Professional Documents
Culture Documents
1
Texto do 1° Capítulo da Tese intitulada : Sofrimento Social e violência na Imprensa Popular: a
Folha de Pernambuco (1998-2002). João Pessoa: PPGS/UFPB, 2005.
2|P Á G I N A MARIA CRISTINA ROCHA BARRETO
sentimentos e emoções (RAWLS, s/d). Estas práticas são fundantes da sociedade porque,
sendo revestidas por um caráter sagrado, criam forças religiosas que se espalham e irradiam
com facilidade entre as pessoas e as coisas que com elas entram em contato e são
percebidas como exteriores aos indivíduos. No entanto, não estão associadas nem se
prendem ao seu representante – pessoa ou objeto. Elas lhe são acrescentadas. Afirma que
“elas são apenas forças coletivas hipostasiadas, isto é, forças morais; são feitas das idéias e
dos sentimentos que o espetáculo da sociedade desperta em nós, não das sensações que
nos vêm do mundo físico” (DURKHEIM, 1996:344).
Embora queira estabelecer uma base empírica para os sentimentos gerados
coletivamente, não centra sua atenção numa somatização desses sentimentos, mas naquilo
que se cria na mente do indivíduo quando em reunião e que é percebido como noções de
força moral, totalidade e causalidade. No desenvolvimento das práticas religiosas, os
indivíduos experimentam sentimentos de bem-estar, respeito e dependência, o que
compreende a força moral; a força, juntamente com os sentimentos de criação, força moral
e unidade gerariam a causalidade; e o sentimento do sagrado com a força moral criariam as
noções de tempo e espaço.
As forças sociais podem ser sentidas, pois são forças geradas pelo grupo na
encenação de suas práticas reais e concretas e, por sua vez, criam emoções que formam o
indivíduo (o aspecto individual do ser social), que não existiria de outra maneira. Durkheim
destaca que as emoções não são sentidas com os cinco sentidos separadamente, mas são
percebidas como um todo.
Ter emoções depende da encenação cooperativa de práticas sociais que cria forças
sociais. A sociedade, portanto, é fonte de emoções, pois o núcleo da vida emocional e
intelectual dos indivíduos são estas forças criadas social e coletivamente. Talvez por serem
tão fundamentais e serem uma base sobre a qual se funda a sociedade, é que Mauss (2003a)
descreveu uma outra categoria do entendimento, não citada por Durkheim – a noção de
pessoa e de eu –, como categoria inata.
Para Durkheim, o objetivo de certas práticas religiosas, especificamente, é o de criar
emoções que constituem as categorias de entendimento fundamentais. Argumenta em favor
da relação entre as práticas concretas e os sentimentos particulares que são gerados
necessariamente nas mentes de todos os indivíduos que delas participam simultaneamente.
Essa idéia é confirmada por Mauss quando afirma que todos os tipos de expressões orais dos
sentimentos são essencialmente fenômenos sociais e não exclusivamente psicológicos ou
fisiológicos. E mais ainda, a expressão desses sentimentos têm um formato que é
socialmente aceito (MAUSS, 1979, p. 148).
Para Mauss:
O culto religioso, então, teria como objetivo pôr os indivíduos em contato com as
4|P Á G I N A MARIA CRISTINA ROCHA BARRETO
energias superiores e fazê-las parte de suas vidas interiores. A constante repetição do culto
renovaria os efeitos dessas forças morais, suscitando “impressões de alegria, de paz interior,
de serenidade, de entusiasmo”. O culto não sendo mais que um sistema simbólico, signos
através dos quais a fé seria exposta e o meio de sua renovação. São esses sentimentos que
Durkheim (1996, p. 460) se recusa a ver como ilusórios, declarando que seu valor não seria
menor que o das experiências científicas.
Os participantes dessas práticas sentem dentro de si os efeitos do ritual, que são
efeitos sociais reais, empíricos e disponíveis para estudo. São “sentidos” internamente e
correspondem a forças psíquicas que tomam relevo sobre aquelas que utilizamos nas tarefas
cotidianas (DURKHEIM, 1996, p. 466).
O ritual produz um sentimento de poder e confiança. As pessoas se tornam mais
fortes enquanto grupo. “Durante a assembléia eles criam, através da encenação das
práticas, forças sociais que sentem como forças morais externas” (DURKHEIM, 1996, p. 461).
As relações entre as práticas e as emoções são específicas, cada rito produz uma emoção
diferente. Este sentimento de criação e unidade é, de acordo com Durkheim, a categoria da
causalidade. Categoria esta que consiste neste sentimento de criação da unidade do grupo e
de renovação periódica desse sentimento de ser grupo.
Portanto, não são as idéias que produzem a eficácia da religião, pois estas são um
elemento dos indivíduos que desencadeiam as forças emotivas neles presentes, mas não as
criam nem as potencializam. A religião, por sua vez não se destina a fazê-los pensar, mas a
pôr em jogo potências espirituais, agindo sobre a vida moral e visando a ação (DURKHEIM,
1996, p. 462-63).
Essas práticas estimulam disposições mentais, fazem com que se tome consciência
dos sentimentos coletivos, através de sua fixação em objetos exteriores. Tais emoções
formam a base necessária da comunicação intersubjetiva, pois são sentimentos objetivados.
A sociedade não atua individualmente através constrangimentos naturais externos, mas via
sentimentos coletivos produzidos durante a encenação coletiva das práticas, de forma
idêntica às categorias essenciais do pensamento em cada mente individual.
Tudo o que parecia ser individual, justamente porque presente em todo indivíduo,
sendo parte integrante de sua mente, Durkheim argumentou ter uma origem social. “Todos
os indivíduos parecem ter as mesmas emoções e categorias de pensamento não porque são
parte do organismo individual, como argumentou Hume, mas sim porque todos os
indivíduos participam na sociedade e é a participação social que cria estas emoções e
categorias” (RAWLS, s/d, p. 19). Estas categorias são geralmente as mesmas em todo lugar,
com poucas variações, porque existe um conjunto básico de emoções e sentimentos,
categorias de entendimento, criados pela participação nas práticas sociais, e sem os quais a
sociedade se inviabilizaria.
A força moral da sociedade é uma parte essencial de cada pessoa e organiza
processos de pensamento, tornando-se uma parte essencial do ser, pois é sentida concreta e
presente dentro de cada um. É esse sentimento que atua dentro das pessoas que dá a elas a
sensação de que se comunicam com um ser sagrado. O homem transfere poderes
excepcionais às coisas com as quais entra em contato porque não se reconhece, não vê que
foi transformado pelas forças sociais presentes e produzidas por suas práticas,
transformando, assim, o meio que o cerca (DURKHEIM,1996, p. 466).
5|P Á G I N A SOFRIMENTO SOCIAL E VIOLÊNCIA NA IMPRENSA POPULAR: A FOLHA DE PERNAMBUCO (1998-2002).
Se essas forças morais são inerentemente sociais, o respeito por elas é o respeito
pela sociedade, e respeito é uma emoção que desempenha um papel importante na
sustentação dessas mesmas forças morais na sociedade e que é experimentada quando se
sente esta pressão espiritual interior e plena. O respeito não é uma emoção que as pessoas
sentiriam, a menos que participassem de práticas que produzissem dentro delas um
sentimento de força moral.
Durkheim pensava que fazer das categorias de pensamento uma conseqüência da
vida emocional não as tornaria menos válidas. São empiricamente válidas mesmo sendo
emoções, pois manifestam o estado real das coisas. E ainda segundo ele, é um erro analisar
os ritos religiosos em termos de seus alegados objetivos materiais. O verdadeiro significado
dos ritos religiosos é a ação invisível que eles exercem sobre a mente, a maneira que eles
afetam nosso status mental, ou seja, sempre produzir sentimentos, gerar as idéias essenciais
e periodicamente recriar o ser moral que possibilita a existência da sociedade. As crenças
são apenas um fenômeno secundário, pois antes que a construção da crença seja possível, é
necessário existir a experiência dos sentimentos socialmente criados (RAWLS, s/d, p. 22-24).
A sociedade da qual fala Durkheim não é essa sociedade concreta em que vivemos, o
mundo profano. Pelo contrário, é um mundo que o homem sobrepõe a este e ao qual ele
atribui uma superioridade. Embora presente apenas na mente, produz efeitos concretos
sobre o mundo real, já que é na vida coletiva que o indivíduo aprende a idealizar. Na
recorrência de suas práticas, conseqüentemente, na criação desse mundo ideal, a sociedade
se cria e recria concretamente. Evidencia que essa sociedade ideal não pode ser encarada
separadamente da sociedade concreta, “pois uma sociedade não é constituída
simplesmente pela massa dos indivíduos que a compõem, pelo solo que ocupam, pelas
coisas que utilizam, pelos movimentos que realizam, mas, antes de tudo, pela idéia que faz
de si mesma” (DURKHEIM, 1996, p. 467).
Rawls [s/d] conclui que Durkheim, ao situar a criação das emoções em práticas sociais
concretas, e não na mente individual ou no sistema simbólico de crenças, traz implicações
importantes para a validade intersubjetiva das emoções e para a maneira que elas podem
ser estudadas sociologicamente. Se está certo que certos sentimentos básicos precisam ser
socialmente produzidos para que as sociedades existam, deve haver práticas que tenham
como objetivo justamente a produção de emoções necessárias para a solidariedade social e
a inteligibilidade.
O conhecimento empírico é um estado individual e se explica pela natureza psíquica
de cada indivíduo. Entretanto as categorias são representações coletivas e traduzem estados
da coletividade. Dependem de como esta é organizada, de sua morfologia, de suas
instituições. São o produto de uma cooperação através do espaço e do tempo, e de uma
combinação de idéias e sentimentos, do acúmulo da experiência e do saber de gerações
(DURKHEIM, 2000, p. xxiii).
É quando o indivíduo tenta se libertar dessas noções, que sente que não é totalmente
livre, que algo lhe resiste dentro e fora de si. Externamente há uma opinião que julga, mas
como a sociedade é nele representada, ela se opõe fazendo-lhe resistência interiormente. É
a autoridade da sociedade que se alia a determinadas formas de pensar que são como
condições indispensáveis à ação comum (DURKHEIM, 2000, p. xxv).
A sociedade exerce em nós essa força e, ao mesmo tempo, cria uma dependência. Ela
persegue seus próprios fins, mesmo que possa atingi-los por intermédio de cada um de seus
6|P Á G I N A MARIA CRISTINA ROCHA BARRETO
membros. Estes, além disso, esquecem seus interesses e, para servi-la, submete-os a todo
tipo de aborrecimentos, privações e sacrifícios, sem os quais a vida social seria impossível. A
todo instante são obrigados a sujeitar-se a regras de conduta e de pensamento que lhe são
exteriores, sendo, inclusive, às vezes contrárias a suas inclinações (DURKHEIM, 2000, p. 211).
É a sociedade que fala pela boca daqueles que as afirmam em nossa presença; é ela
que ouvimos ao ouvi-los, e a voz de todos tem um acento que a de um só não
poderia ter. A violência mesma com que a sociedade reage, por meio da censura ou
da repressão material, contra as tentativas de dissidência, manifestando com
estrépito o ardor da convicção comum, contribui para reforçar seu domínio. Em
uma palavra, quando uma coisa é objeto de um estado de opinião, a repressão que
cada indivíduo faz dela extrai de suas origens, das condições nas quais ela se
formou, um poder de ação que é sentido mesmo por aqueles que não se
submetem a ela (DURKHEIM, 2000, p. 213).
A pressão social se realiza através da mente e, por isso, dá ao homem a idéia de que
há uma ou várias forças externas a ele e das quais depende. Alerta, porém, que a ação social
não exige dos indivíduos apenas sacrifícios, privações e esforços, já que esta força coletiva
não lhes é inteiramente exterior. Esta força social se organiza nos indivíduos, tornando-se
parte integrante do ser (DURKHEIM, 1996).
A coerção da sociedade e, conseqüentemente, o sofrimento que ela por vezes traz –
categoria não pensada nem sistematizada em sua obra –, seria fruto da própria existência da
vida em sociedade e o preço pago por cada indivíduo por sua pertença. É através do
sofrimento que a sociedade estabeleceria sua ascendência moral sobre os indivíduos. Ela
lhes impõe formas de agir, que são elaboradas em comum, se inscreve em seus corpos e
suas mentes, e o grau em que são pensadas por cada indivíduo particular reflete nos outros,
e vice-versa.
Diferentemente de Durkheim, que coloca a razão do sofrimento na força do sagrado,
Simmel vê nas interações humanas as causas do sofrimento. Na verdade, ele o considera
mesmo necessário para a existência da sociedade. A existência de discordâncias, conflitos e
desacordos e, portanto, as emoções neles envolvidas fazem parte de qualquer interação nas
mais variadas esferas da vida humana.
Para Simmel, o conflito causa e também modifica interesses de grupo, unificações e
organizações, uma vez que afeta ambos os oponentes, tanto em sua relação um com o
outro, mas também em relação ao próprio indivíduo, pois cada um deve concentrar suas
energias em um objetivo, para que sejam usadas a qualquer momento. Podemos concluir
daí que os conflitos e os conseqüentes sofrimentos que sua resolução possa causar ao ser
humano são constantes que fazem parte do próprio fazer-se da sociedade (BARRETO, 2001).
E, de fato, fatores dissociantes – ódio, inveja, necessidade, desejo – são causas de
culpa e sofrimento: surgem por causa de interesses discrepantes entre os indivíduos no
desenvolvimento da vida em sociedade. O conflito é assim criado para resolver divergências;
é uma maneira de realizar algum tipo de unidade, mesmo através da aniquilação de uma das
partes conflitantes.
O ponto de vista desenvolvido por Simmel a respeito do conflito, embora
reconhecendo como fonte geradora de tensões e infelicidade para os indivíduos, não deve
ser visto apenas como um fator dissociante de grupo, e sim como elemento possuidor de
uma função unificadora, algo que faz parte da vida de todos. Os indivíduos, no entanto, não
7|P Á G I N A SOFRIMENTO SOCIAL E VIOLÊNCIA NA IMPRENSA POPULAR: A FOLHA DE PERNAMBUCO (1998-2002).
podem viver em constante conflito. Deve haver uma relativa paz social e o conflito existir
apenas de forma ocasional na relação entre os indivíduos e grupos, mesmo que não seja raro
(BARRETO, 2001).
É nesse sentido que Moore Jr. (1987, p. 25) reconhece a existência de um contrato
social, muitas vezes implícito, através do qual “as pessoas que vivem em qualquer sociedade
devem resolver os problemas da autoridade, da divisão do trabalho e da distribuição de bens
e serviços”. Com esse fim é que são elaborados princípios de desigualdade social e criados
mecanismos através dos quais as pessoas ensinam-se mutuamente, com níveis variáveis de
sucesso, a aceitar e obedecer estes mesmos princípios.
social tão desenvolvido, mas, por sua vez, “falta-lhes, no mais alto grau, qualquer caráter de
expressão individual de um sentimento experimentado de modo puramente individual”
(MAUSS, 1979, p. 149). No desenvolvimento de suas tarefas cotidianas ou conversas banais,
em horas, datas ou ocasiões prefixadas, membros do grupo, principalmente mulheres,
começam a gritar e injuriar o inimigo ou o demônio e a esconjurar a alma do morto. Depois
da catarse da sua cólera, o grupo volta à sua vida normal, exceto aqueles designados como
portadores do luto.
Os portadores do luto são pessoas designadas para exercer obrigatoriamente as
manifestações do luto, que não são comuns a todos os parentes. Em princípio, essa tarefa é
exercida por mulheres, geralmente as mães, irmãs e, sobretudo, a viúva do defunto (MAUSS,
1979, p. 150-51). Essas expressões de dor (inclusive um número convencional de gritos) e
sofrimento são acompanhadas de auto-flagelações para “entreter a dor”.
Tudo isso é ao mesmo tempo social e obrigatório mas, apesar de tudo, violento e
natural: a busca e a expressão da dor andam juntas. […]
Por inarticulados que sejam, gritos e uivos são sempre de certo modo musicais, a
maioria das vezes ritmados, cantados em uníssono pelas mulheres. Estereotipia,
ritmo, unissonância, são manifestações ao mesmo tempo fisiológicas e sociológica
(MAUSS, 1979, p. 152).
Se imponen otra serie de hechos, en cualquera de los elementos del arte de utilizar
el cuerpo humano, dominan los hechos de la educación. La noción de educación
podía superponerse a la idea de imitación y aunque otros las tienen muy escasas,
todos reciben la misma educación de tal manera que es fácil comprender los
resultados (MAUSS, 1971, p. 340).
Elias trata das técnicas corporais, ainda que sem se referir a elas exatamente através
desse nome. Discute a formação paulatina do “homem civilizado” na Europa, principalmente
na França, a partir da Idade Média. Cita um tratado, escrito por Erasmo, sobre a arte de
9|P Á G I N A SOFRIMENTO SOCIAL E VIOLÊNCIA NA IMPRENSA POPULAR: A FOLHA DE PERNAMBUCO (1998-2002).
educar os jovens. Neste tratado estão incluídas formas de se olhar, como o olhar fixo,
denotando inércia, o olhar de espanto e de estupidez. As pessoas impudicas tinham o olhar
vivo e eloqüente, sendo mais conveniente, contudo, o olhar demonstrar uma mente plácida
e uma afabilidade respeitosa. O mesmo tratado vai mais longe ao definir os melhores gestos,
posturas e expressões faciais, assim como o vestiário mais conveniente para que o homem
manifeste seu interior. Porém, Erasmo está consciente de que “embora este decoro corporal
externo proceda de uma mente bem constituída, não obstante descobrimos às vezes que,
por falta de instrução, essa graça falta em homens excelentes e cultos” (ELIAS, 1994, p. 69).
Como demonstração das mudanças sofridas durante esse processo de civilização,
observa:
A interação das técnicas lingüísticas com as técnicas corporais podem, então, mostrar
uma estreita associação da dor com o sofrimento – seja ele físico ou moral (espiritual) – e,
obviamente, se apresenta nas definições do que ela seria em diversas línguas, inclusive na
portuguesa. No entanto, o caráter físico ou espiritual da dor não parece ter particular
relevância, pois uma mesma função expiatória o fundamenta e integra às manifestações
contingentes do sofrimento (GUERCI, 1999, p. 61).
Porém, mesmo com essa associação entre dor e sofrimento presente de forma mais
ou menos universal, o conceito cultural particular da dor muda de acordo com expressões
socialmente aceitas em um determinado tempo e lugar, através de práticas que são
exercidas coletivamente, integrando um conteúdo cultural determinado e está presente em
todos os indivíduos sociais que fazem parte de uma mesma rede de relações. Em outras
palavras, a dor e o sofrimento, assim, fariam parte de sociabilidades específicas (KOURY,
1999a, p. 76).
Para Durkheim (2000), no estudo do papel da dor no campo religioso, as abstinências
e as privações são inseparáveis do sofrimento e o culto negativo é indissociável do
sofrimento. A dor é tida como libertadora e lhe é atribuído um poder santificador quando
utilizada como elemento de determinadas práticas sociais. Confere à dor o poder de gerar
forças excepcionais e através da maneira como o homem a enfrenta é que se tem noção de
sua grandeza.
Apesar dessa observação e da freqüência do sofrimento, ainda existe, em nosso
cotidiano, um silenciamento a respeito da dor: de fato, a existência da própria sociedade
também depende de certo desprezo por ela, mesmo em meio às relações mais íntimas:
Embora exaltando as forças do homem, ela com freqüência é rude para com os
indivíduos: exige deles perpétuos sacrifícios; não cessa de reprimir nossos apetites
naturais, precisamente porque nos eleva acima de nós mesmos (DURKHEIM, 2000, p.
336).
10 | P Á G I N A MARIA CRISTINA ROCHA BARRETO
O silenciamento também se estende a coisas que nos causam vergonha, ou, como
dissemos acima, o discurso sobre tais assuntos está confinado a esferas muito bem definidas
da vida social e das quais a imprensa, tomada em sua acepção geral e parte integrante.
Guerci (1999) afirma, entretanto, que esta ausência, ou abstenção, do discurso
coletivo sobre a morte é uma resposta cultural específica da sociedade ocidental. Do mesmo
modo que os relatos de dores infligidas a mulheres (vítimas de estupro e seqüestro), na
ocasião da Partição na Índia3, também é marcado pelo silêncio ou pelo uso de uma
linguagem metafórica, evitando uma descrição específica de qualquer evento que capture a
particularidade de suas experiências, ou pela descrição de eventos periféricos, apenas
tangenciando a experiência real causadora do sofrimento (DAS, 1997).
Koury, comentando Mauss, afirma que essa “personificação” (embodiment) ou
objetivação da emoção se dá em um nível mais profundo e inconsciente. Os significados
culturais da dor seriam aprendidos pelo indivíduo mesmo antes de uma vivência concreta de
noções de dor, sofrimento e vergonha, e de outras emoções, construídas, implícita e
inconscientemente, nas práticas sociais e, ao vivenciá-las, atualizaria seus conteúdos e
significados coletivos, impregnando-os com um novo e próprio significado. Isso ocorreria
através de um processo de “sedimentação intersubjetiva” que se objetiva socialmente por
intermédio das experiências que ficam retidas na lembrança e em um sistema de sinais que,
sendo repetidos, podem ser compartilhados e transmitidos coletivamente, principalmente,
pela linguagem (1999a).
Nessa perspectiva, os meios para objetivação de novas experiências são fornecidos
pela linguagem, que assim permite sua incorporação ao estoque de conhecimentos já
existente. Este é o meio mais importante pelo qual as sedimentações objetivadas são
transmitidas na tradição da coletividade em questão (BERGER E LUCKMANN, 1985).
Para que todo esse processo seja objetivado, existiria um conjunto de práticas sociais
cuja meta seria reintegrar, através de rituais integradores, purificadores e expurgadores dos
males que causaram o sofrimento, expondo o que fica encoberto nas experiências rotineiras
e cotidianas, colocando a pessoa, tida como noção e representação social, acima e além da
coletividade vendo nela e através dela a configuração do seu próprio sofrer. Em outras
palavras, haveria lugares comuns de expressão das emoções do indivíduo e da coletividade,
para reintegrá-los ou desintegrá-los potencialmente, assim orientando as ações dos sujeitos,
permitindo a eles expressarem os significados de suas emoções, dolorosas, de vergonha ou
de luto, mesmo sem as terem vivido pessoalmente, criando uma “etiqueta social” que
orientaria os sujeitos sociais tanto diante de um sofrimento vivenciado por si mesmo, como
de um vivenciado por outro (KOURY,1999a). Através da “designação lingüística […] [o
3
Momento do colapso do Império Britânico, acontecido em agosto de 1947, que causou a divisão de sua colônia
mais importante na Ásia – a Índia – em duas nações independentes: a Índia, de maioria hindu, e o Paquistão, de
maioria muçulmana. Esta separação foi seguida de tumultos bastante violentos, principalmente na Caximira,
Punjabi e Bengala, cujas raízes repousam na hostilidade entre essas duas religiões e na disposição dos estados
autogovernados. Esta separação provocou uma desagregação social e teve um alto custo em termos de vidas
humanas, estupros e pilhagens. As mulheres, principalmente, foram utilizadas, tanto por hindus quanto
muçulmanos, como instrumentos de poder. Cerca de 15 milhões de refugiados cruzaram fronteiras para regiões
totalmente estranhas a eles de acordo com a religião professada, apesar de suas identidades serem construídas
a partir das regiões de origem de seus ancestrais. Acessado em janeiro de 2004 e disponível em
http://news.bbc.co.uk/1/hi/world/south_asia/1751044.stm e www.emory.edu/ENGLISH/Bahri/Part.html.
11 | P Á G I N A SOFRIMENTO SOCIAL E VIOLÊNCIA NA IMPRENSA POPULAR: A FOLHA DE PERNAMBUCO (1998-2002).
a ação orientada, deste modo, permitiria uma certa prática comum esperada e ou
desejada por cada membro do grupo social em interação, seja no sentido da
vivência ou experiência de um processo, seja no sentido da expectação do outro de
sua ação frente ao mesmo processo. O como se comportar teria assim um leque
informativo, ou um livro de etiquetas comuns ao conjunto societário e à
disposição dos indivíduos que nele se orientariam na condução de suas ações
(KOURY, 1999a, p. 79)
violência como parte integrante de uma sociabilidade necessária em nossa sociedade, como
uma descarga de pulsões agressivas, contrariando àquelas que instituem a mídia como
fomentadora destes mesmos problemas. Poder-se-ia citar, no decorrer da história, fartos
exemplos de formas de descarga dessas pulsões “agressivas de natureza inconscientes” e
que, em cada época, encontram sua forma cultural de serem canalizadas. A imprensa seria,
então, uma das formas contemporâneas de se atender a essa necessidade de violência, de
testemunho da dor e de “destruição do outro” por parte dos leitores, ao mesmo tempo que
se manifestaria em sentimentos de vergonha, embaraço e, muitas vezes, humilhação para os
personagens desses dramas cotidianos (BAUDRILLARD apud ANGRIMANI, 1995, p. 57).
estendido para uma prática cotidiana dos fotógrafos, dos profissionais de saúde, de
cientistas sociais e, de forma mais contundente, da mídia, em especial aqueles meios que se
propõem a utilizar os sofrimentos humanos como sua principal matéria-prima.
Chama a atenção para o fato de que o espetáculo sofrimento é o único que coloca
um dilema especificamente moral para alguém exposto a ele:
A resolução fornecida para este dilema moral é que é através da fala que o
espectador mantém sua integridade ao se deparar com o espetáculo do sofrimento e é
chamado à ação. Não é suficiente, porém, que seja apenas um sussurro de indignação para
si mesmo. É preciso que haja a criação de um discurso público, que o isente de ser acusado
de indiferença ou pessoalmente interessado na visão do sofrimento alheio.
Afirma ainda que existe uma linha tênue na denúncia do espetáculo do sofrimento à
distância que mistura, parcialmente, o real e o ficcional. A comunicação do sofrimento de
um desafortunado a um espectador distante que está seguro, abrigado, aumenta a
probabilidade de ser apreendido no modo ficcional, principalmente quando o horizonte de
ação desse espectador nos elos causais retrocede dele até o sofredor.
15 | P Á G I N A SOFRIMENTO SOCIAL E VIOLÊNCIA NA IMPRENSA POPULAR: A FOLHA DE PERNAMBUCO (1998-2002).
É por isso que destaca a necessidade de um discurso público e uma atitude ativa
como condição mínima de uma relação apropriada com a realidade. Porém, seria inaceitável
uma narrativa por demais objetiva dessa realidade, sem ponto de vista evidente, por mais
que hoje seja esta a regra na mídia para garantir a seriedade e uma versão que aspira o
status de verdade. O sofrimento de terceiros sendo também objeto de uma descrição
realística em excesso coloca o domínio da narrativa completamente em favor daquele que
descreve, tornando assimétrica a humanidade de diferentes parceiros.
O profissional de mídia parece se transformar no que chama de “espectador puro”4,
independente da cena que vê, sem laços nem pré-compromissos, características que lhe
conferem credibilidade, capacitando-o a informar “sem deformação”, fazendo observações
de qualquer lugar na esfera pública, na exterioridade de relações disponíveis a qualquer um.
A esfera pública pressupõe a existência desse observador distanciado e casual que pode ficar
atento às peculiaridades da sociedade (1999).
A análise de Boltanski, porém, não se esgota nesse espectador puro, supostamente
isento de qualquer filtro ou condicionamento cultural. Este observador não apenas reporta e
circula opiniões divergentes, como também constrói esta esfera pública em torno de causas,
e é através delas que a política de piedade e a esfera pública estão conectadas. A
consideração do sofrimento modifica a condição de debate especialmente por impor sobre
ele uma urgência que demanda um compromisso de pessoas por uma causa. Este
compromisso, porém, para ser válido na esfera pública tem que ser livre de interesses e de
laços comunais anteriores. A esfera pública seria uma rede de compartilhamento de
informações que não repousa em caminhos pré-existentes e na qual as pessoas poderiam se
agrupar em torno de causas:
Assim no ideal da esfera pública um sofrimento local pode ser informado sem
deformação de tal maneira que está lá para que qualquer um o examine, ou seja,
para todos aqueles que, do fato de sua receptividade surgir de sua falta de
compromisso anterior, estejam livres para examinar este sofrimento e se
considerarem suficientemente afetados por ele para se comprometerem e tomá-lo
como sua causa (p. 31) (Tradução da autora).
4
Esse espectador puro que separa a contemplação da ação tem caráter histórico e recente.
16 | P Á G I N A MARIA CRISTINA ROCHA BARRETO
o termo sociedade diz respeito ao corpo mais amplo de habitantes num território
específico que tem um sentido de identidade comum, vive sob um conjunto de
arranjos sociais distintos e o faz , na maior parte do tempo, em um nível de conflito
que exclui a guerra civil.
As normas sociais e a ira que elas despertam em não poucos indivíduos e setores da
sociedade, principalmente aquelas em que a norma é a desigualdade, têm, de acordo com
este autor, uma origem dual: tanto da natureza humana inata quanto da dinâmica social.
Chama a atenção de como essa “natureza humana” parece ser flexível, pois o homem tem
grande capacidade de suportar o sofrimento, o abuso, por mais trágico que seja, e é essa
capacidade que cria os temas, pois “a resposta ao abuso é algo imensamente maior que o
5
Os autores estão tratando especificamente de casos de refugiados da violência política e
ideológica e atendidos por entidades humanitárias internacionais.
18 | P Á G I N A MARIA CRISTINA ROCHA BARRETO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANGRIMANI, Danilo. Espreme que sai sangue. Um Estudo do Sensacionalismo na Imprensa. São Paulo: Summus
Editorial, 1995.
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
ARENDT, Hannah. Eichman em Jerusalém: um Relato sobre a Banalidade do Mal. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.
BERGER, P.L. & LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1985.
BOLTANSKI, Luc. El amor y la justicia como competencias. Buenos Aires, AR: Amorrortu Editores, 2000.
BOLTANSKI, Luc. Distant suffering: morality, media and politics. New York, U.S.A.: Cambridge University Press,
1999.
CORDEU, Edgardo J. et al. (1993/1994). El duelo y el luto. Etnologia y psicologia de los idearios de la muerte.
Runa, archivo para las crenças del hombre. V. XXI, p. 131-155.
19 | P Á G I N A SOFRIMENTO SOCIAL E VIOLÊNCIA NA IMPRENSA POPULAR: A FOLHA DE PERNAMBUCO (1998-2002).
DAS, Veena et al. Remaking a world. Violence, social suffering and recovery. University of California Press, 2001.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
ELIAS, Norbert. O Processo civilizador. Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
Vol.1.
FARMER, Paul. On Suffering and Structural Violence: a View from Bellow. In: Social suffering. Berkeley:
University of California Press, 1997, p. 261-284.
GUERCI, Antonio e CONSIGLIERI, Stefania. Por uma Antropologia da Dor. Nota Preliminar. Ilha, revista de
antropologia, Out. de 1999, nº 0, p. 55-72.
KLEINMAN, Arthur and KLEINMAN, Joan. The appeal of experience; the dismay of images: cultural
appropriations of suffering in our times. In: Social suffering. Berkeley: University of California Press, 1997, p.1-
24.
KLEINMAN, Arthur, DAS, V. & LOCK, M. Introduction. In: KLEINMAN, A., DAS, V. & LOCK, M., (orgs.). Social
suffering. Berkeley: University of California Press, 1997. p.ix-xxvii.
KOURY, M.G. P. A dor como objeto de pesquisa social. Ilha, Revista de Antropologia, nº 0, Out. de 1999a. p. 74-
84.
LINDNER, Evelin Gerda. Humiliation and the human condition: mapping a minefield. Oslo: University of Oslo,
1999. (discussion paper).
LINDNER, Evelin Gerda. What every negotiator ought to know: understanding humiliation. Oslo: University of
Oslo, 2000 (discussion paper).
MAUSS, Marcel. A expressão Obrigatória dos Sentimentos. In: OLIVEIRA, Roberto Cardoso (org.). Mauss.
Antropologia. São Paulo: Ática, 1979.
MAUSS, Marcel. Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de ‘eu’. In: Sociologia e antropologia.
São Paulo:Cosac & Naify, 2003a.
MOORE JR., Barrington. Injustiça: as bases sociais da obediência e da revolta. São Paulo: Brasiliense, 1987.
RAWLS, Anne Warfield. Durkheim’s sentiments and Hume’s passions: emotion and the validity of knowledge.
Detroit (MI-USA): Wayne State University, s/d.
SCHEFF, Thomas. Shame and the social bond: a sociological theory. Disponível em
<www.soc.ucsb.edu/faculty/scheff/2.html>. Acesso em 14 out. 2003b.
SCHEFF, Thomas and RETZINGER, Suzanne M. Shame as the master emotion of everyday life. Journal of
mundane behavior, 2000. Disponível em <www.mundanebehavior.org/issues/v1n3/scheff-retzinger.htm>.
Acesso em 14 out. 2003.
SENNET, Richard. Respect. The formation of character in a world of inequality. London (GB), Allen Lane, 2003.
YOUNG, Allan. Suffering and the origins of traumatic memory. In: Social suffering. Berkeley: University of
California Press, 1997, p. 245-260.