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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS


DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E POLÍTICA

DISCIPLINA: SOCIOLOGIA DAS EMOÇÕES | 7° PERÍODO – 2010.1


PROFESSORA: MARIA CRISTINA ROCHA BARRETO

Do sofrimento como questão sociológica1


POR MARIA CRISTINA ROCHA BARRETO

Todas as sociedades humanas elaboraram alguma explicação para o sofrimento,


mesmo que em seu cotidiano algumas procurem ocultá-lo e, na medida do possível,
esquecê-lo. Porém o sofrimento como questão de pesquisa sociológica tem sido pouco
abordado, embora existam estudos substanciais sobre sua causa principal – a violência.
Abordar as interações humanas marcadas por conflitos através do estudo da violência, suas
causas e conseqüências é uma das possibilidades, contudo não resolve a questão do
sofrimento, que permanece associada, principalmente na sociologia clássica, à religiosidade,
baseando-se no pressuposto da busca de um sentido para este sofrimento humano.
Depreende-se daí que o sofrimento como fato social se torna eclipsado por estas
duas questões tradicionais na sociologia, ou seja, o estudo da religião e o da violência. O
primeiro se detém principalmente na forma dos rituais e práticas religiosas. O segundo dá
maior ênfase aos algozes e suas práticas violentas. Os estudos sobre o sofrimento social têm
seu foco principal na vítima, no desafortunado, naquele que sofre, nas emoções envolvidas,
nas forças sociais que influenciam ou são suas causadoras, e como se resolvem social e
historicamente, como ocorrem as interações desses sofredores (com os perpetradores, com
outras vítimas e com o mundo) e em como, através destas interações, pode acontecer a
reconstrução do seu cotidiano.
Um bom argumento em favor do estudo de uma emoção singular, como por exemplo
a vergonha e o embaraço, estudados por Scheff (2003b), e o sofrimento, como no caso desta
pesquisa, é que emoções diferentes têm várias similaridades fundamentais, mas são
bastante diferentes em suas origens, aparência e trajetórias. Por isso, afirmações sobre as
emoções ‘em abstrato’, como acontece nos estudos clássicos da sociologia, têm pouco
significado. O que Durkheim, Mead e Parsons, para citar apenas alguns, disseram sobre as
emoções parece plausível quando aplicado a emoções particulares, como a raiva e o medo,
mas não à maioria das outras (SCHEFF, 2003b).
A sociologia, de um modo geral, tem dado pouca atenção ao estudo sistematizado da
emoção. Porém, como observa Scheff (2003b), alguns dos autores clássicos investigaram,
cada um deles, uma emoção específica e concreta, embora não a houvessem nomeado
explicitamente. Deve-se destacar que o interesse de Scheff é analisar o papel
desempenhado pela vergonha e pelo embaraço nas interações sociais que se desenvolvem
no cotidiano. Nessa perspectiva, Scheff faz uma leitura de autores que ele considera
pioneiros no estudo dessa temática, dentre os quais se destacam Norbert Elias, Richard
Sennett e Goffman, e outros.
Considerando isto, discutir-se-á neste capítulo, em primeiro lugar, a questão das
emoções em alguns dos principais autores da teoria sociológica clássica para, em seguida,

1
Texto do 1° Capítulo da Tese intitulada : Sofrimento Social e violência na Imprensa Popular: a
Folha de Pernambuco (1998-2002). João Pessoa: PPGS/UFPB, 2005.
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tratar-se do conceito de sofrimento social e das diferentes e amplas possibilidades de estudo


que esta temática proporciona.

1.1 Algumas abordagens da sociologia sobre a questão do sofrimento


No desenrolar de suas vidas cotidianas, as pessoas criam laços afetivos como os de
lealdade, domínio, fraternidade etc., sem os quais a sociedade não poderia funcionar. Estes
laços, porém, são instáveis e tal condição é apreendida, segundo Sennett (2003), na própria
etimologia da palavra emoção: movere. Logo, as emoções não são meras sensações
experimentadas pelos seres humanos, são também passíveis de pensamento e reflexão e,
desse modo, permitem a ação dos indivíduos no mundo.
As emoções, como são entendidas hoje, têm como ingredientes o julgamento e o
raciocínio e são um ato de interpretação, ou seja, elas também fazem parte do nosso esforço
de dar sentido ao mundo e às instituições das quais fazemos parte.
A revisitação da sociologia sob a perspectiva da emoção, incluindo-se entre elas o
sofrimento, será iniciada através de um de seus fundadores. Durkheim (2000, p. xvi), ao
estudar o fenômeno religioso em As formas elementares da vida religiosa, argumenta que as
práticas religiosas concretas criam emoções no indivíduo. Portanto, para ele, as emoções se
originam nos indivíduos através de um estímulo externo.
O argumento de Durkheim é que as emoções fundamentais não são biológicas e não
se originam no domínio individual e privado, são criadas coletivamente pelo grupo durante a
encenação das práticas sociais. Estes sentimentos socialmente criados são a base da fé. A
existência de idéias e dos sentimentos compartilhados depende da criação da emoção na
encenação coletiva das práticas, não em sistemas de crenças ou uma mente ideal e mística
do grupo.
Rawls compara as noções de “sentimento” em Durkheim e de “paixão” em Hume
para deixar claro que ambos falavam sobre as emoções como uma forma de conhecimento,
possuidoras de validade empírica e, por extensão, passíveis de serem estudadas pela
sociologia.
Durkheim parte do princípio de que certas idéias gerais – categorias do
entendimento – entram na mente individual como emoções, ou seja, que as emoções
podem ser percebidas direta e perfeitamente pela mente, no desenrolar dos ritos e práticas
sociais realizadas coletivamente. Sendo assim, deixa claro que no estudo dos fenômenos
religiosos existe algo concreto, empírico, o que permite estudá-los como um fato social
(DURKHEIM, 1996, p. 3).
O texto de as Formas Elementares da Vida Religiosa é, na leitura de Rawls, uma
descrição empírica elaborada de como as práticas religiosas podem produzir as emoções
necessárias para trazer à tona as idéias fundamentais de classificação: tempo, espaço, força,
totalidade e causalidade.
Durkheim traz uma contribuição de Hume quanto ao fato de que as paixões
motivariam a ação humana, principalmente o orgulho e a humildade. A resposta emocional
gerada pela mente individual em relação a eventos sociais é uma contingência que mal pode
ser prevista e que pode variar caso a caso. Para Durkheim, algumas práticas são criadas com
o objetivo de produzir as mesmas emoções nas mentes de todos que delas participam
simultaneamente. São os detalhes concretos das práticas encenadas que criam os
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sentimentos e emoções (RAWLS, s/d). Estas práticas são fundantes da sociedade porque,
sendo revestidas por um caráter sagrado, criam forças religiosas que se espalham e irradiam
com facilidade entre as pessoas e as coisas que com elas entram em contato e são
percebidas como exteriores aos indivíduos. No entanto, não estão associadas nem se
prendem ao seu representante – pessoa ou objeto. Elas lhe são acrescentadas. Afirma que
“elas são apenas forças coletivas hipostasiadas, isto é, forças morais; são feitas das idéias e
dos sentimentos que o espetáculo da sociedade desperta em nós, não das sensações que
nos vêm do mundo físico” (DURKHEIM, 1996:344).
Embora queira estabelecer uma base empírica para os sentimentos gerados
coletivamente, não centra sua atenção numa somatização desses sentimentos, mas naquilo
que se cria na mente do indivíduo quando em reunião e que é percebido como noções de
força moral, totalidade e causalidade. No desenvolvimento das práticas religiosas, os
indivíduos experimentam sentimentos de bem-estar, respeito e dependência, o que
compreende a força moral; a força, juntamente com os sentimentos de criação, força moral
e unidade gerariam a causalidade; e o sentimento do sagrado com a força moral criariam as
noções de tempo e espaço.
As forças sociais podem ser sentidas, pois são forças geradas pelo grupo na
encenação de suas práticas reais e concretas e, por sua vez, criam emoções que formam o
indivíduo (o aspecto individual do ser social), que não existiria de outra maneira. Durkheim
destaca que as emoções não são sentidas com os cinco sentidos separadamente, mas são
percebidas como um todo.
Ter emoções depende da encenação cooperativa de práticas sociais que cria forças
sociais. A sociedade, portanto, é fonte de emoções, pois o núcleo da vida emocional e
intelectual dos indivíduos são estas forças criadas social e coletivamente. Talvez por serem
tão fundamentais e serem uma base sobre a qual se funda a sociedade, é que Mauss (2003a)
descreveu uma outra categoria do entendimento, não citada por Durkheim – a noção de
pessoa e de eu –, como categoria inata.
Para Durkheim, o objetivo de certas práticas religiosas, especificamente, é o de criar
emoções que constituem as categorias de entendimento fundamentais. Argumenta em favor
da relação entre as práticas concretas e os sentimentos particulares que são gerados
necessariamente nas mentes de todos os indivíduos que delas participam simultaneamente.
Essa idéia é confirmada por Mauss quando afirma que todos os tipos de expressões orais dos
sentimentos são essencialmente fenômenos sociais e não exclusivamente psicológicos ou
fisiológicos. E mais ainda, a expressão desses sentimentos têm um formato que é
socialmente aceito (MAUSS, 1979, p. 148).
Para Mauss:

Todas as expressões coletivas, simultâneas, de valor moral e de força obrigatória


dos sentimentos do indivíduo e do grupo, são mais que meras manifestações, são
sinais de expressões entendidas, quer dizer, são linguagem. Os gritos são como
frases e palavras. É preciso emiti-los, mas é preciso só porque todo o grupo os
entende. É mais que uma manifestação dos próprios sentimentos, é um modo de
manifestá-los aos outros, pois assim é preciso fazer. Manifesta-se a si, exprimindo
aos outros, por conta dos outros. É essencialmente uma ação simbólica [grifo meu]
(MAUSS, 1979, p. 153).

O culto religioso, então, teria como objetivo pôr os indivíduos em contato com as
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energias superiores e fazê-las parte de suas vidas interiores. A constante repetição do culto
renovaria os efeitos dessas forças morais, suscitando “impressões de alegria, de paz interior,
de serenidade, de entusiasmo”. O culto não sendo mais que um sistema simbólico, signos
através dos quais a fé seria exposta e o meio de sua renovação. São esses sentimentos que
Durkheim (1996, p. 460) se recusa a ver como ilusórios, declarando que seu valor não seria
menor que o das experiências científicas.
Os participantes dessas práticas sentem dentro de si os efeitos do ritual, que são
efeitos sociais reais, empíricos e disponíveis para estudo. São “sentidos” internamente e
correspondem a forças psíquicas que tomam relevo sobre aquelas que utilizamos nas tarefas
cotidianas (DURKHEIM, 1996, p. 466).
O ritual produz um sentimento de poder e confiança. As pessoas se tornam mais
fortes enquanto grupo. “Durante a assembléia eles criam, através da encenação das
práticas, forças sociais que sentem como forças morais externas” (DURKHEIM, 1996, p. 461).
As relações entre as práticas e as emoções são específicas, cada rito produz uma emoção
diferente. Este sentimento de criação e unidade é, de acordo com Durkheim, a categoria da
causalidade. Categoria esta que consiste neste sentimento de criação da unidade do grupo e
de renovação periódica desse sentimento de ser grupo.
Portanto, não são as idéias que produzem a eficácia da religião, pois estas são um
elemento dos indivíduos que desencadeiam as forças emotivas neles presentes, mas não as
criam nem as potencializam. A religião, por sua vez não se destina a fazê-los pensar, mas a
pôr em jogo potências espirituais, agindo sobre a vida moral e visando a ação (DURKHEIM,
1996, p. 462-63).
Essas práticas estimulam disposições mentais, fazem com que se tome consciência
dos sentimentos coletivos, através de sua fixação em objetos exteriores. Tais emoções
formam a base necessária da comunicação intersubjetiva, pois são sentimentos objetivados.
A sociedade não atua individualmente através constrangimentos naturais externos, mas via
sentimentos coletivos produzidos durante a encenação coletiva das práticas, de forma
idêntica às categorias essenciais do pensamento em cada mente individual.
Tudo o que parecia ser individual, justamente porque presente em todo indivíduo,
sendo parte integrante de sua mente, Durkheim argumentou ter uma origem social. “Todos
os indivíduos parecem ter as mesmas emoções e categorias de pensamento não porque são
parte do organismo individual, como argumentou Hume, mas sim porque todos os
indivíduos participam na sociedade e é a participação social que cria estas emoções e
categorias” (RAWLS, s/d, p. 19). Estas categorias são geralmente as mesmas em todo lugar,
com poucas variações, porque existe um conjunto básico de emoções e sentimentos,
categorias de entendimento, criados pela participação nas práticas sociais, e sem os quais a
sociedade se inviabilizaria.
A força moral da sociedade é uma parte essencial de cada pessoa e organiza
processos de pensamento, tornando-se uma parte essencial do ser, pois é sentida concreta e
presente dentro de cada um. É esse sentimento que atua dentro das pessoas que dá a elas a
sensação de que se comunicam com um ser sagrado. O homem transfere poderes
excepcionais às coisas com as quais entra em contato porque não se reconhece, não vê que
foi transformado pelas forças sociais presentes e produzidas por suas práticas,
transformando, assim, o meio que o cerca (DURKHEIM,1996, p. 466).
5|P Á G I N A SOFRIMENTO SOCIAL E VIOLÊNCIA NA IMPRENSA POPULAR: A FOLHA DE PERNAMBUCO (1998-2002).

Se essas forças morais são inerentemente sociais, o respeito por elas é o respeito
pela sociedade, e respeito é uma emoção que desempenha um papel importante na
sustentação dessas mesmas forças morais na sociedade e que é experimentada quando se
sente esta pressão espiritual interior e plena. O respeito não é uma emoção que as pessoas
sentiriam, a menos que participassem de práticas que produzissem dentro delas um
sentimento de força moral.
Durkheim pensava que fazer das categorias de pensamento uma conseqüência da
vida emocional não as tornaria menos válidas. São empiricamente válidas mesmo sendo
emoções, pois manifestam o estado real das coisas. E ainda segundo ele, é um erro analisar
os ritos religiosos em termos de seus alegados objetivos materiais. O verdadeiro significado
dos ritos religiosos é a ação invisível que eles exercem sobre a mente, a maneira que eles
afetam nosso status mental, ou seja, sempre produzir sentimentos, gerar as idéias essenciais
e periodicamente recriar o ser moral que possibilita a existência da sociedade. As crenças
são apenas um fenômeno secundário, pois antes que a construção da crença seja possível, é
necessário existir a experiência dos sentimentos socialmente criados (RAWLS, s/d, p. 22-24).
A sociedade da qual fala Durkheim não é essa sociedade concreta em que vivemos, o
mundo profano. Pelo contrário, é um mundo que o homem sobrepõe a este e ao qual ele
atribui uma superioridade. Embora presente apenas na mente, produz efeitos concretos
sobre o mundo real, já que é na vida coletiva que o indivíduo aprende a idealizar. Na
recorrência de suas práticas, conseqüentemente, na criação desse mundo ideal, a sociedade
se cria e recria concretamente. Evidencia que essa sociedade ideal não pode ser encarada
separadamente da sociedade concreta, “pois uma sociedade não é constituída
simplesmente pela massa dos indivíduos que a compõem, pelo solo que ocupam, pelas
coisas que utilizam, pelos movimentos que realizam, mas, antes de tudo, pela idéia que faz
de si mesma” (DURKHEIM, 1996, p. 467).
Rawls [s/d] conclui que Durkheim, ao situar a criação das emoções em práticas sociais
concretas, e não na mente individual ou no sistema simbólico de crenças, traz implicações
importantes para a validade intersubjetiva das emoções e para a maneira que elas podem
ser estudadas sociologicamente. Se está certo que certos sentimentos básicos precisam ser
socialmente produzidos para que as sociedades existam, deve haver práticas que tenham
como objetivo justamente a produção de emoções necessárias para a solidariedade social e
a inteligibilidade.
O conhecimento empírico é um estado individual e se explica pela natureza psíquica
de cada indivíduo. Entretanto as categorias são representações coletivas e traduzem estados
da coletividade. Dependem de como esta é organizada, de sua morfologia, de suas
instituições. São o produto de uma cooperação através do espaço e do tempo, e de uma
combinação de idéias e sentimentos, do acúmulo da experiência e do saber de gerações
(DURKHEIM, 2000, p. xxiii).
É quando o indivíduo tenta se libertar dessas noções, que sente que não é totalmente
livre, que algo lhe resiste dentro e fora de si. Externamente há uma opinião que julga, mas
como a sociedade é nele representada, ela se opõe fazendo-lhe resistência interiormente. É
a autoridade da sociedade que se alia a determinadas formas de pensar que são como
condições indispensáveis à ação comum (DURKHEIM, 2000, p. xxv).
A sociedade exerce em nós essa força e, ao mesmo tempo, cria uma dependência. Ela
persegue seus próprios fins, mesmo que possa atingi-los por intermédio de cada um de seus
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membros. Estes, além disso, esquecem seus interesses e, para servi-la, submete-os a todo
tipo de aborrecimentos, privações e sacrifícios, sem os quais a vida social seria impossível. A
todo instante são obrigados a sujeitar-se a regras de conduta e de pensamento que lhe são
exteriores, sendo, inclusive, às vezes contrárias a suas inclinações (DURKHEIM, 2000, p. 211).

É a sociedade que fala pela boca daqueles que as afirmam em nossa presença; é ela
que ouvimos ao ouvi-los, e a voz de todos tem um acento que a de um só não
poderia ter. A violência mesma com que a sociedade reage, por meio da censura ou
da repressão material, contra as tentativas de dissidência, manifestando com
estrépito o ardor da convicção comum, contribui para reforçar seu domínio. Em
uma palavra, quando uma coisa é objeto de um estado de opinião, a repressão que
cada indivíduo faz dela extrai de suas origens, das condições nas quais ela se
formou, um poder de ação que é sentido mesmo por aqueles que não se
submetem a ela (DURKHEIM, 2000, p. 213).

A pressão social se realiza através da mente e, por isso, dá ao homem a idéia de que
há uma ou várias forças externas a ele e das quais depende. Alerta, porém, que a ação social
não exige dos indivíduos apenas sacrifícios, privações e esforços, já que esta força coletiva
não lhes é inteiramente exterior. Esta força social se organiza nos indivíduos, tornando-se
parte integrante do ser (DURKHEIM, 1996).
A coerção da sociedade e, conseqüentemente, o sofrimento que ela por vezes traz –
categoria não pensada nem sistematizada em sua obra –, seria fruto da própria existência da
vida em sociedade e o preço pago por cada indivíduo por sua pertença. É através do
sofrimento que a sociedade estabeleceria sua ascendência moral sobre os indivíduos. Ela
lhes impõe formas de agir, que são elaboradas em comum, se inscreve em seus corpos e
suas mentes, e o grau em que são pensadas por cada indivíduo particular reflete nos outros,
e vice-versa.
Diferentemente de Durkheim, que coloca a razão do sofrimento na força do sagrado,
Simmel vê nas interações humanas as causas do sofrimento. Na verdade, ele o considera
mesmo necessário para a existência da sociedade. A existência de discordâncias, conflitos e
desacordos e, portanto, as emoções neles envolvidas fazem parte de qualquer interação nas
mais variadas esferas da vida humana.
Para Simmel, o conflito causa e também modifica interesses de grupo, unificações e
organizações, uma vez que afeta ambos os oponentes, tanto em sua relação um com o
outro, mas também em relação ao próprio indivíduo, pois cada um deve concentrar suas
energias em um objetivo, para que sejam usadas a qualquer momento. Podemos concluir
daí que os conflitos e os conseqüentes sofrimentos que sua resolução possa causar ao ser
humano são constantes que fazem parte do próprio fazer-se da sociedade (BARRETO, 2001).
E, de fato, fatores dissociantes – ódio, inveja, necessidade, desejo – são causas de
culpa e sofrimento: surgem por causa de interesses discrepantes entre os indivíduos no
desenvolvimento da vida em sociedade. O conflito é assim criado para resolver divergências;
é uma maneira de realizar algum tipo de unidade, mesmo através da aniquilação de uma das
partes conflitantes.
O ponto de vista desenvolvido por Simmel a respeito do conflito, embora
reconhecendo como fonte geradora de tensões e infelicidade para os indivíduos, não deve
ser visto apenas como um fator dissociante de grupo, e sim como elemento possuidor de
uma função unificadora, algo que faz parte da vida de todos. Os indivíduos, no entanto, não
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podem viver em constante conflito. Deve haver uma relativa paz social e o conflito existir
apenas de forma ocasional na relação entre os indivíduos e grupos, mesmo que não seja raro
(BARRETO, 2001).
É nesse sentido que Moore Jr. (1987, p. 25) reconhece a existência de um contrato
social, muitas vezes implícito, através do qual “as pessoas que vivem em qualquer sociedade
devem resolver os problemas da autoridade, da divisão do trabalho e da distribuição de bens
e serviços”. Com esse fim é que são elaborados princípios de desigualdade social e criados
mecanismos através dos quais as pessoas ensinam-se mutuamente, com níveis variáveis de
sucesso, a aceitar e obedecer estes mesmos princípios.

1.2 A voz do sofrimento. Suas formas culturais de expressão.


Seguindo o raciocínio de Durkheim de como os sentimentos podem ser estudados
empiricamente, o sofrimento e a dor – emoção e ao mesmo tempo sensação – assim como
outras emoções que dele fazem parte como a vergonha, o embaraço e o pudor (ELIAS,
1994a); a humilhação (LINDNER, 1999 e 2000), a injustiça (MOORE JR., 1987), a solidão (SIMMEL,
1979; 1987; 1998) e a banalização dos sofrimentos (ARENDT, 2001), podem ser encaradas
como subcategorias do que Kleinman (1997) chama de sofrimento social.
O problema do sofrimento social vai além da terminologia e da escassez de
vocabulário para comunicar o que o indivíduo sente a outrem, assim como vai além das
formas químicas de controle da dor. Além disso, muitas emoções, extrapolando sua
comunicabilidade através de palavras, são difíceis de serem externadas, sob pena de
diminuir socialmente quem as expressa. Como é o caso dos portadores de estigma
(homossexualidade, deformação, deficiência ou pobreza), ou mesmo daqueles que têm
algum tipo de preconceito, pois nos dias de hoje expressar preconceitos em determinadas
classes sociais é tanto social quanto politicamente incorreto e censurável, levando muitas
pessoas a esconderem suas emoções, seus pensamentos e sentimentos em tais casos.
De qualquer modo, a vivência da dor, que é algo experimentado socialmente, isola,
aquele que sofre, do resto do mundo. Não é à toa que o indivíduo sente sua dor como única
e inigualável, incomunicável aos outros, mesmo que existam no mundo situações iguais (ou
piores) à dele, do mesmo modo como ele não entende completamente a dor alheia. Talvez
para resolver o problema da dificuldade de expressão da dor é que, em diversas culturas,
existe uma “ética de antífona”2, isto é, uma interação entre acústica, lingüística e
orientações corporais que dão uma definição pública para uma “boa morte”, distinguindo-a
de uma “morte ruim”: a acústica de morte se corporifica no grito e na lamentação, que
juntamente com a presença dos parentes, constroem uma boa morte. A morte silenciosa é a
morte ruim, associal, sem o apoio dos parentes. O silêncio aqui conota a ausência de
testemunhas (DAS, 1997, p. 78).
Esse caráter coletivo é grandemente marcado por cerimônias públicas que possuem
regras próprias e também fazem parte do ritual da vendetta e da determinação de
responsabilidades, pondo em ação sentimentos e emoções construídos coletivamente, o que
permite, segundo Mauss (1979, p. 149), entrever a própria coletividade em interação.
Os gritos e cantos utilizados nos ritos mais simples não têm esse caráter público e
2
Cf. Aurélio Buarque de Holanda, curto versículo recitado ou cantado pelo celebrante, antes
e depois de um salmo, e ao qual respondem alternadamente duas metades do coro.
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social tão desenvolvido, mas, por sua vez, “falta-lhes, no mais alto grau, qualquer caráter de
expressão individual de um sentimento experimentado de modo puramente individual”
(MAUSS, 1979, p. 149). No desenvolvimento de suas tarefas cotidianas ou conversas banais,
em horas, datas ou ocasiões prefixadas, membros do grupo, principalmente mulheres,
começam a gritar e injuriar o inimigo ou o demônio e a esconjurar a alma do morto. Depois
da catarse da sua cólera, o grupo volta à sua vida normal, exceto aqueles designados como
portadores do luto.
Os portadores do luto são pessoas designadas para exercer obrigatoriamente as
manifestações do luto, que não são comuns a todos os parentes. Em princípio, essa tarefa é
exercida por mulheres, geralmente as mães, irmãs e, sobretudo, a viúva do defunto (MAUSS,
1979, p. 150-51). Essas expressões de dor (inclusive um número convencional de gritos) e
sofrimento são acompanhadas de auto-flagelações para “entreter a dor”.

Tudo isso é ao mesmo tempo social e obrigatório mas, apesar de tudo, violento e
natural: a busca e a expressão da dor andam juntas. […]

Por inarticulados que sejam, gritos e uivos são sempre de certo modo musicais, a
maioria das vezes ritmados, cantados em uníssono pelas mulheres. Estereotipia,
ritmo, unissonância, são manifestações ao mesmo tempo fisiológicas e sociológica
(MAUSS, 1979, p. 152).

Todas essas expressões coletivas, simultâneas, de valor moral e de força obrigatória


dos sentimentos do indivíduo e do grupo, formam para Mauss (1979, p. 153) uma
linguagem. Só podem ser compreendidas se seus signos são dominados por todo o grupo, e,
ao mesmo tempo, fazem parte das técnicas corporais aprendidas pelos membros de um
grupo através de sua educação (MAUSS, 1971, p. 337).
Por técnicas corporais se entende a forma como os homens, tradicionalmente, em
cada sociedade, utilizam seu corpo. Segundo ele, os gestos são aprendidos lentamente, e
cada técnica e atitude corporais propriamente ditas têm sua forma. Sendo assim, podemos
falar de um jeito cadenciado de andar das mulheres brasileiras (mesmo que isso reforce um
estereótipo), ou referir a um gestual específico de membros de uma gangue, por exemplo.
Diz Mauss (1971, p. 339): “la posición de los brazos y manos mientras se anda constituye una
idiosincrasia social y no es sólo el resultado de no sé qué movimientos y mecanismos
puramente individuales, casi enteramente físicos”. Desse modo, explicita uma educação da
forma de andar, assim como de outros elementos que fazem parte do gestual de cada
indivíduo. São os “hábitos” que variam em cada indivíduo e, sobretudo, com as sociedades, a
educação, as regras de civilidade e a moda. As técnicas corporais são, portanto, um trabalho
coletivo, uma prática social ou ainda formas de agir em sociedade:

Se imponen otra serie de hechos, en cualquera de los elementos del arte de utilizar
el cuerpo humano, dominan los hechos de la educación. La noción de educación
podía superponerse a la idea de imitación y aunque otros las tienen muy escasas,
todos reciben la misma educación de tal manera que es fácil comprender los
resultados (MAUSS, 1971, p. 340).

Elias trata das técnicas corporais, ainda que sem se referir a elas exatamente através
desse nome. Discute a formação paulatina do “homem civilizado” na Europa, principalmente
na França, a partir da Idade Média. Cita um tratado, escrito por Erasmo, sobre a arte de
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educar os jovens. Neste tratado estão incluídas formas de se olhar, como o olhar fixo,
denotando inércia, o olhar de espanto e de estupidez. As pessoas impudicas tinham o olhar
vivo e eloqüente, sendo mais conveniente, contudo, o olhar demonstrar uma mente plácida
e uma afabilidade respeitosa. O mesmo tratado vai mais longe ao definir os melhores gestos,
posturas e expressões faciais, assim como o vestiário mais conveniente para que o homem
manifeste seu interior. Porém, Erasmo está consciente de que “embora este decoro corporal
externo proceda de uma mente bem constituída, não obstante descobrimos às vezes que,
por falta de instrução, essa graça falta em homens excelentes e cultos” (ELIAS, 1994, p. 69).
Como demonstração das mudanças sofridas durante esse processo de civilização,
observa:

Em um dos sintomas do processo civilizador é ser embaraçoso para nós falar ou


mesmo ouvir muito do que Erasmo diz. O maior ou menor desconforto que
sentimos com pessoas que discutem ou mencionam suas funções corporais mais
abertamente, que ocultam ou restringem essas funções menos que nós, é um dos
sentimentos dominantes no juízo de valor ‘bárbaro’ ou ‘incivilizado’. Tal, então, é a
natureza do ‘mal-estar’ que nos causa a ‘incivilização’ ou, em termos mais precisos
e menos valorativos, o mal-estar ante uma diferente estrutura de emoções (ELIAS,
1994, p. 72).

A interação das técnicas lingüísticas com as técnicas corporais podem, então, mostrar
uma estreita associação da dor com o sofrimento – seja ele físico ou moral (espiritual) – e,
obviamente, se apresenta nas definições do que ela seria em diversas línguas, inclusive na
portuguesa. No entanto, o caráter físico ou espiritual da dor não parece ter particular
relevância, pois uma mesma função expiatória o fundamenta e integra às manifestações
contingentes do sofrimento (GUERCI, 1999, p. 61).
Porém, mesmo com essa associação entre dor e sofrimento presente de forma mais
ou menos universal, o conceito cultural particular da dor muda de acordo com expressões
socialmente aceitas em um determinado tempo e lugar, através de práticas que são
exercidas coletivamente, integrando um conteúdo cultural determinado e está presente em
todos os indivíduos sociais que fazem parte de uma mesma rede de relações. Em outras
palavras, a dor e o sofrimento, assim, fariam parte de sociabilidades específicas (KOURY,
1999a, p. 76).
Para Durkheim (2000), no estudo do papel da dor no campo religioso, as abstinências
e as privações são inseparáveis do sofrimento e o culto negativo é indissociável do
sofrimento. A dor é tida como libertadora e lhe é atribuído um poder santificador quando
utilizada como elemento de determinadas práticas sociais. Confere à dor o poder de gerar
forças excepcionais e através da maneira como o homem a enfrenta é que se tem noção de
sua grandeza.
Apesar dessa observação e da freqüência do sofrimento, ainda existe, em nosso
cotidiano, um silenciamento a respeito da dor: de fato, a existência da própria sociedade
também depende de certo desprezo por ela, mesmo em meio às relações mais íntimas:

Embora exaltando as forças do homem, ela com freqüência é rude para com os
indivíduos: exige deles perpétuos sacrifícios; não cessa de reprimir nossos apetites
naturais, precisamente porque nos eleva acima de nós mesmos (DURKHEIM, 2000, p.
336).
10 | P Á G I N A MARIA CRISTINA ROCHA BARRETO

O silenciamento também se estende a coisas que nos causam vergonha, ou, como
dissemos acima, o discurso sobre tais assuntos está confinado a esferas muito bem definidas
da vida social e das quais a imprensa, tomada em sua acepção geral e parte integrante.
Guerci (1999) afirma, entretanto, que esta ausência, ou abstenção, do discurso
coletivo sobre a morte é uma resposta cultural específica da sociedade ocidental. Do mesmo
modo que os relatos de dores infligidas a mulheres (vítimas de estupro e seqüestro), na
ocasião da Partição na Índia3, também é marcado pelo silêncio ou pelo uso de uma
linguagem metafórica, evitando uma descrição específica de qualquer evento que capture a
particularidade de suas experiências, ou pela descrição de eventos periféricos, apenas
tangenciando a experiência real causadora do sofrimento (DAS, 1997).
Koury, comentando Mauss, afirma que essa “personificação” (embodiment) ou
objetivação da emoção se dá em um nível mais profundo e inconsciente. Os significados
culturais da dor seriam aprendidos pelo indivíduo mesmo antes de uma vivência concreta de
noções de dor, sofrimento e vergonha, e de outras emoções, construídas, implícita e
inconscientemente, nas práticas sociais e, ao vivenciá-las, atualizaria seus conteúdos e
significados coletivos, impregnando-os com um novo e próprio significado. Isso ocorreria
através de um processo de “sedimentação intersubjetiva” que se objetiva socialmente por
intermédio das experiências que ficam retidas na lembrança e em um sistema de sinais que,
sendo repetidos, podem ser compartilhados e transmitidos coletivamente, principalmente,
pela linguagem (1999a).
Nessa perspectiva, os meios para objetivação de novas experiências são fornecidos
pela linguagem, que assim permite sua incorporação ao estoque de conhecimentos já
existente. Este é o meio mais importante pelo qual as sedimentações objetivadas são
transmitidas na tradição da coletividade em questão (BERGER E LUCKMANN, 1985).
Para que todo esse processo seja objetivado, existiria um conjunto de práticas sociais
cuja meta seria reintegrar, através de rituais integradores, purificadores e expurgadores dos
males que causaram o sofrimento, expondo o que fica encoberto nas experiências rotineiras
e cotidianas, colocando a pessoa, tida como noção e representação social, acima e além da
coletividade vendo nela e através dela a configuração do seu próprio sofrer. Em outras
palavras, haveria lugares comuns de expressão das emoções do indivíduo e da coletividade,
para reintegrá-los ou desintegrá-los potencialmente, assim orientando as ações dos sujeitos,
permitindo a eles expressarem os significados de suas emoções, dolorosas, de vergonha ou
de luto, mesmo sem as terem vivido pessoalmente, criando uma “etiqueta social” que
orientaria os sujeitos sociais tanto diante de um sofrimento vivenciado por si mesmo, como
de um vivenciado por outro (KOURY,1999a). Através da “designação lingüística […] [o

3
Momento do colapso do Império Britânico, acontecido em agosto de 1947, que causou a divisão de sua colônia
mais importante na Ásia – a Índia – em duas nações independentes: a Índia, de maioria hindu, e o Paquistão, de
maioria muçulmana. Esta separação foi seguida de tumultos bastante violentos, principalmente na Caximira,
Punjabi e Bengala, cujas raízes repousam na hostilidade entre essas duas religiões e na disposição dos estados
autogovernados. Esta separação provocou uma desagregação social e teve um alto custo em termos de vidas
humanas, estupros e pilhagens. As mulheres, principalmente, foram utilizadas, tanto por hindus quanto
muçulmanos, como instrumentos de poder. Cerca de 15 milhões de refugiados cruzaram fronteiras para regiões
totalmente estranhas a eles de acordo com a religião professada, apesar de suas identidades serem construídas
a partir das regiões de origem de seus ancestrais. Acessado em janeiro de 2004 e disponível em
http://news.bbc.co.uk/1/hi/world/south_asia/1751044.stm e www.emory.edu/ENGLISH/Bahri/Part.html.
11 | P Á G I N A SOFRIMENTO SOCIAL E VIOLÊNCIA NA IMPRENSA POPULAR: A FOLHA DE PERNAMBUCO (1998-2002).

indivíduo] abstrai a experiência de suas ocorrências individuais biográficas”. Estas


experiências individuais se tornam, então, “uma possibilidade objetiva para todos, ou pelo
menos para todos os objetivos de certo tipo […]”, integrando-se ao acervo comum do
conhecimento (BERGER E LUCKMANN, 1985, p. 97).
É assim que

a ação orientada, deste modo, permitiria uma certa prática comum esperada e ou
desejada por cada membro do grupo social em interação, seja no sentido da
vivência ou experiência de um processo, seja no sentido da expectação do outro de
sua ação frente ao mesmo processo. O como se comportar teria assim um leque
informativo, ou um livro de etiquetas comuns ao conjunto societário e à
disposição dos indivíduos que nele se orientariam na condução de suas ações
(KOURY, 1999a, p. 79)

Considera ainda que,

os sentimentos seriam constructos sociais, simbólicos, integrativos dos atores a


uma dada sociabilidade ou modo de vida, e integrativos dos sujeitos para consigo
próprio, mediatizados pela tradição social. Quanto menor e menos complexa uma
dada rede social, maior a capacidade social integrativa dos sujeitos nas expectações
e cumprimentos das ações desejáveis, social e individualmente (p. 79).

Essa ritualização da vida, como pressuposto lógico da existência de uma


sociabilidade, seria mais marcante e menos tolerante quanto às individualizações nas
sociedades relacionais. Essas esferas de ritualização seriam mais compactas, com a tradição
exercendo um papel fundamental na integração dos indivíduos. Os indivíduos em interação
seriam, portanto, informados das ações possíveis e desejáveis através dessa “ordem ritual
organizada”, havendo pouca flexibilidade para atuações que não se enquadrem na lógica da
tradição, notadamente em algumas esferas da vida social, como se verifica com o luto.
Esse ocultamento e resistência em falar de coisas dolorosas e/ou constrangedoras
têm como origem um elemento fundamental nos processos nucleares do eu e nas relações
sociais, que é a vergonha. Segundo Ratzinger e Scheff (2000), a vergonha é um componente
tão crucial que, na maioria das vezes, permanece escondido. A proibição de demonstrar
vergonha é tão intensa que nos tornamos inibidos de observar, ou mesmo falar sobre a
vergonha nos outros e também em cada um de nós. A proibição é tão forte que perdemos a
habilidade de descobrir a vergonha escondida.
Essa proibição fica menos rigorosa em algumas instâncias sociais como os Alcoólicos
Anônimos, por exemplo, e poder-se-ia dizer, nos meios de comunicação. Nesse último caso,
os interesses comerciais interfeririam e restringiriam essa vergonha em prol de uma maior
lucratividade. Por essa razão, os meios de comunicação se tornaram um lugar socialmente
legitimado e aceito em que coisas interditas para as relações particulares são amplamente
tratadas, consumidas e mesmo discutidas na esfera pública, com o escudo do
distanciamento e da ilusão do “isso não acontece comigo” e do direito de informação.
É por esse aspecto que a imprensa de sensação pode investir em imagens de dor, de
morte e de violência e ser aceita socialmente. Angrimani (1995, p. 57) afirma que “cada
público […] de acordo com sua medida de sofisticação, aceita (ou exige) formas diversas que
sejam uma projeção de sua violência”. Essa hipótese por ele formulada coloca a dor e a
12 | P Á G I N A MARIA CRISTINA ROCHA BARRETO

violência como parte integrante de uma sociabilidade necessária em nossa sociedade, como
uma descarga de pulsões agressivas, contrariando àquelas que instituem a mídia como
fomentadora destes mesmos problemas. Poder-se-ia citar, no decorrer da história, fartos
exemplos de formas de descarga dessas pulsões “agressivas de natureza inconscientes” e
que, em cada época, encontram sua forma cultural de serem canalizadas. A imprensa seria,
então, uma das formas contemporâneas de se atender a essa necessidade de violência, de
testemunho da dor e de “destruição do outro” por parte dos leitores, ao mesmo tempo que
se manifestaria em sentimentos de vergonha, embaraço e, muitas vezes, humilhação para os
personagens desses dramas cotidianos (BAUDRILLARD apud ANGRIMANI, 1995, p. 57).

1.3 O sofrimento social e os meios de comunicação.


Young (1997) observa que existem duas formas de se entender o significado do
sofrimento. A primeira está associada à dor somática e aos momentos de consciência que
acompanham ou antecipam esta dor. A outra se relaciona com estados que são descritos
como psicológicos, existenciais ou espirituais e que são identificados com palavras como
‘desilusão’, ‘desespero’ e ‘desolação’. Este último tipo de sofrimento tem também uma
dimensão social, no sentido de que é entendido localmente por grupos e comunidades
identificáveis e está baseado em códigos sociais.
O sofrimento de que falamos aqui é o resultado das injúrias que a força social inflige
na experiência humana, ou seja, mais concretamente, é o produto de uma ampla gama de
problemas sociais impingidos sobre uma população pelos poderes político, econômico e
institucional e inclui também suas respostas a estes poderes. Incluídos sob a categoria de
sofrimento social estão condições que são quase sempre divididas em campos separados e
que envolvem simultaneamente temas como saúde e bem-estar, além dos aspectos legais,
morais e religiosos. O sofrimento social, raramente, está dissociado das ações dos
poderosos, e fatores de gênero, etnicidade e status sócio-econômico podem ser, cada qual,
a seu turno, solicitados a desempenhar um papel em levar indivíduos e grupos vulneráveis
ao sofrimento humano (KLEINMAN, 1997, p. ix).
Em uma perspectiva antropológica, portanto, o sofrimento social é o efeito das
violências que a ordem social (local, nacional ou global) traz para as pessoas. Doenças e
morte prematura são distribuídas injustamente, já que as instituições protegem alguns,
enquanto expõem outros aos vetores dos poderes econômico e político. A vida cotidiana é,
em grande parte, violenta para o corpo e para a experiência moral, notadamente para os
pobres, embora a violência e, por extensão, o sofrimento atinjam membros de todos os
estratos sociais.
Diante disto, podemos dizer que o estudo do sofrimento social põe em xeque a
noção de cotidiano como o lugar do ordinário e questiona não apenas os atos de violência
explícita, mas as violências mais invisíveis causadas por instituições como, por exemplo, a
ciência, os meios de comunicação e o estado. Kleiman e Kleinman (1997, p. 4) chamam a
atenção para um elemento que é o da apropriação profissional das imagens de sofrimento e
analisa a atuação dos fotojornalistas e dos profissionais de saúde pública.
O primeiro caso envolve o fotógrafo sul-africano Kevin Carter, ganhador do prêmio
Pulitzer pela foto de uma criança sudanesa, abandonada no chão, sendo vigiada com
atenção e paciência por um abutre pousado próximo a ela (Reprodução 1). Todo um
questionamento a respeito da ética (ou sua ausência) que repousa por trás do exercício
profissional dos fotojornalistas, que pode ser sintetizado neste caso e também pode ser
13 | P Á G I N A SOFRIMENTO SOCIAL E VIOLÊNCIA NA IMPRENSA POPULAR: A FOLHA DE PERNAMBUCO (1998-2002).

estendido para uma prática cotidiana dos fotógrafos, dos profissionais de saúde, de
cientistas sociais e, de forma mais contundente, da mídia, em especial aqueles meios que se
propõem a utilizar os sofrimentos humanos como sua principal matéria-prima.

Reprodução 1 – Vítima da Fome, Sudão. Foto Kevin Carter, 1993.

Ao mesmo tempo, uma fotografia de uma atrocidade dá um testemunho que pode


levar as pessoas a agirem. Sob qualquer ponto de vista, a tensão permanece e o sofrimento
da pessoa que representa e o do representado se misturam, em outras palavras, nessa
situação se leva ao extremo a dicotomia sujeito/objeto que subjaz notadamente nas
ciências humanas. Boltanski (1999) trata desta questão do espectador de imagens de
sofrimento dentro do que ele denomina uma “política de piedade”. A política de piedade
consiste em, primeiramente, diferenciar os sofredores daqueles que não sofrem e também
em colocar o foco sobre o espetáculo do sofrimento. Espetáculo sendo aqui utilizado no
sentido de dar maior ênfase na observação em detrimento da ação: observação do
desventurado por aqueles que não compartilham seu sofrimento, que não o sentem
diretamente e que, como tal, podem ser considerados pessoas de sorte. A política de
piedade, no entanto, observa os sofredores como um conjunto, em massa, o que a
diferencia, portanto, da mídia que tem necessidade (e o faz com freqüência) de singularizar
as infelicidades, destacando-as da massa para dar um caráter humano à notícia (1999).
O que a mídia algumas vezes desperta são atos compassivos, que se diferenciam da
política de piedade pelo seu caráter local e prático de comprometimento de um ou vários
espectadores, em favor de desafortunados. A forma particular como a mídia muitas vezes
comunica o sofrimento afeta a sensibilidade de parcela dos espectadores, que se sentem
compelidos à ação (BOLTANSKI, 1999, p. 11). Por outro lado, o sofrimento na mídia pode
também ser encarado através da política de piedade, através da qual o receptor percebe
tanto a pluralidade das situações de infortúnio quanto suas particularidades. Os sofredores
que desfilam através dos objetos de mídia não são nem amigos, nem inimigos, são homens e
14 | P Á G I N A MARIA CRISTINA ROCHA BARRETO

mulheres ordinários em que é um em um evento determinado, mas poderia ser qualquer


outro.
Nesse sentido, Boltanski (1999) trabalha com a hipótese de que o espetáculo do
sofrimento, incongruente quando visto à distância pelas pessoas que não sofrem, não é
apenas uma conseqüência técnica dos modernos meios de comunicação, mesmo que o
poder e a expansão da mídia tenha trazido a miséria para a intimidade dos lares afortunados
com eficiência sem precedentes. Mas afirma que é inerente a uma política de piedade lidar
com o sofrimento do ponto de vista da distância uma vez que ela deve repousar sobre a
massificação de uma coleção de desafortunados que não estão ali.
Esse espetáculo de um sofrimento distanciado promovido pela mídia, de um modo
geral, realiza uma disjunção entre as possibilidades de informação e possibilidades de ação e
uma crescente incerteza no que se refere a ação necessária.

Um efeito da distância é certamente que a responsabilidade moral através da


omissão torna-se mais incerta e assim mais difícil de estabelecer quando a cadeia
causal é prolongada. A pessoa que vê de longe não está ciente de outras pessoas
que recebem as notícias, do quão perto elas estão relativamente ao caso, de sua
prontidão a agir e se elas têm pré-compromissos ou não (BOLTANSKI, 1999, p. 16)
(Tradução da autora).

Chama a atenção para o fato de que o espetáculo sofrimento é o único que coloca
um dilema especificamente moral para alguém exposto a ele:

De fato, quando um espectador se defronta com qualquer outro espetáculo que


julgue ser sem interesse, ou mesmo indecente, ele tem a opção fácil de desviar sua
atenção: deixando a sala, parando de ler, desligando a tv etc. Mas quando ele se
depara com o sofrimento, tal comportamento não se torna auto-evidente porque
neste caso ele poderá ser acusado, ou poderia acusar a si mesmo, de indiferença.
Agora, […] ter o conhecimento do sofrimento acarreta uma obrigação de dar
assistência (p. 20) (Tradução da autora).

A resolução fornecida para este dilema moral é que é através da fala que o
espectador mantém sua integridade ao se deparar com o espetáculo do sofrimento e é
chamado à ação. Não é suficiente, porém, que seja apenas um sussurro de indignação para
si mesmo. É preciso que haja a criação de um discurso público, que o isente de ser acusado
de indiferença ou pessoalmente interessado na visão do sofrimento alheio.

O critério do discurso ou conversação públicos é precisamente o que nos capacita a


distinguir entre uma forma de ver que pode ser caracterizada como desinteressada
ou altruística, uma que é orientada para fora e que é motivada pela intenção de ver
findo o sofrimento, e uma posição egoísta de olhar que é totalmente tomada com
os estados internos surgidos pelo espetáculo do sofrimento: fascinação, horror,
interesse, excitação, prazer etc. (p. 21) (Tradução da autora).

Afirma ainda que existe uma linha tênue na denúncia do espetáculo do sofrimento à
distância que mistura, parcialmente, o real e o ficcional. A comunicação do sofrimento de
um desafortunado a um espectador distante que está seguro, abrigado, aumenta a
probabilidade de ser apreendido no modo ficcional, principalmente quando o horizonte de
ação desse espectador nos elos causais retrocede dele até o sofredor.
15 | P Á G I N A SOFRIMENTO SOCIAL E VIOLÊNCIA NA IMPRENSA POPULAR: A FOLHA DE PERNAMBUCO (1998-2002).

É por isso que destaca a necessidade de um discurso público e uma atitude ativa
como condição mínima de uma relação apropriada com a realidade. Porém, seria inaceitável
uma narrativa por demais objetiva dessa realidade, sem ponto de vista evidente, por mais
que hoje seja esta a regra na mídia para garantir a seriedade e uma versão que aspira o
status de verdade. O sofrimento de terceiros sendo também objeto de uma descrição
realística em excesso coloca o domínio da narrativa completamente em favor daquele que
descreve, tornando assimétrica a humanidade de diferentes parceiros.
O profissional de mídia parece se transformar no que chama de “espectador puro”4,
independente da cena que vê, sem laços nem pré-compromissos, características que lhe
conferem credibilidade, capacitando-o a informar “sem deformação”, fazendo observações
de qualquer lugar na esfera pública, na exterioridade de relações disponíveis a qualquer um.
A esfera pública pressupõe a existência desse observador distanciado e casual que pode ficar
atento às peculiaridades da sociedade (1999).
A análise de Boltanski, porém, não se esgota nesse espectador puro, supostamente
isento de qualquer filtro ou condicionamento cultural. Este observador não apenas reporta e
circula opiniões divergentes, como também constrói esta esfera pública em torno de causas,
e é através delas que a política de piedade e a esfera pública estão conectadas. A
consideração do sofrimento modifica a condição de debate especialmente por impor sobre
ele uma urgência que demanda um compromisso de pessoas por uma causa. Este
compromisso, porém, para ser válido na esfera pública tem que ser livre de interesses e de
laços comunais anteriores. A esfera pública seria uma rede de compartilhamento de
informações que não repousa em caminhos pré-existentes e na qual as pessoas poderiam se
agrupar em torno de causas:

Assim no ideal da esfera pública um sofrimento local pode ser informado sem
deformação de tal maneira que está lá para que qualquer um o examine, ou seja,
para todos aqueles que, do fato de sua receptividade surgir de sua falta de
compromisso anterior, estejam livres para examinar este sofrimento e se
considerarem suficientemente afetados por ele para se comprometerem e tomá-lo
como sua causa (p. 31) (Tradução da autora).

Numa esfera pública, como é a mídia, o sofrimento é informado de forma


radicalmente diferente do que ocorre nas relações comunais. Nestas, o sofrimento é
geralmente informado face a face e com o custo de uma reapropriação e usualmente pela
transformação da narrativa recontada, na presença de um público particular, por alguém
envolvido e afetado pelo sofrimento daqueles próximos a ele. São importantes nessa
situação, a voz e seus tons, as emoções. Além disso, a presença do locutor envolve o público
em uma cena compartilhada em que cada membro poderia estar no lugar da pessoa que
conta a história, através de manifestações expressivas destes corpos afetados informarão o
sofrimento a outro que, por sua vez, será levado para dentro dele.
Informar o sofrimento em uma esfera pública toma uma forma diferente porque se
constitui contra uma esfera comunitária. Em contraste deve estabelecer uma representação
do sofrimento que é apresentado como falsificável (através da eliminação dos rumores e
apresentações “mentirosas”) e deve informar esta representação com as mínimas

4
Esse espectador puro que separa a contemplação da ação tem caráter histórico e recente.
16 | P Á G I N A MARIA CRISTINA ROCHA BARRETO

modificações possíveis ao maior número de pessoas. O espectador real ou potencial do


sofrimento seria nesse caso qualquer um: suas reações não são mais motivadas por um
compromisso natural de forma que há incerteza em relação à identificação do
desafortunado que pode, inclusive, levantar controvérsias.
Na mídia, no entanto, é comum e não raro necessário entrar em casos particulares,
entrar em detalhes, para provocar piedade, envolver o espectador e, talvez, chamá-lo a
ação. Mas ainda persiste a questão do quão longe é apropriado ir na descrição de detalhes
sórdidos para provocar piedade que entra em conflito com a necessidade contrária de
respeito pela pessoa do desafortunado. Um quadro que ultrapassa os limites na descrição
realística de detalhes, um lado que deve ser descrito como repulsivo, pode na verdade ser
denunciado por um lado como redutivo, visto que a pessoa é inteiramente definida por seus
sofrimentos, e por outro lado, como levando para longe o sofrimento da pessoa que o sofre,
para exibir este sofrimento para aqueles que não sofrem (BOLTANSKI, 1999).
Existem ainda outras implicações morais e políticas na utilização de notícias e
imagens de sofrimento no mercado midiático mundial. A primeira delas é a de que os
indivíduos pertencentes a comunidades locais, muitas vezes, não são capazes de se
defenderem nem de falarem por si mesmos. É entendimento comum que estes indivíduos
devem ser protegidos e representados por outros, reforçando uma imagem de
subalternidade que remete a uma idéia de colonialismo, fracasso, passividade, fatalismo e
inevitabilidade. Por outro lado, o testemunho e a mobilização parecem funcionar melhor
quando levam em conta as complexidades das situações locais e quando são implementados
por intermédio das próprias instituições locais.
O testemunho moral deve comportar uma sensibilidade para com o outro e as
imagens de trauma não devem se transformar em uma forma de entretenimento ou
fazerem parte de uma política econômica. Muitos se beneficiam destas imagens: jornais,
programas de tv, algumas carreiras são promovidas, empregos são criados e prêmios são
concedidos através da apropriação das imagens de sofrimento (KLEINMAN E KLEINMAN, 1997).
Kleinman e Kleinman, porém, fazem uma crítica da sociedade a que pertencem e que
encara o sofrimento de países do Terceiro Mundo como algo distante e exótico. Apontam a
globalização massiva das imagens de sofrimento, a maioria produzida por grandes agências
de fotógrafos, como causadoras de fadiga moral, exaustão de simpatia e desespero político.
Identificam a presença de um horror das imagens quando nos conscientizamos que as
vítimas dos infortúnios estão cercadas de fotógrafos, cuja participação ajuda a determinar a
direção que os acontecimentos podem tomar. Segundo eles, o fotógrafo é uma
transformação profissional na vida social, uma retórica politicamente relevante, uma forma
construída que ironicamente naturaliza a experiência. Essa idéia é defendida por Shapiro
quando observa que a representação é uma ausência da presença. O real nunca é
inteiramente representado para nós, pois é sempre mediatizado através de alguma prática
representacional. Assim, sempre perdemos algo quando pensamos a representação como
uma imitação do real. O que perdemos, em geral, é percebido dentro das instituições, ações
e episódios através dos quais o real foi moldado, uma moldagem que não tem sido tanto
uma questão de atos imediatos de consciência das pessoas na vida cotidiana, mas um tipo
de imposição historicamente desenvolvida, e agora largamente institucionalizada nos modos
dominantes de significado profundamente inscritos nas coisas, pessoas e estruturas (apud
KLEINMAN E KLEINMAN, 1997).
17 | P Á G I N A SOFRIMENTO SOCIAL E VIOLÊNCIA NA IMPRENSA POPULAR: A FOLHA DE PERNAMBUCO (1998-2002).

Uma outra forma de apropriação profissional é a patologização do sofrimento social,


ou seja, as memórias das vítimas que são transformadas em histórias de trauma e capital
simbólico através dos qual eles entram na negociação por recursos.
Em um número crescente de vezes, as histórias dos percalços humanos são reduzidas
a um núcleo de imagens culturais de vitimização e são utilizadas por profissionais das mais
diversas áreas para reescrever a experiência social. A pessoa que passa por dificuldades
primeiro torna-se uma vítima, uma imagem de inocência e passividade, alguém que não
pode representar a si mesmo, que deve ser representado. Essas vítimas são descritas, em
termos médicos por exemplo, como paciente de tensão pós-traumática, doença surgida em
fins do século passado. Na verdade, para receber mesmo uma modesta assistência e atenção
públicas, deve ser necessário se submeter a uma transformação substancial daquele que
experimenta, que sofre, para aquele que é a vítima. Por causa da importância política e
financeira de tais transformações, os próprios violados podem querer, e mesmo procurar re-
elaborar a imagem da sua condição, pois assim podem obter tanto os benefícios morais
quanto os financeiros de serem vítimas5 (KLEINMAN & KLEINMAN, 1997).
Em meio a tudo isto, a mídia se configurou, principalmente no decorrer do século 20,
como um imenso poder cultural na ordem mundial, capacitando-a a se apropriar de imagens
de violência para alimentar a mercantilização global. Ao mesmo tempo, esse excesso de
exposição da violência normaliza o sofrimento e transforma o olhar empático em
voyeurismo. Mas o sofrimento social é também visto como resposta para os problemas
humanos por instituições de política social e programas que são, em princípio, organizados
para melhorar o problema (KLEINMAN, 2000, p. 226).
Alguns tipos de sofrimentos adquirem uma espécie de “exotização” na mídia, já que
os produtores de notícias e também os leitores estão freqüentemente distanciadas espacial,
social e culturalmente de alguns deles. Estas circunstâncias, porém, não ocorrem nas
notícias locais. A “exotização”, no entanto, é uma técnica jornalística bastante utilizada para
gerar interesse sobre notícias aparentemente banais ou tão freqüentes que já não geram
curiosidade. Exotiza-se o texto, o discurso da violência e de experiências de dor e o
sofrimento (FARMER, 1997, p. 272).
Nestes textos de mídia aparece nitidamente algo que Moore Jr. (1987, p. 31) chamou
de sociedade:

o termo sociedade diz respeito ao corpo mais amplo de habitantes num território
específico que tem um sentido de identidade comum, vive sob um conjunto de
arranjos sociais distintos e o faz , na maior parte do tempo, em um nível de conflito
que exclui a guerra civil.

As normas sociais e a ira que elas despertam em não poucos indivíduos e setores da
sociedade, principalmente aquelas em que a norma é a desigualdade, têm, de acordo com
este autor, uma origem dual: tanto da natureza humana inata quanto da dinâmica social.
Chama a atenção de como essa “natureza humana” parece ser flexível, pois o homem tem
grande capacidade de suportar o sofrimento, o abuso, por mais trágico que seja, e é essa
capacidade que cria os temas, pois “a resposta ao abuso é algo imensamente maior que o
5
Os autores estão tratando especificamente de casos de refugiados da violência política e
ideológica e atendidos por entidades humanitárias internacionais.
18 | P Á G I N A MARIA CRISTINA ROCHA BARRETO

simples reflexo” (p. 32).


Sendo algo quase que incomunicável, só é compreensível em sua verdadeira
extensão por quem o vivencia, pois o conhecimento do sofrimento não pode ser conduzido
em puros fatos e impressões, em relatos que objetivam o sofrimento de incontáveis pessoas.
O horror do sofrimento não é apenas sua imensidão, mas as faces das vítimas anônimas que
têm pouca voz, para não dizer direitos, na história (FARMER, 1997).
É preciso levar em consideração que notícias sobre o sofrimento humano são um
componente fundamental dos jornais na atualidade, assim como o são do cotidiano dos
habitantes das grandes cidades, e que não se limitam a “fatos” ocorridos localmente, mas
englobam todas as espécies de percalços e misérias humanos acontecidos no planeta, pois
todos são notícias ou passíveis de se tornarem “acontecimento”.
A imprensa, principalmente a aqui analisada, é uma amostra contundente de que
vida e dor estão irremediavelmente imbricadas. A dor, assim como formas de vergonha e
embaraço, é parte integrante da visão de mundo de cada sociedade, possuindo um sentido e
um valor. A dor se constituiria, então, no conjunto de práticas materiais, mentais e
simbólicas, aliado a um processo psicológico expresso na mente, no corpo e no mundo
externo (CORDEAU, 1993/1994, p. 135). Essa interface das sensações corporais e mentais do
indivíduo com o mundo externo é o que permite que estes sejam mutáveis de uma cultura
para outra, explicando-se não só através da fisiologia e biologia, como também pelo
contexto histórico-cultural.
Diante da discussão feita até agora de como a emoção e, mais especificamente, a dor
e o sofrimento são construídos, aprendidos socialmente e personificados nos indivíduos
através de gestos, atitudes e comportamentos, poderemos pensar em como isso pode ser
expresso nas notícias e fotografias da imprensa.
O fotógrafo de jornal, por sua vez, não capta apenas o real, mas ele utiliza a lente
como um filtro para o seu olhar, para uma linha editorial seguida pelo jornal para o qual
trabalha e, ainda, de acordo com uma pauta que é fornecida a ele pelo editor geral e/ou por
uma equipe de redação. Não é apenas uma, mas inúmeras lentes que trabalharão sobre o
“real” para que este seja transformado em matéria jornalística. Podemos incluir entre elas,
retóricas já consolidadas e que são amplamente debatidas pela história da fotografia e pelos
estudiosos da imagem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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