várias sociedades missionárias protestantes se estabeleceram com
o fim do domínio espanhol. Existem diversas formas de protestantismo
firmemente arraigadas na região hoje, mas os protestantes ainda constituem
uma minoria.

Em outras partes do sudeste da Ásia, pode-se dizer que o Cristianismo é uma


minoria em crescimento. O Cristianismo foi levado ao Japão em 1549, quando
o missionário jesuíta Francisco Xavier chegou em Kagoshima. A pequena
comunidade cristã japonesa experimentou um longo período de isolamento do
Ocidente durante o sugaram de TinIoutuana. Foi somente em 1865 que o Japão
abriu suas portas para o Ocidente, revelando a presença persistente de cerca de
sessenta mil cristãos no país. Durante o período Meili (1868 —1912), o
Cristianismo cresceu consideravelmente no Japão. No entanto, nunca chegou
aos níveis substanciais de crescimento vistos na China ou na Coréia do Sul nos
últimos anos. Para muitos japoneses, o Cristianismo é, como a manteiga, um
produto importado do Ocidente. Isso fica evidente no termo coloquial japonês
usado para "Cristianismo" que pode ser traduzido como "tem gosto de
manteiga".

Talvez as desenvoluções mais interessantes no sudeste asiático tenham ocorrido


na China e na Coréia. Sabe-se que o Cristianismo estabeleceu sua presença na
China em 1294 quando missionários franciscanos chegaram no país. Entretanto,
há evidências de que o Cristianismo chegou à China muito antes. A Tabula de
Sigan-Fu, datada de 781, faz referência a um missionário nestoriano que havia
chegado na região 146 anos antes, indicando a atividade missionária intensa
dessa forma oriental de Cristianismo na época. Todavia, a igreja nunca foi muito
bem-sucedida em granjear convertidos. Uma das muitas conseqüências das
Guerras do Ópio da década de 1840 foi a abertura do

'Reino Médio" para pelo menos algumas atitudes ocidentais. A china


escolheu permanecer isolada do Ocidente até o século 19, quando um
interesse crescente no comércio abriu a região para os missionários
ocidentais. Dentre estes, podemos destacar e considerar em mais detalhes
James Hudson Taylor (1832-1905).
Hudson Taylor trabalhou, a princípio, com a Sociedade de Evangelização
Chinesa. Insatisfeito com essa organização, Hudson fundou a Missão para
o Interior da China em 1865. Essa missão foi mentiram em vários sentidos,
principalmente em sua disposição de aceitar mulheres solteiras como
missionárias e em seu caráter interdenominacional. Hudson Taylor demonstrou
uma forte consciência das barreiras culturais que os missionários cristãos
enfrentavam na China e fez todo o possível para removê-las, - exigindo, por
exemplo, que seus missionários usassem roupas chinesas em vez de trajes
ocidentais.

Não obstante, as tentativas ocidentais de evangelizar a China tiveram


resultados extremamente limitados. O Cristianismo era visto como algo oci -
dental e- portanto, contrário à cultura chinesa. A derrota da China pelo
Japão numa guerra malograda entre 1894 - 1895 foi considerada por muitos
um resultado direto da presença de estrangeiros no país. Isso levou à cruzada
de I Ho Wiem em 1899 - 1900, com sua oposição fanática aos
investimentos e atividades religiosas estrangeiras. Com a fundação da
República da China em 191 I, o Cristianismo recebeu certa tolerância oficial
que terminou repentinamente em 1949 com a vitória comunista que levou à
fundação da República Popular da China e à expulsão de todos os
missionários ocidentais do país. A —revolução cultural" da década de 1960
provocou a repressão total do Cristianismo. Não havia como dizer o que
estava acontecendo com a fé cristã na China e muitos chegaram à
conclusão de que havia sido erradicada.

Em 1979 os horrores da revolução cultural chegaram ao lime ficou claro que


o Cristianismo havia sobrevivido. Em termos mais amplos, três linhas principais
podem ser discernidas dentro do Cristianismo chinês moderno.

1. O Movimento Patriótico das TrCs Autonomias, fundado em 1951 é


a igreja "oficial-. A expressão "Três AutortomóiaÇ se refere à autonomia de
sustento, autonomia de administração e autonomia de propagação. A idéia
geral era garantir que a igreja fosse inteiramente independente de qualquer
influência estrangeira. No entanto, fica claro que o Estado exercia um forte
controle sobre essa igreja.
2. A igreja católica continua a ter uma presença expressiva na
China. A insistência do governo de que as igrejas não deviam ter nenhuma
relação de dependência ou obediência com agências estrangeiras sem
dúvida causou algumas dificuldades para os católicos, tendo em vista sua
lealdade ao Papa. Em termos gerais, parece haver dois grutios, dentro do
catolicismo chinês: um independente do Vaticano (a "Associação Católica
Patriótica") e outro que mantém vínculos com ele. O primeiro grupo parece
estar em ascensão.
3. O movimento da igreja nos lares é, hoje, o movimento cristão mais
importante na China. De tendência fortemente carismática, o movimento teste-
munhou um crescimento numérico extraordinário principalmente nas regiões
outros da China. Apesar de ser impossível obter números confiáveis, há indica-
ções que talvez até 50 milhões de chineses pertençam a igrejas desse tipo.

Fora da Clima continental, o Cristianismo avançou consideravelmente em


comunidades chinesas em Singapura e na Malásia. Um quadro semelhante está se
desenvolvendo nas comunidades chinesas em cidades grandes do Ocidente como
Los Angeles, Vancouver e Sidnei.
A situação na Coréia é importante para o futuro do Cristianismo na região. A
população cristã na Coréia antes de 1883 em minúscula. No entanto, nesse ano,
o governo coreano encerrou um longo período de isolamento internacional com a
assinatura de um tratado com os Estados Unidos, o que permitiu que missões
presbiterianas norte-americanas começassem a atuar no país em 1884. Os
esforços evangelísticos iniciais se concentraram nas mulheres e em outros
grupos marginalizados, enfatizando a importância de treinar evangelistas do
próprio país. A campanha evangetística de 1909-1911 teve resarados expressivos.
Porém, em 1910, o Japão anexou a Coréia como colônia e acabou impondo o
xintoísmo à força sobre a população. Com a libertação da Coréia depois da
Segunda Guenta, Mundial, o Cristianismo desfrutou um grau-de crescimento
nessa região. Atualmente, trinta por cento dos coreanos são cristãos, em sua
maioria presbiterianos. Um dos fatores que podem ajudar a explicar o
crescimento do Cristianismo é o fato de a cultura ocidental não ser cisto como
opressora (como na China), mas sim libertadora (especialmente na guerra contra
o Japão).

África
O Cristianismo se estabeleceu no norte da África durante o primeiro século da Era
Cristã. Igrejas foram fundadas ao longo de boa parte da costa norte da África, nas
regiões conhecidas hoje como Argélia, Tunísia e Líbia. Uma presença cristã
particularmente forte se desenvolveu no Egito, tendo a cidade de Alexandria
como centro emergente de vida e pensamento cristãos. Uma boa parte dessa
presença cristã foi eliminada pelas invasões árabes do século 7-. Mas, mesmo
como uma fé minoritária, o Cristianismo sobreviveu no Egito. Apenas o
pequeno reino da Etiópia (termo que designa um território muito menor do que a
ama] nação que leva esse mesmo nome) permaneceu uma nação cristã. No início do
século 16, a África se encontrava dominada pelo Islantuístro ao norte e pelas
formas nativas de religião ao sul. Com exceção do caso isolado da Etiópia, riso
havia absolutamente nenhuma presença cristã expressiva.

A situação começou a mudar gradativamente perto do final do século 16.


Colonizadores portugueses se assentaram em ilhas antes desabitadas da costa
oeste da Ãfinca, como Cabo Verde. No entanto, esses assentamentos não tiveram
grande impacto no continente. A chegada do Cristianismo na região sul da
África pode ser datada do século 18, tendo ocorrido em associação muito
próxima com o Grande Despertar evangélico na Inglaterra nessa mesma
época.
Dentre as principais missões britânicas atuantes na África no final do seca-to
18 e começo do século 19 podemos citara Sociedade Missionária Batista
(SMB, fundada em 1792 com o nome "A Sociedade Batista Particular para a
Propagação do Evangelho'); a Sociedade Missionária de Londres (SML,
fundada em 1795 com o nome "A Sociedade Missionária") e a
Sociedade Missionária da Igreja (SMI, fundada em 1799 com o nome "A
Sociedade Missionária para a África e o Oriente"). Cada uma dessas
sociedades desenvolveu um foco particular em regiões específicas: a SMB se
concentrou na bacia do Congo; a SML, no sul da África (incluindo Madagascar)
e a SMI, no oeste e leste da África. Todas essas sociedades eram protestantes
e, em geral, de visão fortemente evangélica. Foi só na metade do século 19
que grupos missionários católicos começaram a se envolver mais
seriamente com a população dessas regiões. O trauma da Revolução
Francesa (1789) e seus resultados haviam abalado intensamente a igreja
católica que só voltou sua atenção para o evangelismo depois que o
Congresso de Viena (1815) definiu a forma futura da Europa.

A característica marcante da África subsaariana do século 19 é a impor tância


crescente do colonialismo. A Bélgica, a Inglaterra, a França e a Alemanha
fundaram colônias na região durante esse período. As formas de Cristia -
nismo predominantes dessas nações variavam consideravelmente, o que
resultou na fundação de uma grande variedade de igrejas na África. O
anglicanismo, o catolicismo e o luteranismo se encontravam plenamente
consolidados no final do século; na África do Sul, a igreja reformada
holandesa exerceu uma influência particularmente forte entre os
colonizadores europeus. No entanto, é preciso enfatizar que outros
missionários de contextos radicalmente diferentes também estavam atuando
na região. Sabe-se, por exemplo, de pelo menos 115 missionários negros
norte-americanos que estavam presentes e ativos na África no período de
1875 - 1899.
Os cristãos africanos desse período podem ser divididos de modo mais
geral em duas categorias: colonizadores europeus e nativos africanos. Os
primeiros costumavam, à medida do possível, preservara vida cristã de sua
terra natal, muitas vezes por motivos sentimentais ou culturais. Assim, as
cerimônias da Igreja da Inglaterra eram reproduzidas em maior ou menor grau
em várias
artas
colônias britânicas que estavam nascendo na região d a África nessa
época. Mais importante do que isso, porém, foi a adoção gradativa do
Cristianismo pelos povos nativos africanos. Em muitas ocasiões, os primeiros
a se converterem ao Cristianismo foram os marginalizados d as sociedades
africanas tradicionais - como os escravos, as mulheres e os pobres. Em
diversas regiões onde havia missionários atuando, o número de mulheres
cristãs ultrapassou em muito o número de homens cristãos, causando
sérias dificuldades. Como essas mulheres encontrariam maridos cristãos? É
evidente que os missionários mais

bem-sucedidos não eram os competi mas sim os próprios africanos. O


crescimento &=atice do Cristianismo africano se deu, em sua maior parte,
depois da fundação de comunidades africanas cristãs que proveram
catequizadores e pastores paro um número cada vez maior de
convertidos.
Apesar disso, pode-se destacar o nome de vários missionários europeus
importantes, como por exemplo, Davi Livingstone (1813 – 1873). Livingstone
estava convencido da importância do comércio em relação à cristianização da
África. Ele declarou sua intenção de ir à África "para abrir um caminho para o
comércio e o Cristianismo'. Explorando o interesse do governo britânico de
substituir o comércio proibido de escravos por formas mais legítimas de
comércio, Livingstone obteve apoio governamental partitura expedição que tinha
como objetivo explorar o Rio Zambezi como uma possível via para o interior. A
seu ver, as regiões do interior da África poderiam ser usadas para a exploração
comercial (como o cultivo de algodão, produto para o qual havia, na época, uma
grande demanda nos cotonificins de Lancashire). A expedição foi um fracasso
comercial, mas abriu caminho para a atividade missionária no interior do
continente.

O caso da África do Sul é particularmente interessante, tendo em vista m


dificuldades enfrentadas pelo país na segunda metade do século 20. Em 1658 os
europeus da Companhia Holandesa das índias Orientais se estabeleceram na
região do Cabo da Boa Esperança. A região se tornou uma colônia britânica em
1795, iniciando uma polarização entre as populações européias de língua holan-
desa e inglesa que, por fim, culminou coma Guerra Bôer no final do século 19.
Ainda que de formas bastante distintas, o Cristianismo era pane integrante das
duas comunidades européias. O trabalho missionário na década de 1790 levou à
fundação de pequenas comunidades cristãs entre tribos nativas, especialmente
entre os Iditus. Aos poucos, as tribos ao redor começaram a se converter ao
Cristianismo. Aqui, como em muitas outras situações, as motivações por trás
dessas conversões variavam consideravelmente. Algumas conversões refletem
claramente uma experiência espiritual profunda; outras refletem uma convicção da
verdade do evangelho cristão; outras ainda podem refletira idéia de que o
Cristianismo ofereceria à cultura africana os benefícios da civilização ocidental.
Isso fica particularmente claro no caso da tribo girada no leste da África, onde a
decisão de se converter ao Cristianismo (e não ao Islamismo) parece ter sido
influenciada, em parte, pela superioridade da tecnologia britânica.
No âmbito de comunicação das idéias, as dificuldades a serem superadas
eram enormes. De que maneira os conceitos característicos do Cristianismo
podiam ser explicados para povos que não tinham nenhuma compreensão
dos mesmos? Para os missionários evangélicos ingleses não havia nada de
errado em sugerir que seus ouvintes africanos fossem "lavados pelo sangue
do Cordeiro" (uma referência a receber perdão por meio da morte de
Cristo): há indicações, porém, de que tal imagem causou a consternação
de muitos nativos que esses missionários estavam tentando converter.

O Cristianismo também, provocou tensões dentro das sociedades africanas


tradicionais. O Cristianismo acidental em fortemente monogâmico; as culturas
africanas reconheciam, de longa data, os méritos da poligamia. Cada vez mais, a
insistência dos cristãos europeus em que um homem tivesse apenas uma esposa
passou a ser vista como uma idéia importada da Europa que não tinha lugar na
sociedade africana tradicional. A Igreja Metodista Unida Africana, uma igreja nativa
que reconheceu a poligamia, teve suas origens numa reunião das igrejas metodistas
em lagos, na Nigéria, em 1917, quando um grande grupo de leigos foi desligado da
igreja em razão da poligamia. Esse grupo formou, então, sua própria igreja
metodista que adotou valores nativos condenados pelos missionários europeus.

Em vários casos, as tensões levaram a conflitos sangrentos. Um exemplo é o


povo baganda que vivia numa região que hoje faz parte da Uganda. A
perseguição dos cristãos pelo rei baganda, Mwanga, em 1886 é um exemplo
importante, uma vez que mostra a ameaça que a influência crescente do Cristianismo
representou para as esturraras tradicionais de poder da região. O pretexto do
massacre foi a recusa de alguns pajens da corte real de participar de atividades
homossexuais e, portanto, contrárias à sua fé cristã. A questão levantada não foi
tanto a homossexualidade propriamente como um comportamento certo ou errado,
mas sim a obediência dos pajens ao rei ou sua fidelidade às suas convicções
cristãs. Ficou claro que o Cristianismo estava ameaçando a lealdade tribal
tradicional. Acredita-se que cerca de 100 desses pajens foram mortos, incluindo
31 que foram queimados vivos. Todos eram nativos africanos; nenhum
missionário estrangeiro foi afetado. No entanto, a perseguição só aumentou a
determinação dos cristãos de perseverar em sua fé. Em 1911, metade da população
da região já era cristã.

No período depois da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918), o Cristianismo


passou por transformações e acontecimentos significativos. O mais evidente
deles é o crescimento numérico da fé cristã na região, com efeitos importantes
para a política regional. Um elemento particularmente relevante é o contato entor,
o Islamismo e o Cristianismo, uma possível causa de sérios conflitos. A região sul
da Nigéria, por exemplo, é predominantemente cristã, enquanto a região norte é
predominantemente muçulmana. Isso levanta a questão da possibilidade da
Nigéria sobreviver como uma nação unificada ou a necessidade de introduzir
no futuro algum tipo de separação – como aconteceu entre o Paquistão
predominantemente muçulmano e a índia predominantemente hindu em 1947.

Outras questões também são importantes. Dois fatos miar-relacionados podem ser
destacados. O período depois da Segunda Guerra Mundial testemunhou o fim do
colonialismo. As potências coloniais – como a Bélgica, a França e a Grã-Bretanha –
se retiraram gradativamente da região, deixando para trás nações independentes.
Juntamente com essa transição parar a independência, as igrejas da região foram, aos
poucos, deixando sua dependência das igrejas-mães

na Europa. As igrejas anglicanas em regiões como a África do Sul,


Uganda e Zimbábue, por exemplo, dependiam inicialmente de
obreiros vindos da GãBretardia para ocupar os cargos mais elevados
de liderança—bispos, deões das catedrais e diretores dos seminários.
Esses cargos são ocupados agora por nativos africanos. Apesar de
muitos desses membros do alto clero terem estudado na Grã-
Bretanha, fica claro que as igrejas da região se consideram auto-
suficientes em termos de recursos humanos e financeiros.
Um fato relacionado diz respeito às Igrejas Independentes Africanas, um
termo que se refere a uma gama extremamente ampla de igrejas Cristãs
que enfatizam a preservação da herança africana dentro do contexto de
sua fé cristã. Essas igrejas costumam ser fortemente carismáticas,
dando grande ênfase à importância da cura espiritual, ao exorcismo, à
interpretação de sonhos e à orien- tação profética. Reagindo a cultura
ocidental baseada na palavra predominante no século 19, essas igrejas
enfatizam a experiência e o simbolismo. Outro fator importante aqui é o
racismo de algumas igrejas brancas, especialmente da África do Sul sob
o regime do apartheid. Pode-se considerar que as igrejas sionistas
dessa região são uma celebração e afirmação da identidade africana
negra diante de mantinha hostilidade oficial. Nas últimas décadas, essas
igrejas têm sido influenciadas pelo movimento carismático que se
mostrou um catalisador importante para a continuação do crescimento
do Cristianismo na região. Em 1967, uma pesquisa séria indicou a
existência de pelo menos 5 mil igrejas independentes desse tipo com
7 milhões de membros provenientes de 290 tribos de 34 países. Sabe-
se que, de lá para cá. ocorreu um crescimento substancial.

Pacífico sul

O termo "Oceania" costuma ser usado para se referir às


aproximadamente 1.500 ilhas no oceano Pacífico. Elas são divididas
em três regiões gerais. A Polinésia compreende o grupo de ilhas
(conhecidas no passado como "Ilhas, Sandwich") que se estendem do
Havaí ao norte até a Nova Zelândia ao sul, incluindo o Taiti e a Ilha
Pitcaim. A alicronévia se refere ao grupo de ilhas pequenas entre o
Havaí e as Filipinas, incluindo as Ilhas Carolina, Gilbert e Marshall. A
Melanésia se refere ao grupo de ilhas ao sul da Micronésia e norte da
Austrália, incluindo as ilhas Fiji e Salomão e as Novas [liquidas. A
população dessa região vasta de terras dispersadas é relativamente
pequena; no entanto, foi considerada de grande importância pelos
missionários cristãos do século 19.
0 interesse na região foi despertado inicialmente pelas viagens do
capitão Cook durante o século 18. Em 1795, a Sociedade Missionária
de Londres foi fundada com o objetivo principal de enviar missionários
para "as ilhas do Mar do Sul—. A primeira grande expedição
missionária à região partiu em agosto de 1796, quando 30
missionários embarcaram num navio rumo ao Tatiti. Apesar dessa
missão ter enfrentado dificuldades consideráveis — dentre elas-as
diferenças enormes entre os padrões de sexualidade da Inglaterra e do
Taiti

— pode-se dizer que marcou o início de um esforço contínuo de estabelecer o


Cristianismo na região.
A natureza geográfica da região tomou impossível um dos meios mais confiáveis
de evangelização — a fundação de centros missionários. As populações das ilhas
normalmente eram pequenas demais para justificara construção e manutenção
desse tipo de assentamento. A estratégia mais bem-sucedida a ser adotada foi o
uso de embarcações missionárias que permitiam aos missionários europeus dirigir
e supervisionaras operações de evangelistas, pastores e professores nativos da
região.

As missões cristãs mais expressivas se situavam na Austrália e Nova Zelândia,


que acabam servindo de base para a maior paire do trabalho missionário nessa
região. O Cristianismo chegou na Austrália em 1788 sob circunstâncias não muito
auspiciosas. Os navios que chegaram em New South Wales, transportavam
condenados para as colônias penais que estavam sendo estabelecidas na região.
No último momento, Wilharia Wilberforce convenceu as autoridades navais
britânicas a permitirem que um capelão acompanhasse os prisioneiros numa das
embarcações. Como aumento dramático da imigração da Grã-Bretanha para a
Oceania no século seguinte, várias formas de Cristianismo britânico se
consolidaram na região. A formação de comunidades religiosas no sertão
australiano em 1897 lançou os alicerces para a evangelização no interior do
continente.

Os primeiros missionários chegaram na Nova Zelândia em 1814. A consolidação


se deveu, em grande parte, ao bispo George Augustos Selwyn (1809 — 1878), que
foi nomeado bispo missionário da Nova Zelândia em 1841. Durante o tempo que
passou nessa região, Selwyn teve um forte impacto sobre o desenvolvimento do
Cristianismo, especialmente na área da educação. Voltou para a Inglaterra em
1867 e se tornou bispo de Lichfield no ano seguinte.
Uma questão que se destaca por todo o Pacífico sul é a relação entre o
Cristianismo e os povos nativos da região, especialmente os kuris da Austrália (que
com freqüência ainda são chamados indevidamente de "aborígines") e os muairis
da Nova Zelândia. Para alguns, o Cristianismo é um fenômeno colonial ocidental
que deve ser rejeitado por seu caráter destrutivo para as culturas indígenas; para
outros, o Cristianismo não tem nenhuma relação necessária com a cultura ou
poder ocidental e pode ser colocado a serviço dos povos e culturas nativos. Essa
mesma discussão está surgindo como resultado do crescimento do Cristianismo
na índia, do qual tratamos a seguir.

A índia

O Cristianismo se estabeleceu no soberanamente indiano em tempos relativamente


remotos. Diz a tradição que o apóstolo Tomé fundou a igreja indiana de Mar Thoma
no primeiro século; mesmo levando em consideração certo exagero religioso, há
excelentes motivos para crer que o Cristianismo já fazia parte do cenário religioso
indiano no século 4°. Parece provável que os merca-

dores ocidentais tenham descoberto a existência do desfiladeiro de Palghat


em tempos remotos, facilitando desse modo o comércio coma região sul da
índia. Viajantes europeus que chegavam à índia por tens, antes da abertura
do comércio marítimo pelo navegador português Vasco da Gama em maio de
1498, relatavam com frequência a presença do Cristianismo na região.
A chegada dos portugueses pode ser entendida como indicação do início de um
novo período importante do Cristianismo indiano, no qual as tradições cristãs
nativas foram complementadas por versões importadas do evangelho, cada uma
refletindo aspectos de seu contexto europeu. A bula papal Aeterma regis
clementìa (21 de junho de 1481) concedeu ao monarca português autoridade
para fazer comércio com terras até então não descobertas e também o investiu
de "poder e autoridade espiritual do Cabo Bojador e Nam até às Índias". O bispado
de Goa foi estabelecido como base potencial para uma campanha portuguesa de
evangelização do interior.

A importância desse povoado aumentou consideravelmente com a chegada de


Francisco Xavier em 6 de maio de 1542. Apenas dois anos depois de ter sido
formalmente reconhecida pelo Papa, a Companhia de Jesus já se encontrava
estabelecida na índia. Xavier organizou um empreendimento missionário
extremamente amplo, incluindo a tradução de obras cristãs pala o tântril. Com o
passar do tempo, colonizadores holandeses, ingleses e franceses se mudaram
para a índia trazendo suas próprias versões do Cristianismo.
A princípio, a evangelização foi considerada um elemento periférico às
transações comerciais. Os primeiros clérigos anglicanos a chegarem na índia, por
exemplo, foram os capelães de navios nomeados pela Companhia das índias
Orientais Inglesas para dar apoio espiritual e cuidados pastorais à tripulação
dessas embarcações. No entanto, a presença européia crescente na região
trouxe as tensões da situação religiosa da Europa do século 17, na qual o
protestantismo e o catolicismo eram considerados versões mutuamente incom-
patíveis e radicalmente divergentes do Cristianismo. Como estabelecimento do
Cristianismo na índia se considerou, inevitavelmente, que os interesses
políticos de nações protestantes e católicas, como a Inglaterra e a França,
possuíam dimensões fortemente religiosas. A religião era um aspecto de uma luta
mais ampla por supremacia política e econômica. O evangelismo se tornou,
portanto, cada vez mais imperativo.

Humphrey Prideaux, um deão anglicano de Norwich (1648 – 1724), pode ser


considerado um representante desse espírito empreendedor evangelístico.
Em sua obra Actowit of lhe English Senlemene, in the East hstfie y,
togelher with some proposals for the propagation of Christianity in,
those parts of the world [Relato dos assentamentos ingleses nas índias
Orientais,jurí amente com algumas propostas pula a propagação do
Cristianismo nessas partes do mundo], Prideaux ressaltou a necessidade de
treinar pessoas para o trabalho específico de evangelismo. A idéia de
Prideaux era profética: um "seminário" devia ser fundado na Inglaterra
como objetivo de preparar obreiros missionários ate que

esse trabalho pudesse ser transferido para agências com base na própria
índia. Em sua proposta, pode-se ver a base do movimento missionário que
estava destinado a causar um fone impacto sobre o Cristianismo indiano.
Dentre as principais contribuições do trabalho missionário na índia, as
seguintes podem ser destacadas. A primeira grande missão protestante na
índia tinha sua base em Tranquebar, na Costa de Corourianidel, cerca de 200
quilômetios ao sul de Madras. Dentre os missionários liderares alemães, os
mais notáveis foram Barflutilormita Ziegenbalg (que dirigiu a missão desde sua
fundação em 1706 até 1719) e Christian Frederick Schwartz (diretor de
1750 a 1787). No entanto, o poder político crescente da Grã-Bretanha na
região favoreceu, inevitavelmente, as atividades dos missionários
britânicos, sendo que o primeiro (o batista William Carey) começou a
trabalharem Bengala em 1793. A decisão de Clemente XIV de extinguira
Companhia de Jesus também contribuiu para esse favoritismo. A bula
Dominus ac Redemptor (21 de julho de 1773) encerrava formalmente 'Iodas
as suas funções e ministérios". Suspenderam-se, portanto, todas as atividades
missionárias dos jesuítas na índia e em outras partes do mundo. Ainda assim,
sabe-se de pelo menos 50 jesuítas que continuaram o trabalho missionário na
índia depois da extinção da sua ordem, apesar dos esforços dos portugueses
para repatriá-los.

As sociedades missionárias britânicas, bem como missionários individuais


puderam, então, atuar na índia sem nenhuma oposição expressiva de
outras agências européias. Ainda assim, não receberam nenhum apoio das
autoridades britânicas; a Companhia das índias Orientais, por exemplo, se
opunha às suas atividades alegando que poderiam criar situações
embaraçosas entre os indianos nativos e, desse modo, ameaçar o
comércio do qual a Companhia dependia. Contudo, a Carta Patente
(publicada pelo parlamento britânico em 13 de julho de 1813) modificou as
condições dentro das quais a Companhia tinha permissão de operar: a nova
carta dava aos missionários britânicos uma posição protegida e um grau
limitado de liberdade para realizar seu trabalho evangelístico no subcontinente
indiano. O resultado foi inevitável: "desde 1813, as missões cristãs nunca se
livraram inteiramente do estigma indevido de dependência do governo"
(Stephen Charles Neill). A nova carta também previa a fundação de um
bispado anglicano em Calcutá. Sob a direção de Reginald Beber (1783 —
1826; bispo de Calcutá, 1823 — 1826), o trabalho missionário se expandiu
consideravelmente e se manteve restrito aos anglicanos (os missionários
luteranos precisavam ser reordenados a fim de ter permissão de atuar na
região). Outras modificações realizadas na carta patente da Companhia
das índias Orientais em 1833 removeram algumas das restrições
anteriormente impostas sobre o trabalho missionário.

O desenvolvimento de tensões religiosas era inevitável. Em 1830, formou-se o


Dharma Sabha — ao que parece, uma reação às formas invasivas de
ocidentalização de Bengala. A revolta de 1857 (chamada pelos escritores con-
temporâneos de "Motim Indiano') é considerada o resultado de ressentimentos

crescentes com a ocidentalização. Portanto, é importante observar o


desenvolvimento de abordagens indianas nativas ao Cristianismo, em vez
de teologias de origem essencialmente européias na região. Nessas fases
iniciais, essa teologia costumava se desenvolver pela assimilação do
Cristianismo pelos hindus em sua própria cosmovisão. Rammohun Roy
(1772 – 1833), por exemplo, nasceu numa família boãntarre. Seus
primeiros contatos com o Islamismo (e, em particular, com a tradição
mística dos Sufis) o levou a concluir que a religião hindu era corrupta e
precisava ser reformada. Em 1815 ele fundou o Atmya Sabha, um
movimento dedicado a reformar o hinduísmo e que defendia a abolição do
saci (também grafado "suttee": a prática de queimar as viúvas hindus
vivas na pira funerária do marido). Seu afastamento cada vez maior do
hinduísmo ortodoxo gerou um interesse crescente pelo Cristianismo, que
mais tarde, ele considerou como sendo a corporiticação de um código moral
aceiro vê] pata os hindus esclarecidos. Essa idéia, que ele promoveu em
sua obra Preceitits qf Jesus [Preceitos de Jesus] (1820), atraiu atenção
considerável.

Também provocou uma série de críticas dentro dos círculos cristãos eu-
ropeus, especialmente dos protestantes mais conservadores como
Deocar Schmidt, um pastor luterano. Schmidt argumentou que os preceitos
morais de Cristo não podiam ser separados da questão teológica da
identidade de Cristo e das implicações subseqüentes disso para o
conceito trinitário de Deus. Rammohun Roy replicou que era impossível
um findo aceitar um conceito limitaria de Deus; não obstante, uma visão
unitária de Deus associada a uma ênfase sobre o código moral do
evangelho podia muito bem se mostrar aceitável. Era possível os pecados
serem perdoados sem que a expiação realizada por Cristo fosse necessária,
uma idéia que ele considerava completamente alheia ao hinduismis (o teísmo
bramanista, por exemplo, rejeita tanto o conceito de revelação quanto o de
expiação). Em 1829, ele fundou a Bratítirio Samaj, uma sociedade teísta
que usava conceitos tanto do hinduísmo quanto do Cristianismo; dentre
as idéias derivadas deste último, encontrava-se a prática da congregação
regular para cultuar, algo até então desconhecido no hinduísmo. Porém, sob
seu sucessor, Devendrarradi Tagore, a Samaj tomou um rumo defi-
nitivamente mais hindu. No entanto, alguns aspectos da visão de
Rammohun Roy acerca da relação entre Cristianismo e hindutísara, foram
criticados por outros hindus que haviam se convertido ao Cristianismo.
Assim, o escritor hergali Krishna Mohan Banorjei, argumentou que havia
afinidades estreitas entre o conceito védico de sacrifício Purusha e a
doutrina cristã de expiação, desafiando desse modo a visão de Rammohun
Roy de que havia diferenças radicais entre as duas religiões nesse ponto.

Uma abordagem bastante influente à visão da relação entre Cristianismo e


hinduísmo foi desenvolvida por Keshub Chunder Sen (1838 – 1884), que
argumentou que Cristo cumpriu tudo o que havia de melhor na religião
indiana. Essa abordagem tem uma semelhança direta como conceito
europeu ocidental associado a escritores variados como Tomás de Aqui to e
João Calvino, de que

o Cristianismo cumpre as aspirações da antiguidade clássica, conforme estas


foram expressadas na cultura da Grécia e Roma antigas. Ao contrário de
Rammohun Roy, porém, Keshub acolheu a doutrinada Trindade com entusiasmo.
Argumentou que apesar de Brahman ser indivisível e indescritivel, podia, ainda
assim, ser considerado em termos de suas relações internas de Sar
Ca ("razão") e Ananda ÇTiclicidade-). Essas três relações formavam um paralelo
coma visão cristã de Deus Pai como "Ser", Deus Filho como "Palavra" e Deus
Espírito Santo como "consoladas" ou "aquele que traz alegria e mor".
O Novo Testamento começou com o nascimento do Filho de Deus. O Logos foi
o começo da criação e sua perfeição também era o Logos —a culminância da
humanidade em seu filho divino. Chegamos ao último elo de uma série de
organismos criados. A mama expressão da Divindade é a Humanidade Divina.
Tendo se mostrado em variedades intermináveis de existências progressivas, a
força criativa original finalmente assumiu a forma do Filho em Jesus Cristo.

Essa abordagem foi desenvolvida por Neiteassial, Goreh (1825 - 1895), que enfatizou a
facilidade com que era possível passar de um conceito hindu de Deus para o
conceito apresentado agora pelo Cristianismo:
Podemos nós, os filhos da índia, dizer que a unidade com Deus, que aprouve
aos nossos pais chamar de "Sal, Cit, Ananda Brahman", pelo qual ansiavam
ardentemente, mas no sentido criado... Deus nos concedeu — a nós. os filhos
desses pais — fazê-lo no sentido comem? Essa aspiração e anseio, ainda que
malcompreendidos por eles, foram um pressentintento da dádiva fartura? Ateraz-ra,
com freqüência penes que sim.
Uma idéia relacionada foi desenvolvida mais recentemente por Raimundo Panikkar
em sua obra Unknown Christ of Hinduísm [O Cristo desconhecido do
hinduísmo] (1981), na qual ele argumentou em favor da presença oculta de Cristo na
prática hindu, especialmente em relação às questões de justiça e compaixão.

Uma abordagem semelhante à de Goreh foi desenvolvida com precisão muito


maior por Brahmabmdhab Upadhyaya (1861 - 1907), com base numa análise da
relação da fé cristã e sua articulação em termos de sistemas filosóficos não-cristãos
(como no uso que Tomás de Aquino fez do arististelistino como veículo para sua
exposição teológica). Por que os cristãos indianos não têm a liberdade de se valer
dos sistemas filosóficos nativos da índia em um empreendimento semelhante? Por
que não usar a Vedanta na expressão da teologia cristã e considerar as Vedas o
Antigo Testamento indiano? Cada vez mais, a questão de uma teologia cristã
autenticamente indiana passou a ser associada à questão da independência da Grã-
Bretanha: a autonomia teológica e política é vista numa ligação inextricável.

Na segunda metade do século 20, a ênfase crescente foi sobre o desenvolvimento


como nação (que finalmente se tornou independente em 1947).

Dentre as contribuições para uma abordagem crista para a


independência, as seguintes podem ser citadas por sua relevância: a
obra de C. E Andrews, The Ideal of Indiart Nationality [O ideal de
nacionalidade indiana] (1907); S. K. Daria, Desire of India [O desejo
da índia] (1908); S. K. Rudira, Christ and Modera India [Cristo e a
índia moderna] (1910) e K. T. Paul, Britisi, Connecrion with India [A
ligação britânica com a índia] (1928).
Em decorrência do movimento em direção à independência, o Cristianismo se
viu competindo com ideologias rivais como o gandismo e o marxismo. Um
participante particularmente importantedessa discussão foi MadâthipararnU
Mammen Thomas (1916—). Com raízes cristãs em Mar Thoma, M. M.
Thomas é considerado um dos principais representantes de uma voz
verdadeiramente indiana na teologia moderna. A crítica de Thomas ao
gandismo é especialmente interessante. Em primeiro lugar, Thomas foi, ele
próprio, gandiano, mas se desiludiu com o que considerou serem
inadequações e falácias dessa ideologia. Em segundo lugar, sua crítica
representa uma resposta cristã indiana a uma teologia distintivamente
indiana. Apesar de apreciar suas virtudes morais e, em particular, seus
protestos contra as tendências desumanizadoras da "era das máquinas",
Thomas argumenta que o gandismo elevou estratégias pragmáticas — como
çatyagmha e sivadeslá — a posição de princípios morais absolutos, iniciando
desse modo uma mudança em direção a uma forma de justificação própria
farisaica. Thomas argumenta que isso representa, em última análise, uma
visão inadequada da situação humana, minimizando os efeitos do pecado e
mascarando a necessidade humana de redenção:

Caso seja levada a sério, a tentativa de "espiritualizar nossa política" é uma


expressão de justificação própria humana e da doutrina da justificação
pelas obras. E pode haver uma grande diferença do ponto de vista político e
ético entre a "guerra santa do passado" e "uma guerra pela santidade",
mas, do ponto de vista religioso, as duas têm a mesma origem, a saber, o
ser humano buscando ajustíficação da lei em rebelião contra a graça de
Deus, e revelam uma negação da própria pecarifinosidade e necessidade
de redenção divina.
Thomas acredita que Gandi reduziu o Cristianismo a pouco mais do que
um código moral ou conjunto de princípios, e cita com aprovação a carta de
E. Stanley Jones a Gandi: "Creio que você entendeu certos princípios da fé
cristã. Entendeu os princípios, mas não a pessoa". Uma crítica semelhante
é dirigida aos escritores indianos marxistas, mais notadamente, E. M. Sankaran
Namboodiripad, cujas idéias Thomas declara serem baseadas numa
antropologia inadequada.

Outras questões se tomaram extremamente importantes dentro do con -


texto indiano nos últimos anos, principalmente a relação entre o evangelho
cristão e os pobres. Idéias que parecem ter se originado, em grande pane,
na teologia da libertação latino-americana aparecem em textos como os de
John Descitchers,Je.sus theLiberator [Jesus o Libertador] (1976) e Sebastian
Kappen,

Jesus and Freedom [Jesus e a liberdade] (1978). No entanto, tudo indica que a
investigação da relação entre o Cristianismo e o hinduísmo continuará sendo uma
característica expressiva da teologia cristã indiana por algum tempo. A relação
entre a doutrina cristã da encarnação e o conceito hindu de avatar, por exemplo,
tem se mostrado uma discussão importante dentro da teologia indiana (ver V.
Cbakkarai, Jesus the Avatar [Jesus o Avatar]).
Oito abordagens gerais a essa questão podem ser discernidas dentro do
pensamento cristão indiano contemporâneo:

1. O Cristo cósmico inclui todas as diversas pluralidades de experiên-


cias religiosas.
2. O Cristianismo toma forma dentro de um ambiente pluralista e, portan-
to, se toma una sincreltisnto Cristocêntrico.
3. Cristo é a força desconhecida que defende ajri dentro do hinduísmo.
4. Cristo é o alvo da busca religiosa do hinduísmo.
5. A relação entre o hinduísmo e o Cristianismo smo é paralela à relação entre
o Judaísmo e o Cristianismo, de modo que o hinduísmo pode ser considerado
as Escrituras do Antigo Testamento apropriadas para o Cristianismo indiano.
6. O Cristianismo não tem nenhuma ligação com o hinduísmo.
7. O contexto hindu gera uma forma especificamente indiana de
Cristianismo.
8. O hinduísmo deve ser tratado em conjunto com a questão dos pobres e
marginalizados dentro da sociedade, ma questão que o próprio Jesus validou e da
qual ele tratou.

Convém observar uma última desenvolução no Cristianismo indiano. Em 27 de


setembro de 1947, pouco depois da independência, várias das principais
denominações cristãs da região concordaram em formar uma única congregação,
conhecida como "Igreja do Sal da ]radia". A pressão original que levou a essa
decisão foi uma consciência de que a missão cristã na região estava sendo
dificultada pela rivalidade entre as denominações. Outras denominações se
juntaram subsequeriremente, a essa congregação que é considerada por alguns
cristãos ocidentais um modelo para a cooperação futura entre as igrejas regionais.
Esse acontecimento tem implicações importantes para a eclesiologia,
destacando-se a questão do papel do episcopado em relação à identidade
eclesiástica e o lugar da tradição na teologia.

Esse resumo sucinto dos acontecimentos dentro da teologia cristã desde 1750
documentou a maneira como o Cristianismo se tornou uma religião global, cujo centro
gravitacional numérico mudou para os países em desenvolvimento. Fica claro como
é cada vez mais provável que a educação e reflexão teológicas sigam essa mudança
global, com o surgimento nesses países de seminários que se tomarão os centros de
desenvolvimento teológico do segundo milênio.
No~ PALAVRAS E E~~ES MAIS RELEVANTES
a busca pelo Jesus histórico evartígelicalismo
f e m i n i s m o Grande Despertar I l u m i n i s m o l i b e r a l i s m o
m a r x i s m o m o d e r n i s m o movimento carismático
Movimento Patriótico das Três Autonomias neo-ortodoxia
pós-liberalismo pós-modernismo romantismo
teologia da libertação
teologia dialética teologia negra

PERGUNTAS (4)

1. O que levou ao desenvolvimento de uma indiferença para com a


religião na Europa ocidental nos séculos 17 e 189
2. Quais são as principais características do Iluminismo?
3. O que levou à "busca pelo Jesus histórico-?
4. Quais eram as linhas principais da crítica marxista ao Cristianismo?
5. Faça um resumo das principais características dos seguintes
movimentos teológicos: protestantismo liberal; neo-ortudoxia; teologia
da libertação; evangelicalismo; teologia negra.
6. Com quais movimentos teológicos podemos associar os seguintes
indivíduos: Karl Barth, Leonardo Boff, James Cone, Stanley Hauerwas,
Rosemary Radford Ruether, E D. E. Schleiermacher, Paul Tillich?
7. Que questões se tornaram importantes para a teologia cristã como
resultado da expansão do Cristianismo na África e na Ásia?
Estudo de caso 4.1 Em busca do Jesus histórico
O período moderno testemunhou uma série de acontecimentos de impor
rância fundamental para a cristologia sem paralelos na história cristã até
então. O desenvolvimento de uma cosmovisão racionalista provocou uma
série de desafios inéditos aos conceitos tradicionais acerca da identidade e
significado de Jesus. Tendo em vista a importância dessas desenvoluções,
elas serão consideradas aqui em mais detalhes. Estudos de casos anteriores
investigaram o desenvolvimento da cristologia clássica, que continua a ser um
dos principais aspectos da reflexão teológica dentro da igreja. Este estudo de
caso investiga essa questão mais a fundo, concentrando-se em três
"buscas pelo Jesus histórico" - a "primeira", a "nova" e a "terceira- busca.
O termo "busca" tem uma conotação fortemente romântica, sugerindo uma
afinidade com a grande "busca pelo Santo Gr"l" empreendida pelo rei
Artur. Na verdade, o termo foi introduzido na discussão (designada de modo
bem mais prosaico) da "questão do Jesus históricti'pelo tradutor da obra-prima

de Albert Schweitzer de 1906 (cuja tradução pata o inglês foi publicada em


1911). Unter, tradução aproximada do título da obra é: "De Reirrimis a Wrede:
Acerca da história da questão do Jesus histórico". Preocupado que um
título tão pouco atraente que cita dois estudiosos alemães desconhecidos
poderia prejudicar o potencial de venda do livro, o tradutor para a língua inglesa
apresentou um novo título: "A busca pelo Jesus histórico: um estudo de seu
progresso de Reirmios a Morede". A expressão não foi empregada por
Schweitzer e nem era sua intenção que se tornasse corrente; ainda assim,
passou a ser uma designação de uso geral que persiste até hoje.

A primeira busca pelo Jesus histórico


Tanto o deísmo quanto o llimunismo alemão desenvolveram a tese de que
havia uma grave discrepância entre o Jesus real da História e a interpreta -
ção do Novo Testamento de seu significado. Por trás do retrato
neirtestamentário de um redentor sobrenatural da humanidade se escondia
uma simples figura humana, um mestre exaltado que ensinava apenas o bom
senso. Enquanto um redentor sobrenatural era inaceitável para o
racionalismo iluminista, a idéia de um mestre moral esclarecido em
perfeitamente cabível.
Essa idéia, desenvolvida de maneira particularmente rigorosa por
Refinarus, sugeria que era possível olhar atrás dos relates
neortestamentários de Jesus e descobrir uma figura mais humana e simples
de Jesus que seria aceitável para o novo espírito daquela era. Iniciou-se,
assim, a busca pelo -Jesus histórico" mais real e crível. Essa busca estava
fadada a fracassar, mas o 11 irmínismo posterior a considerou essencial para a
credibilidade de Jesus dentro do contexto da religião natural racional. A
autoridade moral de Jesus se encontrava na qualidade de seus ensinamentos e
personalidade religiosa, e não na sugestão ortodoxa inadmissível de que ele
era Deus encarnado. Essa é a sugestão subjacente da famosa "buscar pelo
Jesus histórico" para a qual nos voltamos agora.

A primeira "basta pelo Jesus histórico" se baseou na suposição de que


havia um grande abismo entre a fi gura histórica de Jesus e sua
interpretação pela igreja cristã. O "Jesus histórico" por trás do Novo
Testamento era um simples mestre religioso; o "Cristo da fé" era uma
interpretação equivocada dessa figura simples pelos escritores
eclesiásticos. Com uma volta ao Jesus histórico, surgiria uma versão mais
crível do Cristianismo, sem todos os acréscimos dogmáticos desnecessários e
inapropriados (como a idéia da ressurreição ou da divindade de Cristo).
Essas idéias, ainda que expressadas com freqüência pelos deístas ingleses
do século 17, for= declaradas em sua forma chiam-ca na Alemanha do final
do século 18, especialmente nos escritos de Hermann Samuel Remi atas(1694
- 1768) publicados postumamente.

Remitirus estava convencido de que tanto o Judaísmo quanto o Cristia-


nismo haviam sido construídos sobre alicerces ilegítimos e imaginou que
poderia escrever uma grande obra que chamaria a atenção do público
para esse fato. A obra resultante -An Apology for the Racional
WorvirripperofGoar

Uma apologia em defesa do adorador racional de Deus] — sujeitou


todo o cânon bíblico aos padrões da crítica nacionalista. No entanto,
relutante em causar qualquer controvérsia, Reimarus não publicou seu
texto, que permaneceu manuscrito até sua morte. Porém, em algum
momento, esse manuscrito caiu nas mãos de G E. Lessing que decidiu
publicá-lo na forma de uma seleção de passagens da obra. Estas foram
publicadas como "trechos dos escritos de um autor desconhecido" em
1774 e causaram sensação imediata. A obra, que hoje é chamada de
"Fragmentos de Wolfenbtittel" incluiu um ataque enérgico à historicidade
da ressurreição.

O trecho final, chamado "Acerca dos objetivos de Jesus e seus discípu los",
tratava da natureza de nosso conhecimento de Jesus Cristo e levantava
questões quanto aos relatos do evangelho sobre Jesus terem sido
modificados pelos cristãos primitivos. Remataras argumentou que havia uma
diferença radical entre as crenças e intenções do próprio Jesus e aquelas da
igreja apostólica. A linguagem e as imagens de Deus apresentadas por
Jesus eram, de acordo com Retiraras, as de um visionário apocalíptico
judeu com referência e relevância cronológica e política radicalmente
limitadas. Jesus tomou sobre si a expectativa do Judaísmo posterior de um
Messias que livraria seu povo da ocupação romano e creu que Deus o
ajudaria nessa tarefa. Seu clamor de desamparo na cruz representou o
momento final em que ele se deu conta de sua própria ilusão e equívoco.
Entretanto, os discípulos não aceitaram que a história terminasse assim.
Inventaram a idéia de uma "redenção espiritual" no lugar da visão política
concreta de Jesus de uma Israel liberta da ocupação estrangeira.
Inventaram a idéia da ressurreição de Jesus a fim de encobrira vergonha
causada por sua morte. Em decorrência disso, os discípulos criaram doutrinas
que Jesus nunca ensinou, como a de sua morte em expiação pelos pecados
humanos, acrescentando essas idéias ao texto bíblico para que este se
harmonizasse com suas próprias crenças. Por isso, o Novo Testamento
que conhecemos agora se encontra repleto de interpolações fraudulentas.
O verdadeiro Jesus da História foi ocultado de nós pela igreja apostólica
que colocou em seu lugar um Cristo da fé fictício, o redentor da humanidade
do pecado.
Em seu estudo magistral, The Quesi of the Historial Jesus [A busca pelo Jesus
histórico], Albert Schweitzer resume a importância das sugestões radi cais
de Reitraras; da seguinte forma:
[se] desejamos obter uma visão histórica dos ensinantentos, de Jesus, devemos
deixar para trás aquilo que aprendemos no catecismo com referência à filiação
divina metalesica, âTranclaulee a conceitos dotaciticos, do gênero e entrar num
universo de pensamento inteiramente judaico. Somente aqueles que aplicam os
ensinamentos do catecismo às pregações do Messias judaico chegam â
conclusão de que ele foi o fundador de uma nova religião. Para todas as
pessoas imparciais fica claro que "Jesus não tinha nenhuma intenção de acabar
coma religião judaica e colocar outra religião em seu lugar'.

De acordo com esse ponto de vista, Jesus foi simplesmente uma figura
política judaica que esperava, confiadamente, ser capaz de desencadear uma
revolta popular decisiva e vitoriosa contra Roma e que foi arrasado por seu
fracasso.
Na época, os seguidores dessa proposta foram poucos ou inexistentes, mas
Remontas levantou questões que adquiririam importância fundamental nos anos
subseqüentes. Mais especificamente, sua distinção explícita entre o Jesus histórico
legítimo e o Cristo da fé fictício teve uma relevância enorme. A "busca pelo Jesus
histórico" subseqüente foi resultado direto da suspeita racionalista crescente de
que o retrato neotestamentário de Cristo não passava de uma invenção
dogmática. Acreditava-se, de fato, ser possível resconstrofir a figura real de Jesus
e livrá-la das idéias dogmáticas com as quais os apóstolos a haviam encoberto.

A critica à busca, 1890 —1910

A ilusão não podia durar muito tempo. O desafio mais intenso ao movimento da
"vida de Jesus" desenvolveu várias frentes na última década do século 19. Três
críticas centrais da cristologia da "personalidade religiosa" do protestantismo liberal
surgiram nas duas décadas que antecederam a Primeira Guerra Mundial;
trataremos de cada uma delas separadamente.
1. A coroa apocalíptica, associada principalmente a Johantics, Weiss (1863 — 1914)
e Albert Schweitzer (1875 — 1965), afirmava que a tendência fortemente
escatológica da proclamação de Jesus do reino de Deus colocava em dúvida a
interpretação liberal de cunho essencialmente kantiano desse conceito. Em 1892,
Johannes Weiss publicou a obra Jesus' Proclamation of the Kffigdoui of God [A
proclamação de Jesus do Reino de Deus]. Nesse livro,

argumentou que a idéia de "Reino de Deus" em entendida pelo protestantismo


libera] como sendo o exercício da vida moral em sociedade ou como um
ideal ético supremo. Em outras palavras, em vista acima de tudo como algo
subjetivo, interno ou espiritual, e não em temos espaço-temporais. Para o
próprio Weiss, o conceito de Ritschl do Reino de Deus em, essencialmente,
associado à visão iluminista. Era um conceito moral estático sem conotação
escatológica. A resdescoberia da escatologia na pregação de Jesus
colocava em dúvida não apenas essa visão do Reino de Deus, mas também o
retrato liberal de Cristo em geral. O "Reino de Deus" não devia, portanto, ser
visto como um reino instituído e estático de valores morais liberais, mais sim
como um momento apocalítitico, devastador causando a destruição dos valores
humanos.

Para Schweitzer, porém, toda a natureza do ministério de Jesus era con-


dicionada e determinada por seu ponto de vista apocaffptríco. Essa idéia ficou
conhecida como "escatologia plena". Enquanto Weiss considerava que
uma parte considerável dos ensinamentos de Jesus (mas não todos) era
condicionada por expectativas escatológicas radicais. Schweitzer
argumentava em favor da necessidade de reconhecer que todos os
aspectos do ensino e das atitudes de Jesus eram determinados por sua
visão escatológica. Enquanto Weiss acreditava que apenas parte da
pregação de Jesus era afetada por essa visão, Schweitzer argumentava
que todo o conteúdo da mensagem de Jesus era sempre e intermitente
condicionado por idéias apocalípticas - idéias bastante distintas da
cosmovisão consolidada na Europa ocidental do século 19.

Os resultados dessa interpretação escatológica de toda a pessoa e men-


sagem de Jesus de Nazaré foi um retrato de Cristo como uma figura remota e
estranha, uma figura apocalíptica e inteiramente sobrenatural cujas
esperanças e expectativas acabaram dando em nada. A escatologia não era,
de modo nenhum, a "palha" secundária e dispensável que podia ser
descartada a fim de se determinar o verdadeiro "teme" dos ensinamentos
de Jesus sobre a paternidade universal de Deus, mas sim a característica
essencial e predominante de sua visão. Assim, Jesus nos é apresentado
como uma figura estranha de um meio judaico apocalíptico do primeiro século
que não podemos compreender, de modo que, nas palavras famosas de
Schweitzer, "ele veio até nós como um desconhecido-.

2. A crítica cética, associada particularmente a Wilhanu Wrede (1859 -


1906), colocou em dúvida, em primeiro lugar, a condição histórica do nosso
conhecimento de Jesus. A história e a teologia se encontravam inteiramente
entretecidas nas narrativas sinópticas e não podiam ser separadas. De
acordo com Wrede, Marcos estava pintando um quadro teológico à guisa de
história, impondo sua teologia sobre os dados que tinha à sua disposição. O
Segundo Evangelho não era, portanto, objetivanuertelustó ico, mas sim
teológica criativa da História. Era impossível, assim, ver o que havia por trás
da narrativa de Marcos e reconstruir a história de Jesus, uma vez que - se

Wrede, está correto – essa narrativa é, ela própria, uma construção


teológica além da qual não se pode ir. Assim, a "busca pelo Jesus histórico"
chega ao fim por causa da impossibilidade de estabelecer uma base
histórica para o Jesus "mal" da História. Wrede, identificou os seguintes
erros radicais e fatais por trás, das cristologias do protestantismo liberal:

1. Apesar dos teólogos liberais apelarem para modificações


posteriores de uma tradição mais antiga quando são confrontados com
caracterisriem incômodas dos relatos sinópticos de Jesus (como os milagres
ou contradições óbvias entre fontes), não aplicaram esse princípio de modo
coerente. Em outras palavras, não se deram conta de que a crença posterior
da comunidade havia exercido uma influência normativa sobre o evangelista
em todos os estágios de seu trabalho.
2. Os motivos dos evangelistas não foram levados em
consideração. Os teólogos liberais tinham a tendência de simplesmente
excluir as partes das narrativas que consideravam inaceitáveis e se contentar
com o que restava. Ao fazê-lo, deixaram de considerar com seriedade o
fato de que o próprio evangelista tinha uma declaração categórica a fazer e a
substituíram por algo bem diferente. A prioridade maior deve ser a abordagem
ás narrativas do evangelho em seus próprios termos e a definição daquilo que
o evangelista desejava transmitira seus leitores.

3. A abordagem psicológica às narrativas do evangelho


costuma confundir aquilo que é concebível com aquilo que aconteceu de fato,
uma vez que se baseia numa fundação inadequada. Na verdade, os
teólogos liberais tinham a tendência de encontrar nos evangelhos
exatamente aquilo que estavam procurando, com base "numa espécie de
conjectura psicológica" que parecia valorizar as descrições emotivas mais do
que a precisão rígida e a certeza do conhecimento.

3. A crítica dogmática, associada a Martin Kalder (1835 – 1912), desafiou


a relevância teológica da reconstrução do Jesus histórico. O "Jesus histó-
rico' era irrelevante para a fé, que se baseava no "Cristo da fé". Kâhler
observou corretamente que o Cristo impassível e provisional do historiador
acadêmico não pode se tomar um objeto de fé. Mas, de que maneira
Jesus Cristo pode ser a base e conteúdo autêntico da fé cristã se a ciência
histórica não
consegue definir um conhecimento inequívoco acerca do Jesus
fristórico g De que maneira a fé pode se basear num acontecimento
histórica sem ser vulnerável à acusação de telativismo histórico?
Foratriajustamente, dessas questões que Kãhler tratou em seu livro
The So-Called Historical Jesus anal the Historie Biblical Christ [0
suposto Jesus histórico e o Cristo bíblico histórico].
Kãhler declara seus dois objetivos nessa obra da seguinte maneira: em
primeiro lugar, criticar e rejeitar os coros do movimento da "vida de
Jesus"; e, em segundo lugar, estabelecera validade de uma abrinfageir,
alternativa. Para Kâhlw
 Jesus histórico dos escritores modernos oculta de nós o Cristo
vivo.
 Jesus do movimento da "vida de Jesus" é meramente um
exemplo moderno do resultado da imaginação humana, em nada melhor do
que o famoso Cristo dogmático da cristologia Inizarifina. Nesse sentido, o
historicismo é tão arbitrário, tão humanamente arrogante, tão especulativo e
"incredulamente gnóstico" quanto o dogmatismo que se considerava
moderno em sua própria época.
Kãhler roconfusa, logo de início que o movimento da —vida de
Jesus" estava completamente correto em seu contraste entre o
testemunho bíblico de Cristo e um dogmatismo abstrato. Não
obstante, ele insiste em sua futilidade, uma idéia resumida em sua
declaração conhecida no sentido de que o movimento da "vida de
Jesus" em um beco sem saída. Os motivos que o levaram a fazer
essa asserção são complexos.
A razão mais fundamental é que Cristo deve ser considerado aquilo que
Kâffler chama de figura "supre-histórica" e não "histórica", de modo que
o método histórico-crítico não pode ser aplicado ao seu caso. O
método histônco-crítico não podia lidar com as características supra-
históricas (e, portanto, supra-humanas) de Jesus, sendo obrigado,
então, a igniará-Ias ou negá-las. Com efeito, o método histórico-crítico
podia apenas levara uma cristologia ariana ou clarinha tendo em vista
suas suposições dogmáticas latentes. Esse argumento, apresentado
com freqüência ao longo de todo o ensaio, é desenvolvido de maneira
particularmente enérgica em relação à interpretação da personalidade
de Jesus e à questão relacionada do uso do princípio de analogia no
método histórico-crítico.

Kribler observa que a interpretação psicológica da personalidade


de Jesus depende da suposição (não reconhecida) de que a distinção
entre nós e Jesus é de grau, e não de gênero, o que, de acordo com
Kãhler, deve ser criticado com bases dogmáticas. Seu desafio mais
importante, porém, foi ao uso do princípio de analogia na
interpretação do retrato treotestamentário de Cristo em geral que
teve como consequência inevitável o tratamento de Jesus como
sendo análogo aos seres humanos modernos e, em decorrência disso,
uma cristologia reduzida. Caso se suponha desde o início que Jesus é
um ser humano comum, que difere dos outros seres humanos
apenas em grau e não em natureza, essa suposição será projetada
nos textos bíblicos e determinará a conclusão resultante - de que
Jesus de Nazaré é um ser humano que difere de nós apenas em grau.

Em segundo lugar, Kãhler argumentou que "não possuímos nenhuma


fonte para a vida de Jesus que um historiador poderia aceitar como
sendo confiável e adequada". Isso não significa que as fontes são inconfitiveis
ou inadequadas para os propósitos da fé. Antes, Kãhler deseja enfatizar que os
evangelhos não são relatos de observadores desinteressados e imparciais,
mas sim relatos da fé daqueles que creram, que não podem ser isolados
dessa fé nem em forma nem em conteúdo: os relatos do evangelho "não
são relatórios de observadores imparciais, mas sim, em todos os sentidos,
testemunhos e confissões daqueles que creram em Cristo". Uma vez que "é
somente por meio desses relatos que podemos ter contato com ele", fica
claro que o "reatam bíblico" de Cristo é de importância decisiva para a fé.

Para Kafficr, não importa quem Cristo foi, mas sim o que ele faz hoje pelos
cristãos. O "Jesus da História" não tem a relevância soteriológica do
"Cristo da fé". As questões complicadas de cristologia podem, portanto, ser
deixadas para trás a fim de desenvolver o que ele chamou de "soteriologia" e
definiu como "o conhecimento da fé referente â pessoa do salvador". Na
verdade, Kãhler argumenta que o movimento da ' & vida de Jesus" não fez
muita coisa além de criar um Cristo luseudocientífico desprovido de relevância
existencial. Para Kãhler, "o Cristo real é o Cristo proclamado". A fé cristã
não é baseada nesse Jesus histórico, mas numa figura de Cristo
existencialmente relevante que desperta a fé. Considerações como essas
passaram, gradativamente, a dominar o cenário teológico e pode-se dizer
que chegaram ao seu auge nos escritos de Rudolf Bultmaiin, para o qual nos
soltamos agora.

O afastamento da História: Rudolf Bultinann

Bultinaum considerava o empreendimento da reconstrução histórica de


Jesus um beco sem saída. A história não em de importância fundamental para
a cristologia; buscava saber que Jesus havia existido e que a proclamação
cristã (que Bultrinaram chama de kerigma) é, de algum modo, baseada em sua
pessoa. Bultruann é conhecido por haver, desse modo, reduzido todo o
aspecto histórico da cristologia a uma única palavra – "que". É necessário
apenas crer "que" Jesus Cristo se encontra por trás da proclamação do
evangelho (ou kerigma).
Para faltarmo, a cruz e a ressurreição são, de fato, fenômenos históricos (no
sentido de que ocorreram dentro da história humana) – não devem ser
discernidos pela fé como atos divinos. A cruz e a ressurreição são ligadas no

kerigma como o ato divino dejulgamento e o ato divino de salvação. É


esse ato divino que possui relevância perene, e não o fenômeno
histórico que serviu de veículo. O kerigma não se preocupa, portanto,
com questões referentes ao fato histórico, mas sim em transmitira
necessidade de uma decisão da parte de seus ouvintes e transfere,
desse modo, o momento escartológico do passado para o aqui e
agora da própria proclamação:

Isso significa que Jesus Cristo vem ao nosso encontro somente no


kerigma, da mesma maneira como confrontou o próprio Pauto e o levou a
tomar uma decisão. O kerigma não proclama verdades universais ou um
idéia eterna— seja ela uma idéia de Deus ou do redentor— mas um fato
histórico... Portanto, o kerigma não é um veículo pua idéias eternas nem o
mediador de informações históricas; o fato de imporiância decisiva é este:
o kerigma é o "que" de Cristo, seu "aqui e agem", um "aqui e agora" que
se toma presente no próprio discurso.
Não se pode, por isso, olhar o que há por trás do kerigma, usando-
o como uma "fonte" a fim de reconstruir um "Jesus histórico" com sua
"consciência messiânica", sua "vida interior" ou seu "heroísmo". Isso
seria apenas o "Cristo segundo a carne" que não existe mais. Não é o
Jesus histórico, mas sim Jesus Cristo que é pregado, que é o Senhor.
Esse afastamento radical da História assustou muitos. Como era
possível ter certeza de que a cristologia estava fundamentada
corretamente na pessoa e obra de Jesus Cristo? Como verificar a
cristologia se a história de Jesus era irrelevante? Para um número
cada vez maior de escritores, parecia que nas áreas dos estudos
neotestamentários e dogmáticos, poluiriam havia simplesmente
cortado um nó gônivo sem resolveras questões históricas sérias errijogo.
Para p oltrona, Indo o que se sabia, e que era preciso saber, sobre
o Jesus histórico era o fato de ele ter existido. Para o estudioso do
Novo Testamento Gerhard Ebeling, a pessoa do Jesus histórico é a
base fundamental da cristologia e se fosse possível mostrar que a
cristologia era uma interpretação equivocada do Jesus histórico, a
cristologia seria extinta. Nesse sentido, pode-se observar que Ebeling
expressa as preocupações subjacentes da "nova busca pelo Jesus
histórico" que será discutida a seguir.

A nova busca pelo Jesus histórico

Ebeling apontou para uma deficiência fundamental da cristologia de


Bultmann: sua falia total de abertura para a investigação (talvez
"verificação" seja um termo forte demais) à luz do conhecimento
histórico. Não existe a possibilidade de que a cristologia seja baseada
num ene? Como podemos ter certeza de que há uma transição
justificável da pregação de Jesus para a pregação sobre Jesus?
Ebeling desenvolve uma crítica paralela à de EmstKásemmn. mas com
um enfoque teológico, e não apenas puramente histórico.
Considera-se que a "nova busca pelo Jesus histórico" teve início com a palestra de
Emst Kãsemann sobre o problema do Jesus histórico em outubro de 1953. A
relevância dessa palestra só fica evidente ao ser considerada à ]ire das suposições e
métodos da escola bulmararmarra em voga até então. Kãsemann reconhece que os
evangelhos sinópticos são, em primeiro lugar, documentos teológicos, e que suas
declarações teológicas são, com freqüência, expressadas dentro da forma histórica.
Nesse sentido, ele apóia e recapitula axiomas centrais da escola de Bultmann,
baseados neste caso em mugias de Kãhler e Wrede.

Ainda assim, Kãsemann prosseguiu qualificando essas asserções de maneira


expressiva. Apesar de suas preocupações teológicas evidentes, os evangelistas
acreditavam ter acesso a informações históricas acerca de Jesus de Nazaré e
essas informações são expressadas e corporificadas no texto dos evangelhos
sinópticos. Os evangelhos incluem tanto o kerigma quanto a narrativa histórica.

Tomando essa idéia como ponto de partida, Kãsemann aponta para a


necessidade de explorara ligação entre a pregação de Jesus e a pregação sobre
Jesus. Existe uma descontinuidade óbvia entre o Jesus terreno e o Cristo exaltado
e proclamado; e, no entanto, os dois são ligados por um fio de continuidade no
sentido de que o Cristo proclamado já se encontra presente, em certo sentido, no
Jesus histórico. É preciso enfatizar que Kãsemann não está sugerindo que se deve
realizar uma nova investigação sobre o Jesus histórico a fim de conferir legitimidade
histórica ao kerigma; muito menos ainda está sugerindo que a descontinuidade
entre o Jesus e o Cristo proclamado toma necessário desconstruir este último nos
termos do primeiro. Antes, Kãsemann está apontando para o fato de que a
asserção teológica da identidade entre o Jesus terreno e o Cristo exaltada é
historicamente fundamentada nos atos e na pregação de Jesus de Nazaré.
Kãsemann argumenta que a afirmação teológica depende da demonstração
histórica de que o kerigma referente a Jesus já se encontra contido em forma
condensada ou embrionária no ministério de Jesus. Uma vez que o kerigma
contém elementos históricos, é inteiramente apropriado e necessário investigar
a relação entre o Jesus da História e o Cristo da fé.

Fica claro que a "nova busca pelo Jesus histórico" é qualitativamente distinta da
busca desacreditada empreendida no século 19. O argumento de Kãsemann se
baseia no reconhecimento de que a descontinuidade entre o Jesus da História e o
Cristo da fé não significa que são entidades sem nenhuma relação entre si, como se
o último não tivesse nenhuma base ou fundamento no primeiro. Antes, é preciso
discernir o kerigma nas ações e na pregação de Jesus de Nazaré de modo que haja
uma ligação contínua entre a pregação de Jesus e a pregação sobre Jesus.
Enquanto a busca anterior havia pressuposto que a descontinuidade entre o Jesus
histórico e o Cristo da fé indicava que este último em, possivelmente, uma ficção e
que precisava ser reconstruído à luz da investigação histórica objetiva, Kãsemann
enfatiza que essa reconstrução não é necessária nem possível.

A consciência cada vez maior da importância desse ponto levou ao de-


senvolvimento de uma preocupação séria com a questão dos fundamentos his-
tóricos do kerigma. Quatro posições interessantes podem ser observadas.

1. Joachim Jeremias, representando possivelmente um elemento extremo


dessa discussão, parecia sugerir que a base para a fé cristã se encontrava
naquilo que Jesus havia dito e feira, na medida em que isso pode ser definido
pela erudição teológica. A primeira pane de sua obra New Testament
Theology [Teologia do Novo Testamento] foi, portanto, dedicada em sua
totalidade à "proclamação de Jesus' como elemento central da teologia do
Novo Testamento.
2. O próprio Kasemann identificou a ligação existente entre o Jesus his-
tórico e o Cristo kerigmático na declaração de ambos da vinda do mino
escatológico de Deus. Tanto na pregação de Jesus quanto no kerigma cristão
primitivo, o tema da vinda do reino é de suma importância.
3. Como vimos, Gerhard Ebeling situa a ligação no conceito da "fé de
Jesus- que para ele era análoga à "fé de Abraão" (descrita em Romanos 4) -
uma fé prototípica exemplificada e corporificada historicamente em Jesus
de Nazaré e proclamada como uma possibilidade contemporânea para os
cristãos.
4. Gunter Bomkamm enfatizou especificamente o rara de autoridade evi-
dente no ministério de Jesus. Em Jesus, a realidade de Deus confronta a
humanidade e pede uma decisão radical. Enquanto Buíminum situou a
essência da pregação de Jesus na vinda futura do Reino de Deus,
Bornikarim mudou a ênfase do futuro para a confrontação presente do
indivíduo com Deus através da pessoa de Jesus. Esse tema de "con-
frontação com Deia" é evidente tanto no ministério de Jesus quanto na
proclamação sobre Jesus, fornecendo um elo teológico e histórico essencial
entre o Jesus terreno e o Cristo proclamado.

A "nova busca pelo Jesus histórico" se concentrou, portanto, em enfatizar a ligação


entre o Jesus histórico e o Cristo da fé. Enquanto a "amiga busca" visava
desacreditar o retrato neotestamentário de Cristo, a nova busca acabou
consolidando esse retrato, enfatizando as ligações entre a pregação do próprio
Jesus e a pregação da igreja sobre Jesus. Desde então, têm ocorrido outras
desenvoluções nessa área. Nas duas últimas décadas, tem-se dado grande atenção
à investigação da relação entre Jesus e seu ambiente no Judaísmo do primeiro
século. Essa desenvolução, associada especialmente a escritores ingleses e
norte-americanos como Geza Vermes e E. P. Sanders, tem renovado o interesse
no contexto judaico de Jesus e enfatizado a importância da História em relação à
cristologia. A abordagem de Bultuímim - que desvaloriza a relevância da História
na crístologia - é considerada desacreditada pela maioria dos estudiosos, pelo
menos por ora. Na última seção deste estudo de caso, trataremos da "terceira
busca".

A terceira busca
Desde o colapso geral da "nova busca" na década de 1960, um série de
obras foram publicadas oferecendo reavaliações do Jesus histórico. O
temo "terceira busca" pode ser aplicado a esse conjunto de obras. Essa
designação foi questionada por vários escritores que ressaltam que as obras e
estudiosos reunidos sob esse termo não têm elementos em comum em
nomeio suficiente para serem categorizados dessa maneira. Alguns
escritores dentro do grupo apelam, por exemplo, para fontes fora do Novo
Testamento, especialmente para o Evangelho Copta de Tomé, em sua
análise; outros restringem sua análise ao conteúdo do Novo Testamento,
especialmente aos evangelhos sinópticos. Apesar dessa reserva, o termo
parece estar ganhando aceitação e, portanto, é apropriado incluí-to neste
estudo.
A "primeira busca" abordava as histórias de Jesus à luz de suas suposições
fortemente nacionalistas e filtrava os aspectos miraculosos das narrativas do
evangelho. A "nova busca" apresentava a tendência de se concentrar nas
palavras de Jesus. A "terceira busca" parece incluir um enfoque sobre as
curas e exorcismos de Jesus como indicação do caráter distintivo de sua
missão e a sua visão de seus próprios objetivos. Dentre os expoentes dessa
`terceira busca", podemos destacar os seguintes indivíduos:

1. John Donsime Grosam argumenta que Jesus era, essencialmente,


um camponês judeu pobre que se dedicou a desafiar as estruturas de poder
da sociedade contemporânea. Em suas obras The Historical Jesus [O
Jesus histórico] (1991) e Jesus: A Revolutionary Biography [Jesus: uma
biografia revolucionária] (1994), Grosam afirma que Jesus rompeu
convenções sociais predominantes, especialmente através de sua comunhão à
mesa com pecadores e excluídos sociais.
2. Em livros como Jesus: A New Vision [Jesus: uma nova visão]
(1988) e Mecting Jesus Again for the First Time [Reencontrando Jesus pela pri-
meira vez] (1994), Marcus L. Borg sugere que Jesus era um sábio subversivo
que se dedicou a renovar o Judaísmo de um modo que representou um
desafio sério à elite goverrante, do templo.
3. Em suas obras Myth of ~cerce [Mim da inocência] (1988) e lhe
Ust Gospel [O evangelho perdido] (1993), furtou L. Mack argumenta que Jesus
era um sábio individualista da linha dos filósofos cínicos. Como "Sábio Cínico
Helenista", Jesus não tinha grande interesse pelas questões especificamente
judaicas (como o lugar do Templo, ou o papel da Lei); antes, se preocupava em
identificar e zombar das convenções da sociedade contemporânea.
4. E. P. Sanders insiste que Jesus deve ser visto como uma figura
proféti-
ca que se dedicou à restauração do povo judeu. Em obras como Jesus
and Judaism [Jesus e o Judaísmo] (1985) e The Hisueical Figure of
Jesus [A figura histórica de Jesus] (1993), Sanders sugere que Jesus

visava uma restauração escatológica de Israel. Deus encerraria a era


presente e iniciaria uma nova ordem concentrada no novo templo, ten-
do Jesus como representante de Deus.
Com base nesta análise sucinta de alguns autores considerados
representativos da —terceira busca", fica claro que falta um cerne
teológico ou histórico que possa ser considerado coerente. Há uma
grande discordância quanto a Jesus ser visto num contexto judaico
ou helenístico; quanto à sua atitude em relação à lei judaica e suas
instituições religiosas; quanto à sua visão acerca do futuro de Israel; e
quanto ao significado pessoal de Jesus em relação a esse futuro.
Apesar de suas deficiências claras, essa designação tem recebido
pelo menos certo grau de aceitação e é provável que continue a
fazer pane das discussões acadêmicas acerca dessa questão
importante.

Estudo de caso 4.2 A base e a natureza da salvação

A questão de como a salvação é obtida e de como essa salvação deve


ser entendida rem sido tema de discussão ao longo de toda a história
cristã. O período patrístico testemunhou a exploração de várias
abordagens, com freqüência em torno do tema da vitória de Cristo
sobre a morte ou de sua transformação da humanidade como um rodo
através da deificação. Na Idade Média se renovou o interesse na
moralidade ou nos aspectos legais da expiação (ver o estudo de caso
2.2) e questões continuam sendo catadas no período moderno. O
estudo de caso a seguir faz um levantamento dessa discussão,
começando com uma consideração acerca da relação entre as doutrinas
da pessoa e obra de Cristo – ou, usando uma linguagem mais técnica,
entre a cristologia e a soteriologia.

A relação entre a cristologia e a soteriologia

Nas grandes obras de teologia sistemática datadas do período do alto


Escolasticismo e ortodoxia protestante, fazia-se uma distinção
rigorosa entre a "pessoa de Cristo" e a — obra de Cristo". No período
moderno, essa distinção foi abandonada de um modo geral em vista
do reconhecimento crescente da ligação inextricável entre essas duas
áreas da teologia. A cristologia e a soteriologia são, cada vez mais,
tidas como dois lados da mesma moeda. Várias considerações
levaram a essa desenvolução.

A primeira é a influência de uma cpistentologia kantiana. gata


argumentava que podemos apenas conhecer o Ding-an-sich em
termos de seu efeito sobre nós. Se essa abordagem geral for
traduzida para o conjunto de questões em tomo da identidade e
significado de tesas Cristo, parece seguir-se que a essência ou
identidade de Cristo (i.e., a cristíflogia) não pode ser separada de seu
efeito ou impacto sobre nós (i.e., a soteriologia). Essa é a
abordagem adotada por Albrecht Ritseld em sua obra Christian Docirme
of Justification andReconcifiation [A doutrina cristã riajustificação e
reconciliação] de 1874.
Ritschl argumentou que não em apropriado separara cristologia da soteriologia, uma
vez que percebemos "a natureza e os atributos, isto é, a determinação do ser,
somente no efeito de algo sobre nós, e consideramos a natureza e extensão desse
efeito sobre nós como sua essência".
A segunda consideração é o reconhecimento geral de que, mesmo no Novo
Testamento, há uma forte correlação entre os títulos cristológicos de Jesus e
sua subestrutura soteriológica. "Orca separação entre a cristologia e a soteriologia
não é possível pois, em geral, o interesse soteriológico, o interesse na salvação, na
beneficia Christi, é o que nos leva a indagar acercada figura de Jesus" (Voolfiatirt
Pannenberg).

Apesar desse consenso, continua havendo uma série de desentendimentos acerca


da ênfase a ser dada às considerações soteriológicas na cristologia. A abordagem
adotada por Rudolf Bultmann, por exemplo, parece reduzir a cristologia a das
Dass — o mero fato de "que" uma figura histórica existiu dando origem ao
Àrigmai que é ligado a ela. A função principal do kerigma é transmitir o conteúdo
soteriológico do evento cristolôgico. Uma abordagem relacionada, encontrada em
A. E. Biedermann e Paul Tillich, faz uma distinção cri" o "princípio de Cristo" e a
pessoa histórica de Jesus. Isso levou alguns escritores, mais notadamente
Pannenberg, a expressar ansiedade diante da possibilidade de construir uma
soteriologia com base apenas em considerações soteriológicas (e, portanto,
vulnerável às críticas de Ludwig Feuerbach), e não fundamentada na história do
próprio Jesus.

Interpretações da obra de Cristo

As discussões modernas acerca do significado da cruz e da ressurreição de


Cristo podem ser agrupadas em torno de quatro temas ou imagens centrais que
as governam. É preciso enfatizar que esses temas não são mutuamente exclusivos
e que e normal encontrar escritores cujas abordagens incorporam elementos
provenientes de mais de uma dessas categorias. Na verdade, pode-se argumentar
que as idéias da maioria dos escritores sobre esse assunto não podem ser
reduzidas ou confinadas dentro de uma só categoria sem grandes prejuízos.

Sacrifício. Valendo-se da imageria e das expectativas do Antigo Testamento, o Novo


Testamento apresenta a morte de Cristo na cruz como um sacrifício. Essa
abordagem, associada especificamente à Epístola aos Hebreus, apresenta a oferta
sacrificial de Cristo como um sacrifício eficaz e perfeito, capaz de consumar aquilo
que os sacrifícios do Antigo Testamento só podiam representar, e não realizar. Essa
idéia é desenvolvida subseqüentemente dentro da tradição cristã. Agostinho, por
exemplo, retoma a imageria do sacrifício e afirma que Cristo "foi feito sacrifício
pelo pecado, oferecendo-se como um holocausto completo na cruz de sua prosam".
Para que a humanidade possa ser restaurada a Deus, o mediador deve se sacrificar;
sem esse sacrifício, essa restauração é impossível. Para Agostinho, esse sacrifício
é relembrarla, na Eucaristia:
Antes da vinda de Cristo, a carne e o sangue de seu sacrifício eram
prenunciados aos animais abatidos; na paixão de Cristo, esses tipos focara
cumpridos pelo verdadeiro sacrifício [de Cristo na cruz]; depois da asccneão
de Cristo, e,,,,, sacrifício é relembrado no sacramento.

Idéias semelhantes podem ser discernidas na teologia da Idade Média e do


início do período moderno.
A oferta sacrificial de Cristo na cruz passou a ser associada especialmente a um
aspecto do ofício triplica de Cristo (narinas triplex Chrisli). De acordo com essa
tipologia, datada da metade do século 16, a obra de Cristo podia ser resumida
sob três "oficios": profeta (pelo qual Cristo declara a vontade de Deus),
sacerdote (pelo qual ele faz sacrifício pelo pecado): e rei (pelo qual ele governa
sobre seu povo com autoridade). A aceitação geral dessa winsimui dentro do
protestantismo no final do século 16 e começo do século 17 fez que uma visão
sacrificial da morte de Cristo adquirisse importância central dentro das
stacriologias protestantes. Assim, a obra de John Pearson Exposition of the Creed
[Exposição do credo] de 1659, insiste na necessidade do sacrifício de Cristo
na redenção e associa isso especificamente ao ofício sacerdotal de Cristo.

A redenção ou salvação que o Messias devia realizar consiste na libertação


de um pecador de um estado de pecado e morte eterna para um estado de
justificação e vida eterna. Mas uma libertação do pecado não podia ser
concretizada sem um sacrifício proparintifiro, havendo, portanto, a
necessidade de um sacerdote.

Desde o Iluminismo, porém, houve uma mudança sutil no significado do temo.


Uma extensão metafórica do significado passou a receber prioridade sobre o
original. Enquanto o termo se referia originalmente à oferta ritual de animais
abatidos como um ato especificamente religioso, o significado passou cada vez
mais a ser de uma ação heróica ou custosa da parte de indivíduos,
especialmente ao ato de entregara vida, sem nenhuma referência ou expectativa
transcendente.
Pode-se ver essa tendência em desenvolvimento na obra de John Locke
Reristinoibleiress of Christiziniti, [A nacionalidade do Cristianismo] de 1695.
Locke argumenta que o único artigo de fé exigido dos cristãos é a crença na
natureza messiânica de Cristo; a idéia de sacrifício pelo pecado é cuidadosa-
mente colocada de lado. "A fé exigida era crer que Jesus era o Messias, o
ungido, aquele que havia sido prometido por Deus para o mundo... Não me
recordo de que [Cristo] tenha, em alguma passagem, tomado sobre si o título de
sacerdote que mencione qualquer coisa relacionada a esse sacerdócio.-

Esses argumentos foram desenvolvidos em mais detalhes por nomes Chubb


(1679-1747), especialmente em sua obra Troe Gospel of Jeáto, Como
Vinfilicaned [O verdadeiro evangelho de Jesus Cristo é vindicado] de 1739.
Argumentando que a verdadeira religião da razão era a da conformidade com o
governo cretino ilajustiça, Chubb afirma que a idéia da morte de Cristo como
sacrifício é decorrente das preocupações apologéticas dos primeiros escritores
cristãos que os levaram a harmonizar essa religião da razão com a seita
dos judeus: "Assim como os judeus tinham seu templo, seu altar, seu sumo
sacerdote, seus sacrifícios e assim por diante, a fim de tomarem o
Cristianismo semelhante ao Judaísmo, os apóstolos encontraram alguns
elementos do Cristianismo que, usando de figuras de linguagem, chamavam
por esses nomes". Seguindo a tradição que estava se desenvolvendo no
fluminisnto, Chubb considerou isso espúrio. "A disposição de Deus de
mostrar misericórdia... é inteiramente proveniente de sua própria bondade
ou misericórdia inata, e não de algo externo a ele, sejam os sofrimentos e
morte de Jesus Cristo ou qualquer outra coisa."
Até mesmo Joseph Buder, na tentativa de resgatar o conceito de sacrifício
em seu livro Analogy of Religion [Analogia da religião] de 1736, se viu em
dificuldades, tendo em vista o espírito fortemente racionalista da época. Ao
defendera natureza sacrificial da morte de Cristo, foi obrigado a fazer mais
concessões do que gostaria:
Como e de que maneira específica [a munte, de Cristo] teve essa eficácia, não são
poucos os que procuraram explicar; mas para mim, as Escrituras não fornecem
tal explicação. Ao que parece, permanecemos ignorantes quanto à maneira
como os antigos entendiam que a expiação era realizada, ic, como o perdão era
obtido pelo sacrifício.
A obra de Horace Bushnell Vicarious Sacrifica [Sacrifício vicário] ilustra
essa mesma tendência na teologia anglo-americana do período, mas de
maneira mais construtiva. Através de seu sofrimento, Cristo desperta
nosso senso de culpa. Seu sacrifício vicário demonstra que Deus sofre em
função do mal. Quando Bushnell fala dos "apelos temos do sacrifício", pode
parecer que se alinha com um visão puramente exemplarista da morte de
Cristo; no entanto, ele afirma categoricamente que a expiação possui
elementos objetivos. A morte de Cristo revela e expressa Deus. Vê-se uma
forte prenunciação de teologias posteriores do sofrimento de Deus quando
Bushnell declara:

Qualquer que seja nosso discurso, posição ou convicção acerca do sacfificio


vicário de Cristo, devemos afirmar o mesmo acerca de Deus. A Divindade toda
esta presente nesse sacrifício desde a eternidade... Há uma cruzem Deus antes
que o madeiro possa ser visto no monte... É como se houvesse uma cone
invisível sobre esse monte desconhecido desde as eras remotas.

Fica claro que o uso da imageria sacrificial se tornou menos conturin, a


partir de 1945, especialmente na teologia de língua alemã. É bem provável que
esse fato tenha uma relação direta com a corrupção retórica do termo nos
contextos seculares, especialmente em situações da emergência nacional.
Considera-se em geral que o uso secular da imageria do sacrifício, que com
freqüência se deteriora em mera propagação de slogans, infamou e
comprometeu tanto a

palavra quanto o conceito. Para muitos, o uso freqüente de frases como


"ele sacrificou a vida pelo seu rei e seu país" em círculos britânicos
durante a Primeira Guerra Mundial e a forma abrangente como Adolf
Hitler empregou a imageria sacrificial parajustificar dificuldades
econômicas e a perda de liberdades civis como preço a ser pago pelo
reavivamento nacional alemão no final da década de 1930 tornaram o
termo praticamente inutilizável na pregação e ensino cristão em razão
de suas associações negativas. Não obstante, a idéia continua a ser
importante na teologia sacramental católica romana moderna que
ainda considera a eucaristia um sacrifício e ainda encontra nessa
imagem uma fonte rica de imageria teológica.

Christus Victor. O Novo Testamento e a igreja primitiva deram ênfase


considerável à vitória que Cristo conquistou sobre o pecado, a morte e Satanás
através de sua cruz e ressurreição. Esse tema de vitória, com freqüência
associado liturgicamente às celebrações de Páscoa, foi extremamente
importante dentro da tradição teológica ocidental até o Iluminismo. Como início
do [futurismo, porém, começou a perder o favor teológico, sendo considerado
cada vez mais um conceito ultrapassado e ingênuo. Os seguintes fatores
parecem ter contribuído para isso.

1. A crítica racional da crença na ressurreição de Cristo levantou


dúvidas acerca de ser possível sequer começar a falar sobre uma
"vitória-sobre o pecado.
2. A imageria associada tradicionalmente a essa abordagem da
cruz -como a existência de um diabo pessoal na forma de Satanás e o
dentrimo da existência humana por forças opressivas ou satânicas de
pecado e mal - foi descartada como superstição pré-moderna.

O resgate dessa abordagem no período moderno costuma ser datado de


1931, com a publicação da obra de Gustaf Ardeu, Christre, Vicror. Esse livro
curto, publicado originalmente em alemão na forma de artigo em Zeieschririt /írir
systernatísche neologie (1930), exerceu uma grande influência sobre as abor-
dagens de língua inglesa ao assunto. Ardén argumentou que a concepção
cristã clássica da obra de Cristo se resumia na crença de que o Cristo
ressurreto abriu novas possibilidades de vida para a humanidade através de
sua vitória sobre os poderes do mal. Num relato sucinto e bastante
condensado da história das teorias da expiação, Arder, argumentou que
essa teoria "clássica" extremamente dramática havia dominado o Cristianismo
até a Idade Média, quando teorias legais mais abstraías começaram a ganhar
terreno. A situação foi radicalmente invertida através de Maninho Lutem que
reintroduziu o tema. No entanto, os interesses escolásticos da ortodoxia
protestante voltaram a ser relegados. Auléri argumentou que não em
possível continuar permitindo que essa abordagem fosse vítima das
circunstâncias históricas; em necessário que recebesse toda a atenção que
lhe era devida.
Em termos históricos, a argumentação de Aulén foi logo considerada
deficiente. Sua reivindicação de ser tratada como a teoria "clássica" da
expiação havia sido exagerada. Era, de fato, um componente importante
da visão patrística geral acerca da natureza e do modo de obtenção da
salvação; não obstante, se havia uma teoria que podia tomar para si o
título de "teoria clássica da expiação", era o conceito de redenção por
meio da unidade com Cristo.
Ainda assim, as idéias de Aulén foram bem recebidas. Em parte, isso
reflete um desencantamento crescente com a cosmovisão iluminista em
geral; mais fundamentalmente, talvez represente uma consciência cada
vez mais aguçada da realidade do mal no mundo, alimentada pelos horrores
da Primeira Guerra Mundial. As idéias de Sigmund Freud, chamando a
atenção para a maneira como os adultos podiam se tomar prisioneiros de seu
subconsciente, levantaram sérias duvidas sobre a visão iluminista da
racionalidade total da natureza humana e deram nova credibilidade à idéia
de que os seres humanos vivem na escravidão imposta por forças
desconhecidas e ocultas. Ao que paro- ce, a abordagem de Aulén repercutiu
coma consciência crescente do lado sombrio da natureza humana. Falar
sobre -forças do mal" havia se tornado intelectualmente respeitável.

Sua abordagem também apresentou um tertium guiri, uma terceira possi-


bilidade, um meio-temo entre as duas alternativas oferecidas até então pelo
protestantismo liberal corrente— ambas tidas como deficientes.
Considerava-se que a teoria legal clássica levantava questões teológicas
difíceis, sendo uma das maiores com referência à moralidade da expiação; a
abordagem subjetiva, para a qual a morte de Cristo apenas despertava o
sentimento religioso humano, parecia seriamente inadequada. Aulén
ofereceu uma abordagem ao significado da morte de Cristo que contornava as
dificuldades geradas pelo uso de conceitos legais e, no entanto, defendia
energicamente a natureza objetiva da expiação. Ainda assim, a abordagem
Christus Vícios, de Aulén também levantou algumas questões sérias. Não
oferecia nenhuma justificativa racional para a maneira como as forças do mal
haviam sido derrotadas na cruz de Cristo. Por que a cruz? Por que não de
algum outro modo?
Desde então, a imagem de vitória foi desenvolvida em textos sobre a cruz.
Rudolf Bultmann estendeu seu programa de desmitificação para o tema
neotestamentário da vitória, interpretando-o como uma vitória sobre a
existência inautêntica e a incredulidade. Paul Tillich oferece uma
reelaboração da teoria de Aulén, na qual a vitória de Cristo na cruz é
interpretada como uma vitória sobre as forças existenciais que ameaçam
nos privar da existência autêntica. Ao adotarem essas abordagens
existencialistas, Bultmann e Tillich convertem =a teoria da expiação que, a
princípio, era radicalmente objetiva, numa vitória subjetiva dentro da
consciência humana.
Em sua obra Past Event and Piesem Solviam [Acontecimento passado e

salvação presente] (1989), o teólogo de Oxford Paul Fiddes enfatiza que o

conceito de "vitória' mantém um lugar de importância dentro do


pensamento cristão acerca da cruz. A morte de Cristo não se limita a nos
conceder ma, novo conhecimento ou expressar idéias antigas de uma nova
maneira. Ela toma possível um, novo modo de existência:

A vitória de Cristo na verdade cria vitória em nós... O ato de Cristo é um


daqueles momentos da história humana que "abre novas possibilidades de
existência". Uma vez que uma nova possibilidade foi revelada. outras pessoas
podem criar as suas próprias, repetindo e revivendo a experiência.
Abordagens legais. Uma terceira abordagem gira em tomo da idéia da morte
de Cristo, fornecendo uma base pela qual Deus pode perdoar o pecado. O
conceito é associado tradicionalmente ao escritor do século 11 Anselmo de
Canterbury que usou essa idéia como ponto de partida para uma argumentação em
favor da necessidade da encarnação. Esse modelo foi incorporado ã teologia
dogmática protestante durante o período de ortodoxia e pode-se observar sua
expressão em vários hinos dos séculos 18 e 19. Três modelos centrais foram
usados para entendera maneira como o perdão dos pecados humanos é
relacionado à morte de Cristo.

1. Representação. Neste caso, Cristo é entendido como o representante


da humanidade na aliança. Pela fé, os cristãos passam a fazer parte da
aliança entre Deus e a humanidade. Tudo o que Cristo realizou por meio da
cruz está à disposição em função da aliança. Assim como Deus fez uma
aliança com seu povo, Israel também fez uma aliança com sua igreja. Através
de sua obediência na cruz, Cristo representa seu povo da aliança, obtendo
benefícios para eles como seus representantes. Ao crerem, os indivíduos se
tomam parte dessa aliança e, desse modo, compartilham de todos os seus
benefícios, obtidos por Cristo através de sua cruz e ressurreição — inclusive
o perdão pleno e gratuito de todos os nossos pecados.
2. Participação. Pela fé, os cristãos participam do Cristo ressurreto. Estão
"em Cristo", usando a expressão famosa de Paulo. São abarcados em
Cristo e compartilham da sua vida ressurreta. Em decorrência disso, têm
parte em todos os benefícios obtidos por Cristo, através de sua
obediência na cruz. Um desses benefícios é o perdão dos pecados, do qual
os cristãos compartilham, pela fé. Assim, participar de Cristo implica no
perdão dos pecados e na participação de sua justiça.
3. Substituição. Neste caso, Cristo é visto como um substituto, aquele
que foi à cruz em nosso lugar. Os pecadores deveriam ter sido crucificados
em função de seus pecados. Cristo foi crucificado em seu lugar. Deus permite
que Cristo fique em nosso lugar, tomando sobre si a nossa culpa a fim de
que sua Justiça — obtida pela obediência na cruz— possa vir a ser
nossa.
Como início do Iluminismo, o uso do conceito de expiação se tomou alvo de
críticas severas. Eis os pontos principais da crítica a essa abordagem:

1. Parecia se basear num conceito de culpa original, que os escritores do


Iluminismo consideravam inaceitável. Cada ser humano era responsável por sua
culpa moral; o próprio conceito de uma culpa herdada, como esta era
expressada na doutrina tradicional do pecado original, devia ser rejeitado.
2. O Iluminismo insistia na racionalidade e, talvez, acima de tudo, na
moralidade de todos os aspectos da doutrina cristã. Essa teoria da expiação
parecia moralmente suspeita, especialmente em relação aos seus conceitos de
transferência de culpa ou mérito. A idéia central de "satisfação vicária" também era
vista com forte suspeita: em que sentido era moral um ser humano levar sobre si os
castigos devidos a outros?

Essas críticas ganharam peso com o desenvolvimento da disciplina da "histeria


do dogma" (Dogmengeschichte). Os representantes desse movimento, de G S.
Stembart a Adolf vos Hamack, argumentavam que uma série de suposições, cada
uma de importância central para a doutrina anselmiana acerca da substituição
penal, havia sido incorporada à teologia cristã por uma série de acidentes
históricos. Em sua obra System of pare Philosophy [Sistema de filosofia pura] de
1778, por exemplo, Steindent argumentou que a investigação histérica mostrava a
intrusão de três "suposições arbitrárias" na reflexão cristã acerca da salvação:

1. a doutrina agostintitura acerca do pecado original;


2. o conceito de satisfação;
3. a doutrina da imputação da justiça de Cristo.

Por esses motivos, Stembart acredita ser possível declaxarque a subestrinum do


pensamento protestante ortodoxo sobre a expiação não passava de uma relíquia
de uma era passada.

Em tempos mais recentes, a idéia de culpa - um aspecto central das abordagens


legais à soteriologia - tem sido tema de várias discussões, especialmente à luz
das idéias de Freud acerca da origem da culpa nas experiências da infância. Para
alguns escritores do século 20, "culpa- é simplesmente uma projeção psico-
social, cujas origens se encontram não na santidade de Deus, mas na confusão
mental característica da natureza humana. Argumenta-se que essas estruturas
psico-sociais são, pousam, projetadas numa tela imaginária da realidade "externa",
e tratadas como se fossem objetivamente verdadeiras. Apesar dessas idéias se
mostrarem exageradas, têm a vantagem de ser uma representação clara e permitir
que compreendamos as pressões intensas que essa abordagem à expiação
enfrenta nos dias de hoje.

Não obstante, esses conceitos continuam encontrando representantes de


expressão. O colapso do otimismo moral evolutivo do protestantismo liberal
depois da Primeira Guenta, Mundial foi de grande importância pato que se le-
vantasse novamente a questão da culpa humana e a necessidade de uma redenção
externa à situação humana. Pode-se considerar que duas contribuições
expressivas para, essa discussão foram desencadeadas diretamente pela crise de
credibilidade que o protestantismo liberal enfrentou nessa época.

A obra de P. T. Fonyth Justificanion J God [Justificação de Deus] (1916), escrita


durante os anos de guerra, representa uma súplica veemente para que o conceito
da "justiça de Deus" seja redeseoberto. Forsyth se preocupa menos do que
Anselmo com os aspectos legais e jurídicos da cruz; seu interesse se concentra
na maneira como a cruz é ligada inextricavelmente "a todo o tecido moral e
movimente do universo". A doutrina da expiação é inseparável da "retidão das
coisas". Deus age para restaurar essa "retidão das coisas" ao disponibilizar
através da cruz um meio de regeneração moral - algo que a guerra deixou
claro que a humanidade precisava e, no entanto, não era capaz de suprir para si
mesma.

A critz não é um tema teológico, nem um dispositivo forense, mas sim a case
do universo moral numa escala muito maior do que a guerra roucas. É a
teodicéia de Deus como um todo tratando da alma inteira do airado inteiro
com amor santo, julgamento justo e graça redentora.

Por meio da critz, Deus visa restaurara retidão do mundo de maneira legílima - uni
tema central da doutrina de Anselmo reafirmado de maneira criativa.
Mais importante ainda é a discussão extensa do tema da "expiação" ou
"reconciliação" (a palavra em alemão, Versólinung, pode ter os dois sentidos)
encontrada na obra de Kml Barth, Teologia dogmática eclesiástica. A seção
central (IV 11, §59, 2) que trata dessa questão tem um título expressivo: "O
Juiz Julgado em Nosso Lugar". Esse título é derivado do Catecismo de
Heidelberg que fala de Cristo como o juiz que "me representou diante do jul-
gamento de Deus, e removeu de mim toda a condenação". A seção em questão
pode ser considerada um comentário ampliado desse texto clássico da tradição
reformada que trata da maneira como o julgamento de Deus é, em primeiro
lugar, revelado e realizado e, em segundo lugar, recai sobre o próprio Deus (um
tema anselmiano central, mesmo que Anselmo não tenha conseguido integrá-
lo dentro de um contexto trinitáriso.
A seção inteira é repleta de linguagem e imageria de culpa, julgamento e perdão.
Na cariz, podemos ver Deus exercendo seu julgamento justo sobre a
humanidade pecaminosa (Barth usou o termo composto Sisidermensch para
enfatizar que o "pecado- é um aspecto inseparável da natureza humana). A
cruz evidenciou as ilusões humanas de auto-suficiência e autonomia de jul-
parmentro, que para Barth se encontram resumidas no relato de Gênesis 3: 'o ser
humano deseja ser o seu próprio juiz".

No entanto, a alteração da situação exige que a iniqüidade inerente seja


reconhecida. Para Barth, a Cruz de Cristo representa o lugar em que o
justo juiz revela o seu julgamento da humanidade pecaminosa e,
simultaneamente, toma esse julgamento sobre si.
O que ocorreu foi que o Filho de Deus cumpriu o julgamento justo sobre nós
seres humanos ao tomar, ele próprio, nosso lugar como um ser humano e ao
passar em nosso lugar pelo julgamento sob o qual havíamos passado... Uma vez
que Deus desejou executar o julgamento que nos era devido sobre o seu Filho,
tudo ocorrer na pessoa dele, foi a acusação, condenação e destruição dele. Ele
julgou, e foi o juiz quem foi julgado, que se permitiu serjulgado... Por que Deus se
tomou um ser humano? Para que Deus, como ser humano, pudesse fazer,
realizar, obter e consumar tudo isso por nós, malfeitores, a fim de que, desse
modo, pudesse ser efetuada, por meio dele, nossa reconciliação com ele e aos-
,sã conversão a ele.

O caráter fortemente substintinte, dessa vontade é inequívoco. Deus exerceu


seu julgamento justo evidenciando nosso pecado, tomando-o sobre si e,
desse modo, neutralizando seu poder. A cruz fala tanto "por nós" quanto
"contra nós". Se não for permitido que a cruz revele a extensão total de
nosso pecado, ela não pode remover esse pecado de nós:
0 'por nós" de sua morte na cruz incluiu e encena esse terrível "contra nós". Sem
o terrível "contra nós'', não seria o "por nós" divino, santo, redentor e
eficazmente útil, no qual a conversão da humanidade e do mundo a Deu,, se
tornou uni acontecimento.

Abordagens exemplarístas. Um aspecto central da visão do Novo Testamento


do significado da cruz é relacionado à demonstração do amor de Deus pela
humanidade. Com o surgimento da cosmovisão ilummista, abordagens
cada vez mais críticas foram adotadas para as teorias de expiação que
incorporavam elementos transcendentes — como a idéia de um sacrifício
que teve algum impacto sobre Deus ou a idéia de Cristo morrera fim de
pagar um preço ou satisfação em função do pecado. A atitude de ceticismo
crescente em rela-são à ressurreição levou os teólogos a incluírem-na
em suas teologias de expiação com um entusiasmo muito aquém daquele
demonstrado por gerações anteriores. Em decorrência disso, a ênfase dos
teólogos que simpatizavam com o Iluminismo se concentrou na própria
cruz. Todavia, muitos teólogos do Iluminismo também encontraram
dificuldades com a doutrina das "duas naturezas". A forma de cristologia que
talvez expresse mais fielmente o espírito do Iluminismo é uma cristologia de
grau — isto é, uma cristologia que reconhece uma diferença de grau, porém
não de natureza entre Cristo e os outros seres humanos. Considerava-se que
Jesus corporificou certas qualidades presentes de fato e potencialmente em
todos os outros sertes, humanos, sendo que a diferença estava no grau muito
mais elevado com que ele corponfleou tais virtudes.
Quando essas considerações são aplicadas às teorias da expiação,
um padrão coerente começa a surgir. Esse processo pode ser estudado
através dos escritos de G. S. Stembart, I. G. TóRner, G F. Sciler e K.
G. Breásclincider. Suas características básicas podem ser resumidas
da seguinte forma.

1. A cruz não rem nenhuma referência ou valor transcendente; seu


valor é diretamente relacionado ao seu impacto sobre altuarianidade.
Assim, a cruz representa um "sacrifício" apenas no sentido de que
refrescam Cristo entregando sua vida.
2. A pessoa que morreu na cruz era um ser humano, e o impacto
dessa morte é exercido sobre os seres humanos. Esse impacto
assume a forma de inspiração e estímulo para imitarmos o exemplo
moral que Jesus nos deu.
3. O aspecto mais importante da cruz é que ela demonstra o
amor de Deus por nós.

Essa abordagem se tornou extremamente influente nos círculos


raciona-listas de toda a Europa do século 19. O mistério e aparente
irracionalidade da cruz haviam sido neutralizados; o que restava era
uma súplica dramática e poderosa pelo aperfeiçoamento moral da
humanidade, seguindo o exemplo do estilo de vida e atitudes de
Jesus Cristo. Nesses círculos, Jesus passou a ser visto cada vez
mais como o modelo de um mártir, e não um salvador.
O desafio mais expressivo a essa abordagem racionalista da cruz foi
proposto por E D. E. SeItleiermacher que insistiu no valor religioso da
morte de Cristo. Cristo não morreu apenas para criar ou apoiar um
sistema moral; ele veio para que a supremacia da consciência de
Deus pudesse ser estabelecida na humanidade. Ainda assim, em
várias ocasiões Schdeiermacher é representado ensinando um
conceito de expiação como Lebenserhóiunig, um tipo de elevação
moral de vida (como no relato apresentado por Gustu Aulén).
Suas idéias distintivas podiam ser assimiladas por visões
puramente exemplaristas, em vez de representarem um desafio
coerente às mesmas.
A declaração mais relevante dessa abordagem na Inglaterra pode ser
encontrada nas palestras Bantimon apresentadas pelo modernista
Hastings Rashdall em 1915. Nessas palestras, Rashdall lançou um
ataque vigoroso contra as abordagens tradicionais à expiação. A única
interpretação da cruz: adequada para as necessidades da vida moderna
é aquela que já havia sido associada ao escritor medieval pedra
Abelardo:

O credo primitivo da igreja, 'Não há outro nome dado entre os homens


pelo qual podemos ser salvos" pode ser traduzido de modo a dizer: "Não há
outro ideal dado entre os homens pelo qual podemos ser salvos, senão o
ideal que Cristo nos ensinou através de suas palavras e

Dentre outros escritores ingleses que adoraram abordagens semelhantes ou


relacionadas podemos citar G W. H. Lampe e John fifick. Em seu ensaio
"The Atonement: Lavs and Love" [A expiação: lei e amor], escrito pata o livro
católico liberal Sorandings [Investigações], Lampe lançou um ataque feraz
contra as abordagens legais a essa questão antes de elogiar uma abordagem
exemplarista com base "nn paradoxo e milagre do amor'.
A posição de John Hick é bastante interessante, umi, vez que é relacionada ao
lugar da obra de Cristo no diálogo interconfessional. O programa religioso
pluralista tem certas conseqüências teológicas importantes. A teologia cristã
tradicional não é particularmente apropriada para o programa
homogeneizados dos pluralistas religiosos. A sugestão de que todas as
religiões estão falando, de um modo ou de outro, mais ou menos a mesma
coisa encontra dificuldades em relação a certas idéias essenciais do
Cristianismo - mais notadamente a doutrina da encarnação, da expiação e
da Trindade. Considera-se que a sugestão de que algo singular é tomado
possível ou disponível através da morte de Cristo deprecia as religiões não -
cristãs. Em resposta a essa pressão, pode-se observar várias desenvoluçois
cristológicas e teológicas. Doutrinas como a da encarnação, que envolvem uma
identificação estreita entre Jesus e Deus, são descartadas em favor de vários
tipos de cristologia de grau mais apropriado para o programa reducionista
do liberalismo. Faz-se, portanto, uma distinção clara entre a pessoa
histórica de Jesus Cristo e os princípios que ele supostamente representa.
Paul Knitter é apenas um dentre uma infinidade de escritores pluralistas
que se dedicam a fazer uma separação entre o "evento cristológico"
(singular ao Cristianismo) e o "princípio cristológico- (acessível a todas as
tradições religiosas e expressado de suas maneiras próprias, porém
igualmente válidas). Por essa óptica pluralista, considera-se, portanto, que
a cruz de Cristo revela algo acessível de outras maneiras e que é ma
possibilidade religiosa universal. Assim, Hick argumenta que o evento
cristrilógicir é apenas "um dos pontos em que Deus esteve e ainda está
operando de maneira criativa na vida humana", sendo que seu caráter distintivo
é relacionado exclusivamente ao fato de ele ser `uma história visível" e não
"uma verdade adicional".

A cruz: constitutiva ou ilustrativa?


Em sua obra Doctrine of Reconci7iation, [Doutrina da reconciliação] de 1898,
Martin Kalder propôs a seguinte questão com respeito às teorias da expiação:
"Cristo só revelou alguns insigrins, referentes a uma situação imutável - ou ele
estabeleceu uma nova simação?". Com essa pergunta, chegamos a um as-
pecto central da soteriologia. A cruz de Cristo ilustra a vontade salvadora de
Deus? Ou toma essa salvação possível? É constitutiva ou ilustrativa?
A abordagem posterior é característica de muitos textos inspirados pelo
Iluminismo, que consideram a cruz um símbolo histórico de uma verdade
eterna. John Macquarrie defende tenazmente essa abordagem em seu
livro Principies of Christian Theology [Princípios de teologia cristã] de 1977:

Não é que, em determinado momento. Deus acresceria a atividade de


reconciliação ás suas atividades anteriores, ou que podemos definir uma
ocasião em que essa atividade reconciliticiora começou. Antes, o caso é
que em determinado momento houve uma nova e decisiva
interpretação de uma atividade que sempre esteve em andamento, uma
atividade equiturianorifial com a própria criação.

Uma abordagem semelhante é associada a Maurice P. Wiles, segundo o qual, em


sua obra Rensmiffig of Christian Doctrine [Recriação da doutrina cristã] de 1974,
o evento caistológico é Me algum modo, uma demonstração daquilo que é
verdadeiro acerca da natureza eterna de Deus". Brian HelibletIuvinte concorda:
"é necessário declarar de unharia bastante categórica que o amor perdoados de
Deus não depende da morte de Cristo: antes, é manifestado e representado
nela".
E, no entanto, a discussão não está, de modo algum, encerrada. Em sua obra
Actuality of Atonement [A realidade da expiação] (1988), Colin Gunton sugere
que as abordagens não-constituifivas da expiação correm o risco de voltar às
doutrinas exerratilarisras e subjetivas da salvação. Porém, é necessário dizer que
Cristo não apenas revela algo importante pua nós; ele realiza algo por nós —
algo sem o que a salvação não seria possível. Levantando a questão acerca "do
mal real do mundo ser enfrentado e curado ontologicamente na vida, morte e
ressurreição de Jesus", Gunton argumenta que deve haver um sentido no qual
Cristo é nosso —substituite"~ ele faz por nós algo que nós mesmos não podemos
fazer. Negar isso é voltara uma forma de Pelagianismo ou a uma visão puramente
subjetiva da salvação.
Esse tema é tratado emAnomentrou andIncarraríon [Expiação e erticarintação1
(1991) de Vernon White, que defende com argumentos morais a natureza
constitutiva do evento cristoffigicri. A verdadeira reconciliação exige que algo
"aconteça em resposta ao mal moral". A reconciliação exige que o mal seja con-
frontado na História — o que só 5 pode ocorrer por meio do evento cristrilógico.

A única "anulação" adequada do rompimento passado envolve a


tentativa de recriar algo novo... [Isso] e exemplificado ao longo de toda a
vida encarnada e, de modo preeminente, na cruz e ressurreição. Deus
vence o mal e realiza a reconciliação, primeiro experimentando as
conseqüências do mal tanto em termos de sua própria tentação de viver
para si mesmo, quanto em temos da investida do egoísmo de outras
canoa ele.

Assim, White pode fundamentar a natureza constitutiva da cruz de Cristo


através do encontro de Deus como sofrimento da humanidade na História —
algo que precisava "acontecer".
Uma questão semelhante se encontra por trás da distinção entre as abordagens
objetiva e subjetiva da expiação. A primeira sugere que há uma mudança na
situação externa — ou seja, que Deus foi, de algum modo, afetado pela cruz de
Cristo. A última surgem que é nossa percepção da situação que sofre

uma alteração radical. Fica claro que a primeira corresponde amplamente à


abordagem constitutiva e a seguinda, à abordagem ilustrativa da expiação. No
entanto, o paralelo não é exato.

A natureza da salvação

Qual a natureza da salvação que é revelada ou possibilitada pela morre de Cristo?


"Salvação" é um conceito extremamente complexo, abrangendo várias idéias
relacionadas que interagem, entre si. Os seguintes temas centrais podem ser
discernidos em discussões modernas sobre esse assunto e são observados
simplesmente para indicar a complexidade desse tema e permitir que o leitor se
familiarize com algumas das ênfases características dentro da teologia moderna.

É necessário ressaltar que uma questão teológica insportante, se encontra por trás
das maneiras diversas como a salvação é interpretada. O crescimento do
Cristianismo nos últimos séculos, principalmente através do trabalho missionário,
levantou a questão da conteximilização. De que maneira o vocabulário e estrutura
conceitua) da tradição cristã podem ser adaptados ou redefinidos para ir ao encontro
das novas situações nas quais a fé cristã se expandiu? Harvey M. Com é um dos
escritores que destacam a importância dessa questão, observando que a
salvação deve ser particularizada em termos da situação à qual o evangelho está
se dirigindo em determinado momento. Em termos históricos, isso significa que os
conceitos de salvação variavam de um contexto cultural para outro — um ponto
que dá mais peso ao pedido de Wolfhart Parmenberg para que as cristologias não
sejam elaboradas exclusivamente sobre alicerces escattilógicits, mas que se
relacionem e fundamentem em alicerces soteriológicos. Uma revisão sucinta mostra
uma diversidade considerável de conceitos de salvação que adquiriram influência
desde 1700.

Deificação. O tema da deificação dominava a soteriologia da igreja primitiva,


como pode ser visto nos escritos de Atanásio e dos Patriarcas da Capadócia
(dentre muitos outros exemplos). Continua sendo parte integrante da teologia
ortodoxa oriental do período moderno e desempenha um papel importante na
teologia de escritores modernos dentro dessa tradição como, por exemplo, Vladimir
Lossky.
Justificação diante de Deus. O conceito de justificação diante de Deus (coram
Deo) teve um papel importante no desenvolvimento da doutrina de Lutem
acerca da justificação no século 16. A ortodoxia luterana, especialmente do
século 18, manteve essa ênfase sobre a justificação. ficação. Os escritores putistas e
ilmtuuistas viam o conceito de uma "justificação imputada" com certa suspeita,
considerando-o equivalente a uma forma de ficção legal ou engano moral. Um
resultado disso foi uma ênfase crescente sobre a surtida-de dentro da tradição
pictista e sobre a moralidade dentro dos círculos iluministas, bem como uma
relutância cada vez maior da parte dos principais teólogos protestantes de fazer
uso da imanaria da justificação. Em

se deve ao uso mais freqüente da imageria da união com Cristo dentro


dos círculos teológicos calvinistas.
União com Cristo. O conceito de uma união pessoal entre o cristão e Cristo
era um elemento importante das soteriologias patrísticas. Esse conceito foi
desenvolvido por Lutero e Calcino no tempo da Reforma; somente nos escritos
deste último, porém, é que desempenhou um papel soteriológico. No calvinismo
posterior, essa idéia se tomou essencial. Escritores calvinistas, do século 19 tanto
da Europa quanto da América do Norte consideravam que essa ênfase sobre a
união com Cristo contornava as dificuldades levantadas pelo conceito luterano
de panificação. Uma vez que os cristãos eram verdadeiramente unidos com
Cristo, tinham o direito de compartilhar da sua justificação.
Perfeição moral. De acordo com a visão característica do Ilunimismo, a religião
— nos casos em que esta podia ser aprovada — tratava do aperfeiçoamento
moral da humanidade. Em sua fama típica, essa abordagem argumenta que Jesus
deve ser visto como um mestre da vida mora] que consiste na conformidade com a
vontade de Deus. Essa vontade, que pode ser conhecida de maneira igualmente
apropriada através da razão e dos ensinamentos, de Cristo, foi distorcida pelos
escritores do Novo Testamento que procuraram acrescentar à religião moral
simples de Jesus várias doutrinas arbitrárias e que atendiam aos seus próprios
interesses.
Em sua forma mais desenvolvida, essa abordagem se valeu subseqüentemente de
idéias de Imantítittel lçant, especialmente daquelas expressadas em Religion
Winim the Limite' of Reason Alone [A religião dentro dos limites da simples
razão]. Kant discutiu o papel de Jesus em relação ao "ideal de perfeição moral" e
relacionou isso ao conceito de "reino de Deus", entendido como um reino de
valores éticos. Essa abordagem teria influência considerável dentro do
protestantismo liberal, especialmente na escola Ritschiliana, que considerava
Jesus "o fundador de uma comunidade moral "iveNal".
Consciência de Deus. Reagindo às concepções puramente racionais ou morais
do Cristianismo, F. D. E. Schleiermacher desenvolveu a idéia de que a salvação
humana devia ser discutida em termos da dominação da consciência de Deus.
Essa consciência encontra sua expressão prototípica em Jesus de Nazaré,
sendo, portanto, disponibilizada dentro da comunidade da fé.
Humanidade autêntica. O surgimento do existencialismo no século 20 é, em
geral, associado à sensação de desumantização na cultura acidental con-
temporânea. Vários escritores argumentaram, por isso, que a salvação deve ser
entendida em termos da redescoberta ou restituição da verdadeira humanidade.
Contribuições expressivas foram feitas por Elicaltard Chisebach e Friedrich
Gogaruai, valendo-se do personalismo de Martin Buber. Grisebach analisou o
dilema enfrentado pela humanidade moderna em temos de uma busca pela
identidade humana autêntica. Gogarten argumentou que a soteriologia diz respeito
à questão de como o ser humano pode se tomar uma pessoa — um verdadeiro
"indivíduo" em um mundo que arrasaçadespersonalizar a existência h uma-na e
reduzi-Ia ao nível de uma "coisa".

Libertação política. A teologia da libertação latino-americana enfatiza os


aspectos políticos do conceito de salvação e pode ser considerada uma
redescoberta dos aspectos sociais, políticos e econômicos da abordagem bíblica
(especialmente do Antigo Testamento) desse tema. Esse movimento, que pode
ser visto como um protesto contra os conceitos puramente individualistas da
salvação (como aqueles que foram antes citados logo), tem enfrentado resistência
considerável da parte daqueles que consideram a salvação uma questão
privatizada, separada dos assuntos deste mundo. As obras de Gustavo Gutemez
lheology o' Liberation [Teologia da libertação] de 1971 e de José Miguel Bonino,
Toward a Christian Political Ethies [Rumo a uma ética política cristã] de 1983
representam descrições típicas de conceitos politizados provenientes das
tradições católica romana e evangélica, respectivamente.

Conclusão
Este levantamento breve dos conceitos de salvação no pensamento cristão moderno
tocou nas questões principais da discussão. A maioria dos assuntos foi,
inevitavelmente, tratada de maneira muito mais sucinta do que merece. No entanto,
fica claro que a discussão dessas questões – inclusive da contextualização da
salvação – permanecerá uma tarefa perene da teologia custa responsável.

Estudo de caso 4.3 A discussão acerca da ressurreição


A ressurreição é uma das arcas mais amplamente discutidas da teologia cristã
moderna. Em paire, isso reflete o fato de que a questão importante, da relação
entre a fé e a História se concentra, com freqüência, no tema da ressurreição de
Cristo. A questão da ressurreição de Cristo – mais especificamente, se Cristo foi,
de fato, ressurreto dentre os mortos e, em caso afirmativo, o significado desse
acontecimento – reúne os elementos centrais da crítica ilumínista ao
Cristianismo tradicional. A seguir, apresentaremos um esboço das principais
posições que se desenvolveram durante o período moderno numa tentativa de
avaliar sua relevância.
O Iluminismo., a ressurreição como um anticlímax

A ênfase característica do flumunismo sobre a omnicompetência da razão e a


importância de elementos contemporâneos análogos a acontecimentos passados
levou ao desenvolvimento de uma atitude extremamente cética quanto à
ressurreição no século 18. G E. Lessing é um excelente exemplo de um escritor que
adotou essa atitude, de ceticismo. Depois de confessar que não experimentou em
primeira mão a ressurreição de Jesus Cristo, Lessing pergunta: Por que se pede
dele que creia em algo que não viu? O problema da distância cronológica é, de
acordo com Lessing, agravado por suas dúvidas (que, evidentemente, ele
pressupõe serem compartilhadas por outros) com respeito à confiabilidade

dos relatos das testemunhas oculares. Em última análise, nossa fé se


baseia na autoridade de outros, e não na autoridade de nossa própria
experiência e reflexão racional sobre esta:

Mas, uma vez que a verdade desses milagres cessou completamente de ser
demonstrável por milagres atuais, um vez que estes não passara de relatos
de milagres... nego que possam e devam me obrigara ter um mínimo de
fé que seja nos outros ensinamentos, de Jesus.

Em outras palavras, uma vez que homens e mulheres não são


ressoantes dentre os mortos hoje em dia, por que devemos crer
que isso aconteceu no passado?

Como vimos, escritores racionalistas como Reinaras e Lessing negavam que


o testemunho humano de um acontecimento do passado (como a ressimei-
ção) era suficiente para torná-lo crível se parecia ser contestado pelas experi-
ências diretas presentes, por mais bem documentado que tal
acontecimento antigo tenha sido. Semelhantemente, o principal
racionalista francês Denis Diderot declarou que, ainda que toda a
população de Paris lhe garantisse que um homem morto havia acabado de
ser ressunicto, ele não acreditaria numa só palavra. Esse ceticismo cada vez
maior em relação às "evidências miraculosas" do Novo Testamento obrigou o
Cristianismo tradicional a defendera doutrina da divindade de Cristo com
base em argumentos não relacionados a milagres – o que, na época, ele se
mostrou singularmente incapaz de fazer. Sem dúvida, é preciso observar que
outras religiões que envolviam evidências miraculosas foram tratadas pelo
Iluminismo com o mesmo tipo de crítica cética. O Cristianismo acabou sendo
escolhido como alvo de comentários específicos em função do domínio
religioso que exercia no ambiente cultural em que o fluminisnus se
desenvolveu.

O que está em questão aqui é um tema central do fluminismo: a autonomia


humana. A realidade é racional e os seres humanos possuem as habilida-
des epistemológicas necessárias para descobrir a organização racional do
mundo. A verdade não é algo que exige ser aceita com base numa
autoridade externa; deve ser reconhecida e aceita pela pessoa autônoma
capaz de pensar com base na percepção da congruência entre aquilo que
esse indivíduo sabe ser verdadeiro e a suposta "verdade" que se apresenta
para verificação. A verdade é algo discernido, e não algo imposto. Para
Lessing, ser obrigado a aceitar o testemunho de outros é o mesmo que
comprometera autonomia intelectual

humana. Não existem análogos contemporâneos pua a ressurreição. Ela


não é um aspecto da experiência moderna. Então por que confiar nos relatos
do Novo Testamento? Para Lessing, a ressurreição é pouco mais do que um
anticlímax mal-entendido sem nenhuma importância fundamental para aquilo
que Jesus representa em termos morais.

David Friedrich Strauss: a ressurreição como mito

Em sua obra Life of Jesus [Vida de Jesus] (1835), Strauss apresentou uma
abordagem nova e radical à questão da ressurreição de Cristo. O próprio
Strauss observa que a ressurreição de Cristo é de importância central pata a fé
cristã:
A raiz da fé em Jesus era a convicção da sua ressurreição. Acreditava-se
que aquele que havia sido morto, por maior que tivesse sido durante sua vida, não
podia ser o Messias: sua restauração nraculosa â vida provou
com muito mais veemência que ele era o Messias. Liberto do reino das sombras
por meio de sua ressurreição e, ao mesmo tempo, exaltado aci-
ma da esfera da humanidade terrena, ele foi transportado para as resides, celestiais
e assumiu seu lugar à destra de Deus.

Strauss observa que essa visão daquilo que ele chama de "cri qtologia do
sistema ortodoxo" foi alvo de uma série de ataques desde o lluminismo, o
que se deve, principalmente, à suposição flunímista de que milagres (como a
ressurreição) são impossíveis.
Com base nessa suposição a priori, que corresponde perfeitamente à
cosmovisão iluminista, Strauss declara sua intenção de explicar "a origem
da fé na ressurreição de Jesus sem nenhum fato miraculoso
correspondente". Em outras palavras, Strauss desejava explicar de que
maneira os cristãos vieram a crer na ressurreição quando não havia
nenhuma base histórica objetiva para essa crença. Depois de excluir a
ressurreição como uma "ocorrência objetiva miraculosa", Strauss situou a
origem da crença em um nível puramente subjetivo. A crença na ressurreição
não deve ser explicada como uma resposta a "uma vida restaurada
objetivamente", mas sim como "uma concepção subjetiva na mente". A fé na
ressurreição de Jesus é decorrente do exagero de "uma lembrança da
personalidade do próprio Jesus", pelo qual uma memória foi projetada na
idéia de uma presença viva. Um Jesus morto é, portanto, munsfiguiando numa
imageria de um Cristo ressurreto — usando o termo apropriado, um Cristo
ressurreto mítico.
A contribuição distintiva de Strauss para a discussão foi introduzira idéia de
"mito" — um reflexo do condicionamento social e do ponto de vista cultural dos
escritores do evangelho. Assim, vírgeair que seus escritos eram parcialmente
"míticos" representava mais um reconhecimento da visão moderna do
período em que esses textos foram redigidos do que um desafio à sua
integridade. Strauss se distancia da sugestão de Reimarus de que—quer
inconsciente ou deLberadamente — os evangelistas distorceram suas
descrições de Jesus de Nazaré.
Argumenta que a linguagem mítica é o modo natural de expressão de
uma cultura corporativa primitiva que ainda não havia alcançado o
nível da conceitualização abstrata.
Para beiramos, os escritores do evangelho eram indivíduos confusos ou
mentirosos - mais provavelmente estes últimos. Strauss removeu a
discussão desse âmbito introduzindo a idéia de "mito". A ressurreição
devia ser vista como um mito - não uma invenção deliberada, mas uma
interpretação dos acontecimentos (especialmente a memória e "visão
subjetiva" de Jesus) em termos daquilo que fazia sentido para a cultura
palestina do primeiro século, uma cultura dominada por uma cosmovisão
mítica. Deve-se considerar que a crença na ressurreição como um
acontecimento objetivo se tomou impossível com a extinção dessa
cosmovisão.
A Vido de Jesus de Strauss, juntamente com outras obras racionalizadoras do
mesmo período, como o livro homônimo de Emest Renan (1863) atraíram
grande atenção. A ressurreição, considerada tradicionalmente a base da fé
cristã, passou a ser vista como um produto dessa fé. O Cristianismo é tido
como uma fé relacionada à memória de um Jesus morto, e não à
celebração de um Cristo ressoarem. No entanto, a discussão não havia,
de maneira algum, se encerrado. A seguir, consideraremos as
desenvoluções posteriores desse capímio intrigante da teologia moderna.
Talvez o escritor a reinterpretar Strauss de maneira mais aguçada tenha
sido Rudolf Bultmann, cujas idéias distintivas sobre a ressurreição
constituem o tema de nossa próxima discussão.

Rudolf Bultmann: a ressurreição como um acontecimento


na experiência dos discípulos
Buitmara, compartilhava da convicção básica de Strauss de que, nesta era
científica, é impossível crer em milagres. Em decorrência disso, a crença
na ressurreição objetiva de Jesus não é mais possível; contudo, pode se
mostrar possível entendê-la de outra maneira. De acordo com Bultmann, a
história é "um continuam fechado de efeitos no qual acontecimentos
individuais são ligados pela sucessão de causa e efeito". A ressurreição,
como outros milagres, interromperia, portanto, o sistema fechado da
natureza. Argumentos semelhantes foram apresentados por outros
pensadores que simpatizavam com o Iluminismo.

A crença na ressurreição objetiva de Jesus, ainda que perfeitamente


legítima e compreensível no primeiro século, não pode ser levada a sério
nos dias de hoje. "É impossível usar luz elétrica e equipamentos de rádio e,
num caso de enfermidade, buscar a ajuda da medicina moderna e das
descobertas clínicas e, ao mesmo tempo, crer no mundo de espíritos e
milagres do Novo Testamento." A compreensão humana do mundo e da
existência humana mudou radicalmente desde o primeiro século; em
decorrência disso, para a humanidade moderna, a cosmovisão mitológica do
Novo Testamento é incompreensível e inaceitável. A cosmovisão de uma
pessoa é formada de acordo

com a em em que vive e não pode ser alterada. A cosintavisão científica e


existencial moderna significa que, hoje, o Novo Testamento é incompreensível e
deve ser descartado.
Por esse motivo, a ressurreição deve ser considerada "pura e simplesmente um
acontecimento mítico". A ressurreição é algo que aconteceu na experiência
subjetiva dos discípulos, e não algo que ocorreu no âmbito público da História.
Para Bultmann, Jesus foi, de fato, ressurreto – foi ressurreto na forma de
kerigma. A pregação de Jesus foi transformada numa proclamação cristã de
Cristo. Jesus se tomou um elemento da pregação cristã; foi ressumem e assimilado
na proclamação do evangelho:

Todas as especulações acerca dos modos de ser do Jesus ressurreto, todas as


narrativas do túmulo vazio e todas as lendas pascais, quaisquer elementos de
fatos históricos que porventura contenham, e por mais verdadeiras que sejam
em sua forma simbólica, não têm nenhuma importância. Crer no Cristo presente
no kerigma é o significado da fé pascal.

De modo coerente com sua abordagem anti-histórica em geral, Bultmann desloca o


foco de atenção do Jesus histórico para a proclamação de Cristo. "A fé na igreja
como portadora do kerigma é a fé pascal que consiste na crença de que Jesus
Cristo se encontra presente no kerigma".

Karl Barth: a ressurreição como um acontecimento histórico


além da investigação crítica

Barth escreveu uma obra curta chamada The Resurrection of the Dead [A
ressurreição dos mortos] em 1924. No entanto, suas idéias maduras sobre a
relação da ressurreição com a História vieram bem depois e for= claramente
influenciadas por Bultmann. O ensaio de Barth 'Rudolf Bultmann –An Attempt
to Understand Hin' [Rudolf Bultituanti – uma tentativa de entendê-lo] (1952)
expressa suas apreensões em relação à abordagem de Bultmann. Esse texto
foi seguido de um estudo contínuo das questões em jogo articulado na obra
Church Dogmatics [Teologia dogmática eclesiástica] IV 11 (1953). A seguir
procuraremos apresentar a posição de Barth e compará-la com a de Bultmann.

Em seus primeiros escritos, Barth argumentou que o túmulo vazio era de


importância mínima para a ressurreição. No entanto- se espantou cada vez
mais com a abordagem existencial de Bultmann que parecia sugerir que
a ressurreição não tinha nenhuma base histórica objetiva. Por esse motivo,
Barth passou a enfatizar com veemência os relatos dos evangelhos
acercado mundo vazio. O túmulo vazio é "um sinal indispensável" que "evite
todos os possri veis mal-entendidos". Demonstra que a ressurreição de Cristo
não foi um acontecimento puramente íntimo, interno ou subjetivo, mas algo
que deixou uma marca na História.

Isso parece sugerir que parda considera a ressurreição um acontecimento


aberto pua a investigação histórica, a fim de esclarecer sua natureza e
confirmar seu lugar na história geral do mundo, e não uma experiência interna
particular dos primeiros cristãos. Entretanto, não é o caso. Ele recusa
Intatamente permitir que as narrativas do evangelho sejam submetidas ao
escrutínio histórico-crítico. Não se sabe exatamente o que o levou a assumir
essa posição. O fatora seguir parece ter exercido uma forte influência em
seu modo de pensar sobre essa questão.
Barth enfatiza que Paulo e os outros apóstolos não estão pedindo a "aceitação
de um relato histórico perfeitamente atestado", mas sim "uma decisão de fé".
A investigação histórica não pode legitimar ou prover segurança para
essa fé; assim como a fé não pode se tomar dependente dos resultados
provisórios da investigação histórica. De qualquer modo, a fé é uma
resposta ao Cristo ressurreto, e não ao túmulo vazio. Barth deixou
bastante claro que o túmulo vazio, considerado de per si, não tinha
praticamente nenhum valor na fundamentação da fé no Cristo ressurecto. A
ausência de Cristo de seu túmulo não indica necessariamente sua
ressurreição: "ele poderia, de fato, ter sido roubado ou apenas parecido
estar morto".

Em decorrência disso, Barth se coloca numa posição que, a princípio,


parece extremamente vulnerável. Preocupado em defendera ressurreição
como um ato histórico público em oposição à abordagem subjetivista de
Bultmann, Barth não admite que essa história seja estudada de modo
crítico. Em parte, isso se baseia em sua convicção intensa de que o
conhecimento histórico não pode fornecer o alicerce para a fé; em parte,
reflete sua suposição de que a ressurreição de Cristo é um elemento de um
conjunto muito maior de idéias e acontecimentos que não podem ser
revelados nem verificados pela investigação histórica. No entanto, por
mais que se simpatize com as preocupações teológicas de Barth, é difícil
evitara conclusão de que lhe falta credibilidado, nesse ponto. Talvez seja
esse o motivo pelo qual a abordagem de Wolfhart Pannenberg tem recebido
tanta atenção.

Wol~ Pannenberg: a ressurreição como um acontecimento


histórico aberto à investigação crítica
A característica mais distintiva do programa teológico de Wolfimit
Pannenberg, iniciado na década de 1960, é seu apelo à história universal.
Essas idéias são desenvolvidas, justificadas e investigadas mais
detalhadamente em Revelation anti History [Revelação e história], obra
editada por Pannenberg em 1961. O ensaio de Pannenberg "Dogmatic
Theses or, lhe Docome of Revelation' [Teses dogmáticas sobre a doutrina da
revelação] começa com um apelo poderoso à história universal,

A História é o horizonte mais abrangente da teologia ensta. Todas as perguntas e


respostas teológicas têm significado somente dentro da estrutura da história que
Deus tem com a humanidade e, através da humanidade, coma criação toda,
dirigida a um futuro oculto ao mundo, mas que já foi revelado em Jesus Cristo.

Essas frases iniciais de importância crucial resumem as características


distintivas do programa teológico de Pannenberg nesse estádio de sua carreira.
Distinguem-no, por um lado, da teologia ahistórica de Bultinanti, e sua escola
e, por outro, da abordagem supra-histórica de Martin Kãhler. A teologia cristã
é baseada numa analise da história universal e publicamente acessível. Para
Pannenberg, a revelação foi, essencialmente, um acontecimento histórico
público e universal reconhecido e interpretado como um "ato de Deus".
Para os seus críticos, isso parece reduzir a fé à compreensão íntima e negar
qualquer participação do Espírito Santo no acontecimento da revelação.
O argumento de Pannenberg assume a seguinte forma. A História, em sua
totalidade, só pode ser entendida quando é vista de seu ponto final. Só
esse ponto oferece a perspectiva pela qual o processo histórico pode ser
visualizado em sua totalidade e, portanto, devidamente compreendido.
Todavia, enquanto Marx argumentou que as ciências sociais, ao preverem o
objetivo da História como sendo a hegemonia do socialismo, fornecem a
chave para a interpretação

da História, Pannenberg declarou que essa chave em fornecida


somente em Jesus Cristo. O fim da História é revelado prolepticarriente,
na história de Jesus Cristo. Em outras palavras, o fim da História, que
ainda não ocorreu, foi revelado de antemão na pessoa e obra de Cristo.
Essa idéia de "revelação proléptica do fim da História" é baseada numa
cosmovisão apocalíptica que, segundo Pannenberg, fornece a chave para
compreendera interpretação do Novo Testamento do significado e função
de Jesus. Enquanto Bultmann escolheu desmitificar os elementos
apocalípticos do Novo Testamento, Pannenberg os considera a gradeou
estrumes hermenêutica pela qual a vida, morte e ressurreição de Cristo podem
ser interpretadas.

Talvez o aspecto mais distintivo, e certamente o mais comentado de sua


obra, seja a insistência de Pannenberg na ressurreição de Jesus como um
acontecimento histórico objetivo, testemunhado por todos que tiveram acesso
às evidências. Enquanto Bulaturim tratou a ressurreição como um
acontecimento dentro do mundo experiencial dos discípulos, Pannenberg
declara que ele pertence ao mundo da história pública universal.

Essa declaração levantou de imediato a questão da historicidade da res-


surreição- Como anteriormente observamos, um grupo de escritores
iluministas havia argumentado que as únicas informações disponíveis
acerca da suposta ressurreição de Jesus se encontravam no Novo
Testamento. Uma vez que não havia nenhum análogo contemporâneo
para essa ressurreição, a credibilidade desses relatos devia ser
seriamente questionada. Seguindo uma linha semelhante, Emst
Troeltsch argumentou em favor da homogeneidade da História; uma
vez que a ressurreição de Cristo parecia perturbar radicalmente essa
homogeneidade, sua historicidade devia ser considerada duvidosa. A
princípio, Pannenberg respondeu a essas dificuldades num ensaio sobre
—o acontecimento redentor e a História" e, subseqüentemente, em

Jesus – God and Man [Jesus – Deus e homem]. Seu argumento básico
contra essa posição pode ser apresentado da seguinte forma.
Para Pannenberg, Troeltsch tem uma visão restrita e pedante da
História que elimina certos acontecimentos de antemão com base em
um conjunto de avaliações provisórias que receberam indevidamente
o vieras de leis absolutas. A "constrição da investigação histórico-
crítica" injustificada de Troeltsch se mostrou "tendenciosa" e
""wopocêntrica". Supunha que o ponto de vista humano era o único
ponto de vista aceitável e normativo dentro da História.

Pannenberg calarias que as analogias são sempre analogias consideradas do


ponto de vista do observador humano; esse ponto de vista é radicalmente
restrito em sua abrangência e não se pode permitir que ele sirva de base
absolutamente segura para a investigação crítica. Uma vez que Pannenberg é
um historiador extremamente competente, ele não sugere que o princípio
de analogia seja abandonado; afinal, trata-se de uma ferramenta
comprovadamente útil para a pesquisa histórica. No entanto, Pannenberg
insiste que ela não passa disso: é uma ferramenta de trabalho e não se
pode permitir que defina uma visão fixa da realidade.
Se o historiador se propõe a investigar o Novo Testamento convicto de que
"pessoas monas não ressuscitam", essa conclusão será apenas projetada
no conteúdo neoteslamente'rio. A avaliação "Jesus não ressuscitou dentre os
mortos" será a pressuposição, e não a conclusão dessa investigação. A
discussão de Pannenberg dessa questão representa tira pedido veemente e
impressionante por uma abordagem neutra à ressurreição. As evidências
históricas que apontam parta a ressurreição de Jesus devem ser investigadas
sem nenhuma pressuposição dogmática de que essa ressurreição não poderia
ter ocorrido.
Depois de argumentarem favorda historicidade da ressurreição, Pannenberg
trata da sua interpretação dentro do contexto da estrutura apocalíptica de signi-
ficado. O fim da história já ocorreu prolepticamente na ressurreição de
Jesus dentre os mortos. Esse axioma domina a interpretação de Pannenberg
do acontecimento. A ressurreição de Jesus prenuncia a ressurreição geral
do fim dos tempos e traz para a História tanto essa ressurreição quanto a
revelação plena e final de Deus. A ressurreição de Jesus é, portanto,
organicamente ligada à revelação própria de Deus em Cristo e estabelece a
identidade de Jesus com Deus, permitindo que essa identidade com Deus
seja vista em seu ministério pré-Páscoa. Serve, por isso, de base para uma
série de declarações cristológicas, incluindo a divindade de Cristo (não
obstante a forma como esta é expressada) e sua escamação.
Fica claro que a doutrinada ressurreição de Jesus de Nazaré tem sido um tema
extremamente controverso nestes dois últimos séculos. Uma questão que
voltou a ser alvo de interesse no século 20 foi a doutrinada Trindade, d a qual
trataremos a seguir.

Estudo de caso 4.4 A Trindade e o pensamento do século 20

Há um consenso de que a doutrina da Trindade foi marginalizada no


pensamento do século 19. Os motivos são complexos. Sem dúvida, um
fator relevante é a influência do racionalistrio, cuja tendência era
considerar a doutrina da Trindade absurda. Essa idéia pode, sem dúvida
alguma, ser vista nos escritos de Thomas Jeifersou, o terceiro presidente
dos Estados Unidos, para o qual a Trindade era um obstáculo irracional
para a devoção cristã apropriada:

Quando eliminarmos o jargão incompreensível da aritmética muraria, que


há um e que são três; quando derrubarmos o apodiamento artificial
levantado para encobrir a estrumara simples de Jesus; quando, em resumo,
tivermos desaprendido tudo que foi ensinado desde os tempos dele e
voltarmos ás doutrinas puras e simples que ele inculcou, seremos, então,
verdadeira e dignamente seus discípulos.

O teólogo liberal E D. E. Schleiermacher colocou sua discussão da


doutrina da Trindade no final de sua obra Christian Faith [Fé cristã],
dando a impressão, com isso, de que ele a considerava uma espécie
de apêndice da teologia cristã. Na verdade, porém, Schleiermacher
argumentou que a doutrina da Trin-
ade, reunia vários írisights críticos acerca da identidade de Jesus e da
natureza da fé crista- sem os quais ela perderia suas características
definidores. A doutrina servia de "cimalha", a última pedra acrescentada
a uma estourou complexa que arantia que todos os seus elementos
permaneceriam firmes em seu devido lugar.

4.4.1 F. D. E. Schleiermacher. Acerca da Tfindade

Um elemento essencial de nossa exposição nesta Parte foi a doutri-


na da união da Essência Divina com a natureza humana, tanto na
personalidade de Cristo quanto no Espírito comum da Igreja; esse é o
elemento crítico de toda a concepção de Cristianismo apresentada
no ensinamento de nossa Igreja. Pois, a menos que o ser de Deus
em Cristo seja tomado como certo, a idéia de redenção não poderia
ser concentrada desse modo em Sua Pessoa. E, a menos que
houvesse tal união também no Espírito comum da Igreja, a Igreja não
poderia ser a Portadora e Perpetritadora da redenção por meio de
Cristo. Estes são exatamente os elementos essenciais da doutrina da
Trindade que, como está claro, só se estabeleceu em defesa da
posição de que em Cristo estava presente nada menos do que a
Essência Divina, que também habita na Igreja Cristã como seu
Espírito comum, e para que não consideremos essas expressões
num sentido reduzido ou puramente artificial, e não reconheçamos
nenhuma essência superior especial, divindades subordinadas (por
assim dizer) presentes em Cristo e no Espírito Santo. A doutrina da
Trindade não tem outra origem senão esta; a princípio, não tinha
inuma objetivo senão de equiparar da maneira mais peremptória
possível a Essência Divina considerada e, assim, unida à natureza
humana com a Essência Divina em si... Em virtude dessa ligação,
podemos julgar corretamente a doutrinada Trindade, na medida em
que é um depósito desses elementos, como a cimalha da doutrina
cristã (als deu SeMufiviem der chrirvifichen Lehre), se equiparando,
permuto, com os elementos divinos em cada uma dessas duas uniões,
e também com a própria Essência Divina, como aquilo que é essencial
na doutrina da Trindade.

No entanto, a teologia cristã do século 20 testemunhou um reavivamento


extraordinário do interesse na doutrina da Trindade. Acredita-se que esse
renascimento trinitário se deve, principalmente, à obra fundamental de Karl
Barth. A seguir, investigaremos três contribuições importantes para a discussão
moderna da Trindade, refletindo os pontos de vista reformado (Karl Barth), católico
romano (Karl Ralincr) e luterano (Robea Jenson).

Karl Barth

Barth coloca a doutrina da Trindade no início de sua obra Church Dogmatics


[Teologia dogmática eclesiástica]. Essa observação simples é importante, pois
ele inverte completamente a posição que esse assunto ocupa na obra de seu rival,
Schleiermacher. Como vimos, para Schleieanacher, a Trindade talvez seja a última
palavra que pode ser dita sobre Deus; para Barth, é a palavra que deve ser dita
antes mesmo da revelação ser uma possibilidade. Assim, é colocada no início de
sua Teologia dogmática eclesiástica pois seu tema torna essa teologia dogmática
possível. A doutrina da Trindade sustenta e garante a realidade da revelação divina
à humanidade pecaminosa. Nas palavras de Barth, é uma "confirmação
explicativa" da revelação. É uma exegese do fato da revelação.
"Deus se revela. Ele se revela por intermédio de si mesmo. Ele revela a si
mesmo. — Com essas palavras, Barfi, estabelece a estruturada revelação que leva à
formulação da doutrina da Trindade. Deus dixit! Deus falou na revelação — e cabe
â teologia investigar o que essa revelação pressupõe e envolve. Pato Barth, a teologia
é Nach-Denken, um processo de "pensar posteriormente" acerca daquilo que se
encontra contido na revelação própria de Deus. precisamos "instigar
cuidadosamente a relação entre nosso conhecimento de Deus e Deus em si em seu
sere natureza". Com essas declarações, Barth define o contexto da doutrina da
Trindade: tendo em vista que a revelação própria de Deus ocorreu, o que deve ser
verdadeiro acerca de Deus se isso pôde ocorrer? O que a realidade da revelação
tema nos dizer acerca do ser de Deus? O ponto de partida de Barth pare sua
discussão acerca da Trindade não é uma doutrina nem uma idéia, mas a realidade de
Deus falar e de Deus ser ouvido. Pois como Deus pode ser ouvido se a humanidade
pecaminosa é incapaz de ouvi-lo?

O parágrafo anterior é simplesmente uma paráfrase das seções do primeira


meio-volume de Teologia dogmática eclesiástica de Barth, chamado "A
Doutrina da Palavra de Deus", pontuada por algumas citações. Trato-se de um
texto extremamente rico que precisa ser desdobrado. Dois temas pedem mais
atenção.

1.A humanidade pecaminosa é, fundamentalmente, incapaz de ouvir


a Palavra de Deus.
2. Não obstante, a humanidade pecaminosa ouviu a Palavra de
Deus, uma vez que essa palavra revela à humanidade a sua
pecartuintosidade.

O próprio fato de a revelação ter ocorrido exige, portanto, uma explica ção.
Para Barth, isso indica que a humanidade é passiva no processo de recep-
ção; o processo de revelação é, do começo ao fim, sujeito à soberania de
Deus como Senhor. A fim de que a revelação seja revelação, Deus deve ser
capaz de se revelar (o que Barth entende claramente como "revelação
própria") à humanidade apesar dessa pecturutrosidade.
Uma vez que esse paradoxo foi considerado, é possível acompanhar a
estrutura geral da doutrina de Barth acerca da Trindade. Barth argumenta
que na revelação, Deus deve ser, em si mesmo, aquele que ele revela
ser. Deve haver uma correspondência direta entre o Revelador e a
Revelação. Se "Deus se revela como Senhor" (uma asserção típica de Barth),
então deve ser Senhor "antecedentemente em si mesmo —. A revelação é a
reiteração no tempo daquilo que Deus é em si mesmo na eternidade.
Existe, assim, ama correspondência direta entre:

1. O Deus revelador
2. A revelação própria de Deus.

Expressando isso na linguagem da teologia trinitária, o Pai é revelado


no Filho.
E quanto ao Espírito? Chegamos aqui àquele que talvez seja o aspecto
mais difícil da doutrina de Barth acercada Trindade: a idéia de -caráter
revelado (Offenbarsein)". Para investigar esse conceito, será preciso
empregar uma ilustração que não foi usada por Barth. Imagine dois
indivíduos caminhando nas cercanias de Jerusalém num dia de primavera,
por volta do ano 30 d.C. Eles vêem três homens sendo crucificados e se
detêm para olhar. O primeiro aponta para aquele que esta na cruz do
centro e diz: "Eis aí um criminoso comum sendo crucificado". O segundo
aponta para o mesmo crucificado e diz: "Eis aí o Filho de Deus morrendo
por mim". Dizer que Jesus é a revelação própria de Deus não é suficiente
de per si; é preciso haver algum modo pelo qual Jesus é reconhecido como
a revelação própria de Deus. E é esse reconhecimento de revelação como tal
que constitui a idéia de Offenlatrsem.

De que maneira, então, esse insight é obtido? Barth é bastante claro: a


humanidade pecaminosa não é capaz de chegara esse insight sem ajuda.
Para ele, a humanidade não desempenha nenhum papel positivo na
interpretação da revelação, pois isso corresponderia a sujeitar a revelação
divina às teorias humanas acercado conhecimento. Essa posição de Barth
foi duramente criticada por aqueles — como Emil Imumer — que, de outro
modo, poderiam ter simpatizado com seus objetivos. A interpretação da
revelação como tal deve, ela própria, se dar pela operação de Deus, mais
precisamente pela operação do Espírito. A humanidade não se toma
suscetível à palavra do Senhor (capox verbi domíni) e então ouve essa
palavra; o ouvir e a capacidade de ouvir são dados em um só ato pelo
Espírito.

Tudo isso pode dar a impressão de que Bantí, é, de fato, um tipo de


modelista, tratando os diferentes momentos da revelação como "modos de
existência" distintos referentes ao mesmo Deus. Sem dúvida, há quem o acuse
exatamente dessa deficiência. Não obstante, uma reflexão mais ponderada
talvez nos afaste dessa avaliação, apesar de outras críticas certamente serem
possíveis. Por exemplo, o Espírito não tem muito espaço na exposição de
Barth, o que talvez reflita apenas as deficiências da tradição ocidental como
um todo. Porém, quaisquer que sejam seus pontos fracos, considero-se em
geral que a discussão de Barth sobre a Trindade restabeleceu a doutrina
depois de um período de negligência contínua dentro da teologia dogmática.
Esse processo de restabelecimento foi consolidado através da obra do
teólogo jesuíta Karl Rahner, para o qual nos voltamos agora.

Karl Rahner

Há um consenso de que a contribuição específica de Rahner paro o desen-


volvimento da teologia trinitária moderna é sua análise sobre a relação entre a
Trindade "económica" e a Trindade "imanente". A distinção básica neste caso é
entre a maneira como Deus é conhecido através da revelação na
História ("a Trindade econômica") e a maneira como Deus existe internamente
("a Trindade imanente"). Pode-se imaginara "Trindade econômica" como a
experiência crera da revelação própria de Deus na História e a "Trindade
imanente" como a diversidade e unidade de Deus dentro do próprio Ser divino.
O axioma de Rahner referente à sua relação, citado com freqüência na teologia
moderas, assume a seguinte forma: "ATrindade comômica é aTrindade
imanente, e aTrindade imansente, é a Trindade econômica". Em outras
palavras, a maneira como Deus é revelado e experimentado na História
corresponde à maneira como Deus é de fato.

A abordagem de Rahner â Trindade corrige com eficácia cenas


tendências da teologia trinitária católica romana mais antiga,
especialmente a tendência de se concentrar na "Trindade
imanente" em detrimento ã experiência humana de Deus e ao
testemunho bíblico da salvação. Paus, Rahner, a Trindade
"econômica" diz respeito "às declarações bíblicas referentes à
economia da salvação e sua estrutura tripla'. O axioma de Rahner
lhe permite afirmar que toda a obra da salvação é obra de uma
pessoa divina. Apesar da complexidade do mistério da salvação,
uma única pessoa divina pode ser discernida como sua fonte,
origem e objetivo. Por trás da diversidade do processo de salvação
se deve discernir apenas um Deus. Esse princípio fundamental de
unidade da economia da salvação tem sua origem em troca,
especialmente em sua polêmica contra os gnósticos que
argumentavam ser possível distinguir dois seres divinos dentro da
economia da salvação.
Rahner insiste, portanto, que o ponto de partida correto para a
discussão trinitária é nossa experiência da história da salvação e
sua expressão bíblica. O "mistério da salvação" acontece primeiro;
passamos, então, à formulação das doutrinas referentes a esse
mistério. Esse "conhecimento prévio da Trindade econômica, derivado
da história da salvação e da Bíblia" é o ponto de partida para o
processo de reflexão sistemática.
É possível, assim, pensar na "Trindade imanente" como uma
"concepção sistemática da Trindade econômica". Assim, Rahner
argumenta que o processo de reflexão teológica que conduz à
doutrina da Trindade imanente tem como ponto de partida nossa
experiência e conhecimento da salvação na História. A
complexidade dessa história de salvação é, em última análise,
fundamentada na própria natureza divina. Em outras palavras, apesar
de experimentarmos diversidade e unidade dentro da economia da
salvação, essa diversidade e unidade correspondem à maneira como
Deus é de fato. Rahner expressa essa questão da seguinte forma:

A diferenciação da comunicação própria de Deus na História (da verdade) e


no espírito (do amor) deve pertencer somente a Deus "em si mesmo"
pois, de outro modo, essa diferença, que sem dúvida existe, daria cabo da
comunicação própria de Deus. Porquanto ou essas modalidades e sua
diferenciação encontram-se no próprio Deus (apesar de as experi-
mentarmos inicialmente do nosso ponto de vista) ou então, existem so-
mente dentro de nós.

Em outras palavras, "Pai", "Filho" e "Espírito Santo" não são


simplesmente formas humanas de entendera diversidade de nossa
experiência do mistério da salvação. Assim como também não há
papéis que Deus, de algum modo, assume temporariamente com o
propósito de entrar em nossa história. Antes, correspondem à maneira
como Deus é de fato. O mesmo Deus que se mostra como uma
Trindade é uma Trindade. A maneira como Deus é conhecido na
revelação de si mesmo corresponde à maneira como ele é
internamente.

Robert Jenson

Escrevendo de um ponto de vista luterano, mas profundamente versadona


tradição Reformada, o teólogo norte-americano contemporâneo Robert Jenson
apresentou uma reformulação vigorosa e criativa da doutrina tradicional da
Trindade. Em vários sentidos, é apropriado dizer que Jenson oferece uma
desenvolução da posição de Bartia com sair ênfase característica sobre a
necessidade de permanecer fiel à revelação própria de Deus. The Triune Identity:
God According to the Gospel [A identidade omitiria: Deus de acordo com o
evangelho] (1982) fornece um ponto de referência fundamental para a discussão
da doutrina num período que tem testemunhado um novo interesse nessa área
até então negligenciada.
Jenson argumenta que "Pai, Filho e Espírito Sanuo' é o nome apropriado para o
Deus que os cristãos conhecem em e por meio de Jesus Cristo. De acordo com ele,
é imperativo que Deus tenha um nome próprio. "O discurso trinitário é a tentativa
do Cristianismo de identificar o Deus que nos tomou para si. A doutrina da
Trindade compreende tanto um nome próprio, `Pai, Filho, e Espírito Santo'...
quanto um desenvolvimento e análise das descrições identificadoras
correspondentes." Jenson ressalta que no contexto politeísta em que a antiga
Israel estava inserida, o termo "deus" transmitia relativamente pouca
informação. Era necessário dizer o nome do deus em questão. Uma situação
semelhante foi confrontada pelos escritores do Novo Testamento que se viram
obrigados a identificar o deus no cerne de sua fé e distinguir esse deus dos
muitos outros deuses adorados e reconhecidos na região, especialmente na
Ásia Menor.

Assim, a doutrina da Trindade identifica e designa o Deus cristão – no entanto,


ela o faz de maneira coerente como testemunho bíblico. Não se trata de um nome
que nós escolhemos; é um nome que foi escolhido para nós e que mechemos
permissão de usar. Desse modo, Jenson defende a primazia da revelação própria de
Deus das elaborações humanas de conceitos de divindade. "O evangelho
identifica seu Deus do seguinte modo: Deus é aquele que ressuscitou o Jesus de
Israel dentre os mortos. A incumbência da teologia em sua totalidade pode ser
descrita como o trabalho de desdobrar essa frase de várias ma-acirre. Uma delas
produza linguagem e pensamento trituraria da igreja."
Estudiosos do pensamento prarísticar observaram a tendência da igreja primitiva
de confundir acidentalmente idéias distintivamente cristãs acerca de Deus com
idéias provenientes do contexto heleirístico no qual o Cristianismo foi propagado.
Jenson afirma que a doutrina da Trindade foi e é um mecanismo de defesa
necessário contra essas desenvoluções. Ela permite que a igreja descubra o
caráter distintivo de seu credo e evita que se envolva com conceitos rivais de
divindade.
Contudo, a igreja não podia ignorar seu contexto intelectual. Se, por um lado, sua
tarefa era defender o conceito cristão de Deus dos conceitos rivais de divindade,
outra de suas tarefas era fornecer "uma análise metafísica da

identificação trinitária de Deus pelo evangelho". Em outras palavras, a


igreja precisava usar os termos filosóficos de sua época para explicar
exatamente em quê os cristãos criam acerca de seu Deus e de que
maneira isso os distinguia das alternativas. Paradoxalmente, a
tentativa de distinguir o Cristianismo do helenismo levou à introdução
de termos helemísticos no discurso fflnitãrjo.
Assim, a doutrina da Trindade tem como teme o reconhecimento de
que Deus recebe um nome nas Escrituras e no testemunho da igreja.
Dentro da tradição hebraica, Deus é identificado por acontecimentos
históricos. Jenson observa quantos; textos do Antigo Testamento
identificam Deus com referência aos seus atos na História — como
a libertação de Israel do cativeiro no Egito. O mesmo padrão fica
evidente no Novo Testamento: pode-se reconhecer que Deus é
identificado com referência a acontecimentos históricos, e, acima
de indo, com a ressurreição de Jesus Cristo. Deus passa a ser
identificado em relação a Jesus Cristo. Quem é Deus? De qual deus
estamos falando? Do Deus que ressuscitou Cristo dos mortos. Como
Jenson observa, 'o surgimento de um padrão semântico no qual 'Deus'
e 'Jesus Cristo' são designações mutuamente detemnnativas" é de
impomância fundamental dentro do Novo Testamento.

Assim, Jenson resgata um conceito pessoal de Deus que se


encontrava nas mãos da especulação metafisica. "Pai, Filho e Espírito
Santo" é um nome próprio que devemos usar ao designar e nos
dirigir a Deus. "Os meios lingüísticos de identificação — nomes
próprios, descrições identificadoras, ou ambos — são absolutamente
necessários na religião. Orações, bem como outros pedidos e louvores,
devem ser dirigidas a alguém." A Trindade é, portanto, um instrumento
de precisão teológica que nos obriga a ser precisos sobre o Deus
que está em discussão.

Estudo de caso 4.5 Discussões acerca da doutrina da


igreja no século 20

O século 20 testemunhou um ressurgimento do interesse na área


da eclesiologia, em parte, graças ao crescimento do movimento
ecumênico (que visa a promoção da unidade cristã) e, em parte, por
meio do estímulo considerável que essa ama da teologia recebeu
através do processo de renovação e refratou iniciado pelo Segando
Concílio do Vaticano (1962 — 1965), especialmente a constituição
Lumen Gentium ("Uma Luz para os Gentios" — observe que as
declarações conciliares e papais católicas romanas normalmente são
chamadas pelas suas palavras de abertura em latim).

Variações de um tema: "Onde quer que Cristo esteja,


ali também está a igreja católica"

O escritor do primeiro século Inácio de Antioquia declarou que


"onde quer que Cristo esteja, ali também está a igreja estática".
Esse aforismo memorável tem exercido um forte impacto sobre a
reflexão eclesiológica — quer

protestante, católica ou ortodoxa— ao longo da história cristã. A seguir, inves-


tigaremos três abordagens diferentes dessa máxima adotadas no século 20.

1. Cristo está presente sacramentalmente


Uma das contribuições mais distintivas do Segundo Concílio do Vaticano para
o desenvolvimento da eclesiologia é sua asserção do caráter sacramental
da igreja. Nas palavras da Lumen Gemiam, "a igreja, em Cristo, é um tipo de
sacramento — um sinal e instrumento, isto é, da comunhão com Deus e
da unidade entre todos os seres humanos". O Concílio não sugere que a
igreja é um sacramento; o conceito sétitiplo tradicional de sacramento é
mantido. Antes, a igreja é "como um sacramento (veluti sacramentam)". Tem-
se a impressão de que, ao fazer essa declaração, o Concilio estava
tentando formar uma imagem da igreja como sendo, por um lado,
constituída pela palavra de Deus e, por outro, como sendo uma entidade
visível. Trata-sede uma idéia que certamente pode ser encontrada no
conceito de Agostinho dos sacramentos como "palavras visíveis".
A visão da igreja como um sacramento teve um grande impacto sobre a
eclesiologia católica do século 20. Mesmo antes do Concilio, tais idéias
já estavam ganhando força dentro da igreja. Em parte, isso reflete o
surgimento de uma "teologia de recuperação" que procurava resgatar uma
série de temas seminais de períodos anteriores da história cristã,
especialmente do período patrístico, e que adotou visões da natureza da
igreja que contrastavam nitidamente com as concepções mais institucionais
que haviam se tomado predíamir. turintes desde o século 16.
Pode-se ver essa idéia claramente nos escritos de Henri de Lidtc, um
teólogo anterior ao Vaticano II conhecido por sua compreensão magistral da
herança patrística. Em sua obra Canholicisni [Catolicismo) ele escreve:

Se Cristo é o sacramento de Deus, a igreja é, para nós, o sacramento de Cristo;


ela o representa, no sentido pleno e antiga do temo, ela o torna presente de
fato. Ela não apenas realiza a sua obra, mas é sua própria continuação, num
sentido muito mais mal de aquele em que se pode dizer que qualquer instituição
humana é a continuação de seu fundador.

Apesar de manter uma visão institucional da igreja, Lubac deu um novo senso
de identidade e propósito às concepções católicas da igreja: a igreja está
aqui para tomar Jesus Cristo presente para o mundo. O aforismo de
Inácio recebe, portanto, um novo significado através dessa visão
sacramental do papel da igreja.
Em 1953, Otto Sentrarelroth publicou um estudo bastante influente com o
título The Church as Primordial Sacrament [A igreja como sacramento
primordial], no qual ele argumenta que a igreja é o "sacramento primordial
((h,sakrawnt)" que demonstra a capacidade de Deus de usar a ordem
material para dar testemunho da ordem espiritual. O teólogo dominicano
Edward

Schillebeeckx desenvolveu idéias relacionadas em sua obra Christ: The


Sacrament of lhe Encounter with God [Cristo: o sacramento do encontro
com Deus]. Essa abordagem tem como efeito geral a integração dos
campos da cristologia, cellesiologia e sacramentologia num todo coeso.
Hans Urs voa Balthasar adota uma abordagem intensamente
encamacional à sua visão da igreja, argumentando que a igreja é o
elongetur Christi — a extensão de Cristo no tempo e no espaço. O escritor
jesuíta Karl Rahner dá continuidade a essa visão sacramental da igreja
declarando que a igreja está aqui pua tornar Cristo presente para o mundo
numa forma histórica, visível e corponficada.
A abordagem de Rahner atraiu interesse considerável. Para Rahner, a
igreja "é a continuação, a presença contemporânea da vontade salvadora
de Deus na presença real, escatologicamente triunfante e
irrevogavelmente estabelecida de Cristo no mundo—. Assim, a igreja é
uma "manifestação concreta da salvação da humanidade por Deus", da
presença contínua de Deus no mundo (uma idéia antevista no século 16
nos escritos da mística espanhola Teresa de Ávila). E, em função dessa
presença histórica real no mundo, segue-se que ela requer estruturas. Por
esse motivo, Rahner consegue justificar um elemento institucional
constante em qualquer visão católica da natureza da igreja e, ao mesmo
tempo, insistir que essas estruturas específicas não são, necessariamente,
de importância definitiva. Ademais, Rahner se mostra pronto a permitir
certo grau de flexibilidade em relação a essas Aquilo que talvez era
apropriado para as circunstâncias históricas específicas do passado pode
não ser apropriado hoje. A igreja deve ter liberdade de realizar sua missão
sacramental dentro de novas estruturas históricas.
Schillebeeckx difere de Rahner em alguns pontos importantes, mais no-
tadamente em sua rejeição do argumento de Rahner de que a igreja é o
"sacramento primordial" (uma idéia que, como observamos acima, se
originou com Otto Semmelroth). Para Schillebeeckx, Cristo deve ser
considerado o sacramento primordial; deve-se entender que qualquer
caráter sacramental que a igreja possui é decorrente da relação com
Cristo.
Os críticos protestantes dessa abordagem expressaram ansiedade quanto à
falta relativa de fundamentação bíblica da mesma, bem como sua falta
relativa de lugar para uma teologia da pregação. Tendo em vista a
importância dessa questão, podemos agora considerar interpretações mais
protestantes do axioma de Inácio que se concentram na presença de Cristo
resultante da pregação da palavra de Deus.

2. Cristo presente por meio da Palavra

Um tema central dos conceitos protestantes da natureza da igreja se con-


centra na presença de Cristo resultante da proclamação de sua palavra na
pregação e nos sacramentos. Considere, por exemplo, a declaração de
Calvtu, sobre a natureza da igreja:
Onde quer que vejamos a Palavra de Deus sendo pregada puramente e ouvida
e os sacramentos sendo ministrados segundo a instituição de Cristo, não se
pode duvidar de maneira nenhuma que existe uma igreja de Deus. Pois sua
promessa não pode falhar: "Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em
meu nome, ali estou no meio deles" (Mateus 18.20)... Se o ministério tem a
Palavra e a honra, se tem a nímistração dos sacramentos, merece, sem dúvida
alguma, ser julgado e considerado uma igreja.

Para Calvino, a pregação da palavra e a nuninuístração correta dos sacra-


mentos são ligadas à presença de Cristo – e onde quer que Cristo esteja,
também se pode encontrar uma igreja nesse lugar.
O tema kerigmático (do grego kerigma: "proclamar") continuou sendo de
grande importância ao longo do século 20, particularmente nos escritos de
Karl Barth. Para Barth, a igreja é a comunidade que vem a existir em
resposta à Proclamação da palavra de Deus. A igreja é vista como uma
comunidade Iscrigmática que proclama as boas novas daquilo que Deus fez
pela humanidade em Cristo e que vem a existir onde quer que a palavra de
Deus esteja sendo proclamada e aceiro fielmente. De acordo coma
colocação de Barth em seu discurso de 1948 no Concilio Mundial das
Igrejas, a igreja consiste "rua reunião conjunta (congregado) dos homens e
mulheres (fideliturti) que o Senhor Jesus Cristo vivo escolhe e chama para
dar testemunho da vitória que ele já conquistou e arautos da sua
manifestação futura". A eciesiologia, de Barth é totalmente trinitária nesse
ponto, envolvendo o Pai, o Filho e o Espírito numa visão dinâmica da
natureza da igreja. Para Barth, a igreja não é uma extensão de Cristo, mas
se encontra unida a Cristo, sendo chamada e comissionada por ele para
servir o mundo e tendo Cristo presente em si através do Espírito Santo.

O papel do Espírito Santo é particularmente importante. Não seria correto


dizer que Bartí, tem uma visão "carismática' da igreja, mas em uma
abordagem cristológica da identidade da igreja o Espírito Santo tem um
papel definido e distinto que Barth resume da seguinte maneira em sua obra
Dogniatics, in Outline [Esboço da teologia dogmática]:
Credo eceiesmato ["creio na igreja"] significa que creio que aqui, neste lugar, nesta
assembléia, a obra do Espírito Santo acorre. Não se pretende com isso a
deificação da criatura; a igreja não é o objeto da fé, não cremos na igreja; mas
cremos que nessa congregação a obra do Espírito Santo se toma um
acontecimento.

A igreja é, portanto, vista como um acontecimento, e não como um ins-


tituição. Barth não identifica o Espírito Santo com a igreja nem restringe
a operação do Espírito aos limites da instituição da igreja. Ele argumenta que
o Espírito capacita e renova a igreja, tate-a coma obra redentora de
Cristo na cruz e é o meio pelo qual o Cristo ressurreto se toma presente
para o povo de Deus. Desse modo, o Espírito protege a igreja de decair em
formas puramente seculares de entender sua identidade e missão.

Rudolf bolorenta também adota uma abordagem fortemente


kerigmática da natureza da igreja, associando a ênfase de Barth
sobre o papel fundamental da "proclamação" ao conceito da "igreja
como um acontecimento":

A palavra de Deus e a igreja são inseparáveis. A igreja é constituída pela


palavra de Deus como congregação dos eleitos e a palavra de Dese, não
é uma declaração de verdades abstratas, mas sim uma proclamação de-
vidamente autorizada e que, portanto, precisa de portadores com em-
denciais apropriadas (2Co 5.18-19). Assim como a palavra de Deus se
toma sua palavra apenas como um acontecimento, a igreja é, de fato,
igreja somente quando também se toma um acontecimento.

3. Cristo está presente por meio do Espírito

O terceiro tema importante da teologia do século 20 se concentrou


no papel do Espírito Santo como consifirmelor da igreja. Aqui, o
aforismo de Inácio é interpretado de modo a enfatizara necessidade
do Espírito na concretização da presença de Cristo. Vimos
anteriormente a importância dessa questão em relação à
eclesiologia de Barth; no entanto, está presente de formas mais
desenvolvidas em escritores como o teólogo da libertação
Leonardo Boff e no teólogo ortodoxo John Zizioulas. Esses dois
escritores interpretam sua visão pneumatológica (do grego permena:
"espírito") de maneiras diferentes. Tendo em vista seu conceito
fortemente ocidental da Trindade, apesar de sua ênfase sobre o
Espírito, Boff permanece Cristocêrarico; Zizioulas desenvolve uma
abordagem bem mais ortodoxa, baseada numa visão capadócia do
papel do Espírito dentro do Ser Divino.
Para Leonardo Boff, o papel constitutivo do Espírito Santo no conceito
de igreja se baseia no fato de que ele é o Espírito de Jesus Cristo.
Enquanto escritores como Rahner e vem Baltinisar haviam defendido a
idéia de que a igreja era a corposificação física ou representação de
Cristo no mundo, Boff defende a idéia de que a igreja é, acima de tudo,
o corpo espiritual de Cristo e, por isso, não se limita a nenhuma
estrutura específica existente. Nesse sentido, pode-se dizer que Bolf
critica os conceitos institucionalizados de igreja, especialmente aqueles
que se desenvolveram depois do Segundo Concilio do Vaticano.
Em sua obra Eclesiogênese: as Comunidades de Base
Reinventam a Igreja, Boff apresenta uma definição de igreja que
tem paralelos com os conceitos kerignifficos; da mesma:

A igreja vem a existir como tal quando as pessoas se conscientizam do


chamado para a salvação em Jesus Casto, se reúnem em comunidade,
professam a mesma fit, celebram a mesma libertação estasológica e
procuram viver o discipulado de Jesus Cristo. Podemos falar de igreja
propriamente dita somente quando está presente a questão da cons-
ciência celescal.

Para Boff, essa "consciência eclesial" é decorrente da operação do Espí-


rito Santo, cuja pessoa e obra são inseparáveis do Cristo ressoarem. Boff
interpreta a doutrina credal da processão do Espírito Santo do Pai e do
Filho como uma asserção desse fato.
No caso de Zizioulas, porém, atribui-se um papel bastante diferente para o
Espírito Santo. Zizioulas ressalta como, especialmente em 1 Cortados
12, Paulo parece atribuir ao Espírito Santo um papel constitutivo dentro da
igreja. Assim, a pricumatologia não diz respeito "ao bem-estar da igreja... é a
própria essência da igreja". Poderíamos resumira abordagem distintiva de
Zizioula da seguinte forma: a igreja pode ter sido instituída por Jesus Cristo,
mas é constituída pelo Espírito Santo.

O Vaticano 11 e a igreja
O Segundo Concílio do Vaticano revitalizou a discussão acerca da dou-
trina da igreja, em parte por sua reapropriação da imageria bíblica
relacionada à mesma. Antes do Concilio, a tendência dos escritores católicos
romanos era pensar na igreja em termos de uma "sociedade perfeita". Esse
estilo de imageria pode ser datado da segunda parte do século 16 e
enfatizava as credenciais institucionais eclesiásticas, especialmente à luz do
poder cada vez maior das nações-Estado européias. Parte da estratégia
da igreja para defendera independência do poder crescente do Estado
era afirmar sua própria identidade como sociedade. Assim Roberto
Belarmino, um dos escritores mais importantes da Reforma católica,
argumentou que a igreja era uma realidade social tão visível e tangível
quanto -o reira, da França e a república de Veneza". Assim, a edição-padrão
do livro-texto pré-conciliar de Adolphe Tanquerey (1854-1932) dedica coma
de 64 páginas à demonstração de que a igreja é (a) uma sociedade infalível,
(b) uma sociedade perfeita, (c) uma sociedade hierárquica e (d) uma
sociedade monárquica.

Um resultado inevitável dessa abordagem à eclesiologia foi a definição da


igreja principalmente em termos de seus aspectos visíveis e, particular -
mente, suas estruturas visíveis de governo e seus códigos de crença e
conduta. A igreja era, com efeito, modelada em instituições sociais do final
do século 16. As doutrinas cristãs da igreja, quer protestantes ou
católicas, sempre tiveram um aspecto institucional. Assim, tanto Lutem
quanto Calvino ressaltaram a importância de um governo eclesiástico
apropriado. Mas nenhum desses refiannadores considerava o elemento
institucional como sendo de importam. cia determinante. O mais crítico era
o evangelho, e não a instituição. Insights semelhantes costumam ser típicos
de autores patrísticos; e medievais até o século 14. Nesse ponto, o poder
político cada vez maior do Papa e uma determinação crescente de se
defender dos ataques ii instituição da igreja (especialmente ao papado e
à hierarquia eclesiástica) levaram uma tendência cada vez mais forte de
defender essas instituições tornando-as parte essencial de um conceito
correto de igreja.
Costuma-se considerar que essa tendência chegou ao seu auge durante o
século 19. Reagindo a uma situação política de perigo crescente na
Europa, onde o secularismo e o anticatolieburro pareciam estarem
ascensão, o Primeiro Concilio do Vaticano definiu a igreja em temos
fortemente institucionais, insistindo que ela possui todas as características
de uma sociedade verdadeira. Cristo não deixou essa sociedade indefinida
ou sem uma forma determinada; antes, ele próprio a fez existir, determinou
a forma de sua existência e lhe deu sua constituição. Esse conceito
fortemente hierárquico de igreja talvez possa ser visto mais claramente na
distinção rígida entre "os pastores e o rebanho" fundamentada na convicção
de que a igreja de Cristo não é uma comunidade de iguais na qual todos os
fiéis têm o mesmo direito, mas sim uma sociedade de elementos diferentes,
não apenas porque entre os fiéis alguns são clérigos e ou- mos são leigos,
mas também porque há na igreja um poder de Deus pelo qual alguns têm a
autoridade de santificar, ensinar e governar e outros não. Essa questão é
expressada com freqüência em termos de distinção entre ecelesia docená
('a igreja que ensina", referindo-se à hierarquia) e c(cleyia discens ("a
igreja que aprende", referindo-se aos leigos cuja principal responsabilidade
é obedecer aos seus superiores).

No entanto, na metade do século 20, estudiosos e teólogos católicos


passaram a expressar uma apreensão cada vez maior com respeito a
esse modelo. Em parte, isso reflete uma consciência das evidências
crescentes que sugeriam que a igreja primitiva não tinha uma estrutura
monolítica coesa, mas que possuía pelo menos certo grau de
flexibilidade em relação às suas instituições e ordens. O surgimento de
uma igreja fortemente organizada e institucional passou a ser visto cada
vez mais como uma desenvolução posterior ao período apostólico e, em
parte, uma reação às pressões políticas, como aquelas resultantes do
reconhecimento imperial do Cristianismo sob o governo de Constarmito.
Lucien Cerfaux e outros prepararam o caminho para o resgate das idéias
bíblicas e patrísticas que haviam sido ignoradas em função da tendência
de institucionalização eclesiástica. Conseqüentemente, o Vaticano II se
viu na posição de revitalizar o pensamento católico romano dessa área
vital da teologia, com todas as suas implicações para o ecumenismo e
evangelismo. Os resultados podem ser vistos no documento Lunien
Gentirim ("Uma Luz para os Gentios").
Investigamos anteriormente a doutrina do Concílio acerca da "igreja como
sacramento" e a maneira como ela foi desenvolvida por teólogos como
Karl Rahner. A seguir, trataremos de outros três aspectos da doutrina do
Concílio acerca da natureza da igreja.

1. A igreja como comunhão

Em 1943, o escritor católico alemão Ludwig von Hertling publicou um


estudo chamado Conimunio; Church and Papac y in Early
Christianity [Coammroro: igreja e papado no Cristianismo primitivo]
tratando da importância

do tema da "comunhão" (designado com freqüência pelo termo grego


koinonia) para um conceito apropriado da natureza da igreja. Essa obra
exerceu uma influência profunda sobre as reflexões do Concilio e seus
temas distintivos podem ser encontrados na declaração final sobre a igreja.
O tema bíblico fimdamernal que é expressado por esse termo é o de
compartilhar uma vida comum, quer se considere essa vida como sendo a
da própria Trindade, quer como sendo a vida comum de cristãos dentro da
igreja. O termo possui aspectos verticais e horizontais, sendo que os
primeiros se referem à relação entre o cristão e Deus e os últimos, ao
velacioriantento, entre cristãos individuais.
O resgate dessa idéia bíblica se mostrou um corretivo eficaz para os con-
ceitos puramente institucionais da igreja que haviam se tomado
predominantes durante o século 19. A sanção reguladora da comunhão
passou a ser vista como um aspecto do conceito mais fundamental de
comunhão entre o cristão e Deus, estabelecido por meio da morre e
ressurreição de Cristo, e praticado na vida da igreja.

2. A igreja como povo de Deus

Dos vários modelos de igreja apresentados pelo Vaticano II, o mais im-
portante é o da igreja como "povo de Deus". Trata-se de uma idéia
intensamente bíblica, com raízes profundas tanto no Antigo quanto no
Novo Testamento. O Vaticano 11 toma o cuidado de evitar a identificação
direto do "povo de Deus" com a "igreja católica romana", ou a sugestão de
que a igreja substituiu Israel de algum modo como povo de Deus. Aliás, o
segando capítulo do texto do Concílio sobre a vida interior da igreja
descreve a igreja como o "novo povo de Deus", ligado a Israel. A eleição
da igreja como povo de Deus não implica na rejeição de Israel; antes, é
a ampliação do reino de Deus. Esse penas fica particularmente claro na
Declaração do Concilio acerca das Religiões Não-Cristãs, que reconhece um
lugar especial permanente para os judeus nos propósitos salvadores de
Deus.

A Igreja de Cristo reconhece que no plano de Deus para a salvação o início de


sua fé e eleição pode ser encontrado nos patriarcas, em Moisés e nos profetas.
Ela professa que todos os fiéis a Cristo, que como lia-ervas de fé são filhos de
Abraão (cf. GI 3.7) se encontram incluídos no mesmo chamado feito ao patriarca
e que a salvação da igreja éprefigurada misticamente em êxodo do povo
escolhido de Deus da tecia da escravidão. Em função disso, a Igreja não pode
se esquecer de que recebeu a revelação do Antigo Testamento por meio do povo
com o qual Deus, em sua misericórdia inexprimível, fez a antiga aliança.
Também não pode se esquecer de que obtém o sustento dessa boa oliveira na
qual os ramos bravos foram enxertados (cf. Rm 11.17-24). A igreja crê que Cristo,
que é nossa paz, por meio de sua cruz, reconciliou judeus e gentios e nos fez um
paio si (Ef 2.14-16).

3. A igreja como comunidade carismática


O Segunda Concílio do Vaticano ocorreu numa época de grande interesse
pelo movimento carismático. O impacto dessa desenvolução foi sentido de
maneira intensa dentro de alguns círculos da igreja católica. Levou o
cardeal belga Leo-losef Suener a fazer um apelo veemente ao Concilio
para incluir uma referência a essa desenvolução em suas reflexões sobre
a natureza da igreja. A Lumen Gentium respondeu reconhecendo
explicitamente a importância dos dons carismáticos na vida da igreja. O
Concílio usou o temo "carisma" (do grego: charisnitiz – dom) para se referira
esses dons ou aptidões concedidos a indivíduos para realizar um serviço
específico. Esse temo tem um longo histórico de uso e não indica,
necessariamente, o tipo de "dom espiritual" (como o dom de línguas ou
cura) associado especificamente ao movimento carismático. Não obstante,
o uso partiria do termo grego chanova inclui claramente esses dons,
sugerindo que o Concilio permitiu um grau considerável de abertura para
esse aspecto de importância crescente na experiência cristã do século 20.

Estudo de caso 4.6 Os atributos de Deus na teologia de processo

Há um consenso de que a teologia de processo é um dos movimentos


teológicos mais expressivos que se desenvolveram na América do Norte
durante o século 20. O pensamento de processo se originou nos escritos
do filósofo anglo-americano Alfiredi North VcMtehead (1861 – 1947),
especialmente em sua obra Pncess anil Reality [Processo e Realidade]
(1929). Reagindo contra a visão relativamente estática do mundo
associada â metafísica tradicional (expressa em idéias como "substância"
e "essência"), Whitehead imaginava a realidade como um processo.
Como um todo orgânico, o mundo é algo dinâmico, e não estático; algo
que acontece. A realidade é constituída dos blocos de "entidades reais"
ou "ocasiões reais" e, portanto, caracterizada pelo "tomo-se", por
mudanças e por acontecimentos.

Todas essas "entidades" ou "ocasiões" (usando os termos originais de


Whitehead) possuem certo grau de liberdade para se desenvolver e
influenciar o ambiente ao seu redor. Nesse ponto, talvez possamos
observara influência das teorias biológicas evolutivas: como o escritor
posterior Pierre Teilhard de Chardin, Whitehead se preocupa em deixar
espaço para o desenvolvimento dentro da criação sujeito a certa direção e
orientação gerais. Esse processo de desenvolvimento é inserido num
contexto permanente de ordem, considerado um princípio organizador
essencial para o crescimento. Whitehead argumenta que Deus pode ser
identificado com esse contexto de ordem dentro do processo. Para ele,
Deus é uma "entidade", mas deve ser distinguido das outras entidades
com base na imperecibilidade divina. As outras entidades existem por um
período firam; Deus existe permanentemente. Assim, cada entidade recebe a
influência (Whitehead usa o termo "apreender" para descrever esse ato de
se apropriar de experiências) de duas fontes centrais: entidades anteriores e
Deus.
A causação não é, portanto, uma questão de uma entidade sendo coagida a agir
de determinada maneira: é uma forma de influenciar e persuadir. As
entidades influenciam umas às outras de maneira "bipolar" — mental e
fisicamente. Pode-se dizer exatamente a mesma coisa sobre os limites do próprio
processo. Deus "mantém as regras" do processo. Assim como Deus influencia
outras entidades, ele também é influenciado por elas. Usando a frase famosa
de Whitehead, Deus "é um co-sofredor que entende". Assim, Deus é afetado e
influenciado pelo mundo.

O pensamento de processo redefine, assim, a onipotência de Deus em termos de


persuasão ou influência dentro de um processo mundial geral. Trata-se de utrou,
desenvolução importante, uma vez que explica a atração dessa forma de entendera
relação de Deus com o mundo com respeito ao problema do mal. Enquanto a
defesa tradicional do livre-arbítrio como explicação para o mal mo-ml argumenta
que os seres humanos têm liberdade de desobedecera Deus ou ignorá-lo, a
teologia de processo argumenta que os componentes individuais do mundo têm,
semelhantemente, liberdade de ignorar as tentativas divinas de influenciá-los ou
persuadi-tos. Tais elementos não são obrigados a obedecer a Deus. Assim, Deus
é absolvido da responsabilidade pelo mal moral e natural.

O uso tradicional do livre-arbítrio como defesa para Deus diante do mal é


persuasivo (apesar do grau dessa persuasão ser controverso) no caso do mal moral
— cru outras palavras, do mal decorrente de decisões e ações humanas. Mas e
quanto ao mal natural'? E quanto aos terremotos, à escassez de alimentos e outras
catástrofes naturais? O pensamento de processo argumenta que Deus não pode
forçara natureza a obedecer à vontade ou propósito divino para ela. Deus pode
apenas tentar influenciar o processo internamente pela persuasão e atração. Cada
entidade desfruta um grau de liberdade e criatividade que Deus não pode
sobrepujar.

Quadro 4.1 Uma comparação entre a teologia clássica e a teologia de processo


A visão clássica (e.g., Tomás de Aquino) Charles, HnRshome

A criação ocorre ev nihilo por um ato livre da volição. Nada tem um motivo rucessá-
do alem da existência de Deus. A criação depende da decisão divina de criar;
Deus poderia ter decidido não criar nada.

Deus temo poder de fazer qualquer coisa


que quiser, desde que não envolva uma
contradição lógica (e.g., Deus não pode criar um triângulo quadrado).

Deus é imaterial e radicalmente distinto da ordem criada.


Deus está fora do tempo, e não envolvido na ordem temporal. Portanto, é manietando
pensarem Deus "mudando" ou sendo afetado em função de qualquer envolvinuato,
ou experiência do mundo.

Deus existe num estado de perfeição absoluta e não o, pode concebera existência
de um estado de perfeição mais elevada.
Tanto Deus quanto a criação existem necessariamente. O mundo não depende de
nenhuma ação de Deus para sua existência, apesar dos detalhes, mais precisos da
natureza de sua existência serem uma questão de contingência.
Deus é um agente dentre muitos no mundo e tem tanto poder quanto qualquer
outro agente. Esse poder não é absoluto, mas sim, untado,

O mundo deve ser visto como o corpo de Deus.


Deus está envolvido na ordem temporal. Está sempre alcançando uma síntese
mais rica de experiência através desse envolvimento.

Em qualquer ponto no tempo, Deus e mais perfeito do que qualquer outro agente no
mundo. No cantam, Deus é capaz de alcançar níveis mais elevados de perfeição
num estágio posterior de deonvolvintica to tendo em vista o envolvimento de Deus
como mundo.

Apesar desse conceito da natureza persuasiva da atividade, de Deus ter


méritos evidentes, sendo um dos principais a maneira como oferece uma
resposta para o problema do mal (uma vez que Deus não está no controle,
não pode ser culpado pelo estado presente das coisas), os críticos do pen-
samento de processo sugeriram que esse é um preço alto demais a ser pago. A
idéia tradicional de transcendência de Deus parece ter sido abandonada, ou
radicalmente reinterpreatada em termos de primazia e permanência de Deus
como uma entidade dentro do processo. Em outras palavras, considera-se
que a transcendência divina significa apenas que Deus sobrepuja e sobrevive
às outras entidades.
As idéias fundamentais de Whitehead foram desenvolvidas por vários
escritores, sendo os mais conhecidos Charles Hartshorne (1897 — ), Schubert
Ogden (1928 —) e John B. Cobb (1925 —). Hartshorne modificou o conceito de
Whitehead de Deus em várias direções, talvez mais expressivamente sugerindo
que o Deus do pensamento de processo deve ser visto mais como uma
pessoa do que como uma entidade. Isso lhe permite encarar uma das principais
críticas ao pensamento de processo: de que ele compromete a idéia de perfeição
divina. Se Deus é perfeito, como é possível ele macho? A mudança não é o
mesmo que um reconhecimento de imperfeição? Hartshorne redefine a perfei-
ção em termos de receptividade a mudanças que não compromete a superiori-
dade, de Deus. Em outras palavras, a capacidade de Deus de ser influenciado
por outras entidades não significa que Deus é reduzido ao seu nível. Apesar de
ser afetado por outras entidades, Deus sobrepuja todas elas.

Uma das primeiras e mais influentes articulações da teolo gia de processo


pode ser encontrada na obra de Charles Harshome Man Vision of God [A
visão do homem acerca de Deus] (1941) que inclui uma comparação
detalhada entre os conceitos "clássico" e "neoclãssico" de Deus. O primeiro
termo é usado para se referir ao conceito da natureza e atributos de Deus
encontrado nos escritos de Tomás de Aquino e o último se refere às idéias

desenvolvidas por Harshonte. Tendo em vista a importância de Hatisfiorne


para a formulação da teologia de processo, suas idéias sobre os atributos
de Deus foram organizadas em forma de quadro a fim de permitir que sejam
facilmente comparadas com as idéias clássicas que ele critica (ver Quadro 4.1).
Harshorne, não usa o vocabulário plenamente desenvolvido do pensa -
mento de processo, conforme este surgiria depois da Segunda Guerra Mundial,
mas fica claro que as idéias básicas já se encenam firmemente
posicionadas nessa obra inicial.
Tendo essa abordagem dos atributos divinos em mente, vejamos de que
maneira o pensamento de processo trata da existência do sofrimento no
mundo. O ponto principal a ser observado é a rejeição da doutrina clássica da
onipotência de Deus: Deus é um agente dentre muitos, e não o Senhor
soberano de tudo. Assim, pua teologia de processo, as origens do
sofrimento e do mal no mundo se encontram numa limitação radical sobre o
poder de Deus. Deus colocou de lado (ou simplesmente não possui) a
capacidade de coagir, mantendo apenas a capacidade de persuadir. A
persuasão é considerada um meio de exercer poder de tal maneira que os
direitos e liberdades de outros sejam respeitados. Deus é obrigado a
persuadir todos os aspectos do processo a fim de agir da melhor maneira
possível. Nada garante, porém, que a persuasão benevolente de Deus
levará a um resultado favorável. O processo não tem nenhuma obrigação de
obedecer a Deus.

Deus visa o bem da criação e age em favor dele. No entanto, a opção de


coagir todas as coisas para que realizem a vontade divina não pode ser
usada. Em decorrência disso. Deus não é capaz de impedir que certas
coisas aconteçam. Guerras, fome e holocaustos não são coisas que Deus
deseja; são, no todavia, coisas que Deus não pode impedir tendo em vista
as limitações radicais impostas sobre o poder divino. Assim, Deus não é
responsável pelo mal; não se pode dizer, de maneira nenhuma, que Deus
deseja ou aceita de maneira, tácita a sua existência. Os limites metafísicos
impostos sobre Deus são tais que não permitem nenhuma interferência na
ordem natural das coisas.
Apesar da teologia de processo estar em declínio como presença teológica
na América do Norte, fica claro que suas idéias distintivas tiveram um
papel extremamente importante no desenvolvimento teológico dessa
região. Pode-se dizer o mesmo da critica feminina à teologia tradicional,
para a qual nos voltamos agora.

Estudo de caso 4.7 A critica feminista à teologia cristã tradicional

Tanto o Antigo quanto o Novo Testamento usam o gênero masculino para


se referirem a Deus. O termo grego theos é, indubitavelmente, masculino e
a maioria das analogias empregadas para Deus ao longo das Escrituras —
como pai, rei e pastor— também são masculinas. Isso significa que o Ser
Divino é masculino? Ame Carr expressa preocupações como essas (e
observa possíveis soluções feministas) da seguinte forma:

A pergunta feminista, fundamental sobre a masculinidade de Deus na


mageria, simbolismo e conceitos do pensamento e oração cristãos tra-
dicionais conduza uma nova reflexão sobre a doutrina de Deus. Apesar das
negações teológicas de sexualidade (ou qualquer materialidade que seja) de
Deus, o uso persistente de pronomes masculinos para Deus e a reação de
muitos cristãos contra a referência a Deus como "ela" pode dar a
impressão de atuante a "masculinidade" atribuída a Deus. No entanto,
também é lógico que o pronome "ela" não apenas é apropriado como talvez
necessário para tornearia- a imaginação cristã das implicações idólatras da
linguagem exclusivamente masculina com referência a Deus e dos efeitos
dominantes da imagem do pai nas igrejas e práticas cristãs. Uma nova teoria
do caráter totalmente metafórica da linguagem religiosa se formou à luz da
discussão feminista acerca da doutrina de Deus. Essa teoria argumenta que
a visão analógica tradicional apresenta a tendência de enfatizara semelhança
entre, os conceitos humanos e o próprio ser de Deus, enquanto uma teologia
metafórica deve se concentrar, antes, na relação entre Deus e os seres
humanos e na dessemelhança de toda linguagem religiosa com referência a
Deus mesmo quando esta afirma alguma semelhança.

O texto acima exemplifica o tipo de pergunta que as escritoras feministas


têm feito em relação a linguagem e imageria habituais da tradição cristã.
Neste estudo de caso, investigaremos alguns aspectos da crítica feminista à
teologia cristã tradicional, observando suas implicações e rumos que essa
discussão pode tomar no futuro.
Podemos começar considerando a questão da suposta "masculinidade" de
Deus.
É possível mostrar que certas pessoas ou papéis sociais, provenientes em
grande parte do âmbito coral do Antigo Oriente Próximo, eram
considerados
pelos escritores bíblicos modelos mais adequados para a atividade ou
personalidade divina. Uma dessas analogias é a de um, pai. No entanto, dizer
que ""na sociedade israelita antiga um pai era um modelo adequado para
Deus" não é o mesmo que dizer que "Deus é do sexo masculino" ou que
"Deus está limitado aos parâmetros culturais da antiga Israel". Ao refletir
sobre essas questões em
sua obra New Eve as Christ [Nova Uva em Cristo] (1987), Matry Hayter
escreve:
Ao que parece, cedas "prerrogativas materiais" na sociedade hebraica antiga –
como carregar e consolar filhos pequenos – se tornaram metáforas para a
atuação de lave vis-it-vis com seus filhos, Israel. Semelhantemente, várias
"prerrogativas paternas"–como disciplinar um filho–se tomaram veículos
para a imageria divina. Cultoras e épocas diferentes têm conceitos
diferentes dos papéis que cabem à mãe e ao pai.

Falar de Deus como Pai é dizer que o papel de pai na Israel antiga nos
permite discernir melhor a natureza de Deus. Não corresponde a dizer que
Deus é um ser humano do sexo masculino. Não se deve atribuir a Deus nem
o

sexo masculino tampouco o feminino. A sexualidade é um atributo da ordem


criada e não se pode supor que ele corresponde diretamente a uma polaridade
semelhante do próprio Deus criador.
Na verdade, o Antigo Testamento evita atribuir funções sexuais a Deus tendo em
vista a conotação fortemente pagã desse tipo de associação. Os cultos
cananas da fertilidade enfatizavam as funções sexuais de seus deuses e de
suas deusas; o Antigo Testamento se recusa a apoiar a idéia de que o gênero ou
sexualidade de Deus é uma questão importante. Nas palavras de Mary Hayter:

Hoje em dia cada vez mais feministas ensinam que Deusta combina características
masculinas e femininas. Como aqueles que supõem que Deus é exclusivamente
masculino, nos feministas devem se lembrar que qualquer atribuição de
sexualidade a Deus é uma volta ao paganismo.

Não é necessário voltara idéias pagãs de deuses e deusas para resgatar o conceito
de que Deus não é nem do sexo masculino nem do feminino; essas idéias já se
encontram potencialmente presentes, ainda que negligenciadas, na teologia cristã.
Wolfhart Pannenberg desenvolve esse assunto em mais detalhes em sua obra
Teologia Sistemática:

O aspecto do cuidado paterno em particular é transposto para aquilo que o Antigo


Testamento tema dizer acercado cuidado paterno de Deus por Israel, A definição
sexual do papel do pai não está, de maneira nenhuma, em quescão— Um
conceito de Deus que envolva a diferenciação sexual é o mesmo que peliteesario.
de modo que esse conceito é descartado no que se refere ao Deus de Israel... O
fato do cuidado de Deus por Israel também poder ser expressado como o amor de
uma mãe mostra claramente como não ha nenhuma conotação de distinção sexual
no conceite, de Deus como Pai.
Ao tentar destacar que Deus não é do sexo masculino, vários escritores recentes
exploraram a idéia de Deus como "mãe" (que ressalta os aspectos femininos de
Deus), ou como "amigo/a" (que ressalta os aspectos mais neutros de Deus em
relação ao seu gênero). Um ótimo exemplo disso é apresentado por Sallie
McFague em sua obra Models of Goet [Modelos de Deus] (1987). Depois de
reconhecer que falar de "Deus como pai" não significa que Deus é do sexo
masculino, McFague escreve:
Deus como mãe não significa que Deus é uma mãe (ou pai). Imaginamos Deus
tanto como mãe quanto como pai, mas estamos cientes do quanto estas e outras
metáforas são inadequadas para expressar o amor coador de Deus... Não
obstante, falamos desse amor numa linguagem que nos é conhecida e querida, a
linguagem de mães e pais que nos dão vida, de caio corpo viemos e dos quais
podemos depender.

Anne Cair argumenta que essa metáfora é esclarecedora e proveitosa:


A metáfora de Deus como amigo/a corresponde ao ideal feminista de
"personalidade comam", um ideal que implica relacionamentos netocompefifivos,
entre pessoas e grupos, relacionamentos caracterizados por mutualidade e
reciprocidade, e não por dualidade, e hierarquia. Atende às preocupações
feministas no que se refere a expressões da relação divino-humana que
sobrepujem as imagens de negação própria religiosa que moldaram a experiência
das mulheres formando padrões de baixa auto-estima, passividade e
irresponsabilidade.
O novo interesse nas questões levantadas pela masculinidade da maior
parte das imagens bíblicas, de Deus levou a uma leitura minuciosa da
literatura espiritual do período inicial da história cristã, resultando num
reconhecimento crescente do uso de imageria feminina durante esse
período inicial. Um ótimo exemplo disso é apresentado por Revelations
oi`Divina TÁrve [Revelações do amor divino], um relato de dezesseis visões
que apareceram à escritora inglesa Julian de Norwich em maio de 1373. O
que chama a atenção nessas visões é uma tendência distintiva de se referir
tanto a Deus quanto a Jesus em temos fortemente maternos.

Vi que Deus se regozija em ser nosso Pai, e que também se regozija em ser nossa
mãe; e ainda, que se regozija em ser nosso verdadeiro Marido, tendo nossa alma
como sna noiva amada... Ele é a fundação, a substância e a coisa em si, aquilo
que ela é por numera. Ele é o Pai e a Mãe daquilo que as coisas são por
natureza.
A crítica feminista vai além da questão da "masculinidade" de Deus e se
estende a outras áreas da teologia. Podemos observar delas

1. A doutrina da Trindade emprega, tradicionalmente, os termos "Pai, Filho


e Espírito Santo". Os dois primeiros são claramente masculinos, o que, para
as escritoras feministas, é problemático. Algumas delas argumentam que
essa dificuldade pode ser superada usando-se a expressão "criadorla,
redentor/ a e sustentitiloda". Os críticos respondem que essa designação define
as pessoas da Trindade em termos puramente funcionais e cai numa forma
de modalismo. Paul Jewett explora a questão da linguagem não-inclusiva
dentro da doutrina da Trindade em sua obra God Creation mal Revelation
[Deus, criação e revelação] (1991) sugerindo que é no mínimo
hipoteticamente possível falar de Deus em temos femininos:
Falar de Deus como mãe que se revela a nós numa filha, ainda que como uma forma
hipotética de expressão, ano é uma maneira herética de falar. Terdo cm visei n,
realidades da história da salvação. reconhecemos que é uma forma de expressão
sem perspectivas de ser outra coisa senão hipotética. Como observamos, Deus o
Criador foi revelado à humanidade numa polaridade sexual e Deus como Salvador
assumiu essa humanidade
como homem, e vão mulher. No entanto, a necessidade de falar dessa forma
hipotética advém do fato de que as mulheres (em razão em se queixar de que os
conceitos tradicionais decorrentes da linguagem que costumamos usar para
Deus as transformaram cidadãs de segunda categoria tanto como membros da
raça humana quanto como membros da família de Deus.

2. Jesus de Nazaré era homem, sendo possível, por isso,


argumentar que ele não experimentou como é ser mulher ou que lhe falta
possível relevância para as mulheres. Essa questão é apresentada de
maneira enérgica pela escritora feminista pós-cristã Daphne Hampson:
A questão da compatibilidade entre o feminismo e o Cristianismo consiste,
portanto, em saber se há uma forma de falar da singularidade de Cristo que não
seja incompatível com o feminismo. (Consideremos mar-bem uma definição
minimalista do feminismo como a declarada igualdade entre homens e mulheres.)
É evidente que o problema das feministas com a cristologia é o fato de Jesus ter
sido um ser humano do sexo ..,,ruíreo e, assim, como símbolo, como O Cristo ou
a Segunda Pessoa da trindade, dar a impressão de que Vens" se torna, de
algum modo, "masculino'. Deve-se observar logo de início qual é a natureza do
problema do qual estamos tratando. Não é uma questão das feministas terem algo
corara os -furavas-. Quer este seja o caso ou não, o problema aqui não é o faro de
Jesus ter sido um homem, mas sim deste homem ter sido considerado único, um
símbolo de Deus, do Próprio Deus - ou qualquer outra coisa que seja o caso
dentro do Cristianismo. O Ser Divino, ou pelo menos a cristologia, dá a impressão
de uma tendenciosidade, contos, as andíberes. As feministas estão extremamente
conscientes do poder do simbolismo e da ideologia. Logo, não é irrelevante sugerir
que o pensamento religioso ocidental que se mostrou tão fundamental para a
cultura ocidental foi ideologicamente distorcido contra as mulheres.

3. Conceitos tradicionais de pecados são, com freqüência,


expressados em termos de poder e dominação e associados (pelo menos
segundo o ponto de vista de escritoras feministas) especialmente aos
homens. Argumenta-se que as mulheres sofrem de outras fraquezas - como
a falta de auto-estima - das quais a teologia cristã não trata
adequadamente. Mais uma vez, Daphne Hampson chama a atenção para
essa questão, concentrando-se no conceito de pecado apresentado nos
escritos de Reinholt Niehbur:
A crítica feminista não é simplesmente de que Niehbur descreveu padrões de
comportamentos associados a homens, e não a mulheres. Para os teólogos
feministas, tudo indica que em sua visão da pessoa como ser extermarecia, rediv
idirado e "atômico", e não relacionada a outros. Niehbur descreveu aquilo que é,
peculiarmente, uma propensão masculina. Quando (como descobri) as
feministas dizem que Niehbur não tem um conceito social do ser humano, é bem
possível que isso seja entendido de

maneira equivocada. Pois — responde a sociedade — nenhum teólogo


considerou o ser humano em aceissime, mais do que ele. É claro que isso é
verdade. N. entanto, escumas falando aqui de um nível diferente do termo
"social'. Para Isbelibute, o ser humano é montaria, e não provido de uma
aram. relacional essencial. Nesse sentido, ele é bastante diferente de
grande parte do pensamento feminista. Judith Vaughan se destaca nessa
área. Trabalhando inicialmente com Rosemary Recuou, Vaughan
compara a ética de Niehbur com a ética de Reentre. Mostra que suas
posições éticas e políticas distintas são relacionadas a uma visão diferente
do ser humano. Vaughan e Ruether defendem aquilo que chamei
anteriormente de visão marxsta-hegeliam. Para elas, as pessoas se
encenem profundamente envolvidas em relacionamentos sociais e, a seu
ver, as relações externas do eu formam o conceito que a pessoa tem de si
mesma. É a partir desse ponto de vista que Vaughan elabora uma crítica de
Nicífixo.
Fica claro que o programa feminista traz, portanto, implicações consideráveis
para a teologia cristã tradicional, pelo menos no Ocidente. Apesar dos
méritos de algumas linhas da crítica aos padrões tradicionais de
pensamento serem contestados, tanto dentro quanto fora dos círculos
feministas, uma discussão importante está em andamento. Pode-se dizer o
mesmo das questões decorrentes da existência de ou~ religiões além do
Cristianismo no mundo, assunto do qual trataremos a seguir.

Estudo de caso 4.8 As abordagens cristãs às outras religiões

O Cristianismo é apenas uma dentre inúmeras outras tradições religiosas


mundiais. De que maneira, então, ele se relaciona com essas outras tradi-
ções? Não se trata de uma questão moderna, uma vez que essa pergunta
tem sido feita ao longo de toda a história cristã. A princípio, essa questão
se referia à relação entre o Cristianismo e o Judaísmo, a matriz da qual ele
surgiu no período de 30 — 60 d.C. Ao expandir, a fé cristã se deparou,
então, com outras crenças e práticas religiosas, como o paganismo
clássico. Quando se estabeleceu na Índia no século 5-. o Cristianismo se
viu diante dos movimentos culturais indianos nativos que estudiosos
ocidentais da religião reuniram equivocadamente em um só grupo soba
designação "hinduísmo". Enquanto isso, o Cristianismo árabe aprendeu há
muito a coexistir com o Islamismo na região oriental do Mediterrâneo.
No período moderno, a questão da relação entre o Cristianismo e outras
tradições adquiriu uma nova importância na teolo gia acadêmica do
Ocidente, em parte graças ao crescimento da diversidade cultural na
sociedade ocidental. Pode-se observar clatramente, que três abordagens
principais se tornaram correntes. Contudo, será proveitoso começar
considerando a idéia de "religião" em si.
Um conceito ingênuo de religião pode defini-la como uma cosmovisão que
crê em um Ser Supremo ou o adora. Não é difícil mostrar como esse

conceito característico do deísmo e do rucionalismo iluminista é inadequado. A


maioria das pessoas classifica o budismo como uma religião; no entanto, nesse
caso, observa-se uma ausência evidente de um ser supremo. Essa dificuldade
persiste qualquer que seja a definição apresentada para "religião". Não é possível
identificar características claramente comuns a todas as religiões no que se refere
a questões de fé ou prática. Assim, Edward Conze, o grande estudioso do
budismo, lembrou: "certa vez, li uma coletânea da vida dos santos católicos
romanos sem encontrar nenhum que um budista pudesse aprovar inteiramente...
Foram bons cristãos, mas péssimos budistas".
Há um consenso cada vez maior de que é seriamente enganoso considerar as
diversas tradições religiosas do mundo como variações sobre um único tema. "Não
há um único sentido, conteúdo de esclarecimento ou revelação, forma de
emancipação ou libertação que possa ser considerado comum em toda essa
pluralidade" (David Tracy). John 13. Cobl, Jr. também observa as dificuldades
enormes enfrentadas por qualquer um que deseje argumentar em favor de uma
"essência da religião':

A. discussões sobre a verdadeira c.,ênda da religião são imitei,,. A religião não existe.
Existem apenas tradições, movimentos, comunidades, pessoas, crenças e práticas que
apresentam cameierenicas associadas por muitos aquilo que chamam de religião.
Cobb enfatiza que a suposição de que a religião tem uma essência é responsável
por distorções e confusões sérias nas discussões recentes acerca da relação entre
as tradições religiosas do mundo. Ressalta, por exemplo, que tanto o budismo
quanto o confucionismo apresentam elementos "religiosos" —mas que isso não
significa necessariamente que podem ser categorizados como "religiões". Muitas
"religiões" são compreendidas mais adequadamente como movimentos culturais
com elementos religiosos.
A idéia de um conceito universal de religião, do qual religiões individuais são
subconjuntos, parece ter surgido no tempo do futurismo. Usando uma analogia
biológica, a suposição da existência de um gênero da religião, do qual as
religiões individuais são espécies, é uma idéia extremamente ocidental, sem
nenhum paralelo real fora de sua cultura — exceto da parte daqueles que foram
educados no Ocidente e assimilaram uraliscriminadamente, as suas
pressuposições.

O que dizer, então, das abordagens cristãs à compreensão da relação entre o


Cristianismo e outras tradições religiosas? De que maneira essas tradições
podem ser entendidas dentro do contexto da crença cristã na vontade salvadora
universal de Deus, revelada por meio de Jesus Cristo? É preciso enfatizar que a
teologia cristã trata da avaliação de outras tradições religiosas do ponto de vista
do próprio Cristianismo. Essa reflexão não é dirigida aos membros de outras
tradições religiosas ou seus observadores seculares, nem procura granjear sua
aprovação.

Três abordagens amplas podem ser identificadas:

1. O parti, ularismo, de acordo como qual somente aqueles que


ouvem e atendem ao evangelho cristão podem ser salvos.
2. O inclusivismo, segundo o qual, apesar do Cristianismo
representar a revelação normativa de Deus, a salvação ainda é
possível para aqueles que pertencem a outras tradições religiosas.
3. O pluralismo, de acordo com o qual todas as tradições religiosas
da humanidade são caminhos igualmente válidos que conduzem ao
mesmo cerne de realidade religiosa.

Trataremos de cada utriz, dessas abordagens individualmente.

A abordagem particulariçta

É possível que a declaração mais influente dessa posição se encontre nos


escritos de Hendrik Kraemer (1888 — 1965), especialmente em sua
obra Christian Message in a Non-Chrimian ftarld (1938). Krierner enfatiza
que "Deus revelou o Caminho, a Verdade e a Vida em Jesus Cristo e
deseja que isso seja conhecido por todo o mundo". Essa revelação é sai
generis; é uma categoria distinta e não pode ser colocada lado a lado
com as idéia de revelação encontrada em outras tradições religiosas.

Nesse ponto, pode-se discernir certa variação de opiniões dentro dessa


abordagem. O próprio Kraemer parece sugerir que existe um conhecimento
verdadeiro de Deus fora de Cristo ao falar de Deus resplandecendo "de
maneira fragmentada e imperfeita na razão, na natureza e na História". A
questão aqui é se esse conhecimento se encontra disponível somente por
meio de Cristo, ou se Cristo fornece apenas a estrutura singular por meio da
qual esse conhecimento pode ser discernido e interpretado em algum outro
lugar.
Alguns particulartisttis (como Karl Barth) adotam a posição de que não é
possível conhecer a Deus sem Cristo; outros (como Kraemer) acreditam
que Deus se revela de várias maneiros e em vários lugares — mas insistem
que essa revelação só pode ser interpretada corretamente e conhecida em
sua verdadeira essência, à luz da revelação definitiva de Deus em Cristo.
(Encontramos aqui paralelos importantes coma discussão sobre o
conhecimento natural e revelado de Deus.)

E quanto aqueles que não ouviram o evangelho de Cristo? O que acontece


com eles? Os partícularistas não estão negando a salvação àqueles que não
ouviram falar de Cristo — ou que, tendo ouvido, o rejeitaram? Trata-se de uma
crítica que o particularistra, sofre com freqüência. Assim, argumentando
do ponto de vista pluralista, John Hick sugere que a doutrina de que a
salvação é possível somente através de Cristo é incoerente com a
crença na vomade salvadora universal de Deus. No entanto, é fácil mostrar
que esse não é o caso ao considerar o ponto de vista de Karl pariu que foi,
inquestionavelmente, o defensor mais sofisticado dessa posição no século
20.

Barth declara que a salvação só é possível por meio de Cristo. Ainda assim, ele insiste
na vitória escatológica suprema da graça sobre a incredulidade —isto é, no fim da
história. A seu tempo, a graça de Deus triunfará completamente e todos crerão em
Cristo. Esse é o único caminho para a salvação — mas é um caminho que, pela
graça de Deus, é eficaz para todos. Na visão de Barth, a particularidade da
revelação de Deus por meio de Cristo não é negada pela universalidade da
salvação.

A abordagem inclusiva

O defensor mais expressivo desse modelo é o escritorjesuíta Karl Rahner. No quinto


volume de sua obra Therlogical Investigations [Investigações teológicas], Rahner
desenvolve quatro teses, apresentando a idéia de que não apenas indivíduos não-
cristãos podem ser salvos, mas que as tradições religiosas não-cristãs em geral
podem ter acesso à graça salvadora de Deus em Cristo.

1. O Cristianismo é areligiart absoluta, fundada no acontecimento singu-


lar da revelação própria de Deus em Cristo. Mas essa revelação se deu num
ponto específico da História. Aqueles que viveram antes desse ponto ou que ainda
não ouviram falar desse acontecimento parecem ser excluídos da salvação — uma
idéia contrária à vontade salvadora de Deus.
2. Por esse motivo, apesar de seus erros e fraquezas, as tradições
religiosas não cristãs são válidas e capazes de mediara graça salvadora de Deus ate
que seus membros venham a conhecer o evangelho. Depois que o evangelho é
proclamado aos seguidores dessas religiões não-cristãs, elas deixam de ser le-
gitimas do ponto de vista da teologia cristã.
3. Os membros fiéis de tradições religiosas não-cristãs devem ser consi-
derados, portanto, "cristãos anônimos".
4. Outras tradições religiosas não serão substituídas pelo Cristianismo.
O pluralismo religioso continuará a ser uma característica da existência humana.

Titularemos em mais detalhes das três primeiras teses. Fica claro que Rahner
afirma categoricamente o princípio de que a salvação só pode ser obtida por meio
de Cristo, conforme este é interpretado pela tradição cristã. "O Cristianismo se
considera a religião absoluta, intencionada para todas as pessoas e que não pode
reconhecer o direito igual de nenhuma outra religião." No entanto, Rahner
complementa isso com uma ênfase sobre a vontade salvadora universal de
Deus. Deus deseja que todos sejam salvos, mesmo que nem todos conheçam a
Cristo: "De algum modo, deve ser possível a todas as pessoas serem membros
da igreja".
Por esse motivo, Rahner argumenta que a graça salvadora deve se encontrar
disponível fora dos limites da igreja e, assim, em outras tradições religiosas.
Ele se opõe energicamente àqueles que adotam soluções extremamente
inflexíveis, insistindo que ou a tradição religiosa vem de Deus ou é
inautêntica e não passa de invenção humana. Enquanto ]soraerner
argumenta que as tradições religiosas não-cristãs não passavam de criações
humanas visando a justificação própria, Rahner argumenta que essas
tradições podem muito bem incluir elementos da verdade.
Rahner justifica essa sugestão considerando a relação entre o Antigo e o Novo
Testamento. Ainda que, estritamente falando, o Antigo Testamento represente a
perspectiva de uma religião não-cristã (o Judaísmo), os cristãos podem lê-lo e
discernir nele certos elementos que continuam sendo válidos. O Antigo
Testamento é avaliado à luz do novo e, em decorrência disso, certas práticas
(como as leis alimentares) são consideradas inaceitáveis e são descartadas,
enquanto outras (como a lei moral) são mantidas. Rahner argumenta que a mesma
abordagem pode e deve ser adotada no caso de outras religiões.
A graça salvadora de Deus se encontra, portanto, disponível por meio de tradições
religiosas não-cristãs, apesar das deficiências destas. De acordo com Rahner,
muitos dos seguidores dessas tradições aceitaram a graça sem estar inteiramente
cientes disso. É por esse motivo que Rahner introduz a designação "crismes
anônimos" para se referir àqueles que experimentaram a graça divina sem
necessariamente saber disso.
Essa designação foi intensamente criticada. John Hick, por exemplo, sugeriu
que ela é paternalista e oferece "uma posição honorária concedida
unilateralmente a pessoas que não expressaram nenhum desejo de recebê-la".
Ainda assim, a intenção de Rahner é dar espaço para os efeitos reais da graça
divina na vida daqueles que pertencem a tradições não-cristas. O acesso pleno à
verdade acerca de Deus (conforme esta é entendida dentro da tradição cristã)
não é, necessariamente, uma precondição para o acesso à graça salvadora de
Deus.
Rahner não permite que o Cristianismo e outras tradições religiosas sejam
tratados com igualdade nem como casos particulares de um mesmo encontro com
Deus. Para Rahner, o Cristianismo e Cristo têm um stanto, exclusivo, negado a
outras tradições religiosas. Fica a questão: essas outras tradições religiosas podem
dar acesso à mesma graça salvadora que é oferecida pelo Cristianismog A
abordagem de Rahner lhe permite sugerir que as crenças de tradições religiosas
não-cristãs não são necessariamente verdadeiras e, ao mesmo tempo, reconhecer que
podem, não obstante, mediara graça de Deus pelo estilo de vida que produzem —
como o amor abnegado ao próximo.

A abordagem pluralista
O expoente mais expressivo da abordagem pluralista às tradições religiosas é John
Hick (nascido em 1922). Em sua obra God and the Univerye offailhs [Deus e o
universo das fés] (1973), Hick argumenta em favor da necessidade do deslocamento
de um abordagem centrada em Cristo para uma abordagem centrada em Deus.
Descrevendo essa mudança como uma "revolução copemicana", Hick declarou
que era necessário passar "do dogma de que o Cristianismo se

encontra no centro para, a consciência de que Deus está no centro e de que


todas as religiões... inclusive a nossa, servem-no e giram em torno dele".
Desenvolvendo essa abordagem, Hick sugere que a característica da natureza
de Deus essencial para a questão das outras fés é sua vontade salvadora
universal. Se Deus deseja que todos sejam salvos, é inconcebível que ele
se revelaria de um modo que apenas uma pequena parcela da humanidade
seria salva. Vimos, porém, que essa visão não é uma característica obrigatória
das abordagens particulansta ou inclusiva. No entanto, Hick chega à
conclusão de que é necessário reconhecer que todas as religiões levam ao
mesmo Deus. Os cristãos não têm nenhum acesso especial a Deus – ele se
encontra universalmente disponível através de todas as tradições religiosas.
Sua sugestão apresenta alguns problemas. Fica bastante claro, por exemplo,
que as tradições religiosas do mundo são radicalmente diferentes entre si
em suas crenças e práticas. Hick trata dessa questão sugerindo que essas
diferenças podem ser interpretadas em termos de "tanto uma coisa quanto
outrit, e não de "uma coisa ou outra". Tramar-se de percepções
complementares, e não contraditórias, da realidade divina única. Essa
realidade está no ceras, de todas as religiões; todavia, "suas experiências
diferentes da realidade, interagindo ao longo dos séculos com diferentes
maneiras de pensar em diferentes culturas levaram a uma distinção cada
vez maior e a uma elaboração contrastante". (Essa idéia é bastante
parecida com a proposta de escritores deístas de uma "religião racional
universal da natureza" que se corrompeu com o passar do tempo.)
Semelhantemente, Hick se depara com dificuldades no que diz respeito às
tradições religiosas não-teístas como o hinduísmo advititui ou o budismo
theravada que não reservam nenhum lugar pua um deus.

Essas dificuldades são relacionadas às características observadas das


tradições religiosas. Em outras palavras, as crenças das religiões não-
cristãs tomam difícil aceitara idéia de que todas falam do mesmo Deus.
Entretanto, resta uma preocupação teológica mais fundamental: Hick está,
de fato, falando do Deus cristão? Uma convicção cristã central – de que Deus
se revela definitivamente em Jesus Cristo – foi colocada de lado a fim de
permitir que Hick prossiga com sua proposta. Ele argumenta que está apenas
adotando uma abordagem teocêntrica no lugar de uma abordagem
Cristocêntrica. Contudo, a insistência cristã de que Deus é conhecido
normativamente por meio de Cristo indica que um conhecimento
autenticamente cristão de Deus é derivado através de Cristo. Para vários
críticos, a forma como Hick coloca Cristo de lado como ponto de referência
corresponde a abrir mão do direito de falara partir de uma perspectiva cristã.
É bem provável que a discussão sobre a visão cristã da relação do Cristianismo
com outras tradições religiosas continue por um bom tempo, alimentada pelo
crescimento da diversidade cultural na sociedade ocidental. Tudo indica que
nos anos por vir continuaremos encontrando reflexos dos três pontos de
visa acima em textos cristãos sobre esse assunto.

Estudo de caso 4.9 O método teológico no período moderno

A questão do ponto de partida correto para a teologia tem gerado interesse


considerável no período moderno. O "método teológico" pode ser descrito
como "uma compreensão do ponto de partida de sua teologia e dos
instrumentos que você usa para elaborá-la". As abordagens clássicas à
teologia—como, por exemplo, aquelas encontradas nos escritos de
Agostinho, Tomás de Aquino e Calvino — se baseiam com frequência em
suposições acerca da natureza da revelação e da natureza humana que se
mostram problemáticas para alguns escritores modernos. É preciso observar
que nem todos os escritores modernos experimentam essa dificuldade:
vários escritores teológicos modernos consideram perfeitamente possível
usar os métodos e abordagens básicos encontrados nesses escritores mais
antigos. A seguir, investigaremos várias abordagens ao método teológico que
tocam as questões do período moderno.

O uso da experiência: Schleiermacher e Tilitich

Para muitos escritores, o Burrutrismo levantou algumas questões funda-


mentais para a teologia cristã. Jesus de Nazaré era visto simplesmente
como um bom mestre religioso que ensinou algumas idéias coerentes com
a razão humana. Jesus não precisava ter ensinado tais coisas, uma vez
que poderiam ter sido constatadas por qualquer pessoa racional. O
Ilutrimismo colocou em dúvida, portanto, o caráter distintivo de Jesus de
Nazaré. Se Jesus apenas ensinou aquilo que poderia ter sido descoberto
pela razão, que papel distintivo ele teve?
O importante teólogo alemão F. D. E. Schleiermacher deu aquela que cos-
rutruai ser considerada uma das principais respostas a esse desafio.
Schleiermacher procurou preservara identidade distinta do Cristianismo
argumentando que ele media uma experiência ou sentimento de
"absoluta dependência" de Deus. Essa experiência foi mediada através
de Jesus de Nazaré, estendendo-se até a experiência contemporânea de
piedade cristã. Assim, o método teológico de Schleiermacher envolve um
apelo à experiência presente da comunidade cristã e uma interpretação
dessa experiência em termos do papel mediador de Jesus.

A primeira declaração do método teológico distintivo de Schleiermacher pode ser


encontrada em sua obra On Religion: Speeches to its Cultured Despisers,
[Acerca da religião: discursos aos seus contemptores cultos], publicada
anonimamente em 1799. A obra desenvolve uma defesa do Cristianismo baseada,
em parte, no argumento de que a religião é uma sensação ou consciência vívida de
um todo maior, do qual o indivíduo é apenas uma parte inteiramente dependente.
De acordo com ele, a essência da religião se encontra "num elemento
fundamental, distinto e integrativo da vida e da cultura humana". Schiciemarber
identifica isso como o sentimento de ser total e absolu[ameule dependente de algo
infinito que, não obstante, é revelado por meio das coisas finitas. A refigião em geral
(e não o Cristianismo em particular) é elogiada como o contexto necessário para a
ciência e a arte, sem as quais a cultura humana se vê desnecessariamente
empobrecida.

Em sua obra posterior The Christian Faint, [A fé cristã], Schleiermacher enfatiza


que a fé cristã não é, primeiramente, conceitual; antes, as doutrinas devem ser
consideradas expressões secundárias de sua verdade religiosa primária, a
experiência da redenção. A piedade cristã pode ser considerada a base fundamental
da teologia cristã; no entanto, não se deve entender com isso a piedade do
indivíduo, mas sim a piedade corporativa da igreja. A essência dessa piedade
não é um princípio racional ou moral, mas sim um "sentimento". A consciência
humana geral de dependência é, de acordo com Setileientracher, reconhecida e
interpretada dentro do contexto da fé cristã como uma sensação de dependência
total de Deus. Esse "sentimento de dependência absoluta" consumi o ponto de
partida da teologia cristã. Conforme A. E. Biedermann comentou posteriormente,
pode-se considerar que na teologia de Schleientracher os sentimentos profundos
da humanidade são sujeitados â investigação crítica. O intelecto humano reflete
sobre o sentimento humano e, com isso, o interpreta. A introspecção crítica revela
que a subjetividade humana é bipolar, girando em torno da consciência do próprio
eu e da consciência do outro, numa relação de coexistência. Para Seifleiemacher, a
doutrina cristã permite a compreensão dessa experiência.

Esse apelo à experiência foi desenvolvido no século 20 por Paul Tillich, cujo
"princípio de correlação" pode ser considerado uma extensão da abordagem de
Schleiermacher. O objetivo de Tillich era tomar o Cristianismo relevante num
período da cultura ocidental em que ele parecia estar perdendo sua

credibilidade pública. Como Schleiermacher antes dele, Tillich procurou


tomar o Cristianismo aceitável para "seus contemptores cultos". Para
Tillich, as eu]- turas humanas levantam perguntas que a teologia cristã
pode responder.

4.9.1 Paul Tillich: Acerca da correlação

Ao usar o método de correlação, a teologia sistemática procede da


seguinte maneira: faz uma análise da situação humana da qual surgem
as questões existenciais e demonstra que os símbolos usados na
mensagem cristã são as respostas para essas questões... A análise
da situação humana emprega conteúdos disponibilizados pela auto-
interpretação criativa do homem em todas as esferas da cultura. A
filosofia contribui, mas a poesia, o teatro, a literatura, a psicologia
terapêutica e a sociologia também têm sua parte. O teólogo
organiza esses conteúdos em relação à resposta dada pela
mensagem cristã. À luz dessa mensagem, ele pode fazer uma
análise existencial mais penetrante do que aquela feita pela maioria
dos filósofos. Ainda assim, continua sendo uma análise filosófica. A
análise existencial, incluindo o desenvolvimento das questões
implícitas na existência, é uma tarefa filosófica, mesmo que seja
realizada por um teólogo e mesmo que o teólogo seja um
reformador como Calvino. A diferença entre o filósofo que não é
teólogo e o teólogo que trabalha como um filósofo na análise da
existência humana é apenas que o primeiro tenta apresentar uma
análise que será parte de um universo filosófico mais amplo,
enquanto o último tenta correlacionar o conteúdo de sua análise
com os conceitos teológicos derivados da fé cristã... A mensagem
cristã fornece a resposta para as questões implícitas da existência
humana. Essas respostas se encontram nos acontecimentos
reveladores nos quais o Cristianismo é baseado e são extraídas
pela teologia sistemática das fontes, através do meio, sob a norma.
Seu conteúdo não pode ser derivado das questões, isto é, de
uma análise da existência humana. Elas são "proferidas" à
existência humana de um lugar além desta. De outro modo, não
seriam respostas, pois a questão é a existência humana em si. Mas
a relação é mais complexa do que isso, uma vez que se trata de uma
correlação. Há uma dependência mútua entre a questão e a
resposta. No que se refere ao conteúdo, as respostas cristãs
dependem dos acontecimentos revelatórios nos quais elas surgem;
no que se refere à forma, são dependentes da estrutura das
perguntas que respondem. Deus é a resposta para a questão
implícita na finitude humana.

Observe especialmente a ênfase de Tillich sobre a importância do


estudo da cultura e experiência humana. Uma compreensão correta
da cultura humana permite ao teólogo identificaras questões para as
quais o Cristianismo oferece

as respostas. Apesar de ficar claro que a intenção de T illich não é que a


cultura humana determine as respostas fornecidas (ver especialmente seus
comentários nas linhas 19 – 22), seus críticos argumentam que Tillich
apresenta uma apologia desprovida de fundamento teológico e, portanto,
permite que a cultura leve vantagem. No entanto, tudo indica que essa
não era a intenção de Tillich.

K"1 Rahner: fentimenoslogia transcendental

Uma nova desenvolução importante da teologia católica romana moderna


começou com Joseph Maréchal, um teólogo jesuíta belga. Em sua obra
I n on o of Departure for Metaphysics [Ponto de partida para a metafísica],
Maréchal argumenta que a base para as idéias de Tomás de Aquino precisa
ser relacionada aos movimentos filosóficos modernos, especialmente a
metafísica transcendente de Kant. Rahner construiu sobre essa fundação e
desenvolveu a "fenomenologia transcenderas]" que é associada ao seu
nome. Não é fácil explicar sua abordagem. Contudo, sua importância foi
tamanha que seria inaceitável ignorá-la, apesar de sua dificuldade. Segue-se
um relato simplificado da abordagem de Rahner.
Rahner chamou a atenção para a importância do anseio humano básico de
transcender – isto é, ir além – as limitações da natureza humana. Os seres
humanos têm consciência de uma sensação de haverem sido criados para
mais do que aquilo que são agora, ou mais do quejamais; poderão alcançar
com suas próprias capacidades. A revelação cristã fornece esse "mais"
para o qual a experiência humana aponta. Em sua obra Foundations of lhe
Christìan Faith [Fundamentos da fé cristã] (1978). Rahner relaciona várias
maneiras pelas quais essa "transcendência" se revela; trataremos de duas:

1. O ato de conhecer um objeto ou desejar uma ação individual


nos faz ver que conhecer e desejar não são ações limitadas a um objete,
mas sim ações ilimitadas. Ao conhecer ou desejar uma coisa específica e
limitada, nos conscientizamos das possibilidades ilimitadas além da mesma-
Todavia, essa consciência da ausência de limites é mediada por uma
situação limitada.
2. A busca humana por significado nos apresento um paradoxo, no
sentido de que percebemos que, por um lado, somos radicalmente finitos e, por
outro, temos questões ilimitadas. Apesar de sermos finitos e limitados,
experimentamos a esperança de uma plenitude absoluta de significado.
No final, o objetivo de Rahner é mostrar claramente que, apesar de sermos
limitados e finitos, possuímos uma percepção intensa de algo que ultrapassa
nossas limitações pessoais ou sumacionais. Para Rahner, essa consciência tem
relevância e potencial teológico importantes e conduz à compreensão de que o
conceito cristão de Deus se relaciona de modo fácil e natural a essa visão da
situação humana. Assim, Rahner atribui à antropologia uma importância
fundamental e coloca a discussão da natureza humana (inclusive da consciência
humana de um anseio transcendente) no início de Fouzidarions of da, Christian
Faith [Fundamentos da fé cristã]. A busca humana pelo significado supremo
levanta a questão de Deus e só é satisfeita quando Deus é encontrado. Apesar do
ponto de partida de Rahner ser artropocêntrico, sua intenção é fundamentalmente
teocêntrica. Pode-se contrastar isso com os primeiros escritos de Karl Barth que
rejeita completamente qualquer ponto de partida antropooêrarico para a tenlogia.
Investigaremos essas idéias iniciais de Barth a seguir.

Karl Barth: respondendo à revelação

Há um consenso de que as origens de um dos momentos decisivos da teologia


moderna se encontram no comentário de Karl Barth à epístola aos Romanos,
lançado em 1919. Talvez seja mais apropriado considerar essa obra a parteira no
nascimento de uma tendência teológica, e não a sua causa. Evidências
importantes apontam para um acúmulo de insatisfação com a teologia liberal ao
longo do período que culminou com a Primeira Guerra Mundial, sendo que a obra
de Barth pode simplesmente ter desencadeado uma reação antiliberal que já estava
se assomando. O comentário sobre romanos costuma ser considerado uma obra
profética, e não teológica. Ao que parece, o impacto maior se deu com a publicação
da segunda edição que foi extensamente reescrita (1922); no entanto, até mesmo a
primeira edição causou certa sensação.

Ao longo dessa obra, Barth se vale de idéias do filósofo dinamarquês Soren


Kierkegaard pua ressaltar a "distinção qualitativa infinita" entre Deus e os seres
humanos. Barth enfatiza a santidade total de Deus e seu distanciamento da
humanidade em geral e, particularmente, da cultura e religião humanas. Deus
"contrasta com a humanidade e tudo o que é humano numa distinção qualitativa
infinita e não deve Jamais ser considerado idêntico a qualquer coisa

que designamos, experimentamos, concebemos ou adoramos como Deus". Deus não


pode e não deve ser entendido ou imaginado em termos; humanos, como se fosse
um tipo de projeção da cultura, razão ou emoção humanas. Barth enfatiza
repetidamente a imensidão do abismo que separa Deus da humanidade e a im-
possibilidade de transpor esse abismo por iniciativa humana. Barth modifica a
referência famosa de G E. Lessing â "vala enorme e feia" da História, a imagem
alpina de uma fenda entre o tempo e a eternidade. Deus é totaliter aliter, total e
absolutamente diferente de nós. De que maneira, então, pode acorrera mediação
entre Deus e a humanidade? A resposta de Barth, declarada no prefácio da se-
gunda edição do comentário a Romanos (1922) é expressiva:

Se tenho um sistema, este se restringe a manter em mente, tanto quanto possível,


aquilo que Yierkegaard chamou de "distinção qualitativa infinita" ente o tempo e a
eternidade em seus aspectos negativos e positivos. "Deus está no céu e você está
na teres". para num, a relação entre esse Deus e essa pessoa, a relação entre essa
pessoa e esse Deus é, em resumo, o tema da Bíblia e a totalidade da filosofia. Os
filósofos cha- nano isso de crisehumana de conhecimento da causa primária;a
Bmha , é Jesus Comia nessa encruzilhada.
Trata-se de uma abordagem radicalmente distinta daquela adotada por
Schleiermacher e seus sucessores. Qualquer possibilidade de interpretar o re-
lacionamento de Jesus com Deus em termos semelhantes àqueles do protestantismo
liberal (e.g., na cultura ou na experiência humanas) é rejeitada. A consciência
religiosa humana só pode ser a consciência de nosso abandono por Deus. Deus
permanece desconhecido e incompreensível, e tudo o que pode ser visto da
realidade desse Deus desconhecido na história do mundo ou de Jesus de Nazaré
são seus efeitos, e não a realidade em si.
Essa abordagem costuma serchamada de "dialética", uma vez que enfatiza a
descontinuidade radical entre o divino e o humano. O próprio Barth modificaria
sua posição em escritas posteriores como Church Doginaticx [Teologia
dogmática eclesiástica]. Não obstante, seus textos radicais desse período inicial são
considerados por muitos extremamente relevantes para o desenvolvimento do
método teológico do século 20. A princípio, Barth acreditava que a teologia
consistia em respondera uma revelação sobre a qual não temos nenhum controle,
e não a explorara experiência ou cultura humanas.

Pós-liberalismo: comunidade e teologia


Uma desenvolução importante na teologia norte-americana desde cerca de 1980 foi
o surgimento da "escola de Yale" ou "pós-liberalistrio-. Enquanto os escritores
liberais mais antigos argumentavam com base na tradição de Scitleiermacher e
Tillich que a teologia podia ser fundamentada nas realidades universais da
experiência humana, o pós-liberalismo enfatiza a importância de comunidades
específicas. Não existe nenhuma experiência comum a toda a

humanidade, uma vez que a experiência é moldada pelas crenças e


expectativas de uma comunidade. Assim, praticara teologia significa ser
parte de uma comunidade cristã e aprendera linguagem e ethos
distintivo dessa comunidade. Dentre os representantes mais
expressivos dessa escola de pensamento, deve-se dar atenção
especial a George Lindbeck e Stanley Hauerwas. Trataremos a seguir
da ênfase de Lindbeck sobre aquilo que ele chama de abordagem
"cultural-lingüística" à teologia, uma abordagem que reconhece a
importância de uma comunidade para a reflexão teológica.

4.9.2 George Lindbeck: Acerca da comunidade e da teologia

Em termos mais técnicos, pode-se considerar uma religião um tipo


de estrutura ou meio cultural e 1 ou lingüístico que dá forma à toda a
vida e pensamento. Serve, em certo sentido, de a priori kantiano,
apesar de, neste caso, o a priori ser um conjunto de aptidões
adquiridas que poderiam ser diferentes. Não diz respeito,
primeiramente, a uma série de crenças acerca da verdade e do bem
(apesar de ser possível que envolva tais crenças), ou a um
simbolismo expressivo de atitudes, sentimentos ou opiniões (que, no
entanto, serão gerados). Antes, é semelhante a uma língua que
possibilita a descrição de realidades, a formulação de crenças e a
experiência de atitudes, sentimentos e impressões internas. Como
uma cultura ou língua, é um fenômeno comunitário que molda as
subjetividades dos indivíduos, não consistindo, fundamentalmente, na
manifestação dessas subjetividades... Assim, o modelo cultural-
lingüístico faz parte de uma visão que enfatiza até que ponto a
experiência humana e formada, moldada e, em certo sentido,
constituída por formas culturais e lingüísticas. Há inúmeros
pensamentos que não podemos pensar, sentimentos que não
podemos ter e realidades que não podemos percebera menos que
aprendamos a usar o sistema apropriado de símbolos. Ao que
parece, como no caso de Helen Keller e de crianças
supostamente criadas por lobos, não podemos colocar em prática
nossas habilidades especificamente humanas de pensamento,
ação e sentimento a menos que adquiramos algum tipo de
linguagem. Semelhantemente, conforme se argumenta, tomar-se
religioso implica em se tornar apto na linguagem, no sistema simbólico
de determinada religião. Tornar-se cristão inclui aprender a história
de Israel e de Jesus bem o suficiente para, interpretar e experi-
mentar a si mesmo e seu mundo nesses termos.

Observe especialmente a importância que Lindbeck atribui à tradição.


A maneira como uma pessoa pensa é determinada pela tradição dentro
da qual ela se encontra. Isso contrasta vividamente coma idéia de
Kant do sujeito que pensa isoladamente, idéia esta que foi fortemente
criticada por escritores como

Alasdair Mclntyre. Para Lindbeck, "a experiência humana é formada,


moldada e, em certo sentido, constituída por formas culturais e lingüísticas"
(linhas 12 –13). Essas formas lingüísticas e culturais são um aspecto da
tradição comunitária dentro da qual todos os seres humanos se encontram.
A tradição cristã é uma tradição distinta, com sua própria visão de suas
normas, fontes e valores. Para Lindbeck, a teologia cristã é, portanto,
praticada dentro da tradição cristã. Inclui "aprendera história de Israel e de
Jesus bem o suficiente para interpretar e experimentar a si mesmo e seu
mundo nesses termos" (linhas 20 – 21). Enquanto Schleiermacher apelou
para a experiência e Tillich para a cultura, Lindbeck argumenta que o ponto de
partida correto para a teologia é a própria tradição cristã.

Teologia da libertação: a teologia como práxis


Uma das características mais distintivas da teologia da libertação latino-
americana é sua insistência de que o ponto de partida da teologia
verdadeiramente cristã deve ser uma análise de uma situação
sociopolítica concreta. O objetivo da análise teológica é identificar padrões de
opressão, exploração e alienação resultantes da desigualdade econômica e
social. No entanto, nem todos os indivíduos se encontram numa posição
igualmente apropriada de fazer essa análise. Outra das características
distintivas da teologia da libertação latino-americana é sua priorização dos
pobres.
A história do Cristianismo desde o encerramento do Novo Testamento dá
evidências de uma distorção dos conceitos cristãos críticos em função da
situação econômica e social de seus intérpretes. A fim de restaurara
teologia cristã a um estado de autenticidade, a tradição teológica cristã deve
ser interpretada do ponto de vista da experiência dos oprimidos.
A teologia da libertação dá ênfase considerável ao conceito de práxis. Esse
termo originário da teoria marxista denota a idéia de um, "modo de vida", uma
"prática" que deve ser contrastada claramente coma teoria, uma forma
abstrata e teórica de entendera teologia cristã. A teologia cristã diz respeito às
maneiras como as pessoas pensam. A teologia deve se envolver com
idéias, mas também deve transformar vidas individuais e sociedades.

4.9.3 Gustavo Gutiérrez: Acerca da teologia como práxis

A teologia deve ser uma reflexão crítica sobre a humanidade, sobre


princípios humanos básicos. Somente com essa abordagem a teologia
será um discurso sério, consciente de si mesmo, inteiramente de posse de
seus elementos conceituais. Contudo, ao falar da teologia como reflexão
crítica, não estamos nos referindo exclusivamente a esse aspecto
epistemológico. Também estamos nos referindo a uma atitude clara e crí-
tica em relação às questões econômicas e socioculturais na vida e refle-
xão da comunidade cristã. Desconsiderar estas questões é o mesmo que
enganar a si mesmo e aos outros. Acima de tudo, porém, usamos esse
termo para expressara teoria de uma prática definida. Nesse caso, a reflexão
teológica seria, necessariamente, uma crítica à sociedade e â Igreja, no
sentido de que são chamadas e tratadas pela Palavra de Deus; seria uma
teoria crítica praticada à luz da Palavra aceita pela fé e inspirada por um
propósito prático – e, portanto, indissoluvelmente ligada à práxis histórica...
Essa tarefa critica é indispensável. A reflexão à luz da fé deve ser a
companheira constante da atuação pastoral da Igreja. Ao manter os acon-
tecimentos históricos em sua devida perspectiva, a teologia ajuda a proteger
a sociedade e a Igreja de considerarem permanente aquilo que é apenas
temporário. Assim, a reflexão critica sempre desempenha o papel inverso
de uma ideologia que racionaliza e justifica determinada ordem social e
eclesiástica. Por outro lado, ao apontar para as fontes da revelação, a
teologia ajuda a norteara atividade pastoral colocando-a dentro de um
contexto mais amplo e, desse modo, ajudando a evitar o ativismo e o
imediatismo. A teologia como reflexão critica exerce, portanto, uma função
libertadora para a humanidade e para a comunidade cristã, preservando-
as do ficifichismo e da idolatria, bem como do narcisismo pernicioso e
depreciativo. Entendida desse modo, a teologia tem um papel necessário
e permanente na libertação de todas as lemas de alienação religiosa–que,
com freqüência, é promovida pela própria instituição eclesiástica quando
esta serve de empecilho para uma abordagem autêntica à Palavra do
Senhor.

Observe especialmente a maneira como Gutórrez considera que a teologia leva ao


envolvimento com "questões econômicas e socioculturais na vida e reflexão da
comunidade cristã". A teologia não se refere simplesmente a idéias; diz respeito ao
envolvimento com as questões sociais, econômicas e políticas dentro e fora da
igreja. A teoria e a práxis são indissoluvelmente ligadas, apesar de parecer haver
uma divergência entre os teólogos da libertação quanto a essa relação: se a teoria
simplesmente informa a práxis ou se a práxis determina a teoria. Para Gutiérrez,
a teologia permite evitar que a igreja fique presa em formas transitórias e
alienastes de pensar e viver e lhe dá a possibilidade de oferecer uma crítica
informada e justificada da sociedade na qual se encontra. A identidade e ação
eclesiásticas se baseiam, portanto, na reflexão teológica crítica; no entanto, essa
reflexão deve levara algum tipo de ação.

Pela análise sucinta apresentada neste estudo de caso. fica claro que várias ou
diferentes abordagens ao método teológico podem ser encontradas no
pensamento cristão moderno. Algumas enfatizam a experiência individual,
enquanto outras ressaltam a importância das idéias e valores mediados pela
tradição. Trata-se de uma diversidade frustrante, especialmente para alguém
que esteja tentando lecionar teologia: é extremamente difícil conseguir descre-
ver e explicaras diferenças dentro da teologia moderna neste ponto da História. No
entanto, esperamos que este levantamento sucinto de algumas das abordagens
tenha dado ao leitor pelo menos uma idéia das questões envolvidas.

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