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gente

entrevista e texto Piero Vergílio


fotos Tiago Albertim

Caco Barcellos
O professor repórter
“ v ocês já devem ter visto o trabalho que eu faço na tele-
visão. Alguém não me conhece? Uma pessoa levantou
a mão! Prazer, meu nome é Caco Barcellos; eu sou
repórter”. A saudação, dita em tom bem humorado,
levou às gargalhadas os espectadores que prestigiaram a sua palestra,
realizada em maio, em Sorocaba. Brincadeiras à parte, Cláudio Bar-
celos de Barcellos – o sobrenome realmente é duplicado – é um rosto
conhecido da maioria das pessoas.
o fato de serem novatos aumenta a chance de criar uma identificação
com o telespectador, pois o sujeito que está assistindo se coloca no
lugar do repórter.
“Internamente, foi um desafio enorme. Geralmente, o
repórter de rede adquire o privilégio de trabalhar para o mundo
depois de uma trajetória de mais ou menos 12 anos. Então, eu tinha
que provar que era possível fazer um trabalho tão bom quanto àque-
les que já estavam no ar. Talvez melhor. Senão, era trocar seis por
Mesmo assim, vamos a uma rápida apresentação. Em mais meia dúzia”, relembra.
de 30 anos de carreira, o jornalista trabalhou em revistas como Quatro anos mais tarde, não restam dúvidas de que essa foi uma
“Veja” e “Isto É” antes de ser contratado pela Rede Globo na década aposta que deu certo. O “Profissão Repórter” é hoje um programa
de 80. Na emissora, participou da cobertura de guerras e catástrofes aclamado pelo público e pela crítica. Caco avalia que são vários os fa-
naturais – a mais recente foi o terremoto no Haiti –, além de produzir tores que explicam o sucesso da atração, mas aponta como o grande
diversas reportagens investigativas, que já lhe renderam diferencial a preocupação com o conteúdo. “O nosso dever é registrar
alguns prêmios. notícias que são relevantes, de preferência, de alto interesse público.
É o caso, por exemplo, de uma matéria na qual Caco Barcellos Na escolha das pautas, a gente constata que nem sempre o que se faz
identificou, num cemitério clandestino em São Paulo, os corpos de no Brasil é o suficiente. Produz-se muita coisa boa, mas há coisas que
oito vítimas da repressão política, consideradas “desaparecidas” nem todo mundo faz. E nós vamos atrás dessas brechas”, sentencia.
durante o regime militar. O trabalho – resultado de dois anos de De fato, a multiplicidade de temas é constante. Somente na tem-
investigação – foi exibido em julho de 1995 e ganhou o Prêmio Caixa porada 2010 já foram retratadas a prostituição, homossexualidade e
Econômica Federal de Jornalismo Social. a rotina dos usuários de crack, entre outros. Mas o programa também
Desde 2006, ele comanda a equipe do “Profissão Repórter”: o abriu espaço para assuntos mais amenos, como, por exemplo, os bas-
projeto, de sua autoria, começou como um quadro no “Fantástico”, tidores de um show de Roberto Carlos e, é claro, a Copa do Mundo.
e posteriormente ganhou edições especiais até se transformar num “Alguns jornalistas afirmam que só existem 20 pautas no mundo.
programa independente. A ideia era ousada: recrutar jovens profissio- Para eles, tudo é uma eterna repetição. Eu acho que não. Há viés, e
nais que não tivessem nenhuma experiência em TV. Para o jornalista, meios de observação que cabem a cada um descobrir”.

84 Revista Regional
Caco Barcellos durante palestra
realizada em Sorocaba; antes,
o jornalista concedeu uma
entrevista coletiva à imprensa

Revista
Olhares cruzados parágrafos acima. Aos 18 anos, esse gaúcho, natural
O veterano acredita que as pessoas tendem a de Porto Alegre, tornou-se taxista. Algum tempo
contar melhor uma história quando estão envolvidas depois, surgiria a oportunidade de trabalhar em um
nela. Por essa razão, cada tema é explorado sempre
por três ou quatro duplas. “São olhares cruzados
Regional jornal, que, para a sua sorte – ou seu azar; como
ele faz questão de complementar, brincando – fica-
buscando um mesmo assunto. Aumenta a nossa
chance de falar a verdade quando a gente tem pontos conversou va na mesma rua do ponto.
“Era estagiário e achava que se a Redação
de vista diferentes. Até porque uma verdade, vista sob
um ângulo só, é mais difícil de ser atingida. Sempre com o descobrisse que eu era taxista, acabariam as minhas
chances de ser efetivado. Tinha medo de que os

jornalista
há o fator da relatividade”. repórteres embarcassem no meu táxi, mas um dia
Caco faz questão de frisar que a equipe do me distraí e um editor me flagrou. Quando cheguei
programa é “bastante heterogênea”. De um grupo à Redação, pensei que seria demitido, porém o che-
atualmente composto por 26 pessoas, fazem parte
repórteres que foram selecionados entre famílias de
durante sua fe mandou que eu fosse imediatamente para a rua
escrever sobre essa rotina. No texto, contei diversos
baixa renda, mas em contrapartida, há aqueles que
vieram das elites paulistanas. Desde que o projeto passagem macetes do motorista, pois eu vivenciava aquilo.
Eles gostaram tanto que foi a primeira reportagem
começou, uma deficiente visual – Daniele Haloten,
que ficou conhecida do grande público quando por assinada do jornal”, lembra.
A contratação fez com que o jovem abandonasse

Sorocaba
interpretou a personagem Anita, na novela “Caras & a faculdade de Matemática para ingressar no curso
Bocas” – e uma ex-dependente de crack já passaram de Jornalismo. Desde então, mais de três décadas se
pelo “Profissão Repórter”. passaram, e, ao longo desse período, foram muitos
Ele conta que todos são obrigados a fazer sua os projetos desenvolvidos. Paralelamente ao seu
sugestão de matéria. A regra também se aplica a todas as outras eta- trabalho na Rede Globo, Caco Barcellos é autor do livro “Rota 66”
pas do processo. “Normalmente, as redações se dividem em grupos (1992), sobre a Polícia Militar de São Paulo, ganhador do prêmio
distintos: escuta, produção, reportagem e edição. No “Profissão Re- Jabuti na categoria reportagem.
pórter” não tem isso; é uma equipe só. Os integrantes exercem todas Em 2004, lançou sua segunda obra, “Abusado”, uma repor-
as funções. O melhor caminho para fazer bem feito é o envolvimento tagem romanceada sobre o tráfico de drogas nos morros cariocas,
radical”, defende. também vencedora do prêmio Jabuti, na categoria não-ficção, e do
A premissa do jornalístico – mostrar os bastidores da notícia e os prêmio Vladmir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. Três anos de-
desafios da reportagem – é levada a sério, sobretudo, quando esbarra pois, escreveu a peça de teatro “Osama, the Suicide Bomber of Rio”,
na questão ética. “Toda redação discute isso, mas as inquietações do para o projeto Conexões, do National Theatre of London.
jornalista não vêm a público: nós fazemos questão de expor. Numa Para Caco, há momentos em que o dinheiro e o prestígio devem
outra vertente, não temos problema, em exibir, por exemplo, os bas- ser colocados em segundo plano, em nome de um objetivo maior. Ele
tidores de alguma gracinha: um erro, um escorregão do cinegrafista, conta que sonhava em ter uma casa na praia, mas resolveu investir
uma frase ‘maldita’, no sentido de errada ou, até mesmo, provocante, suas economias no “Rota 66”. “O livro começou a vender muito e a
instigante. Há quem não goste, e diga que é exibicionismo, mas o ob- grana começou a voltar, só que também vieram juntos 18 processos.
jetivo é retratar que a gente tem dúvidas e erra como todo mundo”. Teve uma época que eu usava toda a minha renda para me defender.
Como fui absolvido em todas as oportunidades, acabaram desistindo
Do táxi à Redação de me acusar. Só que a obra continuou vendendo. Tanto que deu

>>
Voltemos um pouco no tempo para tentar compreender um para comprar o terreno e construir a casa na praia. Eu acho bem
pouco mais da “filosofia” do envolvimento radical, descrita alguns mais legal porque agora eu posso colocar o livro dentro”, finaliza.

Revista Regional 85
GENTE

O questionador Mais sobre


Caco Barcellos

d
• Ainda criança, procurava juntar
urante a palestra em Sorocaba, Caco Barcellos revelou que, para ele, a dinheiro para não onerar o pai, que
informação é a melhor aliada para enfrentar uma situação de risco, e que, ao era, segundo Caco, um clássico
contrário do que deveriam, as pessoas aceitam-na de maneira muito passiva; trabalhador brasileiro de baixa
perguntam pouco para o jornalista. O idealizador do “Profissão Repórter” renda, desses que tem dois, três
enfatizou seu desejo de que a sociedade se torne mais crítica e questionadora. empregos;
Como bom profissional que é, Caco parece seguir esse preceito na prática. • Embora reconheça que essa atitude
Antes da apresentação, ele recebeu os colegas de imprensa para uma entrevis- não é um exemplo, Caco conta que
ta coletiva e, a cada pergunta, lançava pelo menos um novo questionamento, como aprendeu dirigir caminhão com
o leitor irá perceber. A reportagem da Revista Regional estava lá e selecionou os 15 anos. Aos 18, ele se tornaria
melhores momentos da conversa, que você poderá conferir logo abaixo. taxista;
• Depois que se formou em
Qual a sua avaliação sobre o jornalismo investigativo pra- jornalismo, Caco passou cinco
anos viajando pelo mundo. Nesse
ticado no Brasil?
período, colaborou com a impren-
Eu acho que se pratica pouco; embora muita gente diga o contrário. Hoje em sa alternativa escrevendo para a
dia, é cada vez mais frequente o jornalismo baseado em declaração: um gravador, Cooperativa de Jornalistas de Porto
uma entrevista e pronto: denúncia no ar! Isso está longe de ser uma investigação; Alegre e para a revista Versus, que
apenas uma entrevista é muito pouco. publicava reportagens sobre lutas
Há inclusive aqueles que não checam, até porque tem a entrevista garantida populares na América Latina;
e a justiça aceita como prova. Você não inventou nada, está ali gravado e tem • Fanático por futebol, Caco é torce-
fonte, mas eu acho muito pouco. Prefiro provar que cada palavra gravada aqui dor do Internacional de Porto Alegre
é verdadeira, e às vezes, isso demora dois anos. E antes disso eu não colocaria e, sempre que pode, adora jogar
jamais no ar. uma pelada;
Eu sei que tem muitos veículos de rádio, TV e internet colocando denúncia ao vivo • O jornalista queria ser jogador
no ar. Isso é um grande equívoco. Como é que você vai checar? Saber se é verdade profissional e, num tom bem
ou não? No dia seguinte? Aí você vai cometer erros: o primeiro, no dia seguinte, humorado, confessa que se sente
desmentindo. Em jornalismo investigativo, não pode haver polêmicas: “Ah, o outro frustrado porque os técnicos não
lado disse o contrário”. Então, trabalhe meu caro, antes de divulgar. reconheceram o seu talento para o
Qualquer veículo pode fazer investigação, desde que haja com responsabilidade. É esporte;
da natureza do jornalismo investigativo a busca da prova. Essa observação que eu • Em 2001, Caco trabalhou com o
faço não é uma crítica; é uma constatação. Hoje se faz muito jornalismo declarató- repórter cinematográfico Marco
rio, atribuindo-lhe caráter investigativo. Não é verdade. Antonio Gonçalves em uma série
de reportagens sobre a guerra civil
angolana exibida pelo Fantástico.
Atualmente, o curso de Jornalismo está entre os mais
“Angola, a Agonia de um Povo”
procurados nas universidades. Você acredita que isso é recebeu o Prêmio Líbero Badaró,
reflexo de uma glamorização da profissão, já que muitos promovido pela Revista Imprensa;
profissionais são considerados celebridades? Até que • Aos 60 anos, Caco é adepto da
ponto a televisão contribui para isso? macrobiótica desde 1971. Todos
O que você chama de glamorização? É mostrar que o jornalista tem vida bacana? os dias, ele come arroz integral,
Não sei; o que é? Quando eu comecei, quem ganhava bem era o chefão, secretá- legumes no vapor e algum tipo de
rio do jornal. Todo mundo tinha uma vida complicada: as pessoas trabalhavam carne – branca – na chapa;
demais para ganhar salários ridículos. Isso foi mudando com o tempo. • Caco assume que é uma pessoa
Com o surgimento do telejornalismo no Brasil, a profissão passou a ser mais bastante esquecida. Ele brinca que,
valorizada, e os estudantes sabem disso. Nossa remuneração hoje é parecida com na sua casa, as pessoas nunca se
a de outras áreas. Os mais bem sucedidos jornalistas recebem salários equivalentes despedem na primeira vez, pois sa-
aos de grandes médicos, engenheiros, etc. No passado não era assim; é a minha bem que ele vai voltar para buscar
maneira de ver. alguma coisa;
Glamorização porque se torna conhecido? Tem gente que gosta dessa notoriedade, • Caco tem muito medo da morte.
mas eu asseguro: é impossível que as pessoas se identifiquem com o seu trabalho Para todo lugar que vai, ele carrega
sem muito esforço e dedicação, ou seja, bastante trabalho, que corresponde a apro- uma mochila, com uma espécie de
ximadamente dez, 12 anos de atividades diárias. “kit de sobrevivência”.
• Na Globo, ele já foi correspondente
Em diversas oportunidades, você assumiu publicamen- internacional em Londres e Paris.
• Foi eleito duas vezes o melhor cor-
te que tem medo da morte. Esse temor não soa como um
respondente, em 2003 e em 2005,
paradoxo para um dos ícones do jornalismo investigativo pelo site Comunique-se;
no país? • Ao lado do cinegrafista Sérgio Gilz
Na verdade, eu não vejo associação direta. As pessoas normalmente veiculam ao e da correspondente do jornal O
jornalismo investigativo um caráter denuncista. Mas investigar é muito mais do Globo Débora Berlinck, cobriu, em
que denunciar, dar porrada em alguém. Eu posso fazer jornalismo investigativo 2004, o conflito entre palestinos e
sobre o show dos Stones no Brasil: contextualizar, destacando a infraestrutura e a israelenses na cidade de Nablus.
importância do evento. Isso também é investigação e eu não estou correndo risco Na ocasião, quando os jornalistas
de morte. Veja o exemplo do “Profissão Repórter”. Você acha que é investigativo tentavam entrar nos territórios
ali? Todo mundo diz que é. A gente conta histórias positivas, do brasileiro que dá palestinos ocupados para ouvir a
certo, de “heróis” que trabalham 50 horas num dia de 24. É uma forma de inves- população local, tiveram o carro de
tigação porque a gente prova que as coisas são verdadeiras. Quando é necessário, reportagem alvejado por soldados
há críticas também, mas não precisa ser sempre isso. israelenses.

86 Revista Regional

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