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Areas deinteresse do-volume * Antropologia * Comunicacées * Civilizago Edycacdo Estética Filosofia Literatura © Psicologia * Sociologia Outras treas dea série * Administracdo * Artes ® Ciéncias * Direito * Geografia * Histéria * Linguistica * Politica eas PincroS Diregto Benjamin Absela Junior Samira Voussot Carnpedel Praparagao de texto ‘ual Campoptane ane Coordnago «poet gis (iol) ‘Amon do. Amal Roche ong te an Eton A sowoval Souss Femendes ‘cape ‘Ary Normanha ISBN a5 08 00683 7 1990 Todos os direitos, reservados Editora Aten S.A: = Bun Bardo do iquape, 10 Tel: (PABK) 2704322 — Caixa Postal B50 End, Telegraico“Bomivwo™” — S80 Paulo 3. 4 Sumario Introdugao. s Magia e religiao. 8 Imangacia ¢ transcendéncia 9 Individualidade € coletividad. 2 © poder magico. " ‘As categorias do pensamento magico__21 (s principios da. magia. 21 Lei da contigtidade. 23 Lei da similaridade. 26 Lei da contrariedade. 29 ‘A “‘mentalidade primitiva 32 ‘A légica do conereto 33 ‘A lgica da participagio ___34 ‘A Logica da cavsalidade mégica ________36 Repensando a causalidade mégica_______39 ‘A causalidade nos sistemas da bruxaria africana_40 Magia e pensamento: o social como modelo. © problema da razio. 46 Pensar & clasificar 47 Magia e ciéncia—_82 A cigncia do concreto. 56 (© mito como bricolage 86 Os signos do mito e os conceitos da ciéneia__S7 7. A eficdcia simbélica__60 ‘A magia como erenga coletiva 60 A producio de significados: a cura mégica 63 ‘A cura migica © a cura psicanalitica____65 ‘A cura migica na umbanda______67 8. Vocabulério critico. 70 9. Bibliogratia comentada. 76 : Introdugao Muito jf se esereveu sobre magia. Esto tems ingueta é hoje © pensamento antropolégico, que procura entender 2 Topica que orienta maneiras de pensar diferentes das rnossas, Com relagio & magia, a antropologia temese colo- cado inimeras questées. A. primeira delas tem a ver com 4 propria erenga: por que as pessoas acreditam na magi? [A essa questi muitas respostas foram dedas. Para antropotoga elissica, do final do século passado e do inicio deste, a crenca na magia nada mais era do que uma tentative, iusria fala, de intervie na ordem do mundo. (© homem primitivo, ignorante das leis da natureza e sub- jugado pela sua impoténcia diane dela, atrbuiria a0 pen- ‘amento migio a capacidade de produzi sobre a realidade os efeitos desejados. Para Frazer a magia nio passava de uma “falsa eignca para Lévy-Bruhl seria a prova da existéncia de uma *mentalidade primitiva, para quem “o milagre é banal" ¢ “o impossivel ndo existe”, 'No fundo dessas colocagbesesté escondida uma preo- cupagdo upica dos pensadores raconalists do final do ‘éeulo; era preciso saber se os povos chamados pimitvos, subjugados pelo temor e pela erenga em espiitos todo- -poderosos e vingativos, seriam ainda assim capazes de pensar racionalmente 0 mundo. A crenga na razdo faz parte, como sabemos, das convice6es racionalistas. Segundo estas, as pessoas so mantidas ignorantes e supersticiosas pelos poderosos para serem mais bem exploradas por eles. (Ora, essa mesma perspectiva enformava a anélise dos ceruditos que procuravam entender a mente “primitiva”. Se as crencas religiosas © mégicas pudessem ser entendidas ‘como uma aberragio intelectual, estaia implicito que reli- aides mais desenvolvidas, como o cristianismo, poderiam ser objeto de julgamento critico semelhante. Assim, pro- curava-se encontrar no modo de pensar dos povos sem ceserita uma arma letal contra o erstianismo. ‘Mas, se a crenca na magia parecia absurda a esses ntropélogos, e, diga-se de passagem, ainda hoje assim se presenta para muitos, era preciso encontrar uma expli- feagdo para’ tal disparate. Era preciso explicar por que pessoas que sob muitos aspectos mostravam-se perfeita- ‘mente razodveis persstiam em atribuir veracidade a cren- ‘28 to contrarias légica mais elementar. Veremos entio neste trabalho como esses autores clissicos, em sua busca dda razio, acabaram por trazer elementos importantes para ‘@ compreensio de sistemas de pensamento que, num pri- ‘meiro, momento, pareceriam muito distantes dos nossos, Durkheim ¢ Mauss foram dos primeiros antropélogos ‘deixar de lado a pergunta anterior. Para eles a questio fundamental deixava de ser “por que as pessoas eréem?” © se tomava “qual o sentido da erenca?™. Essa colocacio abandona © espinhoso ¢ insoldvel problema de tentar explicar por que as pessoas se mostram tio ingenuamente cerédulas na eficdcia dos atos migicos. Trata-se de saber 0 {que a magia diz sobre © mundo e de onde vém as catego- ras que ela utiliza ‘A magia passa a ser compreendida como um sistema simbélico. E, quando se fala em simbolos, esté-se falando fem elementos (idéias, objetos, gestos) que representam, por uma légica implicita que cabe ao antropélogo desco- brit, nogdes vitais para a organizagio social: unidade do ‘srupo, poder etc. Veremos ainda como esses autores ‘analisam os simbolos que a aco mégica utiliza. ‘Mas afirmar que 0 rito mégico tem um sentido pura- ‘mente simbélico 10s coloca o problema de saber como ele € capaz de intervir na ordem do mundo, Porque as pessoas ue se utilizam do rito 0 fazem, é claro, esperando obter dele resultados praticos. Seria inconcebivel pensar que, apés seguidos ¢ reincidentes fracassos, permanecesse ine6- lume a crenga em tais atos. Alguma eficécia eles devem ter, jf que se mostram tio perenes, sobretudo quando se ‘consideram sociedades como as nossas, em que 0 avango teenolbgico faria presumir © total desaparecimento da ‘magia. O que vemos, 20 invés disso, é a crenga na magia companhar 0 crescimento industrial das_cidades © se difundir com ele, como é 0 caso da umbanda no Brasil, Qual ¢ entdo a eficécia da magia? Veremos no final deste ensaio como Lévi-Strauss responde a essa questo 0 propor a nocio de “eficécia simbslica Finalmente, se considerarmos que of sistemas mégicos sifo sistemas de pensamento, seria preciso analisar de que ‘maneira esses sistemas se assemelham ou diferem de nossa propria maneira de pensar. © pensamento mégico foi inimeras vezes comparado 20 pensamento cientifice, Sua racionalidade, ora afirmada, ora questionada, Tentaremos reproduzir aqui esse debate, introduzindo, por um lado, 1 interessante comparacdo que o antropSlogo inglés Evans- Pritchard faz entre os sistemas de bruxeria africana e a ‘nossa ciéncia, e, por outro, a analogia de Lévi-Strauss entre cura psicanalitca e cura mégica. ‘Mas, antes de nos aprofundarmos em todas essas discuss6es, fagamos uma pequena pausa para pensar no assunto que aqui nos trouxe: 0 que 6, afinal, a magia? a Magia e religiaio ‘Desde que James Frazer, antropélogo do final do sfeulo passado, levantou 0 problema da relagio entre magia € religiao, @ discussdo a respeito jamais cessou. Mas, apesar da abundiincia de material e da progressiva sofist- ceagdo das interpretagbes psicolégicas © sociolégicas da ‘magia, ndo se chegou a um acordo quanto 20 problema central: por onde passaria a linha de demarcagio que separa os fenémenos religiosos dos fendmenos migicos? As tentativas de distingio concentraram-se fundamen- talmente em toro de duas oposigles bésicas ‘+ a magia trabatharia com forgas que seriam ima- nentes A natureza, enquanto a religiio veneraria forcas ‘ranscendentes; ‘+ @ magia se definiria como um culto individual, tendendo para o privado, enquanto 2 religifo consttuiria ‘um fendmeno coletivo e piblico. ‘Vejamos como se di o debate em torno dessas pola- ridades. Imanéncia e transcendéncia Para James Frazer, existria um antagonismo bésico centre religido © magia fundado na concepcio diferencial {que as duas teriam a respeito do funcionamento da na- tureza, ‘A religido acredita na existéncia de poderes superiores a0s homens (transcendéneia), a quem se atribui o controle dda natureza. A natureza nio'teria, portanto, do ponto de vista da religido, um curso independente dos caprichos divinos, Essa crenga tem como resultado pratico 0 fato dde que 0s homens, para interferir nos acontecimentos, se ‘véem obrigados a aceitar © promover @ mediagao dos deu- ses: preciso estimular a sua boa vontade; € preciso propi- cié-los e agradé-los para que governem bem o mundo. Para a magia, 20 contrério, a natureza nio € regida pelos eaprichos pessoais das divindades, mas por leis rigo- rosamente mecinieas. A sucessio de eventos € concebid como regular e certa, determinada por leis imutiveis, cuja ‘operagdo pode ser calculada e antecipada com precisio. Para intervie no seu curso no é preciso, pois, apelar para qualquer tipo de persuasio, mas, 20 contririo, aplicar simplesmente as leis de causa e feito, Esse antagonismo entre magia © religiio explicar para Frazer, a hostilidade entre padre ¢ feiticeiro ao longo fa historia, Este timo, acreditando poder intervir na fordem do mundo, se mostra arrogante © auto-suficiente fo trato com as forgas sobrenaturais. J4 0 primeiro, de- pendente que da vontade dos deuses, deve, para agradé- “los, percorrer o dificil caminho da obediéncia ¢ submissio. Para Frazer, esss hosildade irredutivel entre magi ce religifo é um indicio evidente de que a crenga na magia anterior, na histéria do pensamento humano, a erenga Marie and religion. Loedon, Thinkers Library, 1944 io. Segundo ele; a descoberta da ineticiéncia de fertos ritos magicos provoca uma verdadeira revolugdo m2 mente dos homens, que passam a ter consciéncia de sua fraqueza e ignordncia diante das leis que organizam 0 ‘mundo, O homem descobre que as forcas naturais no podem ser controladas por ele. E este sentimento de impo- féncia que estaria na base do surgimento das. erencas religiosas. © homem inventa os deuses quando descobre aque © mundo Ihe resist. [Na historia das idgias de evolucionistas como Frazer, ‘a prova de que a magia antecede a religifo esta na sim- Plicidade das crencas magicas: elas se atém & imagem dos {fentémenos coneretos sem enveredar pelo caminho abstrato €¢ especulativo das. reflexdes religiosas, A religito, pelo {rau de abstragdo de seus conceitos e pela complexidade de sua reflexio, seria o pensamento verdadeiramente ante- cipador da ciéncia. Os argumentos de Frazer em favor da precedéncia histérica da magia com relagio & religio so, na verdade, ppouco convincentes, Em primeiro lugar porque # magia festé longe de ser mais simples do que a religito. Alias, a erenca de que o simples precede historicamente 0 mais complexo é um preconceito evolucionista jé devidamente superado pela antropologia. Como bem observa 0 socidlogo francés Georges Gurvitch, as sociedades arcaicas nio sio ‘menos complexas do que as avancadas, mas de uma com- plexidade especifica®, Em segundo lugar porque muitas ‘yezes a magia langa mo, em seus ritos, do auxllio de ‘entidades sobrenaturais, e a religido introduz atos magicos em seus cultos. ‘Também para autores como Marcel Mauss ¢ Henri Hubert, nfo se pode separar dessa maneira religigo e magia. Endo se pode faxé-lo porque as duas sio igualmente La vocation acwelle de la Socologi. Pris, PUF, 1969. u ‘complexas e se interpenetram. Por um lado, a maior parte ‘das religides conhecidas contém elementos mégicos © se utiliza da magia em seus rituais, e, por outro, toda magia, seja cla praticada visando finalidades benéficas ou malé- ficas, faz apelo a divindades sobcenaturais*. Podemos citar ‘como exemplo um ritual que & para nés muito conhecido: fa religiio umbandista, Na umbands, 0 uso da magia € corrente. E as préprias divindades & que, 20 possuir 0 corpo de seus fiis, praticam a magia: a cura para uns, 0 tio cesperado emprego para outros, a solugio de problemas ‘amorosos para outros ainda. Para todos a magia se mostra capaz de encontrar uma saida. Esse exemplo demonstra como € complicado tentar Jistinguir regio e magia em termos de oposigdes como simplicidade/complexidade © imanéncia/transcendéncia. Para autores como Lévy-Bruhl essa distinglo seria um {also problema. Segundo ele, 0s povos “primitives” nio fazem a mesma distingdo que n6s fazemos entre natural ‘¢ sobrenatural para que se possa falar em transcendéncia. ‘A vida mental do “primitivo” se caracteriza pelo fato de {que o mundo sensvel e o mundo sobrenatural permanecem intelectualmente indistinios. O conjunto dos seres visiveis faz parte integralmente, do conjunto dos seres invisiveis, fe estes no so menos reais do que os primeiros *. O ‘mistcismo peculiar & “mentalidade primitiva” tornaria im- possvel a distingdo entre magia e religido na base da jmanéncia da primeira em oposigdo & transcendéncia da segunda: esta linha de demarcagio estaria, para Lévy “Brubl, sempre em movimento, ‘A. definigio do sobrenatural seria uma_experiéncia mais afetiva do que intelectual. A representacao do sobre- Macs, Marcel & Husexr, Henri. Eshopo de uma eora geral de imatia, Sio Paulo, EPU/EDUSP, 1974. ¥. 1. (Texto de 1902) ‘TE w.bnonts Locien. Le surnatiel et le niure dans Ta mentale rimbive. Pais, PUF, 1963 natural no 6 uma stividade intelectiva © abstrata, Ela favade a experigncia do sujeito € 0 mergulha num estado ‘afetivo jé muitas vezes experimentado e, portanto, rapida- ‘mente reconhecido, Aceita a definigio do. sobrenatural como uma experiéncia essencialmente afetva, torna-se dificil distinguir magia ¢ religido na base da oposigio ima- ‘néncia/transoendéneia. Ambas fariam parte de uma mesma ‘‘mentalidade mistica, que se esforga em interpretar, co- nhecer © provocar manifestagdo das_poténcias sobre- natura. Individualidade e coletividade © outro ertério utilizado na distingio entre magia € religiio, a oposigio ato individual/ato coletivo, nfo é menos controvertido que o primeiro. Alguns autores ten- ‘dem a considerar a magia como uma simples manifestagio ‘da malicia pessoal do magico, que se aproveita, em bene- ficio proprio, da credulidade dos membros do grupo a {ue pertence. Na verdade, como bem mostra Marcel Mauss fem seu Esboco de uma teoria geral da magia, a magia, ‘mesmo quando praticada por individuos isolados, munce 64 criagio de um homem s6; ela esta sempre fundada em crengas coletivas, Qualquer rito ou ceriménia sé tem sentido € eficécia porque quem esti agindo através do migico € ‘propria sociedade, A magia €, por definigio, objeto de lua erenga a priori. Porque a crenca & anterior ao resul- tado, a operagio méigica que fracassa nunca coloca em eque 0 sistema. Quando 0 resultado esperado nao vem, refazem-se 0$ ritos,varia-e a técnica e, no limite, substitu se 0 mégico. Mas a crenga no sistema permaneee. ‘Também 0 mégico retia sua forga dos poderes que 1 sociedade Ihe atribui. Ble é 0 que 4, sente 0 que sente porque segue a opinido pablica da tribo: ele € a0 mesmo tempo seu explorador ¢ escravo. A propria sociedade 0 2 cempurra a preencher seu personagem. Lévi-Strauss nos dé tum interessante exemplo de como isso acontece. ‘Um jovem zufi das tribos do Novo México foi acus do de sex feticeiro por ter provocado uma crise nervosa ‘numa adolescente ao tocé-la nas mis. O jovem é imediata- mente julgado pelo grupo, No inicio ele nega veemente- mente ser feiticeiro. Mas suas negativas sio vis. A tribo ‘io queria que ele provasse sua inocéncia, mas, a0 coD- ‘trio, que explicasse como havia recebido ¢ utilizado seus poderes de feticeiro, Vendo serem initeis seus esforgos, ‘© menino muda de estratépia e improvisa uma longa his- ‘ria em que explica a obtengio de seus poderes e os remédios que conhece, Segundo Lévi-Strauss, 0 debate em torno do menino fio visava inocenté-lo da acusagio de feitigo mas espe- cficar as circunstincias em que isso acontecey. Tal exi- géncia adviria da necessidade, para a tribo, de tornar ‘objetivo um sistema do qual ela detém apenas fragments isolados. © proprio menino néo tem certeza de ser ino- cente, j4 que nao conhece de antemao os sinais que reve- Tariam. sua condigdo, Ele constréi o personagem que ® {ribo Ihe impée, a partir de seus conhecimentos ¢ expe- jencias. Basta que a jovem fique curada e que ele inte- orize como sua a histria que criou, para que ninguém mais duvide de sua real condicio de feiticeiro. 'No fundo o julgtmento nao tinha por objetivo rep ‘mir um erime, mas comprovar a realidade de um sistema {que torna o feitigo possivel *. ‘Esse exemplo ilustra bem 0 fato de que a eficécia dos gestos magicos se assenta na tradicdo que 0 oficiante observa. O mégico néo inventa ritos ou representagbes, tle age armado pelos poderes que a sociedade Ihe empresta. (0s alos individuais, supersticiosos, no podem ser consi- TLiiSranvss, Claude, Le sorier et sa magi Ia: —. Anthro- olor nracturale. Pais, Pion, 1974. Jderados mégicos. E isto porque nio se repetem, no estio sancfonados pela tradiglo e pelo consenso social. ‘nto os fendmenos mégicos quanto os fendmenos religiosos s¥o, pois, para Mauss igualmente eficazes: ambos derivam do mesmo caréter social. Assim, embora ele de- fina 0s rituals mégieos como sendo aqueles que nfo fazem parte de cultos organizados e piiblicos, ainda que » magia se constituisse unicamente em ritos privados e secretos ten- dendo para o proibido, sua forma, como no caso da reli ilo, depende da sociedade © $6 tem razio de ser com relagho 2 el Seria, entio, o caréter maléfico dos ritos mégicos, ‘no seu cariter individual, o que os distinguiria dos ritos feligiosos. Mas mesmo essa distingo também nio se pode fazer com rigor. Na verdade, entre os atos mégicos que tendem para o ilicto € 0s atos religiosos que tendem para © sactificio, existe todo um conjunto de ritos mégicos, como os ritos de cura, que nfo so nem secretos, nem proibidos. Assim, uma definigdo da magia que se construa unica mente a partir de sua oposigdo com a religito, deixa de abordar, por um lado, um setor importante do fenémeno :mégico, que ¢ a chamada "magia branca”, péblica e bené- fica, e nio € eapaz, por outro, de tocar no que para Mauss se constitui no prOprio fundamento da magia, a base sobre ‘qual esté assentada sua forga: 0 mand, ‘Veremos a seguir como 0 conceito de mand foi deti- ido ¢ interpretado nos textos antropol6gicos. No entanto, antes de encerrarmos este debate em torno da oposigao religido/magia, gostariamos de acrescentar uma observagd0 final, Saber se magia e religiio so fendmenos distinos € irredutiveis entre si, ou se, a0 contrério, resultam de uma ‘mesma fonte comum, torna-se 20s poucos uma questio periférica na reflexdo antropoldgica. E isto porque o que 1 fazia candente e atual como polémica era a preocupagio subjacente — sobretudo da escola francesa de antropologia ‘com a progressiva desorganizacio da vida social nas sociedades capitalistas européias. Durkheim, como outros autores, apontava a necessi- dade de se encontrarem mecanismos para a defesa ¢ 0 esti- ‘mulo da coesio social e de se lutar contra as tendéncias & ‘anomia, to presente em sociedades como as nossas. Nessa perspectiva, 0 estudo da religiio © da magia tornava-se, pois, central: as duas sé fenémenos sociais que re-signifi cam a coletividade. No entanto a magia, embora coletiva pelo conteddo de suas crengas, no 0 € quanto ao seu exer- cicio. © exercicio da magia, 20 contririo do da religido, tende para o individual, para a separagio mégico/grupo. Para Durkheim tal fato tem como conseqiéncia o deseavol- vimento do egoismo. E, mais ainda: enquanto a transgres- so de tabus religiosos ¢ socialmente reprimida e moralmen- te condenada pelo grupo, a tansgressio dos tabus mégicos rio 0 ¢. Esses dois elementos — coletividade dos atos reli giosos e controle social das transgressGes — levam Durk- hheim a afirmar que, se a religido é fonte de moralidade (coesio social), a magia & fonte de imoralidade (anomia). Essa maneira de pensar 0s confltos sociais ficou ultra- passada pela propria complexidade crescente das sociedades, ‘modernas, Na verdade, nio se pode pensar mais um sistema religioso cimentando a coesio social, de sociedades de tota- Tidade tio complexa. E muito menos pensar 0 universo re sioso como fonte Gnica de representagdes do mundo. No en- tanto esse tipo de interpretagao ainda deixa suas marcas em Interpretagdes mais recentes dos fendmenos mégicos. ‘Tendo como pano de fundo esse esquema interpre- tativo, Roger Bastide analisou, nos anos 50, a macumba paulisia®. Para ele @ macumba seria o resultado de uma A macumba palit. In: —. Estudos afro-brasitero. Sto Paulo, Perspectva, 1973.

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