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Contribuigées de BOLIVAR LAMOUNIER FRANCISCO C; WEFFORT BOLIVAR LAMOUNIER MARIA VICTORIA BENEVIDES CLOVIS CAVALCANTI ’ FABIO KONDER COMPARATO FRANCISCO C. WEFFORT JOAQUIM DE ARRUDA FALCAO PAULO SERGIO PINHEIRO PEDRO SAMPAIO MALAN, WANDERLEY GUILHERME DOS SANTOS (organizadores) Comentarios de ALBERTO VENANCIO FILHO DIREITO, DAVID TRUBEK CIDADANIA E PARTICIPAGAO HELIO PEREIRA BICUDO LUIS J. WERNECK VIANA \ MARCOS COIMBRA MARIO BROCKMANN MACHADO PAUL ISRAEL SINGER: Biblioteca MA PUuCSP ‘ ball 100021039 Sio Paulo Capa: DITO, bE ARTE DA TAO Diritos reservodos TA QUEIROZ, EDITOR. LTDA Rua Joaquim loriano, 733 — 4 (04534 Sto Paulo, SP. 1981 Impresso no Brasil SUMARIO Apresentacao (F.C. Welfort, B. Lamounier, M. V. Bene- vides)... ¢ficio (Raymundo Faoro) . DIREITOE CULTURA 1, Cultura juridica e democracia: a favor da democrat zagio do Judiciério Uoaguim de Arruda Faledo Neto) Comentarios (Mério Brockmann Machado) 2. Violéncia e cultura (Paulo Sérgio Pinheiro) Comentarios (Hélio Pereira Bicudo) DIREITO E ECONOMIA 1. Tristes processos econdmicos: 0 padrao recente de desen- volvimento do Nordeste (Clévis Cavalcanti) Comentarios (Paul Israel Singer) ve 2.; Desenvolvimento econdmico e democracia: a problem: tica mediagao do Estado (Pedro Sampaio Malan) Comentarios (Alberto Vendncio Filho) . DIREITOS SOCIAIS E PART IPAGAO 1. A cidadania dos trabalhadores (Francisco C. Weffort) Comentarios (David Trubek) 2. Reflexdes sobre a questo do liberalismo: um argumento provisario (Wanderley Guilherme dos Santos) ‘Comentirios (Marcos Coimbra) . DIREITOS POLITICOS E CIDADANIA A ASeguranga e democracia (Fibio Konder Comparato) Comentarios (Celso Lafer) Ix x1 2 31 61 a 105 ut 131 14 183 187 1 199 227 2. Representacdo politica: a importancia de certos forma- lismos (Bolivar Lamounier) .... Comentarios (Luis J. Werneck Viana) Encerramento (Eduardo Seabra Fagundes) . .. 233 261 a APRESENTACAO Este volume retine 0s trabalhos apresentados ¢ debatidos no 1° Seminério sobre Direito, Cidadania e Participacdo, realizado em Sao Paulo, na Pon- tificia Universidade Catdlica, de 26 a 28 de junho de 1979. Organizado pelo Centro de Estudos de Cultura Contempordnea (CEDEC) e pelo Centro Brasileiro de Anélise ¢ Planejamento (CEBRAP), 0 Seminario contou com 0 patrocinio da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) € da Associagdo Nacional de Pés-Craduaco e Pesquisa em Ciéncias Sociais, assim como com o apoio da Fundagdo Ford. Apés um longo perfodo no qual a preocupagio com os direitos umanos ¢ as liberdades democrdticas era, indiscutivelmente, prioritéria, as exigéncias do momento presente, reforgando aquela preocupacio, recolocam, de forma inarredivel, a busca de novos caminhos para a demo- cracia, Esses caminhos passam pela efetiva extenso da cidadania e da participago a todos os setores da sociedade, problema antigo € sempre mal resolvido na hist6ria brasileira. A questo da ampliagdo da cidadania da participagdo € percebida, hoje, como condigdo indispensavel para o desenvolvimento de uma sociedade mais livre e de uma democracia estvel no pais. E por ampliaggo da cidadania entenda-se também ampliagao no campo do Direito, seja através da reforma das instituig6es existentes (na area sindical, por exemplo), seja através da reivindicagfo por maior efi cécia no funcionamento das instituigbes (no caso da justiga, por exemplo). Mais do que 0 momento de uma afirmagio doutrindria de pri pios, 0 objetivo deste Seminario foi, portanto, marcar uma avaliagdo cr tica das relagdes entre Diteito e Sociedade no Brasil contemporineo. 0 desafio urgente na denuncia — jé cldssica, mas nao superada — das trati- g6es elitistas e autoritérias do pensamento ¢ da prética politica no Brasil aponta e justifica a prioridade dos temas abordados. Bastaria lembrar, entre utras questées,a persisténcia da mesma indiferenga ~ historica ~ da socie dade frente 4 violéncia institucionalizada, voltada sobretudo contra as clas- ses populares; da descontfianca, antiga e sempre renovada, das classes dom X ~ Apresentagio nantes em relacdo a todo e qualquer movimento reivindicat6rio dos traba- Ihadores; do ceticismo impenitente quanto & viabilidade de uma auténtica representacfo politico-partidéria; da defesa inquestiondvel de um modelo econdmico sabidamente marcado pelo aprofundamento das desigualdades; ¢, finalmente, do reforgo aos poderes do arbitrio, distanciando-se, na teoria ¢ na pritica, a possivel convergéncia dos interesses da sociedade civil e do Estado. caminho da assim chamada abertura democritica, iniciado com 0 fim do Ato Institucional n® 5, impde uma revisfo, mais atual e mais comprometida, das tarefas particulares e concretas que s¢ apresentam a inteligéncia brasileira. O seminério nasceu dessa consciéncia € dessas preocupag6es, motivado pela nevessidade de proporcionarse um encontro entre advogados, cientistas politicos, economistas, juristas € socidlogos, dedicados a um trabalho de interesse comum. A partir do levantamento dessas quest6es, vinculadas a reflexto biésiea sobre os novos caminhos para a democracia, 0 programa do Semi- nério foi elaborado em tomo de quatro grandes temas — Direito e Cultura, Direito e Economia, Direitos Sociais e Participagdo e Direitos Politicos ¢ Cidadania ~, cada qual dividido em dois subtemas ¢ contando com a par- ticipago de um expositor e um debatedor. Os painéis de debates foram presididos, respectivamente, por Cindido Procépio Ferreira de Camargo, Victor Nunes Leal, Evaristo de Moraes Filho e Miguel Seabra Fagundes. A sesso dé abertura do Semindrio foi presidida por Raymundo Faoro, presidente do Conselho Federal da OAB na ocasido das primeiras reuniGes para a realizago do encontro, e a sesso de encerramento, pelo novo presidente, Eduardo Seabra Fagundes. Ao decidir pela publicagao desses textos, os organizadores do Semi- nério, representando 0 CEDEC ¢ 0 CEBRAP, desejariam prestar uma contribuigo a0 debate nacional. Esperam, também, novas oportunidades para encontros desse tipo, € que sejam cada vez mais proximos do obje- tivo @ que se propdem: a consolidaggo de um espago para o debate li- ‘re, numa sociedade na qual temas como controle da coer¢do legal, tonomia sindical, representago partidéria ¢ eleigOes diretas, desigual- dades regionais, sociais e econdmicas, nfo sejam apenas retérica nos moldes eléssicos do liberalismo restrito, mas a expresso da conjugagfo concreta da liberdade e da igualdade, no entrosamento duradouro do Direito, da Cidadania e da Participagio. Maria Victoria Benevides (coordenadora) Francisco Corréa Weffort (CEDEC) Bolivar Lamounier (CEBRAP) So Paulo, abril de 1980. PREFACIO RAYMUNDO FAORO* Reaproximamos, ainda uma vez, depois do éxito da tentativa de Curitiba, durante a Conferéncia Nacional, os advogados dos cientistas sociais e poli- ticos, que, hd algum tempo, se encontram extraviados em especializagdes pouco compativeis com o seu papel na mesma cidade intelectual. De nossa parte, a dos advogados e juristas, cultivamos, pela presstio do mercado de trabalho, 0 ensino de amestramento no offcio, sem indagar do pressu- posto das leis e de seu alcance social e cultural. Dos cientistas sociais ¢ politicos — digo-o sem intengdo de formular reparos — estavamos distan ciados pelo hermetismo, nfo apenas de linguagem, senfo de uma teoria pouco comprometida com a dindmica social. O resultado desse desen- contro, que,nos dois campos bloqueou a teoria na prética, teria sido a ideo- logizagdo de nossos conhecimentos, ndo raro utilizados para justificar © passado e 0 presente, sem que cuidéssemos de mudé-to, transformé-1o € reconhecer-the a dialética nas suas contradigBes e na superagdo de ilhas ainda operantes, habitadas de gente hostil a atividade do continente. Este Semindrio, fonte e matriz de outros, experiéncia ¢ estudo de convivéncia, nfo tem o objetivo de explicar o pais. Se ele abrange a cida dania € a participago, problematizando-as, tem em conta, implicita- ‘mente, que no pretendemos preparar nenhum projeto, nenhuma receit enderegada eruditamente por um setor da sociedade civil para os labo ratdrios da sociedade politica. Esta fase, a do intelectual como assessor do poder, desejamos todos que nfo mais exista, que se dé por morta ¢ () Quero manifestar a0 Cento de Estudos de Cultura Contemporinea (CEDEC) @ 20 Centro Brasileiro de Andlise ¢ Planejamento (CEBRAP) o reconhecimento pela honra de presidir a sessfo de abertura do Seminirio Diseito, Cidadania © Participagio. Distingue-me a generosidade do CFDEC, pelo seu inspirador ¢ Presidente, Prof. Francisco Weffort, particularmente pelo fato de me haver ‘chamado para 0’ seu convivio apés 0 témino de meu mandato na Ordem dos Advogados, que teve a oportunidade, para engrandecé-a, de patrocinar este enoontt. XI — Preficio sepultada. Vamos buscar tragar 0 perfil de preocupagGes, como acentuet, ‘que ndo substituam a teoria pela ideologia, e que vinculem e reintegrem @ primeira na consciéncia e no préprio dissidio social e cultural, sem dissimuld-lo nem conciliélo na conhecida, ¢ muito conhecida, mani- pulagfo da conciliagéo dos inconciliéveis. O conflito, que esta na raiz da sociedade, hé de se legitimar — entra ai a fung0 do direito — sem escamoted-lo em fSrmulas, em favor da imobilizagio do transitério. A propria estrutura do compromisso, que muda de contetido de acordo com a técnica do momento social, como demonstrou Otto Kirchheimer, hé de atender aos interesses das forgas sociais e econdmicas realmente atuantes, sem que, sobre esta pedra, se consagre 0 dominio do velho sobre 0 novo, do caduco sobre o vivo. O cientista social, e mais do que ele, o cientista politico, hi de recor: dar sempre — como na fabula do escritor desventurado — que a viagem a0 territério da Mancha nfo se empreende solitariamente, mas na com- panhia do deménio que o prosaico escudeiro inventou para seu tormento, ‘onde os gigantes se transfiguram em seres do quotidiano e os esquadr6es saidos do pé a0 pé nfo retomam. s temas tratados neste semindrio, basicamente decorrentes de uma preocupacdo prioritéria com a defesa dos direitos humanos e o restabele- cimento pleno da democracia no pais, refletem o desafio da conjugaglo da liberdade politica a liberdade como participacS0, no reconhecimento explicito das quest6es de interesse social e popular. A avaliagSo critica das relagdes entre cultura e as instituig6es juridicas, entre direito e economia, entre direito e politica social, sugere questOes de atualissima urgéncia para todos os que frequentam esta drea de necessério e fértil inconformismo: a violéncia institucionalizada; a autonomia sindical e a representatividade partidéria; 0s falsos dilemas para a execugdo de politicas sociais e econd- micas do ponto de vista dos interesses da sociedade civil e nfo do Estado. Nao podia, considerados os temas que nos ocupam, ser mais proprio © tempo para os debates aqui travados. Esta é uma hora de reformulag6es, de esperangas na emergéncia da sociedade civil, compreendida além do formalismo hegeliano, que, para se expressar, hi de se articular a um pacto social e jurfdico, que, de alguma maneira, hd de depender de nés, de nossa inteligéncia, mas sobretudo do exereicio da determinago de atuar, prote- sido pelos direitos amplos da cidadania. DIREITO E CULTURA 1 CULTURA JURIDICA E DEMOCRACIA: A FAVOR DA DEMOCRATIZACAO DO JUDICIARIO JOAQUIM DE ARRUDA FALCAO NETO* Este trabalho! estd estruturado a partir de duas perspectivas interligadas. ‘A primeira retoma clissica discuss4o sobre 2 participagdo dos cidadaos no regime democrético. O ideal demoerdtico — atuando como idéia- forga — aponta para o aperfeigoamento constante dos mecanismos de participagio popular nas decisdes piblicas. Tendo a sociedade modema, tecnoldgica e de massas, tomado distante a possibilidade da participagdo direta de seus cidaddos na gestio do Estado, o ideal volta-se para 0 aper- feigoamento dos mecanismos de representagdo coletiva ‘A tarefa do aperfeigoamento da representagio coletiva tem focali- zado privilegiadamente ou o Legislativo, donde as discussOes sobre par- tidos politicos e sistemas eleitorais, ou 0 Executivo, donde as discussbes sobre grupos de pressfo, representacdo setorial ¢ institucional, e sobre 0 processo decisério das politicas piiblicas. Se, no entanto, entendermios, como o faz Bolivar Lamounier, que 0 problema da representagio envolve toda comunicagdo entre sociedade civil e Estado, também no Judiciério se coloca, ou deveria colocarse, a discussfo sobre a representagio coletiva, ‘Aqui reside nossa segunda perspectiva: a perspectiva que focaliza © Judicidrio como uma das instituigdes do Estado onde o ideal democré- tico impde também a tarefa de aperfeigoar os mecanismos de represen- tagfo coletiva. No Judicifrio esta tarefa abre duas possibilidades. A pri- meira, quando do recrutamento dos juizes e da selegfo do rito processual. Donde as discuss6es sobre a origem de classe da Justia, e a Justica po- pular. A segunda, quando da efetiva apreciago dos conflitos sociais jé transformados em aco judicial. Donde as discuss6es sobre os obstéculos (+) Professor do PIMES (Programa Integrado de Mestrado), de Recife, PE. (A) Agradego aos professores Délio Maranhdo, Jorge Hlilério Gouveia Vieira, Pedro Montenegro, Roberto Mangabeira Unger e Francisco Britualdo Canecant, ue discutiram e deram valiosas sugestdes & versGo preliminar deste texto, bem como a Alexandrina Saldanha Moura pela participagio na parte de pesquisas. A respons ilidade 6, no entanto, unicamente do autor. 4 ~ Direito e cultura que impedem determinadas classes sociais de levarem a0 Judiciério os conflitos em que se envolvem no quotidiano. Donde as dicuss6es sobre © acesso A Justiga. A primeira delimitagGo de nosso tema ¢ esta: tratase de focalizar 0 acesso a0 Judiciério como um mecanismo que pode ou nfo estar a favor da implementagio da representagfo coletiva dos cidadfos, como aperfeigoamento do ideal democratico, ‘Quando focalizamos © Judicidrio brasileiro pelo prisma do acesso que a ele podem ter as diversas classes sociais, no fundo colocamos inda gag%0 maior. Por um lado, reforgamos a crenga na organizacao tripartida do poder do Estado, como ainda sendo a melhor forma organizacional para se atingir o ideal democrético. Por outro, perguntamos como numa sociedade de classes como a nossa esta organizagdo do poder pode deixar de ser apenas operacionalizago do interesse egoistico da elite. Ou seja, estaria 0 Judicidrio cumprindo a fungdo que na democracia o legitima aos olhos do cidadgo: de equacionar conflitos sociais? E mais: de que maneira, na sociedade hierarquicamente estratificada, a favor de quem, contra quem € em nome de quem esté cumprindo essa fungao? Qualquer diagnéstico sobre o Judicidrio de hoje dificilmente deixaria de constatar trés aspectos desalentadores. Em face do baixo nivel de remu- neragdo de pessoal, do conservadorismo administrativo e do desaparelha- mento técnico, constata-se um Judicidrio operacionalmente ineficiente. Em face de elevados custos processuais, de excessivo ritualismo profis: sional ¢ de rigida estrutura de poder, constata-se um Judiciério social- mente elitist, Finalmente, em face de preciria autonomia econdmica ¢ financeira, de um processo formal de selegdo de juizes de subservientes telagdes com 0 Executivo, constata-se um Judicidrio politicamente depen- dente? Nao é, no entanto, sob nenhum desses trés aspectos — 0 da inefi- cigncia operacional, 0 do elitismo social e 0 da dependéncia politica — que pretendemos tratar do problema do acesso & Justiga. Nosso compro- isso temético € com a cultura juridica. Interessa, entfo, identificar os mecanismos da cultura juridica dominante que viabilizam ou nfo 0 acesso! das classes sociais a Justiga. Vale dizer, interessa identificar como, por exemplo, no direito processual, 0 conceito de partes legitimas de uma agfo esté ou nfo a favor do aperfeigoamento da representacio coletiva. Donde do regime democratico. Especifiquemos melhor nosso pensamento. A cultura juridica domi- nante fomece as caracteristicas das normas, das leis em vigor. Vale dizer, (2) Nos Giltimos 15 anos, © controle do Judicidrio pelo Executivo foi tecnicamente ‘aumentado pela maior parcela de poder que passou a deter o Procurador Geral da Repiblica, representante do Presidente da Repiblica na administragio a Justica. F, por exemplo, o caso da arguigfo de inconstitucionalidade das leis, que pasta agora antes pelo crivo do Procurador Geral Direito e cultura — § estabelece, por exemplo, a necessidade ou ndo de um Cédigo de Processo Civil, que por sua vez estabelece, através de seus artigos, quais os contflitos sociais que poderdo vir a ser apreciados pelo Judiciério. Ocorre que esta selegfo de conflitos que se pretende limitada a nivel jurfdico, traz conse- quéncias para a disputa que travam os grupos e classes sociais pelo poder e pela riqueza social. Em outras palavras, a tipologia dos conflitos sociais embutida em qualquer ordem legal, é também vitima da estratificagd0 social.? Aqui se faz necesséria a pergunta: “Até que ponto, selecionando direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, pouco importa, 08 conflitos apreciados pelo Judiciério, a cultura jurfdica seleciona também (os grupos e classes sociais que tém acesso a Justica? E em que condig6es?” ‘outras palavras, qual o eventual contesido politico da fungdo seletiva ‘da cultura jurfdica? A segunda delimitago do nosso tema é, portanto, (© eventual contetido politico da fungfo seletiva da cultura juridica atual. \-y Antes de tomar menos érido o inicio deste trabalho, descrevendo |trés casos de conflitos sociais e relacionando-os com 0 tema do acesso, hd que se explicitar desafio maior embutido no estudo da cultura jurf- dica como mecanismo que viabiliza ou dificulta 0 acesso a Justica. Na verdade, existe diferenga fundamental quando se admite como eventual obstéculo & Justiga, por um lado, a ineficiéncia operacional, 0 elitismo J social ¢ dependéncia politica, e, por outro lado, a cultura juridica | E que aqueles, os primeiros, so explicitamente patologias, desvios de | curso ideal. Ninguém os defende. Embora muitos deles se aproveitem. | Todos se unem contra tais patologias. Pelo menos a nivel de ret6rica, | © com certeza a nivel das intengdes. Com a cultura jurfdica ocorre o in- verso. A primeira vista nfo aparece como desvio, patologia, obstéculo, ‘Muito pelo contrério. Apresentase sempre como mecanismo viabilizador ideal democrdtico. O diteito processual pretende estar a favor, € nfo contra o acesso A Justiga. Pretende estar a favor, e ndo contra a participa- ‘980 de todos os cidadios no equacionamento judicial dos conflitos em que se envolvern. Se, no entanto, constatarmos que a cultura juridica dominante ¢ liberal e que, como ensina a Histéria, no liberalismo associado a0 capit lismo a separagdo entre o ideal democrdtico e igualitério ¢ a praxis autori- (dria e hierdrquica € levada ao extremo (Unger, 1976), temos que deixar a porta aberta para uma hipdtese. A de que a cultura jurfdica, em vez de aproximar, afasta a nagio do ideal democrético. Ou seja, situando histo icamente nossa temética: “Como se processa a fungdo seletiva politica @) Ver, a propésito, 0 trabalho do Prof. Boaventura de Souza Santos, sobre, a ‘ordem tegal numa favela do Rio de Janeiro em “The Law of the Oppress: Law and Society Review, U.S. A.,12 (Fall): 5-126, 1977. 6 — Direito e cultura de uma cultura juridica, numa sociedade marcada pelo discurso liberal ¢ pela priéxis autoritéria?” Em outras palavras: uma das marcas que defi nem a faléncia do liberalismo, sobretudo em pais economicamente depen- dente, é menos seu discurso ideolégico que a associagGo deste discurso com meios radicalmente inadequados para realizar seus objetivos explici- tados. Esta associagéo nfo é gratuita, nem autdnoma. Ao contririo, ela resulta da evolugo das relagdes entre as diversas classes sociais, ¢ como essa evolugdo se traduz no relacionamento do Estado com a sociedade civil. Em nosso pafs, reflete basicamente tanto seu compromisso com 0 Estado como 0 compromisso deste Estado com a manutengfo da posigl0 privilegiada da elite na hierarquia da sociedade civil. ‘A cultura juridica, portanto, pode também revelar essa face, a de meio inadequado aos seus objetivos gerais explicitados. Por isso, a identifi- cagdo da eventual fungdo seletiva do direito provessual € tarefa que exige duplo esforgo. Exige ultrapassar a evidéncia do discurso juridico, que nega formalmente a fungdo seletiva, Exige buscar na constatagfo empirica, vale dizer, na avaliago das consequéncias da interferéncia, ou nfo, do Judicidrio no provesso onde as classes sociais disputam 0 poder, os even- tuais limites ideol6gicos da cultura juridica dominante. Assim, o problema da representag0 coletiva no direito processual, que ocupa a primeira parte deste trabalho, constitui um estudo de caso, através do qual identifi- camos a concepgao de conflito e de contrato que esté por trés da ordem legal e da praxis de nosso Judicidrio. Nao se trata, pois, de um trabalho exclusivamente de direito proces sual. O tema de direito processual faz parte de uma estratégia epistemol6- ica. Constitui a via de acesso que permite identificer as insuficiéncias do liberalismo cldssico como fundamento de uma cultura jurfdica que pre- tende viabilizar o ideal democrético. Estratégia epistemolégica que opde uo dogmaticamente dedutivel o empiricamente indutivel. Daqui por diante, o trabalho desdobrase em duas partes principais: a primeira € mais técnico-juridica, focaliza a préxis quotidiana do Judi- Cidrio através do estudo de trés casos, trés conflitos encontradigos no quotidiano dos nossos cidadfos, ¢ como estes conflitos chegam ou nfo a apreciagfo do Judiciério; a segunda, mais politico-juridica, pretende ana- lisar as conseqiéncias da interferéncia ou nfo do Judicidrio nos conflitos mencionados, tendo em vista o ideal democrdtico da sociedade. Trés casos. Conflitos exemplificativos [As questdes iniciais que nos orientam a0 descrever estes trés casos representativos da cena brasileira contemporénea sfo as seguintes: Em que condig6es pode o Judicidrio interferir no equacionamento dos con- flitos que a seguir descrevemos? Especificamente, quais as vias de acesso Direito e cultura — 7 abertas pelo direito provessual para que 0 Judicidrio aprecie estes con- fitos? © primeiro caso conta a historia de um assalariado que em 1969 obtém financiamento do Sistema Financeiro da Habitagfo, dentio dos programas habitacionais das COHABs. E 0 mutusrio do contrato de finan- ciamento para aquisiggo de bem imével, com pacto hipotecdrio adjunto, Diante de si, no correr do contrato, tem trés possibilidades: 4a) mantém seu nivel salarial, mantém em dia as prestagBes, no tem pro- blemas com a qualidade da construgfo nem com os servigos piblicos correlatos; +b) reduz seu nivel salarial, atrasa as prestagOes, tem problemas com cons- trugfo ¢/ou servigos piblicos; ¢) reduz seu nivel salarial, ndo paga prestagoes, fica inadimplente, o con- ‘rato € executado judicialmente. © que a imprensa e as estatisticas nfo reveladas do BNH indicam é que no Brasil, hoje, prevalecem as hipdteses 6 e c. © segundo caso conta a histéria de um jovem, do Nordeste, estu- dante da escola média, sem maior qualificago profissional, que depois de muita dificuldade consegue colocagzo numa grande empresa, Eo em pregado sob contrato de trabalho, servente, balconista ou caixa de super- mercado. Diante de si, no corter do contrato, a0 constatar as precdrias condigdes de higiene ¢ seguranga de trabalho, ou a exigéncia abusiva de horas extraordindrias, tem trés possibilidades: 4) reclama pot seus direitos junto ao empregador, é atendido, e mantém seu vinculo empregaticio; +) leva sua reclamagio ao Sindicato e/ou a Delegacia Regional do Traba- tho, que providencia junto a empresa o reconhecimento e 0 respeito 408 direitos do empregado; ) ou simplesmente adaptase a situago, com medo de perder o emprego € nfo conseguir outro, © que a imprensa ¢ a Justiga de Trabalho hoje indicam é que no Brasil prevalece a tiltima hipotese. © terceiro caso conta a histéria de uma empresa privada. Emprei- teira, ento credora da Secretaria de Obras do Estado pela prestagio de servigos jé executados. Ou industrial, ctedora de uma agéncia de desen- volvimento federal, SUDAM por exemplo, para receber a parcola de recursos pilblicos de incentivos fiscais, contrapartida dos recursos privados J4 investidos no projeto em implantago. Cumpridas suas. obrigagdes Contratuais a empresa tem diante de si trés possibilidades 4@) recebe seu crédito no prazo contratual estipulado; >) sfo feitas exigéncias suplementares, de servigos ou documentais, para lelas ao contrato, que protelam 0 recebimento; depois de cumpridas 8 ~ Direito e cultura © pagamento devido ¢ efetuado sem corregdo monetéria pelo atraso; ¢) simplesmente & obrigada a esperar pelo pagamento, sem maiores expli- cagbes, até o dia em que a disponibilidade de caixa da Secretaria de Obras ou da SUDAM o permita (© que a imprensa e as continuas reivindicagSes dos empresdrios indicam € que no Brasil, hoje, prevalecem as hipdteses b € A cultura jurfdica liberal Atualmente, para que 0 Judiciério aprecie qualquer um desses casos, as partes envolvidas tém que preencher os requisitos do artigo 3° do Cédigo de Processo Civil, que diz: “Para propor ou contestar ago € neces- sério ter interesse e legitimidade.” A doutrina chama esta legitimidade de legitimatio ad causam. Significa que “sd o titular de um diteito pode discutilo em juizo” (Barbi, 1975, p. 116). Consiste “na individualizagdo daquele a quem pertence o interesse de agir € daquele em frente ao qual se formula a pretensfo levada ao Judicidrio”. (A. Buzaid, apud Marques, pp. 160.) Por sua vez, ter interesse significa nfo somente ser o titular de ‘um direito, mas que este direito esteja ameagado. Significa que “sem a intervengfo dos érgfos juridicionais 0 autor sofreria um dano” (Chio- venda, apud Barbi, p. 29). Finalmente 0 artigo 69 do Cédigo de Processo Civil esclarece, complementando: “Ninguém poderd pleitear em nome préprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei.” Minha primeira observagio & a de que na medida em que o direito processual reduz 0s conflitos, como 0s dos casos que mencionei, a con- flitos individuais, deixa de apreender sua natureza real, O conflito do assa- lariado com a COHAB, do empregado com o supermercado, da empresa com a Secretaria de Obras, dificilmente pode ser caracterizado como con- {lito individual. Trata-se, na verdade, de conflitos mais complexos, envol- vendo segmentos da coletividade. No decorrer do trabalho explicitaremos melhor nossa posigfo. Na verdade, a intervengo do Judicidrio, tal qual determinada pelo Cédigo ¢ pela doutsina dominante, foi desenhada a partir da concepe&0 de contrato, através da qual o liberalismo vé as relagSes sociais. As princi- pals caracteristicas deste contrato s40: 4) partes iguais e individualizadas; ) relacionadas por vinculo de coordenagéo; ¢) detentoras de autonomia de vontade. Concepgfo que entende 0 conflito, contrapartida do contrato, nfo como resultante de divergéncias entre grupos e classes sociais, mas de diver géncias entre individuos. Individuos iguais pela prépria natureza humana, aluando com determinagfo de vontade, livres. E 0 padrio liberal clés- sico. Quando traduzido @ nivel econdmico, serve para também legitimar, Direito ¢ cultura — 9 no regime capitalsta, a nBointervengdo do Estado, privilegiando © mer- ‘ado em detrimento do Estado, a concorréncia em detrimento do plane mento. © olhar atento do leigo dispensa qualquer verificagdo empitica quantitativa para constatar que este padrdo, liberal clissico, é dectes- Gente no Brasil de hoje. Encontradigo, talvez ainda, no direito de familia, ‘Mas, para as relagSes politicas e econdmicas, novo tipo de contflito emerge, ¢ estd latente nos {18s casos mencionados. Tratase de conflito que tem como partes de um lado um segmento da coletividade e, de outro, uma grande organizagfo estatal, sobretudo do Executivo. fo caso do mutuério com @ COHAB, da empresa com a Secretaria de Obras. E mais, 0 conflito do contribuinte com o Ministério da Fazenda, do empresirio com a SUNAB, do cidadio com o aparato policial, do consumidor com a empresa de servigos piblicos. Trata-se também de conflito entre um segmento da coletividade © uma grande organizagdo privada. SG0 0s casos do empregado com 0 supermercado, do posseiro com a imobilidria, do correntista com, © banco, do consumidor com a revendedora de automéveis, do assalariado com a construtora, do trabalhador rural com a usina, Ainda & dificil especificar detalhes deste novo padrfo. Vo depender sobretudo da evoluglo das relagbes entre sociedade civil e Estado. Se, no entanto, tomarmos como referencia 0s casos méricionados, identificamos alguns pontos de convergéncia. Trata-se de conflitos entre: 4) partes desiguais e ndo-individualizadas, de um lado um segmento da coletividade e, de outro, uma grande organizagdo publica ou privada; +) partes com graus diferenciados de autonomia de vontades; 6) partes relacionadas por vinculo de subordinagZo econdmica, politica, ou ambas. ‘este novo padrdo de contlito chamamos padifo emergent. ‘A inadequagio da cultura juridica que privilegia o padrfo liberal cléssico em lidar com 08 conflitos do padrlo emergente € faciimente explicitada. Da andlise do Cédigo de Processo Civil e da doutrina da legitimatio ad causam depreende-se que os mecanismos que viabilizam 0 a0ess0 a0 Judicidrio sf0 dois: o mecanismo da individualizagfo do conflito € 0 mecanismo da iminéncia ou ocorréncia do dano. Vejamos um a um. © mecanismo da individualizagZo dos conflites, para estar coerente com 0 arcabougo liberal ser socialmente eficaz, deve provar a existéncia das seguintes condigges empiricas 42) a condigfo de igualdade das partes; ) a condigdo do isolamento dos contfitos; €) a condigdo de que o beneficio € maior que o custo. A condigfo de igualdade das partes pressupde que as relagbes entre 8 cidadios sejam de coordenagio, ¢ desdobra-se em diversos aspectos b 10 — Direito e cultura como: partes conscientes e concordes com seus direitos legais e meios processuais para exercé-los; partes com alternativas de comportamento antes, durante e depois da ago judicial; e, finalmente, partes com idén: ticas possibilidades de suportar custos financeiros, politicos e sociais da ago judicial. Evidentemente, inexistem no Brasil estudos empitico: quantitativos que nos fornegam dados precisos, evidenciando a falécia destes pressupostos liberais. Facil de perceber, no entanto, pelo senso comum, que no Brasil de hoje dificilmente seu cidado mediano preenche a condigo de igualdade. Sem mencionar 0 cidadao das classes populares, @ maioria, Sdo requisitos encontradigos nas grandes organizagées piiblicas ou privadas, ou em poucos privilegiados membros da elite. Facil também de perceder 0 quio dificil € pressupor que numa sociedade de classes, como a nossa, as relagGes entre os cidaddos se caracterizem pelo vinculo de coordenagdo. Essa pressuposigfo idealiza as relagGes sociais. Formaliza a realidade. Obscurece-the a natureza. No maximo corresponde a algumas relagdes intraclasses, Nas relagdes interclasses privilegia os que detém o poder politico e econdmico. Raramente o assalariado ou o posseiro estfo conscientes de seus di teitos € sabem como exercé-los. E como nfo sabem, ¢ deveriam saber, @ concepefo liberal de conflito s6 sobrevive pelo artificio de formalizar a realidade, Dai a necessidade de principios juridicos como: a ninguém cabe ignorar a lei, Substituise constataggo empirica pela aparéncia legal Salva-se da explosto a concepgdo liberal. Mas, o prego pago é alto e duplo. A curto prazo, condena a cultura liberal funggo de mera legalizadora das desigualdades sociais, Legalize a desigualdade. E, a longo prazo, perde qualquer eficdcia, mesmo como instrumento de dominagao, ‘A segunda condigfo para que 0 mecanismo da individualizagao dos conflites possa estar coerente com o arcabougo liberal e seja social- mente eficaz, € a condigéo do isolamento dos conflitos. Condiggo que encontra dificuldades em sobreviver numa sociedade onde o aumento da complexidade das relag6es sociais e econdmicas intensifica as inter- dependéncias econdmicas e as aliangas politicas. A crenga liberal na possi bilidade de isolamento dos conflitos sociais faz com que 0 empregado Banhe a reclamacSo judicial pelas horas extraordinérias que nfo recebeu, mas perca 0 emprego; que o empresério ganhe o mandado de seguranga contra 0 ministro da Fazenda, mas perca 0 crédito do banco oficial; que a imprensa assegure sua liberdade de denunciar, mas percs 0 antincio que Ihe permite continua. Finalmente, a terceira condigfo € a do beneficio auferido com a Questo judicial maior do que 0 custo processual. CondigSo que encontra dificuldades em sobreviver, tanto numa situagdo de inflagfo crénica e Judicidrio lento quanto na de estabilidade econdmica e Judicidtio eficaz. Direito e cultura — 11 £ que 0s danos do padrfo emergente tendem a ser cada vez menores em ‘nimero cada vez maior de cidadaos. E 0 dano da indiistria no consumidor, da diretoria no acionista, da censura no piiblico. O direito processual atual pulveriza o dano coletivo numa pluralidade de danos individuais. Em determinados casos pode ser que o beneficio para o autor venha a ser maior do que 0 custo da agfo. Mas isso nfo é regra. E mais. Em termos da eficdcia do Jusiciirio, composigfo individual do dano é contrapro- ducente. Pelo simples motivo de que mesmo se 2 COHAB, a Secretaria de Obras, ou o supermercedo perder a causa e incorrer na pena monetéria, tratase, geralmente, de perda economicamente irrelevante se conside- rarmos os outros danos, fruto da mesma atuago do mesmo autor, que nfo chegam ao Judicidrio. Hoje em dia consideram-se estes custos do ilicito como custos previstos, assumidos empresarialmente e incluidos no prego do produto. Sfo custos estatisticamente suportéveis e estimulantes. Como tal, 0 direito processual paradoxalmente beneficia e estimula o grande infrator dos pequenos ilicitos. © segundo mecanismo, que ao lado do da individualizagfo dos conflitos determina 0 acesso a0 Judicidrio, € 0 mecanismo da iminéncia ou ocorréncia do dano. Para ser coerente com 0 arcabougo liberal que © produz e socialmente eficaz, pressup6e ¢ deve prover a existéncia das seguintes condigdes empiricas: a) existéncia de adequagfo entre a ocorréncia do dano e sua relevancia processual; b) a composigfo legal do dano, sobretudo monetéria, e/ou a punigfo do infrator, satisfaz 0 ideal de justiga da coletividade A percepgfo de que aguardar a ocorréncia do dano 6 insuficiente para proteger a liberdade individual nos conflitos entre cidadfos e Estado Jevou a criagdo do Aabeas-corpus ¢ do mandado de seguranga, de que ndo mais pode dispensar um Brasil democrdtico. A velocidade e complexidade das relagdes econdmicas numa situagéo de Judicidrio lento e inflagdo crénica indicam também a insuficiencia de uma intervengdo a posteriori € da composigdo meramente monetéria do dano. A intervengao quase sempre @ posteriori do Judicidrio pressupoe, a um primeiro nivel, um Judiciério operacionalmente eficaz, capaz de atuar com eficiéncia ime- dita, A um nivel maior de abstragGo, pressupde que a atuacfo a priori favoreceria uma das partes do mercado das relagdes sociais, desequili- bbrando 0 principio da live concorréncia. Ora, ambos os pressupostos fo devem ser focalizados apenas a partir de suas verdades abstratas. Na medida em que pragmaticamente determinam ¢ legitimam uma determi- nada atuago do Judicisrio, cabe aos que os defendem 0 onus de provar que de fato existem empiricamente. O que, de nossa parte, acreditamos improvével no Brasil de hoje. Como também é ingenuidade, de uma 12 ~ Direito e cultura cultura juridica que se leve a sério, acreditar que o direito do empregado 4 seguranga € higiene do trabalho se satisfaz com o empresirio pagando multas 20 Estado, Como também que o Sistema Financeiro da Habitaggo se satisfaz com a execugfo da hipotece do mutudrio inadimplente. Na verdade, a composigo apenas, ou mesmo sobretudo, monetdria do dano reduz todos os valores humanos ¢ sociais a apenas um: 0 monetério. Resulta no aprisionamento dos ideaisliberas 4 Iogica do capital. A inadimpléncia coletiva do SFH A anilise detalhada da intervengGo do Judiciirio nos casos de ina- ddimpléncia, nao pagamento, dos mutudrios que compraram iméveis da COHAB, com financiamento do Sistema Financeiro da Habitagdo € extre- ‘mamente ilustrativa da crise da cultura juridica liberal. A defasagem entre, de um lado, 0 aumento do valor da prestagao a pagar e, de outro, © aumento do custo de vida € do salério, gerou inadimpléncia ndo indivi- dual, mas coletiva. E © espeticulo dos conjuntos habitacionais abando- nados ¢ decadentes da periferia urbana das capitais. Inevitavel a inadim- pléncia, visto que 0 mutuirio outra fonte de renda nfo tem que nfo 0 saldrio, os agentes financeiros do Sistema Financeiro da Habitagdo entrar ram na Justiga e executaram o contrato, Na maioria dos casos, os mutuérios inadimplentes, os assalariados, foram condenados & revelia. Nao compare- ceram a0 Judiciério, Retomado, o imével ia a leildo. Se encontrava arrema- tante era por prego inferior ao débito corrigido contabilizado. Se ndo en- contrava, os agentes financeiros ficavam com a posse € propriedade do imével. Ambas as hipéteses nfo interessavam aos agentes. Tinham que rea- lizar prejuizo, diminuindo o fluxo de circulago de recursos financeiros do Sistema. A solugfo através do Judictério era social, econdmica e financeira mente ineficaz. Nem solucionava a necessidade de moradia do assalariado, nem a do Sistema de manter 0 fluxo de recursos financeiros crescente. Evidencia-se com este caso a ineficécia da intervencZo do Judicidrio que insiste em tratar como individual o que € conflito coletivo. Ineficaz mesmo como instrumento, comprometido a privilegiar @ pretensto finan- ceira do credor, em detrimento da pretensto de habitagdo condigna do devedor. Notese apenas que foi justamente para atender a pretensfo de hhabitago condigna das classes médias © populares que foi estruturado © SFH. As partes processuais, socialmente legitimas, nfo cram o assala- riado x contra a COHAB do Estado x. As partes processuais socialmente legitimas eram, de um lado, todo um segmento de assalariados em busea da casa propria e, de outro, os agentes financeiros, esteados na politica habitacional do Estado. Para que 0 Judiciério pudesse apreender toda a complexidade grave do conilito social em.foco, primeiro teria que admitir 0 cardter coletivo Direito e cultura ~ 13 da representagfo legal dos assalariados. Teria que admitir que fossem representados na Justiga por seu sindicato, por sua associagGo de bairro, pela Comissfo de Justiga e Paz etc. . A representacéo legal coletiva é, no entanto, proibida pelo artigo 62 do Cédigo de Processo Civil: “Ninguém poderd pleitear, em nome proprio, direito alheio (...).” Na medida em que se insiste na representagdo legal como representago individual, os assalariados no comparecem a Justia. Perde 0 Judiciério sua oportuni- dade primeira, caso pretenda viabilizar o ideal democritico: 0 de ouvir 0s argumentos de ambos os grupos e classes conflitantes. Em seguida, Judiciério teria que ter percebido que a inadimpléncia nfo dependia da autonoma vontade das partes: nem do mutuério — assalariado —, nem também do agente financeiro — como pretende fazer crer a concepeo liberal de contrato. Trata-se, na verdade, de um contrato de adesfo, cujas cldusulas foram determinadas nfo pelas partes, mas pelo Estado através do Banco Nacional de Habitagfo. Na verdade, a inadimpléncia jé era 0 desdobramento de um conflito anterior, que neste momento se expressava como um conflito entre mutuérios (classe média e popular) e agentes financeiros (elite econdmica e financeira). Era 0 desdobramento do con: flito pelo controle do Estado e de sua ordem legal. Se 0 Judiciério pudesse escapar 4 formalizago da realidade social que a cultura juridica liberal cldssica exige para sobreviver, teria percebido a verdadeira questo a deci- dir. Em termos da dogmética juridica, trata-se de decidir sobre a legalidade das resolug6es do Banco Nacional da HabitagZo que definem os programas de financiamento da faixa popular, tendo em vista o que diz o artigo 1° da Lei que criou o SFH: “O Govemo Federal (...) formulara (....)a pol tica nacional da habitago no sentido de estimular (....) 0 financiamento da aquisigGo da casa propria, especialmente pelas classes da populago de menor renda” (Lei 4.380/64). Deste modo, a inadimpléncia do assala- riado colocava para apreciagZo do Judicidrio uma questo muito maior: 4 da participagfo dos segmentos da coletividade envolvidos nos programas habitacionais, no processo de formulaggo da politica habitacional do Executivo. A nivel maior de abstragfo, tratava-se de julgar o autoritarismo introduzido na politica habitacional do BNH; de avaliar a compatibilidade do processo decisério normativo do SFH com o ideal democratico. Em outras palavras, tratavase de identificar o eventual conteiido de classe introduzido nas normas que regem 0 SFH. Na medida em que 0 Judicisrio do enfrenta esta questdo, abte mo de sua pretensfo de Poder indepen- dente. Sobretudo, perde em legitimidade aos olhos dos cidaddos, artis candose ao descrédito social e tornando mais distante o ideal democré: tico, Inadimplente no caso ndo foi o assalariado, mas a politica autor téria, habitacional e salarial do Executivo, ¢ ausente foi o Judicidrio. Este exemplo do SFH ¢ ilustrativo porque permite constatar, nfo s6 no direito q 14 = Direito ¢ cultura processual mas também no direito das obrigagdes, alguns dos mecanismos bésicos da cultura juridica liberal, como a miopia que vé no contrato de financiamento 0 resultado da vontade livre de partes individualizadas. direito liberal pretendeu inicialmente ser uma barreira a ago do Estado. Em favor da sociedade civil. No momento em que o Poder Execu- tivo reverte esta pretenséo ¢ coloca a ordem legal como expresso do seu expansionismo, paradoxalmente a insisténcia do Judiciério em pautar seu entendimento da ordem legal pelos principios liberais clissicos nfo limita, nfo & mais freio nem contrapeso, mas, 20 contrério, deixa livre © Executivo para agir. Neste sentido, por exemplo, o Judicidrio nfo admitindo entrar no mérito da questéo fundamental da inadimpléncia coletiva do SFH — a participagfo popular no processo decisério da politica habitacional do BNH —, ou seja, a legalidade e legitimidade das resolug6es do BNH, deixou livre 0s desejos expansionistas ¢ autoritérios do Executivo. Resulta num Judicidrio € numa cultura juridica ineficazes em relagio a0 proprio fim, a0 objetivo que pretendem inicialmente postular: a defesa da sociedade civil contra o Estado.4 Evidentemente, este aparente paradoxo entre meios fins da ordem legal liberal se desfaz quando enfatizamos o compromisso do liberalismo, antes com uma elite que foi revolucionéria, e depois com esta mesma elite sendo conservadora, preocupada em manter sua posigZo hierdrquica no Estado. O importante, no entanto, é perceber que a identi- ficagZo deste paradoxo viabiliza a critica ao liberalismo a partir dos pr6- prios principios liberais. Abrindo possibilidade concreta para desfazé-lo de seu compromisso com uma elite autoritéria. Redimensionando-o, enquanto ideal, a favor da democracia, A representagdo coletiva através dos sindicatos © Direito do Trabalho jé aceita 0 prinefpio da representagao legal coletiva, aceitando os sindicatos como partes legitimas nos casos de dissi- dios ¢ de convengdes coletivas de trabalho. Mas nfo aceita, ainda que 0 sindicato possa atuar de uma maneira mais ampla, através do Judicidrio, visando um melhor cumprimento das leis trabalhistas. Sua atuagdo de fiscal de cumprimento da lei, através do Judicirio, € quase nenhuma. Permita-se um paréntese. Desconfio que hoje em dia no Brasil a luta pelo respeito aos direitos ¢ garantias individuais, e por extensfo aos diteitos coletivos, nfo deva ser apenas uma luta em favor de inovagdo ¢ aperfeigoamento da legislagio. A universalidade destes direitos faz com 4) Em seu trabatho Seguranca ¢ Democracia, publicado neste limo, © Prof. Fabio Konder Comparato desenvole com mest esta contradifo ds order jw iti Direito ¢ cultura ~ 15 que dificilmente a elite de uma sociedade que se diga liberal capitalista deixe de aceité-los. Pode, quando muito, atrasar seu reconhecimento en- quanto lei. Mas, 0 compromisso internacional com 0 mundo liberal oci- dental acaba por forgar sua insergdo na ordem legal nacional. Com isto quero dizer que a principal arena da defesa dos direitos individuais e cole- tivos € outra, Esté muito mais perto da eficaz fiscalizagio pelo Judicigrio da ordem legal atual, do que da continua inova¢d0 pelo Legislativo. Tratase muito mais do cumprimento da lei, de sua obediéncia, do que de criar novas leis. Tratase sobretudo de criar mecanismos de répida identi. ficagio da violagdo dos direitos e pronto remédio. Ora, esta é tarefa que © Judiciério nfo pode exercer sozinho. A ela deveriam ser convocadas legalmente as diversas associagbes e organizagGes da sociedade civil. Sobre tudo as representativas dos interesses das classes majoritdrias. A expans0 da atuagfo dos sindicatos em favor da defesa dos interesses da classe operdria insere-se neste contexto. Evidentemente, nfo se trata de simplesmente dar aos sindicatos 0 direito de atuar judicialmente nos casos de lesfo do direito individual do empregado. Independentemente da vontade ou da iniciativa do empre- gado lesado. Trata-se apenas de evitar que seja tratado como de conse- héncias individuais 0 ato que lesa 0 direito de toda uma categoria. Trata: se apenas de dar poder ao sindicato para que possa atuar judicialmente quando a lesfo do direito individual extrapola o individual, aponta e sugere {que outros empregados, e talvez. toda uma categoria, estejam sendo igual- ‘mente lesados. Pelo menos ato, pela mesma pritica ilicita que necessita ser revertida, Mesmo que o sindicato saiba que em seu setor, ou numa determinada empresa, as normas de higiene e seguranga de trabalho no estfo sendo cumpridas, nada pode hoje em dia reclamar do Judiciério. Em nosso exemplo, mesmo que 0 empregado vé ao sindicato € peca providéncias para impedir o supermercado de adotar a politica abusiva de horas extraordinérias, o que atinge a todos os funcionérios, nada pode © sindicato reclamar a0 Judiciério, a nfo ser que o emapregado se predis- ponha a outorgar-lhe procuragZo, entrar na Justiga. © que, por um lado, equivale a perder o emprego e, por outro, a nfo resolver @ situagio dos seus demais colegss. Mesmo que um sindicato tenha participado de um dissidio estabelecendo a obrigatoriedade de fornecimento de uniforme para os empregados por parte da empresa, ou estabilidade provisdria para 4 gestante, e mais tarde venha a saber que estas clusulas nffo esto sendo obedecidas, nfo tem direito de reclamar na Justiga. O artigo 872 da CLT s6 dé 0 poder de atuar em juizo, independentemente de outorga de po- deres dos associados, no caso tinico de os empregadores deixarem de satisfazer 0 pagamento de salérios celebrado no acordo coletivo. Ora, esta possibilidade de atuagio independente de outorga deveria ser ant 16 — Direito e cultura pliada. No somente para 0s casos de convengdo, acordo ou dissidio, mas para os casos em que uma determinada prética de uma empresa ou categoria esteja a lesar os direitos ngo apenas de um, mas de uma plurali- dade de empregados. Desnecessério sublinhar que na medida em que a Justiga do Tra- balho admite a representaggo legal coletiva, ela se capacita a intervir com ‘maior eficécia no equacionamento dos conflitos entre empregado e empre- gador. Condiso primeira para que ela possa obter ganhos de legitimidade aos olhos dos cidadaos. Em outras palavras, condigo primeira para refazer a sua base de sustentago politico-social, dando-the outra alternativa que nfo apenas © compromisso elitista. Evidentemente, esta timida tendéncia a Justiga do Trabalho deveria se ampliar para outras situagGes, como por exemplo, a do cumprimento das normas preventivas de acidentes de trabalho. E em outras éreas do Direito, para a protegfo de seus associados nas questdes da aquisigio de moradia pelo SFH, por exemplo. Acredito jé estarem suficientemente claras as diferentes naturezas do padrio liberal cléssico ¢ do padrfo emergente, onde a necessidade de uma representagfo legal coletiva evidencia apenas um dos aspectos: 0 da insuficiéncia do pedrfo liberal cldssico em definir a natureza das partes conflitantes. Outras diferencas tém idéntica relevancia. Como bem indica Sargentish (1978), no padrfo emergente de conflito, o ato ilicito nfo € mais um ato, como o pretende o padrfo liberal cléssico. E sobretudo uma prética organizacional. A baixa qualidade da construgao de uma habi- tagfo dificilmente se resume numa parede rachada. O atraso de pagamento da Secretaria de Obras nfo é ato de vontade de um s6 funciondrio. Na verdade, em ambos 05 casos uma série de atos coordenados do SFH, em sistema, provoca 0 eventual ilicito. No caso do assalariado inadimplente, € mesmo mais do que uma pratica organizacional. E uma politica, uma po: litica publica. Por conseguinte, ndo se pode reverter uma pritica organiza ional ou uma politica piblica, como se reverte um ato, uma obrigagao de fazer ou de ndo fazer. Assim, também, o remédio juridico que a sentenga do juiz venha a oferecer tem que ser muito mais complexo. Trata-se de no apenas compor monetariamente 0 dano, mas tentar reverter a prética ilfct- ta, Tarefa bem mais complexa. Conseqiiéncias da intervengio liberal cléssica Nesta Gltima parte focalizaremos as consequéncis para o jogo politico democrético da intervengZo liberal clissica do Judicidrio, a partir de sua recusa em admitir a representagdo coletiva legal. Sfo duas as hip6- teses a analisar. A primeira, quando 0 conflito entre o segmento da co- letividade e a grande organizagio pablica ou privada chega ao Judicidrio. Esta hipétese contribui para a manutengdo da crenga de que 0 Judiciério Direito e cultura 17 esti aberto a todo e qualquer conflito, independente do grupo ow classe social envolvides. Donde contribui para a manutengdo da crenga de uma atuagdo politicamente neutra. Ocorre que ela s6 € vidvel na medida em que s teduz 0 conflito coletivo a mero conflito individual. Resulta no obscurecimento da natureza econdmica, social € politica do conflito. Resulta em pressupor formalmente 0 que empiricamente nfo pode ser provado: que 0 mutuério, o empregado e mesmo o emipresirio preenchem as condigSes antes jé mencionadas, tal quanto as preenche a COHAB, ‘0 supermercado e a Secretaria de Obras. Resulta em imaginar como ver- dade de todos 0 que € experiéncia concreta de apenas alguns (Cardoso, 1975). Tratase de reducio ideol6gica. Duas so as conseqiiéncias possivels. A primeira a nivel cultural. ‘Transforma a cultura juridica liberal em cultura juridica apenas formal. Formal aqui nfo significa o racionalismo formal cujas caracteristicas bésicas sto a universalidade e generalidade das leis. Formal aqui explicita apenas 0 processo de obscurecimento e enviezamento das condigdes empiricas da realidade social, onde os ideais liberais de igualdade ¢ liber- dade sfo meros topos legitimadores. Em outras palavras, mero discurso ideol6gico. A formalizagao das condigdes empiricas necessérias a eficacia dos ideais liberais, € 0 processo por exceléncia que possibilita sobreviver como dominagao ideolégica, a cultura juridica, que pretende ser a liberta- ‘fo social. A segunda, a nivel social, das relagOes entre os grupos e classes sociais. O Judiciério passa a privilegiar os que conseguem operacionalizar seus interesses através das grandes organizagdes piblices ou privadas. Sendo o nivel de organizagdo de classe em geral funcdo da sua posigdo na estratificagdo social, a intervengfo elitista do Judiciério tomna-se estatis ticamente inevitivel. Levando por égua abaixo a crenga de que “na relago processual, 0 juiz € o sujeito imparcial” (Santos, 1977, p. 291). Na segunda hip6tese os conflitos no chegam ao Judicidrio. O acesso Justiga esté impedido. Ora, esta recusa ou encolhimento do Judicidrio nfo faz com que esses conflitos desaparecam ou percam intensidade. So apenas remetidos para outras arenas de resolugfo. Informais, parale- fais, € mesmo ilegais. Em outras palavras, o Estado liberal abdica de equacionar os conflitos de seus cidadaos através de sua instituigfo especia- lizada, 0 Judicidrio, e através dos padrdes substantivos de sua propria cordem legal. E os remete aos padrdes e forgas atuantes no mercado, onde, ‘num pafs com 30 milhSes de cidadfos em estado de muséria absoluta, a impossibilidade de se alcangar padres consensuais, sobretudo para os conflitos econdmicos e politicos, aumenta @ inseguranga das relagdes € 0 risco da violéncia total. Abre entfo espago para os que detém o poder da forga. E a nivel econémico, acaba por entregar 0 pais a0 capitalismo selvagem, onde a concentragéo de renda € seu aspecto menos cruento, 18 — Direito ¢ cultura ‘A nivel politico, conduz ao autoritarismo, onde o centralismo burocrético € sua forma moderna. Em ambas as situagdes, o Judicidrio liberal se reco- the a um silencioso e constrangido ostracismo legitimador. Nitido entfo 0 dilema de um Judiciério aprisionado ao padrio liberal cléssico. Por uni lado, se abrir mo de sua cultura juridica coloca em risco a organizagfo hierdrquica da sociedade e ameaga perder a con- fianga da elite € do Executivo. Por outro lado, se insistir nesta cultur com 0s mecanismios que dificultam o acesso a Justiga, abre mo de intervir nos conflitos de padrfo emergente, condenando-se a0 progressivo isola- mento. Isolamento que exacerba o brilho légico-formal da cultura juridica, ‘Agrava sua ineficécia e explicitalhe a face de legitimador ideolégico dos conflitos solucionados pela via autoritéria. Reforga 0 autoritarismo, Nos lapsos democriticos da hist6ria politica brasileira, o Judiciério liberal clissico ainda conseguia colocar alguns limites a atuagio do Estado em relagfo a sociedade civil. Limites que, sob o manto didfano do bem comum, beneficiaram sobretudo a elite. No regime autoritério, o Judiciério no ostracismo e a impossibilidade de se estabelecer outro limite para a ago do Estado que nfo seja 0 proprio arbitrio do Executivo acabam por deteriorar de vez as relagdes do Estado com a sociedade civil. Uma das, caracteristicas deste processo € a colocagio da produgfo e aplicaggo das leis a servigo da seguranga e expansfo do Estado, a expensas da liber: dade dos cidaddos. Ndo € por menos que a contrapartida do Executivo autoritério € 0 Legislative e o Judicidrio dependentes ¢ obscuros. A nivel econdmico, por exemplo, abre-se a possibilidade de o Estado utilizar @ produgo ¢ aplicagdo de leis em beneficio da acumulagao estatal. Util zando no regime capitalista autoritério sua condigfo de regulador do mer- cado para beneficiar sua condigfo de concorrente. Em detrimento, por evidente, das pretensdes de acumulagfo da sociedade civil, sobretudo da sua elite nacional. A nivel politico, 0 Estado autoritério nfo abre smo de se legitimar através de processos eleitorais, na tentativa de obscu- recer a face antidemocrdtica. Apenas, a produgo das leis que regulam as eleigdes fica a servigo da manipulagdo necessdria a assegurar a vitéria do partido do governo. Essas evolugdes, econdmica ¢ politica, refletemse nna cultura juridica. As leis perdem seu cardter de universalidade e generali- dade, e passam a ser casuisticas. Com isso, o Estado autoritério choca-se com 0 Estado de direito, sobretudo com o Estado de direito democratico, A contrapartida da busca autoritéria de uma legitimidade artificial ¢ a eventual perda da legalidade residual. Por isso € que, para alguns setores, a redemocratizag%o pressup6e a desestatizago, cuja contrapartida da cultura juridica € a volta a0 Estado de direito apenas liberal. Ambos sintomas da perda de poder da sociedade civil, e de sua elite, em face do grupo encastelado no Estado. Direito e cultura — 19 Desconhecendo limites, 0 Estado autoritério voltase de inicio contra seus opositores iniciais. Em seguida, vai contra seus proprios alia dos. Todos impedidos de participar do processo de decisdo nacional. Reduzindo sua base politica interna e desfazendo suas aliangas com (08 grupos politicos nacionais, o Estado autoritério tanto caminha para uma crise de legalidade e legitimidade como para 0 exacerbamento de de- pendéncia externa, Estratégia que paradoxalmente provoca a instabilidade do regime e obriga-o a recompor sua base politica. ‘Acreditamos ser este © momento atual da cena politica e juridica brasileira. Na tentativa de reconsolidar uma base politica, o Estado autori tério necessita de recomporse com setores da nagio. A importancia e a influéncia potencial do Judiciério no quotidiano do cidaddo faz com que se tente reintroduzir 0 Judicidrio na vida politica da nagfo. Ao atender este chamado de volta, cabe ao Judicidrio decisto fundamental: a) Apenas restaurar 0 passado e sua alianga com a elite, sobretudo a que ‘operacionaliza seus interesses através do Executivo, transformando uum eventual projeto de redemocratizagZo numa renovagfo do ciclo de autoritarismo. Este caminho exige a volta do pais a0 Estado de Direito formal e a desestatizagfo econdmica. 5) Ou, aprendendo do passado ainda recente, abrirse a participaggo dos cidados das camadas mais populares, reorientando ele também sua base de legitimagdo. Este caminho exige a volta do pais ao Estado de direito democratico, renega o formalismo legalizador das desigualdades e reorienta a estatizago da economia. Desta decisfo fundamental, da possibilidade de o Judiciério voltarse para a conquista de uma base de sustentago social ¢ politica prépria, vai depender os caminhos da nova cultura juridica brasileira. Antes de encerrar, gostaria de fazer duas mengGes, talver desneces- sérias. Primeira: evidentemente, o tipo de exposi¢o que fizemos obrigou- nos a trabalhar com um grau de generalizaggo bem maior do que gostaria- mos. A cultura juridica liberal formal no esté presente em todos os atos do nosso Judicidrio. Nem tem apenas as ingratas consequéncias para © ideal democrético que acabamos de explicitar. Existem muitas e impor- tantes sentencas, decisbes judiciais, e estou a lembrar a da Juiza Dra. Maria Rita, do Rio de Janeiro, justamente num caso de inadimpléncia de um assalariado num contrato de financiamento para aquisigfo de casa prépria, que se sabreple 4 formalizagto da realidade social e reencontra © quotidiano concreto do cidadio.> Como tenho certeza de que, em (5) Maria Rita Soares de Andrade, Despacho Saneador na agio entre INPS (autor) © Eloi Rabello e sua mulher (réus), em 07.12.72. Rio de Janeiro, obpia xe- rografads 20 — Direito ¢ cultura ‘muitos momentos da institucionalizagZo de nossa vida politico-jurfdica, © Judicidrio garantiu pelo formalismo a liberdade do cidado. A excessiva formalizago de um liberalismo cléssico caracteriza, no entanto, a cultura juridica dominante no Judiciério. E de consequéncias contraditsrias para © ideal democrético. Segunda: 0 caminho da redemocratizagfo nfo é uno, muito menos de tarefas isoladas. A redemocratizagdo do Judiciério & apenas uma dessas tarefas. O acesso das classes sociais majoritérias 4 Justiga é um dos aspectos necessérios, a partir do qual se pode pensar numa base social e politica que dé a0 Judiciério a independéncia que procura. Capaz de, desfazendo a crenca de um Judiciério acima dos inte- resses e paixdes dos grupos e classes sociais, aproximar a naglo do ideal democrético. Capaz. de evidenciar que a cultura juridica, 0 direito pro- cessual, 0 conceito de partes legitimas da agfo processual so também arenas onde disputam interesses sociais divergentes, concorrentes e mesmo conflitantes. Finalizando, jé se disse que democracia no implica extinguir a divergéncia de interesses e seus conflitos (Cardoso 1977, p. 61-83). Ao contrério, reconhece a divergéncia de interesses, 0 conflito deles, e, acres- cento, assegura mecanismos pacificos para sua solugfo. Neste sentido a contribuig#o do Judicidrio a redemocratizagfo implica nfo negar-se a lidar com os conflitos do padro emergente. Ao contrério, implica reconhecé-los ¢ tentar equacioné-los. Um passo, entre os muitos neces- sérios, € admitir a possibilidade da representagZo legal coletiva. A partir dai, 0 Judiciério poderé comegar a encontrar sua natureza de arena para onde correm e onde ocorrem contflitos sociais, ¢ onde tentam ser equacio- nados. Poderd reencontrar 0 cidadio brasileiro, viabilizando-the a partici- ago na administragfo da Justiga, que poderd deixar de ser processo do beneficio de uns ¢ do desalento de muitos. COMENTARIOS MARIO BROCKMANN MACHADO* Introdugo ‘A exposigo desta secgto apresenta questOes importantes para a nossa reflexfo. Estas quest6es so importantes, em primeiro lugar, porque esto relacionadas com 0 processo de relativa democratizagzo em curso em nosso pais, € porque se referem a um aspecto pouco salientado desse processo: a questfo do acesso ao Judicidrio, Na verdade, além da questo do acesso, 0 Poder Judiciério como um todo esté a exigir reflexfo maior ce mais sistemética de nossa parte. Em segundo lugar, as quest6es apresen: tadas pela comunicagfo sfo também importantes porque favorecem reflexfo interdisciplinar, jé que 0 tema da cultura juridica nfo pode ser pensado separadamente das outras dimens6es da cultura de nossa sociedade, estudadas por cientistas sociais em geral. E é pelo tema da cultura juridica que serfo iniciados estes comentarios, passando depois a0 Judiciério e, finalmente, a questo do acesso. Cultura jurtdjea A culturagjuridica é parte da cultura mais ampla de uma sociedade. E parte extremamente importante, porque ai se consolidam, de uma forma ou de outra, as norms bésicas de comportamento social. Essa cultura ‘mais ample, da qual a cultura juridica faz parte, é tema de longa e resp fivel tradigfo de estudo nas ciéncias sociais, sobretudo no ambito da antropologia, mas também no da sociologia, da psicologia social e da ciéncia politica! Os estudos sobre cultura, e sobre o permanente processo de () Professor adjunto do Instituto Universitério de Pesquisas do Rio de Jancixo UPERI), Disetor do Nicleo de Estudos e Pesquisas Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeito. (1) Ver, por exemplo, Louis Schneider © Charles Bonjean (orgs. The Idea of Culture in the Socil Sciences. Cambridge, The University Press, 1973. 2 Direito ¢ cultura transmissfo cultural (0 chamado processo de socializago), sendo reali zados por diversas disciplinas e sob enfoques variados, produziram, como go poderia deixar de ser, uma certa perplexidade sobre o significado exato do tema em questo. $6 na antropologia, para citar um exemplo. ‘quase duzentas definigdes do termo cultura foram coletadas e analisadas em publicagdo de 1952 por Kroeber e Kluckhohn (1952). Se considerar- mos que a preocupagio dos demais ramos das ciéncias sociais com o tema acentuou-se sobretudo 2 partir daquela época, podemos facilmente ima- fginar que 0 nimero de definigdes disponivel hoje em dia seja muitas vezes malor do que aquele. Mas, se esta situagdo & capez de produzir intolerével desespero para qualquer herdeiro intelectual do_positivis mo l6gico, ela por outro lado oferece aos que investigam 0 campo da cultura juridica uma fonte riquissime de sugestdes. E também de li- ges, porque muitos foram os caminhos seguidos que, infelizmente, no levaram a lugar algum de interesse. Provavelmente a literatura sobre cultura politica e socializagfo politica € mais vulnerdvel a essa critica do que a das outras disciplinas,? e por isso mesmo, creio, deveria ser especialmente analisada por quantos desejem trabalhar o tema da cultura juridica em perspectiva interdisciplinar. +O que estou sugerindo é que a andlise da relaggo entre a cultura jurfdica e 0 tema proposto pela comunicagfo do Professor Joaquim Faldo esté a exigir um trabalho prévio de pesquisa empirica sobre os elementos fundamentais da nossa cultura jurfdica, um trabalho de mapea- ‘mento das principais crencas, opinides, tradig6es, atitudes, valores ¢ hnormas que caracterizam nossa cultura juridica. Mas nfo apenas a cultura juridica tal como se encontra elaborada por nossos juristas mais famosos, ‘mas também tal como a encontramos intemalizada em nossa populagl0 em geral. Em outras palavras, seria interessante possuir uma descrigfo {Jo cuidadosa quanto possivel da maneira pela qual o, brasileiro se relacio- na, nos niveis cognitivo, afetivo e valorativo, com o nosso sistema juridico, as suas partes componentes e 0 seu funcionamento, e que nos desse uma visfo adequada da imagem que ele tem da sua prépria insergo — ow nndo insergdo ~ nesse sistema. Certamente um estudo como este nos daria elementos. valiosos para caracterizar varios fatores de ordem cultural que limitam 0 acesso ao Judiciério, (E isto, mesmo aceitando a premissa — que sem diivida eu aceito ~ de que os principais obstaculos a esse acesso nndo sejam de ordem cultural.) (2) Para uma critica da utiizagio dos conceitos de cultura e socializagio em ciéncia politica, ver Mério Brockmann Machado, “Political Socialization in Authorita Flan Systenis: The Case of Brazil”, Tese de doutorado, Universidade de Chicago, 1975 Direito e cultura — 23 ‘Apenas para exemplificar, gostaria de relatar sumariamente alguns resultados de pesquisa hd anos realizada por mim, jé citada, sobre aspectos da socializagio politica de estudantes de nivel médio, na qual inclui por curiosidade uma ou outra pergunta sobre o sistema jurfdico. Dos $72 alunos entrevistados, por exemplo, apenas cerca de 20% tinham uma vaga nogfo sobre a fungéo do Suptemo Tribunal Federal, ao passo que 39% responderam adequadamente a igual pergunta sobre o Congresso Nacional, ¢ 52% sobre o Presidente da Repiiblica. A baixa visibilidade do STF — sim- bolo méximo de nosso sistema juridico — ¢ evidente. Mas, se @ nivel cognitive essas respostas sugerem preocupagio, @ nivel valorativo tém implicagSes muito graves. Solicitados a manifestar suas opiniGes sobre a afirmago “Todas as leis e regulamentos sfo justos”, 44% dos estudantes responderam concordar, 43% disseram discordar, ¢ 13% nfo souberam como responder. Sobre o sistema politico hé também respostas desalen- tadoras: apenas 52% dos estudantes foram capazes de definir, em termos no minimo aceitaveis, a palavra democracia. Mais ainda: quando pergunta- dos sobre se “a democracia é a melhor forma de governo”, nada menos do que 41% responderam nfo saber. E evidente que nenhuma concluséo maior pode ser retirada desses dados isolados, mas eles sugerem, como disse antes, a utilidade de um conhecimento melhor de nossa cultura juridica popular. Por outro lado, é preciso também evitar o idealismo ingénuo de supor que o eventual desenvolvimento de uma cultura juridica democrdtica, a partir da caracte- rizago de uma cultura juridica — que presumimos estar distanciada desse objetivo —, possa ser realizado através de intervengdes apenas @ nivel de seu processo de transmisso, como até recentemente parecia sugerit a literatura sobre law and development com sua énfase na reforma do ensino juridico Tal impossibilidade, evidentemente, esté ligada a0 fato de a cultura juridica, apesar de sua relativa autonomia, estar enraizada fas condigdes econdmicas, sociais e politicas da sociedade, donde a impos- sibilidade de se obter uma cultura juridica democrdtica em sociedade onde ‘4 democracia no tem sido mais do que figura de ret6rica, (3) Para uma revisfo critica dessa literatura, ver David Trubek ¢ Mare Calanter, ‘Scholars un Sel-estrangement: Some Keflections on the Crisis in Law and De- velopment Studies in the United States". Ver também Joaquim de Arruda Fal- efo Netto, “Clase ditigente ¢ ensino juridico: uma releitura de San Tiago Dan- tas"; "Crise da universe e erise do ensino juridico”. Ver ainda Henry Steiner, Jacques Gleizal, “L’enseignement du droit, la doctrine et Pidéologie, in Mau- fice Bourjol e outros, Pour une critique du droit, p. 71-113. Uma coleténea bastante recente de textos sobre as fungSes ideol6gicas da Escola é Tosé Carlos Garcia Durand (org.), Edueapdo e hegemonia de classe 24 — Direito e cultura Esta altima observagfo no pode, no entanto, ser fundamentada no tipo de estudos descritivos sugeridos acima. Ela requer que se adicione aqucla tradigdo de estudos culturais, to caracterfstica da literatura anglo- americana, uma outra vertente, nfo menos longa e respeitével. Refiro-me 408 estudos te6ricos ¢ hist6ricos sobre a ideologia em geral, ¢ a ideologia Juridica em particular, das sociedades capitalistas, desenvolvidos dentro de uma ou outra perspectiva marxista.* Tal literatura nos levaria a refletir sobre as caracteristicas fundamentais de uma cultura juridica dominante de uma sociedade capitalista dependente em répida transformago eco- némica. Nos levaria a examinar, af sim, a importincia dos grandes juristas na elaboragGo dessa cultura, no desempenho de seu papel de intelectuais orginicos de que nos falava Gramsci. E nos levaria a detalhar os vérios processos sociais encarregados de sua permanente reprodugfo.5 Ao final, terfamos também novos elementos valiosos para a configuragfo de outros obsticulos a0 acesso ao Judicidrio. O Professor Joaquim Falco nos falou de um dos mais importantes desses obstdculos: © conceito indivi- dualizador de partes legitimas adotado por nosso diteito processual E inseriu esse conceito dentro de uma visio ampla da cultura juridica liberal. De qualquer forma, a nossa cultura juridica, apesar de sew alto grau de autonomia jé referido, nfo poderia ficar imune as crises econémicas sociais € politicas que nossa sociedade tem enfrentado. Também ela estd em crise, A harmonia dos grandes cédigos legais, resultante de uma fase hist6tica em que Direito e Sociedade se completavam — ainda que com base na exclusZo da grande massa da populagZo ~ est desmoronando, ¢€ tem dado origem a uma legislagdo casuistica e mutante, de origem execu- tivo-burocratica e nfo legislativa, sobretudo referida as atividades econd- mica e politica (Unger, 1975), Tal situag8o, por gerar inseguranca, ferti- liza a imaginaggo ¢ tora potencialmente vidveis novas formas de pensar © nosso sistema juridico, tal como 0 fez 0 Professor Joaquim Falco em relagfo a0 Poder Judiciério — segundo item de meus comentarios. Poder Judiciério © maior problema do Poder Judicidrio é que ele ¢ muito judi- cioso e pouco poderoso. Na verdade, 0 poder do Judiciario € muito ‘mais uma ficedo juridica do que uma realidade politica. Fssa fragili- dade do Judiciério, fato que extrapola o ambito das sociedades capita- listas, decorre da sua incapacidade de mobilizar e reter bases proprias (A) Sendo © texto bisico, evidentemente, A ideologta alemé, de Marx ¢ Engels. (5) Para uma teorizagio sistemtica sobre o tema, ver Piere Bourdieu e Jean-Claude Passeron, A reprodupdo, Direito e cultura ~. 25 de poder. Sua autonomia, com rarissimas excegdes, € apenas consen- tida € depende fundamentalmente das gragas do Poder Executivo. Sua autonomia, em iiltima andlise, é funedo de sua instrumentalidade para a manutengéo da ordem dominante estabelecida através do Poder Exe- cutivo. Embora essa opinifio sobre 0 Judicidrio tenha sido expressa de forma tfo contudente, a verdade é que nds, cientistas politicos brasileiros, somos possuidores de enorme ignorincia sobre o tema. Esta ignorancia € grave. Tem muitas causas ¢ pode ser explicada, mas nfo inteirames.ie justificada, Acho mesmo que uma das conclus6es mais importantes das presentes exposigdes seria o estabelecimento de uma agenda coletiva de cestudos interdisciplinares sobre a organizagfo, o funcionamento e a fungo politica do Judiciério, em nosso pais e, se possivel, também em perspectiva comparativa. Referi-me a fungfo politica do Judiciério. Este tema € central € deveria mezecer atengdo especial em tal agenda de estudos. Pois os juizes € 08 tribunais ao aplicarem as leis, através de suas agBes e omiss6es, de suas decisbes € nfo decisbes, participam da tarefa de estabelecer os limites do que pode e ngo pode ser demandado dentro da ordem (ou desordem) vigente. Essa tarefa pedagégica tem Sbvia natureza politica Tendo em vista essa fungo politica, pensar o Judicidrio sob a dtica do processo de democratizaso implica pelo menos duas quest6es bisicas. A primeira, antes mesmo de se pensar na eventual contribuigfo do Judicié- tio Aquele processo, diz respeito 4 democratizag0 do proprio Judiciério: como fortalecer um Judicidrio democratizado? Caso exista resposta po: sitiva para esta questo, ento uma segunda questo basica teria de ser respondida: como fazet com que o Judiciério, enraizado na sociedade civil, ‘possa manter a sua autonomia face ao arbitrio do Poder Executivo? Talvez esta pergunta seja ut6pica. Talvez ela expresse apenas o lamento de quem nfo viu no Judicidrio, nos iltimos quinze anos, a coragem de defender, entre 0s azares de nossa vida politica, pelo menos os mais simples e bisicos direitos humanos. Salvo raras excegdes, nfo deu o Judiciério — nem mes. mo a sua Corte Suprema — motivo para respeito ¢ admirago publica, 20 contrério, por exemplo, da Ordem dos Advogados do Brasil Acesso 20 Judicifrio De qualquer forma, também no hé razdo para deixar o pessimismo produzir paralisia, pois refletir sobre aquelas duas questdes bisicas, inde- endentemente de resultados préticos imediatos, pode nos trazer ensina- ‘mentos importantes, E € por isso que considero relevante o problema do acesso a0 Judicidrio, levantado pelo Professor Joaquim Falco. Ampliar e83e acesso, de tal forma a permitir a mais ampla representagfo de inte

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