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ANOTAGAO Pelo Prof. Doutor A. Ferrer Correia ¢ Dr. M. Henrique Mesquita Sumério: — A obra intelectual como objecto possivel do con- trato de empreitada. — Direito de 0 dono da obra desistir do contrato ¢ efeitos da desistincia, 1. A questéo primordial que se levantava no litigio decidido por este douto acérdio era a de saber se a produgao de uma obra de natureza intelectual (no caso dos autos, 4 pro- dugao e realizagio de determinados programas televisivos) pode constituir objecto de um contrato de empreitada. Trata-se de um tema cuja importancia doutrinal e pratica se torna ocioso encarecer. Em causa est4 a rigorosa definigéo ou delimitagio do tipo contratual da empreitada, no ambito da figura mais vasta do contrato de prestagao de servigo. Como veremos adiante mais de espaco, defrontam-se na matétia trés concepgées fundamentais: 2) a que considera emprei- tada todo o contrato dirigido 4 produgao de certo resultado, independentemente de este poder ou nfo qualificar-se como «obra»; 4) a que exige, para haver empreitada, que o con- trato tenha por objecto a realizacio de uma obra, sem exclu- so, porém, da obra de natuteza intelectual; ¢) finalmente, a que restringe o objecto do contrato a realizagio de obras de natureza material ou corpérea. Nesta ultima orientagio, o negécio pelo qual alguém se compromete a executat para outrem uma obra de engenho € regulado pelas disposigdes do mandato na parte aplicdvel, conforme o estipula o artigo 1156.° do Cédigo Civil. Na pri- meita e segunda, as regras aplicaveis serio as dos artigos 1207.° e€ seguintes. As numerosas e relevantes diferengas que se registam entre a regulamentagio do mandato (arts. 1157.° € segs.) ¢ a 1-85-9 130 A. FERRER CORREIA € M. HENRIQUE MESQUITA da empreitada (arts. 1207.° e segs.) bastam para fazer ressaltar a importancia do assunto, o qual, por outra via, tem atinéncias também com 0 conceito de coisa adoptado pelo nosso Cédigo Civil. Foi principalmente em atengio ao interesse que assume © referido problema de qualificagao juridica, que resolvemos publicar a presente anotacio a este acérdio do Supremo Tribunal de Justiga, onde se propugna, quanto ao mencionado ponto, a doutrina que teputamos preferivel. Alids, a nossa anotacio coincide fundamentalmente com o parecer que ela- bordmos, a pedido de uma das partes, para o pleito que o refe- tido atesto julgou. 2. Muito embora este comentario se dirija principalmente A questo j4 referida da qualificagio do contrato sobre que versou a acgio, nio deixaremos de aflorar outro problema, que também ali se suscitava, e que consistia em averi- guat —admitida j4 a qualificagio de empreitada para o con- trato em anflise— que efeitos decorrem do exercicio, pelo dono da obra, do direito de desisténcia que 0 artigo 1229.9 do Cédigo Civil lhe concede. O Tribunal da Relagao (1) entendera que tais efeitos sio os que neste preceito se indicam: ao dono da obra assiste 0 direito de, a todo o tempo, desistir da empreitada, ainda que tenha sido iniciada a sua execugio, «contanto que indemnize o empteiteiro dos seus gastos © trabalho ¢ do proveito que podetia tirar da obran(?). Equivale isto a dizer que o empreiteito deve ser ressar- cido do chamado dano emergente («dos seus gastos ¢ trabalho») e também do duro cessante («do proveito que poderia tirar da (1) Acérdio de 18 de Maio de 1982, do Tribunal da Relagio de Lisboa. : (2) O tribunal da primeira instAncia, apesar de ter qualificado 0 con- trato como de empreitada, decidiu o litigio sem tomar em consideragio © preceituado no artigo 1229.0 (sentenga de 15 de Maio de 1981, do 16.° Julzo Civel de Lisboa). aNoTagéo 131 obra»), nio lhe sendo licito reclamar o pagamento de quais- quer prestagdes contratuais, mesmo que fossem jé exigiveis 4 data em que o dono da obra desistiu da realizagio desta. O Supremo, porém, revogou, nesta parte, o acérdio da segunda instincia, decidindo que a desisténcia s6 opera para o futuro e impondo ao dono da obra, consequentemente, o cumprimento de todas as prestagdes (do prego, de juros e ainda as decorrentes de uma cl4usula penal inserta no contrato) por ele devidas 4 data em que comunicou & contraparte a vontade de desistir da empreitada. A decisao juridicamente correcta ¢, quanto a nés, a que se contém no aresto do tribunal da Relacao e no voto de vencido de um dos ilustres subscritores do acérdio do Supremo (o Conselheito Flamino Martins). I Descriggo sumaria da matéria de facto e stimula das decisées proferidas 3. Os factos que originaram o litigio so, reduzidos ao essencial, os seguintes: A) Entre a Radiotelevisio Portuguesa (RTP) e a socie- dade Filmform, Produgio, Distribuigao e Exibigao de Audio- visuais, Lda., foi celebrado em 1 de Margo de 1979 um con- trato onde, inter alia, se convencionou que a segunda produ- ziria e realizaria para a primeira uma série de doxe programas de televise, composta por quatro grupos de trés programas, sendo cada um deles relativo a determinado escritor portu- gués e constituido por uma introdugio a esse escritor e duas histérias de sua autoria. O produtor obrigava-se a produzir os episédios de acordo com guides a submeter 4 RTP antes do inicio das filmagens, e obrigava-se também a obter as auto- rizagdes necess4rias para garantir 4 RTP os direitos estabele- cidos na cléusula 7.8, a saber: o de utilizar e ceder a utilizagio dos programas, quer por via televisiva quer por qualquer outra forma de radiodifusio publica e cinematogréfica; o de explorar 132 A. FERRER CORREIA e M. HENRIQUE MESQUITA 08 direitos de uso secund4rios, conforme condicées a estipular; o de efectuar, guardar, alugar ou vender quaisquer gravacdes ou cépias do programa (cldusula 7.8 do contrato). Por seu turno, a RTP forneceria ao produtor, para execugio do programa, certos meios, bens e servigos — ¢€ pagar-lhe-ia o prego global de sete mil e duzentos contos, distribuido por nove prestagées. Se a RTP se atrasasse em algum pagamento ou forneci- mento dos meios, bens ou servigos a que se obrigava, 0 prazo de entrega do programa seria dilatado na medida desse atraso, suportando a RTP, por cada dia de mora, uma multa de 1 Yo do valor do pagamento, ov dos meios, bens ou servigos em falta. Se algum dos programas nao fosse entregue no prazo convencionado ou dilatado nos termos vistos, o produtor paga- tia 2 RTP, por cada dia de atraso, 1% da retribuicdo corres- pondente a esse programa. Se 0 atraso imputavel ao produtor atingisse trinta dias, a RTP poderia denunciar o contrato quanto ao programa em falta e quanto aos restantes (cléusula 8, n.° 4). Mais previa o contrato que a RTP nomeasse um delegado para acompanhar a produgio e vetificar a boa execugio do contrato, assegurando o seu integral cumprimento. B) A RTP sé em 20 de Agosto de 1979 pagou A Film- form as duas primeiras prestagdes do prego convencionado, ¢ nfo pagou, posteriormente, qualquer das prestagdes res- tantes. A Filmform, por sua vez, no deu sequer inicio 4 exe- cugio do contrato. Concretamente, apesar de ter recebido uma quantia que, com ligeira diferenga, correspondia, na soma global estipulada, ao prego de dois dos doze programas que se obrigara a produzir, nfo entregou na RTP, para aprovacao, nenhum dos guides a que as filmagens deviam obedecer, nem as declaragdes dos autores cedendo 2 RTP os direitos de utilizagio dos programas. C) Com data de 10 de Outubro de 1979, a RIP enviou & Filmform uma carta notificando-a de que “be néo era posstvel manter o contrato de 1 de Margo de 1979. ANOTAGAO 133 4. Alegando incumprimento culposo do contrato por parte da RTP, a Filmform veio alguns meses depois (em Abril de 1980) demandi-la judicialmente, pedindo que fosse condenada a pagar-lhe: @) O valor das prestagdes em falta, no montante de 6 160 o00$00; 5) O valor das multas correspondentes a cléusula estipulada no contrato, num total (até 10 de Abril de 1980) de 21 057 coo$co; ¢) O valor das multas que se vencessem desde a data da formulagio do pedido (10 de Abril de 1980) até efectivo cumprimento. A acgio foi decidida, em 1.4 instancia, logo no despacho saneador. Apéds a qualificagéo do contrato como de empreitada, o tribunal entendeu que a RTP faltou culposamente ao cumpri- mento das obrigacgdes assumidas e, de acordo com este enten- dimento, condenou-a a pagat 4 Filmform o montante das Pptestagdes em divida, acrescido dos juros legais. O tribunal julgou ainda procedente, em parte, o pedido relativo 4 clausula penal, condenando a ré a pagar & autora, até a data (10 de Outubro de 1979) em que lhe comunicara a impossibilidade de manter 0 contrato, o montante de 1% por cada dia de atraso das prestagdes convencionadas — mon- tante que ascendia a 9 554 200$00 —, acrescido igualmente dos juros legais. Desta decisio apelou a ré e, subordinadamente, a autora, quanto 4 matétia em que ficou vencida. O Tribunal da Relacio julgou procedente o recurso da ré e improcedente o da autora, sendo a seguinte a simula do acérdao proferido: a) O conttato celebrado entre a RTP e a Filmform é um contrato de empreitada, conforme o entendera j4 o tribunal da 1.8 instancia; 5) Nesta modalidade contratual, assiste ao dono da obra 134 A. FERRER CORREIA € M. HENRIQUE MESQUITA 0 direito de, a todo o tempo, desistir da empreitada ainda nio conclufda (art. 1229.0 do Cédigo Civil); 2) Atvavés da carta que enderegou 4 Filmform, com data de 10 de Outubro de 1979, a RTP declarou que desistia do contrato que com ela celebrara; 4) A desisténcia apenas obriga o dono da obra, con- forme estabelece o artigo 1229.°, a indemnizar o em- preiteiro dos seus gastos ¢ trabalho e do proveito que poderia advir-lhe da execugio da empreitada. O em- preiteiro nfo tem direito a nenhuma outra indemniza- Go, designadamente & cortespondente a qualquer clausula penal que tenha sido estipulada para o caso de mora. Inconformada com este atesto, a Autora recorreu para 0 Supremo Tribunal de Justiga, que confirmou a decisio do tribunal 2 quo no respeitante 2 qualificagio do contrato, mas revogou-a na parte em que determinou os efeitos do exercicio, pelo dono da obra (a RTP), do direito previsto no artigo 1229.°, proferindo o acérdao que antecede esta anotagio. Quanto a nds, foi o Tribunal da Relagio, como jé disse- mos, quem decidiu correctamente o litigio. Vejamos porqué. Il Objecto do contrato de empreitada 5. A realizagao de uma obra como elemento essencial do con- ceito de empreitada consagrado no Cédigo Civil portugués. — Segundo © aft. 1207.9, a que j4 fizemos referéncia, «empteitada é 0 contrato pelo qual uma das partes se obriga em relagio 4 outra a realizar certa obra, mediante um prego». O legislador de 1966 manteve, no essencial, o conceito de empreitada que figurava no Cédigo de Seabra (1), nao aderindo, (2) Cle. o art. 1396.0 ANOTAGAO 135 neste ponto, a orientagio de cédigos que muito o influencia- tam, como 0 italiano e o alemio, onde o contrato de emprei- tada abrange nio apenas a realizacio de uma obra, mas também a prestacio de um servifo. Assim, segundo o artigo 1655.° do Cédigo Civil italiano, a empreitada (appalto) «é 0 contrato através do qual uma das partes assume, mediante a organizacio dos meios necessdrios e com a gest’o destes meios por sua conta e risco, a obrigacio de realizar uma obra ou um servigo, contra um correspectivo em dinheiro». Pelo que respeita ao Cédigo alemao, a nogéo de emprei- tada encontra-se 14 formulada nos seguintes termos (§ 631): «Através do contrato de empreitada (Werkvertrag), © empteiteito obriga-se 4 realizagio da obra prometida € a contraparte ao pagamento do prego convencionado. O objecto do contrato tanto pode consistir na cria- Gao ou modificagio de uma coisa, como em qualquer outro resultado (Erfolg) a obter pelo trabalho ou pela prestagao de setvigos». O legislador portugués foi sensfvel as criticas que, quer na Itélia, quer na Alemanha, séo movidas 4 nogao de emprei- tada legalmente consagrada nesses paises, considerando incon- veniente que esta possa ter por objecto nfo apenas a realizacio de obras, mas também simples prestagdes de servigos, mesmo quando encaradas sob a perspectiva do resultado a que se dirigem (1). E por isso 0 artigo 1207.° recebeu a redaccio a que ja aludimos. A nogio de empreitada do Cédigo Civil portugués é inques- tionavelmente mais restrita do que a enunciada nas disposigdes congéneres das legislagdes alema e italiana. Se, por exemplo, alguém se vincular, mediante um coftespectivo, a agenciar (2) Vide, por exemplo, Larenz, Lebrbuch des Schuldrechts, vol. TL po ip (10.8 ed.), § 53, I. 136 A. FERRER CORREIA e M. HENRIQUE MESQUITA determinado negécio para outrem, em termos que s6 lhe con- ferem direito 4 temuneragio se o resultado em vista for conseguido (obrigagio de resultado), estaremos perante um contrato de empreitada a face do direito italiano e do alemio, mas nio a face do direito portugués, para o qual se tratard de um vulgar contrato de prestagio de servigo, j4 que o objecto da convengio nio consiste na realizagio de uma obra. 6. Nuatureza da obra que pode constituir objecto do contrato de empreitada. —Mas se € certo que o legislador portugués excluiu as simples prestagdes de servigo do Ambito da emprei- tada, menos certo nio € que menhuma restrigao estabelecen, no Ja transcrito artigo 1207.°, quanto as obras susceptiveis de constituir oljecto de tal contrato. Tanto poder4 tratar-se de uma obra mate- rial (construir uma casa, um navio ou uma ponte; abrir uma vala; surribar ou desmatar um terreno) como de uma obra intelectual ou de engenho (elaborar um projecto de engenharia ou de arquitectura; fazer a tradugio de uma obra liter4ria ou cientifica; assumir perante uma editora o compromisso de escrever tal obra; esctever o argumento de um filme ou o texto de uma pega de teatro; decorar com painéis artisticos as paredes do 4trio ou do salaéo nobre de um edificio publico; compor uma obra musical). A doutrina estrangeira, aliés, nao estabelece, a este pro- pdsito, qualquer limitagio (!). E certo que 2 face de direitos como o italiano ¢ 0 alemio, poderia dizer-se que se uma produgio de natureza intelectual nao couber no conceito de obra, sempre poderé incluir-se no de prestagio de servigo e constituir, por esta via, objecto do contrato de empreitada. A verdade, porém, é que a produgio literaria, cientifica ou artistica, como objecto possivel deste contrato, ¢ sempre referida na doutrina alema a propésito do conceito de obra e nao @ propésito do conceito de prestacao de serviga. (2) Quanto a doutrina nacional, nfo encontrimos nela qualquer referéncia 20 ponto de que agora nos ocupamos. ANOTAGAO 137 Assim, por exemplo, escreve LARENZ (!): «O campo de aplicagao das disposigées sobre 0 con- trato de empreitada ¢ muito vasto. Isso tem a sua razio de ser no facto de a lei nao limitar o tipo contratual 2 criagio ou modificacio de uma obra, seja ela corpérea, seja intelectual, mas de algum modo corporizada e extstente Separadamente por si mesma — como, por exemplo, a exe- cugio ou reparagio de um armério, de um fato, a exe- cugao de um retrato, de um busto, a elaboragao do argumento de um filme ou coisas semelbantes —, mas considerar suficiente a obtengao de qualquer resultado, ainda que passageiro (flichtig), como, pot exemplo, a condugao de uma pessoa ou de uma coisa a determinado lugar (contrato de trans- porte), a execugio de uma pega musical ou de teatro (contrato de representagao teatral) e muitos outros.» Do mesmo modo, no seu classico Lehrbuch des Béirgerlichen Rechts, COSACK e MITTEIS (2) acentuam que «objecto do contrato de empreitada sao as obras de qualquer espécie (Werke aller Art), tanto corpéreas como incorpéreas (kirperliche wie unkérperliche) » Refiram-se ainda em idéntico sentido ENNECCERUS- -LEHMANN, os quais, a propdsito do problema de saber se 0 empreiteiro € ou nao obrigado a realizar a obra com a sua propria actividade, escrevem 0 seguinte (3): «Constitui um problema de interpretagio saber se © empreiteito esté obrigado a produzit a obra pela sua ptdpria actividade. Nao taro a solugio se infere do con- tetido da prestagio, como, por exemplo, se se tratar de uma obra artistica ou de um trabalho cientifico» () Ob. © vol. cits, pag. 225. (2) Cé. vol. II (8.8 ed), § 209.9, II. (3) Derecho de obligaciones (trad. espanhola da 35.* ed. alema), vol. II, § 147, I, 1. 138 A. FERRER CORREIA ¢€ M. HENRIQUE MESQUITA Em Franga, o Code Civil refere apenas, como objecto da empreitada, a realizagio de uma obra, tal como se fazia no nosso Cédigo de 1867 ¢ continua a fazer-se no actual. Efectivamente, segundo o att. 1787.° do Cédigo de Napo- ledo, «quando alguém € incumbido de fazer uma obra, pode convencionat-se que fornecer4 apenas o seu trabalho ou industria, ou que forneceré também a matéria.» Este preceito, porém, nao tem impedido a doutrina de incluir no ambito da empreitada (entreprise) obras de natureza intelectual © até simples prestagies de servigos. Assim, por exemplo, escrevem os autorizados PLANIOL e RIPERT (1): «O contrato de empreitada pode ter por objecto a execugio dos mais diversos trabalhos. A natureza do tra- balho nao modifica a esséncia do contrato, embora deter- mine, por vezes, a aplicagao de regras particulares. Assim, a empreitada de transporte tornou-se um contrato distinto, ao qual o Cédigo Civil consagra uma secgio especial, mas que ¢ sobretudo regulamentado pelo direito comercial (...). As empreitadas de espectaculos, de edigéo, de publicidade, comportam algumas regras parti- culares, que seréo expostas no cap. IV. A empreitada pode ter por objecto trabalhos de natureza juridica; tal é 0 caso dos contratos feitos com um advogado, com um notario, com um agente de negécios. E pode ter por objecto trabalhos sobretudo, ou mesmo exclusivamente, intelectuais, como o ensino de uma arte ou de uma ciéncia por um professor mediante um «cachet e a consulta médica ou juridica». Também em Espanha, face a uma norma (art. 1544.° do Cédigo Civil) que define igualmente a empreitada como © contrato através do qual «uma das partes se obriga a executar (1) Traith de Droit Civil frangais, 2. ed., vol. XI, 2.% parte, 0.9 914. ANOTAGAO 139 certa obra por determinado prego», se entende que esta figura negocial pode ter por objecto obras de natureza ima- terial. Nas conhecidas e importantes notas que acrescentam a tradugio do Tratado de Direito Civil de ENNECCERUS- -LEHMANN, escrevem, a este respeito, PEREZ GONZALEZ e JOSE ALGUER (!): «Nao determina o Cédigo Civil o que se entende pot obra pata os efeitos deste contrato. Unicamente no art. 1588.0 se alude a possibilidade de aquele que a executa contribuir somente com o seu trabalho ou indts- tria, ou fornecer também os materiais (...). Apesar de © art. 1588.° falar de fornecimento de materiais, nao cre- mos que a obra tenha de consistir precisamente na pro- dugao de coisa material, em primeiro lugar, pelo caracter casuistico do art. 1588.° e de todos os que se lhe seguem e, em segundo lugar, porque, mesmo na aceppao vulgar, a expressdo execugao de uma obra pode ser referida as obras imateriais, que devem, portanto, considerar-se compreendidas na Sérmula ampla do artigo 1544.0.» Refira-se, por ultimo, nesta alusio ao direito estrangeiro (que nao pretende ser exaustiva), a lei e a doutrina brasileiras. Perante um Cédigo Civil que fala apenas do empreiteiro de obras (art. 1237.9), tem-se entendido pacificamente no Brasil que no ambito do conttato de empreitada cabem assim as obras materiais como as incorpéreas (e até, segundo alguns, as simples prestagdes de servigos). Vejamos o que dizem dois dos mais autorizados juristas daquele pais: os Professores ORLANDO GOMES e CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA. Escreve o primeito (2): «A palavra obra tem sentido que precisa ser escla- recido para facilitar a nogio de empreitada. Significa todo (2) Vol. HL, pag. 276. (2) Contratos, 4.8 ed., 0.9 222. 140 A. FERRER CORREIA € M. HENRIQUE MESQUITA resultado a se obter pela actividade ou pelo trabalho, como a produgio ou modificagao de coisas, o transporte de pessoas ou de mercadorias, a realigagao de trabalho cien- tfico ou a criagdo de obra artistica, material ou imaterial.» CAIO MARIO, por sua vez, delimita assim 0 objecto do contrato de empreitada (!): «O objecto deste ¢ o mais amplo e variado, compreen- dendo toda a espécie de produgées, seja a classica cons- trugio de uma obra material, seja a criagdo intelectual, artlstica on artesanalo» 7. Regressando 4 formulagio do artigo 1207.9 do Cédigo Civil portugués, a sua interpretacio meramente literal basta para concluir que qualquer obra, seja de que natureza for, pode constituir objecto do contrato de empreitada. Nao h4 razio para atribuir 4 expresso utilizada pelo legislador (con- trato em que uma das partes se obriga «a realizar certa obra») um sentido diferente do que Ihe ¢ dado em outras legislagdes e na propria linguagem corrente, que é a utilizada na redacgio dos contratos. A palavra «obra» niio figurava, alids, no texto da 2.4 revi- sio ministerial do anteprojecto do Cédigo Civil. A emprei- tada era af definida (também no art. 1207.°) como o «contrato pelo qual uma das partes se obriga em relagio 4 outra a criar ou modificar uma coisa, mediante um prego.» A substituigio, no texto do Projecto e no texto definitivo do Cédigo, da palavra «coisa» pela palavra «obra» torna ainda mais claro que as criagées do espirito (de natureza literdria, cientifica ou artistica) foram inclufdas pelo legislador no objecto do contrato de empreitada. Alids, a interpretagio literal do preceito ¢ corroborada por um argumento de ordem sistematica. (1) Instituigbes de Direito Civil, 4.° ed., vol. UL, pag. 282. ANOTAGAO 141 A empreitada, como € sabido, constitui uma modalidade ou sub-espécie do contrato de prestagio de servigo, conforme expressamente se declara no artigo 1155.°. Ora o contrato geral de prestacio de servigo (locatio operis) — onde se enquadram ou de que promanam o man- dato, o depdsito e a empreitada — é, segundo a definigio do artigo 1154.9, «aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar 4 outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuigéo». Na auséncia de forte indicagio em contrario (que poderia resultar da prdépria regulamentagao ou nogio legal dos sub- tipos inclufdos na figura negocial genérica—o que nao é 0 caso do conceito de «obra» do art. 1207.°), deve entender-se que as caracteristicas do género se acham presentes em cada uma das espécies. Ou seja: dada a definicio do contrato de prestagao de servico (que inclui o resultado de uma activi- dade intelectual: art. 1154.°) e a acepgao corrente da palavra «obra» (na qual indubitavelmente cabe a obra de engenho ou do espirito), deveria o legislador, se porventura tivesse querido excluir do quadro da empreitada este ultimo tipo de obra, ter manifestado adequadamente essa intengao limitativa. 8. O regime da empreitada tanto se justifica para as obras de natureza material, como para as de natureza intelectual. — Até este momento, temos analisado o problema do 4mbito da em- preitada apenas no plano da interpretagao textual. Mas se, deste plano, passarmos para o da razdo de ser do regime consagrado na lei, igualmente constatamos que as tegras fundamentais do contrato tanto se justificam para as obras de natureza material, como para as de natureza intelec- tual. Testemos esta afirmagio justamente através da norma do artigo 1229.°, que permite ao dono da obra desistir da empreitada a todo o tempo, mesmo que a sua execucio se encontre j4 em curso. 142 A CORREIA € M. HENRIQUE MESQUITA Trata-se de uma regra que figura em todas as legislagdes que conhecemos (1) ¢ que consagra, para a empreitada, um regime frontalmente contratio ao que vigora quanto 4 gene- ralidade dos contratos, os quais devem ser pontualmente cumpridos ¢ s6 por mituo consentimento dos contraentes, em principio, podem modificar-se ou extinguir-se (cfr. 0 art. 406.9). A justificagio do direito ou faculdade de desisténcia, con- forme sublinha a doutrina (2), reside em que o dono da obra pode deixar de ter interesse, pelas mais diversas razdes, em que a empreitada se inicie ou conclua. E porque o cumprimento integral do contrato originaria, nestas circunstancias, ou a realizagio de uma obra j4 agora inutil para o interessado, ou a execugio de um projecto a que ele se vira compelido a renun- ciat — entendeu o legislador ser de toda a vantagem admitir o mencionado direito de desisténcia, embora em termos que n40 prejudiquem o empreiteiro; e, de facto, a este é assegurado, pela disposicio em exame, o direito de receber 0 valor dos gastos ¢ trabalho realizados, bem como do proveito que pode- ria retitar da obra encomendada. Ora a razo de ser do regime consagrado no artigo 1229.° vale, com igual forga, quet para as obras materiais, quer para as de outra natureza. Suponhamos, por exemplo, que A, interessado na cons- trugio de uma casa, encomendou a B 0 projecto de arquitec- tura e celebrou subsequentemente com C, empreiteiro, 0 con- trato de construgio. Se, no decurso da edificagio da casa, A concluit que a mesma deixou de lhe interessar (porque, por exemplo, au- mentou a poluigio na zona onde o edificio esté a ser implan- tado, porque nao logrou obter um financiamento com que (1) Para uma completa informagio, quanto a este ponto, sobre o direito comparado, vide Vaz Serra, Empreitada (sep. do Boletim do Minis- trio da Justiza, n.° 145 € 146), pags. 271 © segs. (2) Vide, entre nés, Vaz Serra, ob. cit., pags. 274-275, Pires de Lima ¢ Antunes Varela, Cédigo Civil Anotado, vol. Il, nota n.° 2 a0 art. 1229.9, ¢ Cunha Gongalves, Tratado de Dirtito Civil, vol. VII, 2.° 1073. ANOTAGAO 143 contava ou porque a sua situagao econdémica se agravou entre- tanto), assiste-lhe inquestionavelmente o direito de desistir do contrato que celebrou com C. Nenhum motivo vilido se descortinaria, no entanto, pata que o mesmo direito Ibe nao assistisse em relagao a elaboragéo do Projecto, se mais cedo A houvesse conclufdo que a casa deixara de lhe interessar. Seria absurdo, com efeito, que alguém pudesse desistir da constragdo de um edificio mas nao do projecto a ele res- peitante. Para evitar tal absurdo ¢, porém, indispens4vel entender que as obras de natureza intelectual (cientifica, literéria ou artis- tica) cabem também, com as demais, no 4mbito da emprei- tada. A limitago deste contrato as obras de indole exclusi- vamente material deixaria de fora um vasto sector de activida- des — sector que cada dia vai adquirindo maior amplitude — onde se suscitam idénticos problemas e idénticos conflitos de interesses e pata os quais se impde, por conseguinte, uma tegulamentagao também idéntica. I Natureza e efeitos do contrato celebrado entre a RTP e a Filmform 9. Qualificagéo do contrato celebrado entre a RTP e a Film- form.—Em face da doutrina exposta, cremos nfo poder por-se em duvida que o contrato celebrado entre a RTP ¢ a Filmform, dirigido 4 produgio de uma obra intelectual (12 programas televisivos com determinadas caracteristicas) mediante um prego, preenche tipicamente os requisitos essen- ciais da empreitada. Importa sublinhar, aliés, que a Filmform no se obrigou apenas a apresentar 4 RTP uma concepg’o ou plano da obra prtojectada, despida de todo o suporte material. Nos termos do contrato, a Filmform teria de fornecer a obra j4 gravada em filmes e em fitas magnéticas —apta a set projectada pela RTP nas suas emissdes. A prestagio da Film- 144 A. FERRER CORREIA € M. HENRIQUE MESQUITA form dirigia-se, pois, em ultima andlise, a um resultado que nao deixava também de ser material (1) — ou, conforme se sublinha nos acérdios da Relagio e do Supremo, a uma obra corporizada. E nfo se diga que nos dois arestos se faz confusio entre © quid sobre que recai o direito de autor (uma criagio intelec- tual—um objecto de natureza incorpérea) e os elementos em que tal objecto se materializa. Sao, sem duvida, coisas distintas, mas mal se concebe (se porventura se concebe) que alguém se obrigue a produzir determinada obra intelectual, sem ao mesmo tempo se obrigar a incorporar ou verter essa criagio num qualquer suporte material adequado (as folhas de um livro, uma tela, uma pauta, um bloco de m4rmore, uma pelicula cinematogréfica, etc.) — 0 corpus mechanicum de que falava CARNELUTTI: «a obra de engenho é€ uma ideia ou um pensamento for- mulado ¢ emitido em um guid exterior, que o recebe e 0 contém (corpus mechanicum )» (2). 1o. Para além dos dois elementos definidores da emprei- tada a que j4 aludimos (realizagéo de uma obra mediante um prego), NO contrato sobre que versou o litigio encontramos outros tragos caracteristicos da mesma figura negocial. Assim, a obrigagio da Filmform seria por ela cumprida com autonomia, isto é, sem subordinagio a quaisquer instrugdes ou ordens da RTP (3), RTP assistia apenas o direito de, por intermédio de um delegado seu, fiscalizar a realizagio da obra, nos termos do (1) Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Cédigo Civil Anotado, vol. HI, nota n.° 3 a0 art. 1207.0 (2) Carnelutti, Saiobbietto del diritto di privativa artistica ¢ industriale, na Riv. di Dir. Comm., 1912, pag. 935. Cf. também De Cupis, Direitos da personalidade, trad. portuguesa, pig. 310. (3) Sobre a autonomia do empreiteiro como elemento definidor da empreitada, vide, por todos, Pires de Lima ¢ Antunes Varela, Cédigo Civil Anctado, vol. TI, nota n.° 1 a0 art. 1207.9 ANOTACAO “4s n° x da cliusula 10.8 do contrato e em plena conformidade com 0 disposto no artigo 1209.° do Cédigo Civil. Por outro lado, uma parte dos materiais necessérios & producio dos 12 programas televisivos seria fomecida pela RTP, o que igualmente se coaduna com o disposto na parte final do n.° 1 do art. 1210.9, 11, Nao se opée a qualificagio do contrato como emprei- tada a dupla regra do artigo 1212... Em prtimeiro lugar, porque as criagdes do espirito so coisas incorpéreas e, logo, coisas méveis (veja-se o art. 205.9, n.° 1, do Céd. Civ.). Vale isto por dizer que as empreitadas de obra intelectual esto potencialmente abrangidas no n.° 1 do refetido artigo 1212.0, que trata justamente do caso da empreitada de cons- trugao de coisa mével. Depois, porque, se bem cuidamos, o regime definido naquele texto € susceptivel de aplicagéo, embora com as adaptagées impostas pela natureza especifica das coisas incorpé- reas, a0 contrato de empreitada de obra intelectual. Assim, a parte do preceito em que se dispde a trans- feréncia para o dono da obra da propriedade desta apés a res- pectiva aceitagao, teria de se harmonizar com os principios validos em matéria de direitos de autor. Deste modo, aquilo a que o art. 1212.°, n° 1, chama «transferéncia da propriedade» da obra teria de entendet-se, de harmonia com o preceituado no artigo 39.9 do Cédigo do direito de autor, como a transmissio de todos os poderes compreendidos em tal direito, «com excepgio dos que forem de car4cter puramente pessoal, como o de modificar a obra no todo ou em parte (...)». Ou seja: com a aceitagio, o dono da obra adquire, nfo s6 o direito de a usar e fruit, mas também o de se aproveitar de todas as utilidades econédmicas que ela comporta (designadamente explorando-a em tetmos comerciais, por si ou por outrem). Isto, bem entendido, na hipétese de se ter clausulado a transmissio total dos referi- dos poderes, hipétese que é justamente a do caso em aprego, como resulta da j4 referida regra 7. do contrato. De toda a maneira, quando mesmo as coisas assim se nao 1-85-10 146 A. PERRER CORREIA € M. HENRIQUE MESQUITA pudessem entender, daf sé se retiraria a conclusio de que o legislador, ao formula os preceitos do artigo 1212.9, nio curou de todas as modalidades possiveis do contrato de empreitada, incumbindo ao intérprete tragar para as nao contempladas © regime mais adequado, atentas as directivas gerais a obser- var com vista ao preenchimento das lacunas da lei e tendo em conta designadamente a natureza especifica dos diferentes casos. Vem a propésito referir que na Itélia — onde, como vimos j4, a empreitada (appalto) pode ter por objecto a realizacio de uma obra ou a prestacgio de um servico — se entende que nem todas as normas sobre o appalto se aplicam indistintamente as duas referidas modalidades, algumas havendo que pressu- pdem uma empreitada de obra material (1). O mesmo se diga relativamente 4 Alemanha (2). 12. Tao pouco invalida a qualificagio que propugnamos para o contrato em causa a circunstancia de, nos termos da clausula 2.8, n.° 4, a Filmform se ter obrigado a «assegurar as autorizagdes necessdrias para garantir 4 RTP os direitos estabelecidos na cléusula 7.8 — que sio, como foi dito, os direitos de utilizagio e de exploragio econémica da obra. Com base nisto, sustentou-se, ex adverso, que tanto 0 contrato n&o pode set qualificado como de empreitada, que nele se com- preende uma obrigagio que € tipica do contrato de mandato. Se bem entendemos as coisas, o argumento é este: mesmo jue se admitisse que a empreitada pode destinar-se a criagdo & uma obra intelectual, o facto de no contrato se enxertar, € nao a tituo meramente acessério, uma prestagdo caracteris- tica doutro tipo negocial —o mandato— impediria em definitivo aquela qualificagio. Diremos que nao estamos de acordo. Para explicitar melhor 0 nosso pensamento, figuremos © seguinte caso. Suponhamos que um individuo ajusta com um empres4- tio a construgio de um edificio: trata-se indubitavelmente de () Sic, Rubino, Dellappalto (no Commentario de Scialoja e Branca), n.° 2 da anotacdo ao art. 1655 do Codice Civile. (2) V. Larenz, ob. ¢ loc. cit. ANoTACAO 147 um caso de empreitada. Imaginemos agora que no contrato se estipula que o empreiteiro providenciar4 no sentido de o edifi- cio ser decorado com pinturas murais e grupos escultdricos. Quem entenda, como nés, que o contrato de empreitada pode ter por objecto uma obra de engenho, é naturalmente levado a concluir que, ao cumprir assim 0 pactuado, o empreiteiro esté celebrando novos contratos de empreitada (subempreitadas). Cremos que nao pode haver a tal respeito a menor divida. Nao assim, todavia, para quem adopte a posigio que a Autora defende: segundo esse ponto de vista (negacao da natu- teza de empreitada aos contratos ditigidos 4 ctiagao de obras de engenho), tais contratos nio sio de empreitada, ¢ outta a sua natureza juridica (sem que nos importe a nés determinar qual ela seja). Mas derivaria porventura daqui a necessidade de pdr em quest&o a qualificagao j4 atribuida ao contrato principal — oO contrato de construgio do ediffcio? Tal ilagio seria decerto impensavel. O que haveria que dizer dentro daquela perspectiva seria apenas que, na hipdtese figurada, ao contrato-base (em- preitada) teriam vindo acoplar-se negécios de indole diferente = sem todavia resultar daf a desnaturagio daquele contrato. E evidente. Revertamos agora ao nosso caso. Uma das obrigagdes contraidas pela Filform por forca da cl4usula 2.8, n.° 4, foi a de estabelecer com os autores da parte literaria ¢ da parte musical dos programas os ajustes necessarios realizagao e ulterior utilizagio da obra prometida. Qual a natureza desses ajustes? Para nds, o ponto € liquido: como no exemplo de ha pouco, trata-se de outras tantas novas empreitadas a celebrar pelo empreiteiro com terceiros (subempreitadas). A esta afirmagio s6 poderia objectar-se que é da esséncia da empreitada a natureza material da obra a realizar. O que vale por dizer que o cerne do argumento citado no infcio deste numero se consubstancia na ideia de que o contrato de emprei- tada no pode destinat-se @ criagdo de obras de engenho. Ora nds j4 demonstramos que tal ideia carece de base. O argumento est4, portanto, cabalmente refutado. 148 A. FERRER CORREIA € M. HENRIQUE MESQUITA Quanto as autorizagées 2 conceder pelos autores das obras intelectuais parcelares que integrariam a obra global prevista no contrato, cremos que elas resultariam forcosamente dos termos das convengdes a concluir entre cada um desses tetceitos e a Filmform. Pelo que respeita a outras autorizagdes — designadamente aquelas que haveria que obtet dos titulares dos direitos ineren- tes as obras literdrias que serviriam de base a realizagao dos 12 programas televisivos —, pouco ou nada interessa averi- guar a natureza dos actos juridicos a elas respeitantes, j4 que em nada esse ponto vitia afectar a qualificagéo do contrato principal. Também um empreiteito de construgio civil pode vincular-se perante a contraparte a obter certas autorizagbes administrativas (camarfrias ou outras), sem as quais a obra nio poder4 sequer iniciar-se —e ninguém ai ousar4 sustentar que este facto sera de molde a desnaturar o negécio juridico. O mesmo se diga se o empreiteiro assume a obrigagio de ajustar com um arquitecto a elaboracio do projecto do edificio. Sado tudo coisas por certo essenciais a realizagao da prestagao caractertstica do contrato, mas que todavia nela se nao integram. N&o sao, portanto, elementos a ter em conta pata a definigio da natureza juridica do negécio principal (+). 13. O direito de desistincia do dono da obra; uso que dessa facul- dade fex a RTP; consequéncias jurtdicas dai resultantes. — Nas p4ginas anteriores fizemos a demonstragio (pelo menos, assim 0 julgamos) da tese conforme a qual é ao perfil ou tipo negocial da empreitada que o contrato do caso vertente corresponde. Uma das caracteristicas desse tipo consiste, como é sabido, em poder o destinatirio da obra desistir do contrato a todo © tempo. Trata-se, por entendimento pacifico, de uma facul- dade discriciondria: os motivos que levam a desisténcia sio insusceptiveis de fiscalizagio judicial. Em regra, a razio deter- minante reside no facto de a obra ter deixado de interessar (1) Alids, #0 segundo caso h4 para nés (mas nfo pata a tese da Autora) um auténtico contrato de empreitada. ANOTAGAO 149 ao «comitente»; mas pode também consistir, por exemplo, numa incapacidade financeira sobrevinda. O certo é que a desisténcia— que se efectiva por declaracgio dirigida a0 empreiteiro — nao carece de ser fundamentada. Mas se a lei concede ao chamado dono da obra uma tio importante faculdade —um verdadeiro direito de resolugéo unilateral Ao negdécio, que nao est4 sujeito 20 condicionalismo exigido no comum dos casos —, no deixa, por outra via, de acautelar devidamente o interesse da contraparte. Esta tem direito ao valor dos seus gastos e trabalbos, como ainda a0 do proveito que poderia tirar da obra, se a concluisse. No caso sujeito, a RTP exerceu o seu direito de desis- téncia através da carta que dirigiu, em 10 de Outubro de 1979, 4 Filmform. Carta que nfo contém, a nosso juizo, qualquer ambiguidade que obste a que ela valha com o sentido correspondente 4 vontade do declarante; e ao fazer esta afirmagéo estamos a pensar precisamente na regra do ar- tigo 236.°, n.° 1, do Cédigo Civil. Bem certo que na carta se nao encontra a palavra «desisténcia» (de outro modo, estariamos perante um caso em que seria cabido — por uma vez, ao menos! — 0 uso do bro- cardo «in claris non fit interpretation); mas nio é menos seguro que a lei nao exige aqui a utilizacio de formulas sacra- mentais... Uma s6 coisa conta: que um declaratério normal, colocado na posigéo do real declaratario, tivesse podido aper- ceber-se do intento do declarante. Ora, se o declarante diz que nao lhe é possivel manter 0 con- trato (embora esteja aberto 4 celebragio de outro), que mais é pteciso para qualquer pessoa poder —e dever — concluir que Za/ contrato deixou de Ihe interessat, que a sua vontade € pér-lhe termo?! Que mais hé-de requeret-se para entender que a vontade do declarante é... desistir do contrato? Obvia- mente, o afirmar ele que est4 pronto a arrostar com as conse- quéncias indicadas no artigo 1229.° seria heroismo facil mas inutil, justamente porque elas derivam da lei, como efeito necessdtio da desisténcia. Em suma: na referida carta de Outubro de 79, a RIP exprimiu com a clareza bastante a sua vontade de pér termo 150 A. FERRER CORREIA € M. HENRIQUE MESQUITA aquele contrato ¢ dguela relagio contratual. Digamos que o fez por uma forma polide — mas nunca sibilina. De resto, a partir do julgamento proferido pelo Tribunal da Relagio, tornou-se ocioso dedicar a este ponto qualquer reflexio especial, certo como é ele encontrar-se ali resolvido em termos definitivos. Com efeito, é de h4 muito jurispru- déncia firme neste pais que a interpretagao das declaragdes de vontade constitui matéria de facto, nao estando, portanto, as decisdes proferidas pelas instancias em tal assunto sujeitas 4 censura do tribunal de revista. Ora, a Relagao de Lisboa, inter- pretando os termos da carta de Outubro de 1979, qualificou a declaracio nela contida como sendo «manifestamente uma desisténcia da empreitada». 14. Por outra parte, a Relacio entendeu nao haver no contrato «cléusula expressa a proibir a desisténcia». Concordamos plenamente, € acrescentamos, por nossa parte, que nfo existe outrossim qualquer incompatibilidade entre o direito /ga/ de desisténcia ¢ 0 direito convencional de denincia previsto na clausula 8.8, n.° 4, do convénio. A mais de nZo haver cléusula expressa, pode ainda dizer-se, portanto, que tio pouco existe estipulagao tacita naquele sentido. Aqueles direitos —o de desistir e 0 de denunciar — dis- tinguem-se claramente quer pelos pressupostos quer pelas con- sequéncias do respectivo exercfcio: sio meios diferentes de se pér termo 4 relagio contratual. Como ja vimos, a faculdade de desisténcia € discriciondria: pode exercer-se em quaisquer circunstancias e em qualquer momento, enquanto a obra nao se encontrar concluida. Diversamente, o direito de densincia referido na citada clau- sula pressupée a mora da outra parte, decorrente de facto que lhe seja imputavel e atingindo a duragio minima de trinta dias. Acresce a isto serem também diferentes os efeitos do exercicio das aludidas faculdades. Em caso de desistincia, a RTP ficaria (como ficou) obrigada a pagar 20 outro contraente, como indemnizagio, o valor das despesas por este feitas e do trabalho por ele realizado —e, além disso, a quantia corres- pondente ao proveito que ele poderia tirar da obra. Mas se ANOTAGAO 151 denunciasse 0 contrato, ao abrigo do n.° 4 da cléusula 8.4, a RTP nada teria de pagar —e assistir-lhe-ia, por outro lado, o direito de exigir da Filmform a restituigio de todas as impor- tancias que lhe houvesse prestado e o pagamento do valor dos materiais e servigos que lhe houvesse fornecido. Em resumo: enquanto o regime convencional da denin- cia (af. cldusula 8.8, n.° 4) protegia a RTP das consequéncias da mora (culposa) da Filmform — o regime legal da desistén- cia (art. 1229.° do Céd. Civ.) salvaguardava-lhe o interesse de pdr termo 4 empreitada, na hipdtese de por qualquer motivo deixar ela de ter vantagem na conclusio da obra. O que prova que os referidos direitos sio perfeitamente compativeis. A cléu- sula de denuncia no assumiu a fungio da clausula (legal) de desisténcia, nem tornou, portanto, inutil o seu conteddo. 15. A Relagio decidiu igualmente que, em consequéncia de a RTP ter desistido da empreitada, 4 contraparte deixou de assistir o direito de reclamar o pagamento das prestagdes do prego, vencidas ou vincendas, bem como o direito de fazer funcionar a cldusula penal estipulada para o caso de mora. O contrato foi destrufdo ou tornado ineficaz através da declaragio de desisténcia e a Filmform passou a dispor ape- nas de uma pretensdo indemnizatéria, com 0 contetido que no artigo 1229.° taxativamente se indica. Foi diferente, porém, quanto a este ponto, o entendi- mento do Supremo. Segundo o tribunal de revista, a desisténcia actua apenas para o futuro e, por conseguinte, nao inutiliza os efeitos anteriormente produzidos pelo contrato. Com este fundamento, foi a RTP condenada a pagar 4 Filmform todas as prestagdes do prego vencidas 4 data da desisténcia e ainda as multas decor- rentes da clausula penal inserida no contrato. Como acima dissemos, foi sem divida a Relagio que resolveu este ponto correctamente. E certo que a declaragio de desisténcia nio corresponde a uma resolugdéo em sentido técnico, pois nem todos os efeitos do contrato so por ela atingidos. Nao se opera uma destrui- gio ou dissolugéo completa da relagio negocial, nem quanto 152 A. FERRER CORREIA e M. HENRIQUE MESQUITA ao passado, nem quanto ao futuro. Assim, pelo que respeita ao passado, deve entender-se que o dono da obra fica pro- prietério de tudo aquilo que tiver tido j4 execugio ¢ dos proprios materiais ainda nfo incorporados ou utilizados, se 0 seu custo for computado na indemnizagao a pagar ao emprei- teito, por forga do preceituado no artigo 1229.°. E também quanto ao futuro o contrato nfo perde totalmente a sua cficicia, pois o empreiteiro deverd ficar, pela via da indemni- zagio a que tem jus, na mesma situag’o patrimonial em que viria a encontrar-se se a obra fosse executada na integra (1). No que concetne, porém, as obrigagdes que o contrato impunha a cada uma das partes — fundamentalmente, a obri- gasio de executar a obra, quanto ao empreiteiro, e a obri- gagdo de pagar o prego, quanto ao outro contratante —, nio pode deixar de entender-se que a declaracio de desisténcia as torna inexigiveis. O artigo 1229.9, com efeito, a0 mesmo tempo que atribui ao dono da obra o direito de desistir a todo o tempo da empreitada, indica, por forma precisa e clara, as obrigagdes a que, em tal eventualidade, ele passa a ficar sujeito. Concre- tamente, o dono da obra, se dela desistir, devera indemnizar «o empreiteiro dos seus gastos ¢ trabalho e do proveito que pode- tia tirar da obra» Entender, como fez o Supremo, que a desisténcia sé opera para o futuro ¢ que, por virtude disso, o dono da obra (?) (2) B apenas a estes efeitos do contrato de empreitada, nao afectados pela declaragio de desisténcia, que Vaz Serra (Empreitada, sep. dos n.% 145 € 146 Bol, do Min. da Just., pigs. 277 € segs.) ¢ Pires de Lima-Antunes Varela (Cédigo Civil Anotado, vol. II, pag. 585), citados no scérdio do Supremo, se referem, quando sublinham que a desis- téncia nfo equivale a uma resolugio ou revogagio em sentido técnico. (2) Bem como o empreiteiro, claro esté. K em relagio a0 dono da obra, no entanto, que particularmente interessa determinar os efeitos da desisténcia. Quanto ao empreitciro, cle ficaré inquestionavelmente liberto da sua obtigacdo principal (a de executar a obra), mesmo que, data da desisténcia, se encontre em situagio de mora. Apenas em relagio a outras obrigagdes que acessoriamente tenha assumido (caso, por exemplo, das multas decorrentes de uma cléusula penal inserida no ANOTAGAO 153 tem de cumprir todas as obrigagées vencidas anteriormente, equivale a fazer tabua rasa da solugio por que o legislador expressamente optou. A solugio legal, de resto, € a unica que, sem sacrificios incomportaveis para qualquer das partes, viabiliza o exetci- cio do direito de desisténcia, que o legislador, pelas razdes que j4 apontdmos (1), entendeu dever assegurar ao dono da obra. Uma orientagio como a que o Supremo adoptou coarc- taria em muitos casos — ou sacrificaria mesmo — o direito de desisténcia. Imagine-se, por exemplo, que o dono da obra teve de pagar antecipadamente, nos termos do contrato, o prego total da empreitada (ou a maior parte do prego): como poderia ele, em tal hipdtese, aproveitar-se da faculdade de desisténcia que, todavia, o Cédigo lhe atribui incondicionalmente? $6 sujeitando-se mesmo a ficar sem obra e sem preco! De resto, outro tanto se diga (a ser correcta a doutrina do Supremo) s€ no momento de tomar a sua decisio o dono da obra verifica que a obrigagao de pagamento do prego j4 se encontra vencida, segundo o clausulado no contrato. Em tal hipdtese, no restar4 ao interessado outro caminho sendo o de renunciar 4 salvaguarda — justa salvaguarda! — do art. 1229.9. No caso de que nos ocupamos, se a desisténcia nio livrasse a RTP do pagamento das prestagdes vencidas (que per- faziam a quase totalidade do prego) e da exorbitante clausula penal convencionada, certamente que seria menos gravoso patra ela manter o contrato do que rescindi-lo, j4 que naquela primeira hipdtese Ihe ficaria assegurado o direito & disponi- bilidade dos doze programas que constituiam o objecto da empreitada. E isso a troco de um novo desembolso (o do valor das duas prestagdes vincendas) comparativamente dimi- nuto. contrato), poderd pér-se 0 problema de saber se, em caso de desisténcia, con- tinuam elas a ser exigiveis (na hipdtese, bem entendido, de se haverem verificado j4 todos os pressupostos a que o contrato as subordinava). (1) Supra, 0.2 8. 134 A. FERRER CORREIA ¢ M. HENRIQUE MESQUITA 16. Demonstrado que a RTP nfo devia ter sido conde- nada a pagar o prego das prestagdes em mora, nio se torna dificil concluir que idéntica solugio se impunha quanto as multas decorrentes da cl4usula penal estipulada no contrato (clausula 8.8), Efectivamente, esta cl4usula contratual outro escopo nao visava (no proprio entendimento da Autora) senio o de compelir ambas as partes ao cumprimento pontual das respec- tivas obrigagdes. Logo, tornando-se estas inexigiveis (em vir- tude do exercicio do direito de desisténcia), seria absurdo que © mecanismo instituido para forgar a sua execugio conti- nuasse a funcionar. Manter em vigor um meio pata a obtengio de um fim j& agora definitivamente frustrado seria um manifesto contra-senso. De resto, constitui entendimento pacifico que, se a obrigacao principal se extingue, extinta fica automatica- mente a pena convencional (!). Mas suponhamos que a referida clausula penal, em vez da apontada natureza compulséria, tinha antes (ou também) a fungio de prefixar o valor dos danos resultantes da mora. Note-se que pela nossa parte nfo aceitamos tal entendimento (como nio o aceitou também, de resto, o Supremo): de facto, o montante da cldusula penal é de tal modo elevado — 365 % ao ano do valor das prestagdes em atraso! — que exclui toda a possibilidade de ser essa razoavelmente a medida dos danos ptevisfveis no momento da celebragio do contrato. Seja como for, a verdade € que a indemnizardo do emprei- teito, quando se verifique a desisténcia do outro contraente, obvia a lei por diferente modo: o empreiteiro sé ter4 direito & compensagio que no caso concteto resultar da aplicagéo do critério enunciado no artigo 1 229.9 do Cédigo Civil. E nao podera dizer-se, por certo, conforme sublinhémos ja, que a norma deste artigo no traduz uma equilibrada pon- (1) Cfr., por todos, Larenz, Lebrbuch des Schuldrechts, 10.4 ed., vol. 1, § 24, U1, 4), ¢, entre nés, Vaz Serta, Pena convencional, sep. do n.° 67 do Bol. do Min. da Just., pag. 19. Vide também o art. 810.9, n° 2, do Céd. Civil. ANOTAGAO 155 deragio dos interesses em conflito: pois se por um lado con- cede ao dono da obra o direito de, a todo o tempo, desistir do contrato, por outro, assegura ao empreiteiro a plenitude da situagio em que ele viria a encontrat-se no termo da emprei- tada, se esta tivesse sido levada a final em condigdes normais. 17. Um outro ponto da deciséo do Supremo suscita igualmente a nossa frontal discordancia. Apesar de tet reconhecido expressamente o cardcter exorbitante das multas decortentes da cldusula penal estipulada para o caso de mora, entendeu o tribunal de revista que o montante de tais multas no podia sofrer qualquer redugio, por ser inaplicavel ao caso o preceituado no artigo 812.9, n.° 1, do Cédigo Civil. A cl4usula penal, como é sabido, tanto pode ter uma fungio exclusivamente indemnizatéria, prefixando o quantita- tivo dos danos que o nio cumprimento ou a mora do deve- dor podem causar ao credor e dispensando este da respectiva prova, como uma fungio compulséria, visando coagit o deve- dor, mediante a ameaga de uma sangio pecunidria, ao cum- primento pontual das obrigagdes que assumiu (!). Ora, segundo o Supremo, a redugSo equitativa da clausula penal sé € possivel quando esta tenha um escopo indemniza- tério. Trata-se, porém, de um entendimento carecido de base legal, sem qualquer justificagao plausivel e que nio vemos propugnado por ninguém. No n.° 1 do referido artigo 812.° estatui-se, irrestritamente, que «a clausula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente». O fundamento desta norma e da correcgio contratual que nela se possibilita ¢ a iniquidade ou imoralidade que, em cet- tos casos, a cl4usula penal pode representar para o devedor, sujeitando-o a uma verdadeira extorso que ele levianamente (1) Vide, por todos, Vaz Serta, ob. cit., pag. 8. 156 A. FERRER CORREIA € M. HENRIQUE MESQUITA nao previu ou de que nao péde defender-se, em virtude da sua situagao de dependéncia perante o credor. Ora a iniquidade ou imoralidade que o legislador quer evitar pode existir, como facilmente se intui, seja qual for a fungao da cléusula penal. Os autores salientam mesmo que, quando se estipula uma pena convencional com finalidade compulséria (como astreinte), € maior ainda o perigo de ela atingir um montante desmedido, susceptivel de arruinar o devedor! (1). Por conseguinte, ainda que houvesse fundamento (e nio havia, como supomos ter demonstrado) para condenar a RIP a pagar as multas originadas pela cléusula penal esti- pulada para o caso de mora, o Supremo deveria ter procedido a uma redugao equitativa do respective montante, pot ser manifesta- mente excessivo no quadro contratual a que respeitava. Iv Conclusées 18. Enunciaremos, a finalizar, as conclusdes do pre- sente trabalho. Sao as seguintes: I—O contrato celebrado entre a Radiotelevisio Portu- guesa e a sociedade Filmform, Distribuigio e Exibigao de Audiovisuais, Lda., era um contrato de empreitada. Com efeito: a) Nesse contrato, a Filmform obrigou-se a produzir para a RTP, mediante um correspectivo, doze pro- gtamas televisivos com determinadas caracteristicas, sobre quatro escritores portugueses. Trata-se de uma obra de engenho envolvendo varias criagdes do espirito (designadamente a adaptacio das obras lite- rérias, a composigao do fundo musical e a realizagio). 4) Segundo o art. 1207.° do Cédigo Civil, constitui empreitada «o contrato pelo qual uma das partes se (1) Vide Vaz Secra, ob. cit., pig. 41, ¢ Pires de Lima © Antunes Varela, Cédigo Civil Anotado, vol. II, 2.8 ed., pag. 68. ANOTACAO 157 obriga em relagao & outra a realizar certa obra, mediante um prego». A palavra obra, neste preceito utilizada, abrange tanto as obras materiais como as obras de engenho on intelectuais (de natureza liter4ria, artistica ou cienti- fica). A lei nao distingue ¢ nfo existe razio para que alguma distingio seja feita pelo intérprete, pois o regime da empreitada justifica-se, com igual forga, para ambos os tipos. E com esta amplitude, aliés, que noutros paises se entende a palavra obra, para efeito de determinagio do objecto da empreitada. Mesmo no entendimento propugnado pela Autora, segundo o qual na empreitada s6 podem compreen- der-se obras materiais, haveria que considerar que os programas a produzir pela Filmform sempre obe- deceriam a este requisito, na medida em que teriam de corporizar-se em filmes, fitas magnéticas e outros matetiais (0 chamado corpus mechanicum), por forma a tornar possivel a sua projeccao televisiva. A circunst4ncia de a Filmform haver assumido, além da obrigacio de produzir os programas, o encargo de obter dos titulares dos direitos sobre os textos lite- ratios escolhidos, bem como do realizador e dos auto- res das introdugées, dos didlogos e da musica, as autorizagdes necessarias para a RTP poder usar ¢ explorat economicamente a obra (cléusula 2.8, n.° 4), nao alterava a qualificagéo postulada pelo contrato. Algumas dessas autorizagdes resultariam necessaria- mente dos ajustes que a Filmform teria que estabelecer com os referidos autores (a menos de se tratar de em- ptegados seus, agindo na execugio de contratos de trabalho) — ajustes esses que seriam igualmente con- tratos de empreitada (subempreitadas). Quanto as demais, teriam origem em vinculagdes de outra indole, mas que em nada contenderiam com o enquadtamento juridico do contrato principal. 158 A. FERRER CORREIA € M. HENRIQUE MESQUITA II — O dono da obra, enquanto esta no estiver concluida, tem o direito de desistir da empreitada a todo o tempo (art. 1229.° do Céd. Civil). T— A RTP exerceu o direito de desisténcia através da catta que dirigiu 4 Filmform em 10 de Outubro de 1979. IV—O exercicio do direito de desisténcia sujeitou a RTP ao dever de indemnizar a Filmform, nos termos taxativos do art. 1229.°, do valor dos gastos e trabalho realizados, bem como do proveito que poderia tirar da obra, se esta fosse levada a final. V—A Filmform nio tinha o direito, que se arrogou e o Supremo lhe reconheceu, de receber as prestagdes do prego j4 vencidas a data da desisténcia, nem o montante da cl4usula penal estipulada para a mora. Estes direitos apenas lhe assistiriam no caso de o contrato nfo haver sido efi- cazmente resolvido pela RTP, como foi. Quanto, porém, 2 pena convencional, ela teria sempre de ser reduzida pelo tribunal segundo juizos de equidade, dado 0 seu caracter manifestamente excessivo (Cod. Civil, art. 812.°, n° 1). A exorbitancia da pena nfo é eliminada pelo facto de a ela terem ficado sujeitos ambos os contratantes, por ser evi- dente que, ao consentir na estipulagao, cada um deles s6 pensou nas consequéncias do incumprimento do outro, nao tendo admi- tido, nem sequer como hipdtese remota, a eventualidade do seu prdéprio inadimplemento.

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