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ICTERÍCIA
JAUNDICE
MARTINELLI ALC. Icterícia. Medicina, Ribeirão Preto, 37: 246-252, jul./dez. 2004.
A icterícia é definida como coloração amarela- tribuição faz-se como conseqüência da afinidade da
da da pele, escleróticas e membranas mucosas con- bilirrubina por tecido elástico. Essa afinidade pode ex-
seqüente à deposição, nesses locais, de pigmento plicar ainda a discrepância entre a intensidade da icterí-
biliar (bilirrubina), o qual se encontra em níveis eleva- cia e os níveis séricos de bilirrubina em fases de recu-
dos no plasma (hiperbilirrubinemia). A icterícia é clini- peração de doenças que se acompanham de icterícia.
camente detectada quando a concentração sérica A localização da pigmentação pode ser impor-
de bilirrubina ultrapassa 2-3mg/100ml (valor normal: tante para a distinção clínica entre outras causas de
0,3-1,0mg/100ml). pigmentação amarelada da pele, como carotenemia,
A detecção de icterícia tem importante valor condição em que o pigmento (betacaroteno) se depo-
semiológico e deve ser sempre valorizada. A icterícia sita na pele, particularmente nas palmas das mãos,
reflete perturbações na produção e/ou em passos do mas poupa escleróticas e membranas mucosas.
metabolismo/excreção da bilirrubina e pode ser mani- A bilirrubina também pode impregnar a urina, o
festação clínica de numerosas doenças hepáticas e suor, o sêmen e o leite, além de, em casos de icterícia
não hepáticas. A icterícia pode ser a primeira ou mes- intensa, o fluido ocular, podendo determinar queixas
mo a única manifestação de uma doença hepática. de xantopsia (objetos são vistos de cor amarela).
Para a detecção da icterícia é fundamental que
o paciente seja examinado em ambiente com luz natu- 1- METABOLISMO DA BILIRRUBINA
ral adequada, uma vez que, com pouca claridade ou
com iluminação artificial, sua percepção pode ser pre- Os pigmentos biliares são constituídos por uma
judicada. cadeia de quatro anéis pirrólicos ligados por três pon-
Os locais onde a icterícia é mais freqüentemen- tes de carbono. É o principal produto de degradação
te percebida são conjuntiva ocular (em casos mais dis- do heme cujas fontes no organismo, são a hemoglobi-
cretos particularmente na periferia) e pele. Essa dis- na, a mioglobina e as hemoproteínas.
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A principal fonte de bilirrubina é a hemoglobina portada no plasma (Figura 2). É encontrada em flui-
proveniente da quebra de eritrócitos maduros, a qual dos corpóreos de acordo com seu conteúdo de prote-
contribui com cerca de 80-85% da produção total (Fi- ínas, o que explica sua maior concentração em exsu-
gura 1). Dos restantes 15-20%, uma pequena propor- datos que em transudatos. Ressalta-se que as sulfo-
ção é proveniente da destruição prematura, na medu- namidas e salicilatos competem com a bilirrubina pela
la óssea ou no baço, de eritrócitos recém-formados e ligação com a albumina. A bilirrubina não conjugada
o maior componente é formado no fígado, derivado do tem afinidade pelo tecido nervoso e, quando em con-
heme não eritróide e de hemoproteínas hepáticas tais centrações elevadas no sangue em recém-nascidos
como mioglobina, citocromo e catalases. impregna os gânglios da base causando kernicterus.
Em adultos, são quebrados diariamente cerca O fígado ocupa papel central no metabolismo
de 35g de hemoglobina, resultando na produção de da bilirrubina, sendo responsável por sua captação,
300mg de bilirrubina. Em condições fisiológicas, a conjugação e excreção. Em condições normais, a bi-
maioria dos eritrócitos normais é seqüestrada da cir- lirrubina não conjugada é rapidamente captada e
culação após 120 dias de vida pelas células reticu- metabolizada pelo fígado que a prepara para ser eli-
loendoteliais do baço, do fígado e da medula óssea. minada. Estudos sugerem que a bilirrubina se dissocia
Dentro das células fagocíticas ocorre a lise dos eritró- da albumina nos sinusóides e é transportada através
citos e a degradação da hemoglobina. A molécula da membrana plasmática dos hepatócitos envolvendo
globina é degradada, o anel de ferroprotoporfirina é a participação de proteínas transportadoras. Uma vez
quebrado e o ferro parcialmente reutilizado para a sín- transferida para dentro do hepatócito, a bilirrubina
tese do heme. O produto tetrapirrólico resultante é a provavelmente se liga, pelo menos em parte, a uma
biliverdina, que é convertida em bilirrubina pela enzina proteína citoplasmática denominada ligandina. Essa
beliverdina redutase. Essa forma de bilirrubina é de- ligação pode impedir o efluxo dessa substância do
nominada não conjugada e é lipossolúvel. hepatócito para o plasma. Acredita-se que existam
A bilirrubina não conjugada ou indireta liga-se proteínas transportadoras responsáveis pelo transpor-
reversivelmente à albumina, forma pela qual é trans- te da bilirrubina da membrana plasmática até o retículo
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A3. Distúrbio da conjugação da bilirrubina (ati- estão prejudicadas, sendo que a de excreção é a
vidade diminuída da enzima glicuronosil mais comprometida, o que faz com que predomine
transferase) a hiperbilirrubinemia conjugada.
a) deficiência hereditária b) sépsis: as funções de captação, conjugação e de ex-
a1. Síndrome de Gilbert (leve diminuição da ativi- creção da bilirrubina podem estar comprometidas.
dade da enzima; níveis séricos de bilirrubina c) icterícia neonatal: acredita-se que participem fato-
menores que 6mg/100ml); res como diminuição dos níveis de ligandina hepáti-
a2. Síndrome de Crigler-Najjar tipo II (moderada ca, comprometimento da conjugação e da excre-
diminuição da atividade da enzima; níveis séricos ção da bilirrubina, aumento da circulação entero-
de bilirrubina maiores que 6 mg/100ml); hepática da bilirrubina, além de quebra acelerada
a3. Síndrome de Crigler-Najjar tipo I (ausência da de eritrócitos. Os níveis de bilirrubina no sangue
atividade da enzima; níveis séricos de bilirrubina variam entre 6-8mg/100ml, com predomínio da fra-
maiores que 20mg/100ml; é fatal). ção não conjugada.
b) deficiência adquirida
a. drogas 3- ABORDAGEM DO PACIENTE ICTÉRICO
b. doença hepatocelular
c. sépsis Na abordagem do paciente ictérico, alguns
dados da história clínica e do exame físico são funda-
Nos casos de hiperbilirrubinemia não conjugada mentais para o esclarecimento da possível causa da
há icterícia, mas não colúria ou hipocolia/acolia fecal. icterícia. O emprego de exames complementares não
será abordado nesta discussão.
B. Hiperbilirrubinemia conjugada
3A. História clínica
B1. Defeitos na excreção da bilirrubina (defei-
a) idade: a idade do aparecimento da icterícia pode
tos intra-hepáticos)
auxiliar quanto à etiologia de certas doenças, que
a) doenças hereditárias ou familiares são prevalentes em certas faixas etárias, como por
a1. Síndrome de Dubin-Johnson (bilirrubina sérica: exemplo, hepatite A em crianças e adolescentes,
2-5mg/100ml); câncer de vias biliares em pacientes mais idosos.
a2. Síndrome de Rotor (bilirrubina sérica: 2-5mg/
b) profissão: certas profissões possibilitam a exposi-
100ml).
ção a infecções virais, como ocorre com médicos,
b) desordens adquiridas enfermeiros, dentistas, técnicos de laboratório e
a. doença hepatocelular; estudantes da área de saúde, enquanto em outras,
b. drogas (contraceptivos orais, metiltestosterona); o indivíduo pode estar exposto a tóxicos, álcool, etc.
c. sépsis
c) procedência/viagens: é importante saber se o paci-
B2. Obstrução biliar extra-hepática ente é procedente ou permaneceu em regiões
endêmicas de esquistossomose, hepatites e outras
a) obstrução mecânica das vias biliares extra-hepáti-
doenças que cursam com icterícia. Deve ser in-
cas, por cálculo, estenoses e tumores (câncer das
vestigado se o paciente esteve em regiões de ocor-
vias biliares, câncer da cabeça do pâncreas, cân-
rência de febre amarela, leptospirose. Pesquisar
cer de papila ou do duodeno, linfomas).
contacto com excrementos de ratos.
Nos casos de hiperbilirrubinemia conjugada há d) raça: certas doenças ocorrem mais freqüentemen-
icterícia e colúria. A hipocolia/acolia fecal pode estar te em certas raças, como anemia falciforme em
presente ou não. negros.
e) hábitos: uma das etiologias mais comuns de doen-
ça hepática em nosso meio é a alcoólicaportanto, é
C. Multifatorial (defeito em mais de uma fase do
fundamental a informação referente ao uso de be-
metabolismo da bilirrubina)
bida alcoólica (quantidade, tipo de bebida, tempo
a) doença hepatocelular (cirrose, hepatite): em geral, de uso, história de abuso recente de álcool). A in-
as funções de captação, conjugação e excreção fecção pelo vírus das hepatites B e C é freqüente
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o) ascite: pode ser manifestação de hipertensão portal quer etiologia. Xantomas, xantelasmas, hipercera-
e de carcinomatose peritoneal. tose e pigmentação da pele e baqueteamento dos
p) edema periférico: pode ser manifestação de hi- dedos podem ser observados em quadros colestáti-
poalbuminemia que acompanha as hepatopatias cos crônicos.
graves, nesses casos, o edema é frio, depressível
e indolor. A avaliação clínica, cuidadosa e minuciosa, é
q) manifestações de colestase crônica: sinais de co- fundamental no diagnóstico etiológico da icterícia e na
çagem são comuns em quadros colestáticos de qual- orientação da condução clínica do caso.
MARTINELLI ALC. Jaundice. Medicina, Ribeirão Preto, 37: 246-252, july/dec. 2004.
ABSTRACT: Jaundice reflects impaired balance between bilirrubin production rate and its
hepatic clearance. Bilirrubin metabolism and pathophysiology, the causes and clinical features of
hyperbilirubinemia as well as the clinical approach of the jaundiced patient are discussed.
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