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ETNICIDADE, ETICIDADE E GLOBALIZACAO’ ARTIGO Roberto Cardoso de Oliveira Ha alguns anos fui convidado a ministrar a “Primeira Conferéneia Luiz de Castro Faria”, realizada no Forum de Ciéncia e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Praia Vermetha, ocasiao em que escolhi o tema “Antropologia e moralidade” e pude desenvol- ver algumas idéias sobre as possibilidades dé o olharantropolégico visualizar uma ética pla- netétia: A conferéncia parece ter despertado algum interesse, manifestado por varios cole- gas, dentre os quais o nosso presidente, doutor Joao Pacheco de Oliveira, que me convidou a dar prosseguimento nesta oportunidade aque- Jas consideracdes. Penso agora retomé-las, dan- do a elas um novo rumo, de maneira a complementé-las especialmente no que tange ds relagSes entre ctnicidade c cticidade, diante da necessidade — como assim entendo — de nossa disciplina leva-las em conta de uma ma- neira mais sistematica e com vistas & questo da globalizacao. Parto, assim, de um caminho entio trilha- do em diregdo a um questionamento sobre 0 lugar ocupado pelo relativismo na antropolo- gia, enquanto orientagao epistemolégica, uma Conferéncia ministrada na XX reunidio Brasileira de Antropo- logia, ralizads na Universidade Federal da Bahia, em Sa vador no dia 14 de abril de 1996, como abertura do evento, \orientagao que a deixou pouco afeita ao | enfrentamento de questdes de moralidade ¢ de eticidade. Porém, gostaria de advertir desde ja “que, ao retomar aqui uma questio classica da antropologia, no estou de modo algum me co- locando numa posigao anti-relativista, mas tam- bém nao me incorporo cegamente, sem nenhu- ma ressalva, aquela outra — “anti-anti- relativista” — preconizada por Geertz de modo to enfitico, numa atitude perfeitamente com- preensivel, uma vez que em sua argumentagio no fica muito claro se ele distingue o relati vismo (com 0 sufixo ismo indicador de sua ideologizacao) do olhar relativizador como uma postura indispensvel ao exercicio da observa- do antropolégica; junte-se a isso o fato de Geertz se esquivar de tratar de questOes ciuciais, para a problematica do relativismo, como as de ética e de moral, limitando-se simplesmen- te a mencioné-las para deter-se em questdes cognitivas em sua critica ao racionalismo exa- cerbado, manifestado nas conhecidas colet- neas de Wilson (1970) ou de Martin & Hollis (1982). Estas questdes, e outras mais que Ihes sao correlatas, acredito poderem ser mais bem nuangadas, tal como a sua afirmagao final © peremptéria segundo a qual a“tinica maneira de derrotar (0 relativismo) & colocar a moralidade além da cultura e 0 conhecimento além de ambas” (Geertz, 1988, p. 18). Tirante © fato de que Geertz perde a oportunidade de distinguir a “postura relativista” (esta sim me recedora de defesa) de “relativismo” qua “ide- ologia”, seus argumentos nao poderiam ter sido mais adequados ¢ ndo se pode deixar de estar de acordo com eles. Mas se retomo aqui a ques- to do relativismo em nossa disciplina é para inscrevé-la no tratamento de um tépico muito especial. A saber, aquele que envolve questées relacionadas coma idéia do “bem viver” tanto quanto com aquelas que dizem respeito a pre- tensio do cumprimento do “dever”, mesmo re- jeitando a idéia de que elas possam ser descontextualizadas — como certamente gos- tariam os anti-relativistas mais ardorosos, alvo das criticas de Geertz. Questées de morale de ética tém sido, todavia, sistematicamente evi= itadas por nossa disciplina, exatamente por re~ ceio de infligir seu compromisso com o fan- tasma do relativismo. Portanto, como fantas-" ma, sé nos cabe exorciza-lo, viabilizando aque- las questdes como sendo passiveis de reflexio e de investigagao antropolégica. Entendo, assim, que nogo de “bem vir ver” ea de “dever” se inserem, respectivamen- te, no campo da maral eno da ética. E entendo também que ambos os campos se inserem igual- ‘mente na érbita de interesses da antropologia. | © primeiro implica valores; particularmente " aqueles associados a formas de vida conside- radas como as melhores e, portanto, pretendi- das no ambito de uma determinada sociedade, 0 segundo campo —o da ética— implica nor mas que possuam, porém, um cardter_pri formativo, um comando ao qual se deve obedi éncia, ‘pois segui-las é a obrigagao de todo qualquer membro da sociedade. Nessas consi- _g derages sobre moral e ética pode-se ver que jestou me situando no interior de uma “ética discursiva”y de inspiragao apeliana-haberma- siana, se bem que me reservando 0 direito de dela fazer uma leitura muito particular, propria de alguém situado numa disciplina que nfo se confunde com a filosofia. E digo isso porque minha preocupagio nessa exposigio é mostrar ‘© quanto a abordagem antropolégica pode ser fecunda no trato de questdes de moralidade ¢ de eticidade, ou, respectivamente, em lingua alema, Moralitat ¢ Sittlichkeit. Na tradigao hegeliana, & qual de algum modo a ética discursiva se filia, ¢ licito entender a ‘moralidade como a manifestago de uma von- tade subjetiva do bem, eng: santo éticidade se- ria essa mesma vontade, porém realizada em instituigdes histéricas (¢ culturais) regulado- ras dessa mesma vontade, como a familia, a sociedade civil e o Estado: Assim entendidas, moralidade e eticidade abrem uma fresta para © olhar antropolégico, por meio do qual néo hd com deixar de considerar que nossa disci- plina se legitima perfeitamente em tratd-las ‘com os recursos de que dispe. Dentro desse quadro, que ndo é originariamente de nossa disciplina, procurarei responder por que penso que a antropologia nfo s6 pode tratar de temas como esses, mas, para dizer de forma respon- sfvel, deve enfrenté-los pelas razdes que pro- curarei oferecer ao longo desta exposigao. Disse que deve enfrenta-los, porém com as armas de nossa disciplina ¢ respondendo a um problema central que a antropologia sociocultural carrega em seu dorso, quase des- de sua constituicdo como disciplina auténoma. Como ja mencionei, estou me reterindo a ques= \t0 da incomensurabilidade, das culturas, tio cara ao relativismo mais pertinazy Muito ja se escreveu sobre essa questao, portanto so me cabe poupar o auditério de um rosario de cita- Ges e referéncias, Basta considerar aqui qué} essa idéia de as culturas serem incomensuré-( yeis foi sempre tomada de modo tacito, prati- camente como um dogma no sujeito a questi onamento. Porém, se voltarmos 0 nosso olhar) para certas dimensées do relacionamento intercultural, aduzindo novas interrogagées, veremos queessa incomensurabilidade pode ser lauto mais problematica quanto mais envolver proferimentos de juizos de valor ¢ que, por mais complexa que possa ser a nossa forma de tra- tar tais dimensdes, em nenhum momento de- vemos considerd-la imune andlise € a refle- xdo antropolégica. Sera que todas as dificul- dades sfo 0 resultado de um mal uso do méto- do comparativo, quando a comparagio ¢ con- duzida de forma mecdnica e até certo ponto ingénua? E assim que nfo h4 como deixar de con- siderar que os problemas trazidos pela antro- pologia comparada tradicional fazem parte do nosso conhecimento mais corriqueiro. Por isso, € sempre uitil nos interrogarmos sobre nossos préprios habitos intelectuais. Vale, portanto, a pergunta: como cotejar as culturas entre si, se- nGo pelo uso de um método comparativo que, em si mesmo, ja denuncie um comprometimen- to com pelo menos uma cultura — em ultima andlise a cultura da propria antropolo; 6, da antropologia enquanto cultura? Nao seria a cultura a “medida” de todas as coisas? Por- tanto, enquanto cultura (ou se se quiser, “lin- guagem cultural”), a nossa disciplina engen- dra métodos que, muitas vezes, nfo chegam a ser seno a contrafagao de si propria. Poisiay antropologia seria uma terceira cultura a se in- terpor entre duas ou mais culturas postas em | comparagdo. Teria apenas a distingui-la ser ela artificial (enquanto linguagem cientifica) di ante do fato de as culturas em comparagio se- rem entidades naturais (tal como uma lingua natural). Mas quais as dificuldades que uma andlise comparativa encontraria? Ao que pare- ce, se ndo hd muita dificuldade na comparacao de dados ditos objetivos (quantidade de bens produzidos, tecnologias sofisticadas etc.), nao restaria sempre a imponderabilidade dos juizos de valor a confirmar a natureza incomensurd- vel de cada cultura? E nao teriamos de incluir aqui, nessa equaco, a propria antropologia enquanto cultura? A isso € que qualifiquei ha pouco como uma contrafagdo ou auto-anula- do de nossa disciplina. Portanto, é diante da tradicional pratica da disciplina que questdes como essas tém sido colocadas como sendo um perene desafio ao antropdlogo do ponto de vista epistemolégico. E é tanto mais dificil enfrenté-lo quanto mais © antropélogo estiver envolvido em programas ou politicas de agao social. Pois um antroplo- go imbuido de pretensdes de examinar a con- sisténcia de suas proprias agdes em sociedades culturalmente tio diferentes, claramente deten- toras de sistemas de valor préprios e singula- res, corre o risco de ficar emaranhado em seu_ préprio relativismo. Em outras palavras, o1de= safio que se impée a esse antropélogo é o de como, por quais critérios (de objetividade?), poderia ele agir — como cidadao e como téc- nico — no encontro entre culturas diferentes; sobretudo quando as sociedades portadoras dessas culturas guardam entre si relacdes pro- fundamente assimétricas, caracterizadas pela idominago de uma sobre a outra. E 0 moral- mente grave é que ele, enquanto antropélogo, é cidadio da sociedade dominante. Esta pare- ce ser, por exemplo, a situagao vivida entre nés tipicamente pelos antropélogos indigenistas, que na oportunidade de uma Reunido como esta, em que muitos desses colegas esto pre- sentes, penso que mencionar 0 cenario indigenista é mais do que apropriado para sub- metermos essas consideragdes a exame. Ainda esta muito viva em todos nés a acusagao de a antropologia — especificamente a antro~ pologia aplicada e 0 proprio indigenismo lati- no-americano — ter sido desde os seus primérdios um instrumento de dominagéo do colonialismo externo ¢ interno. E 0 resultado disso & que a nossa disciplina, em sua dimen” sfio académica, sempre fiada em um relativis- mo dogmitico (perdoem-me o paradoxo), ja- mais conseguiu se libertar de constrangimen- tos quando sobre ela a razo especulativa pas- sa a ser substituida pela razao instrumental, a saber, quando ela se envolve com praticas de intervengio cultural. Como justificar tais in-, ‘tervengoes? Minha primeira consideragao € dizer que, sem a aceitagéo voluntaria pela po pulagio alvo da intervengio, esta & injustificdvel: Todavia, o problema no se en- cerra aqui: ele se transfere para o sentido da expressio “aceitagao voluntéria”. E é aqui que recorro a “ética discursiva”. E, assim fazendo, penso dar prosseguimento as consideracdes que fiz em 1993 por ocasiao da mencionada “Pri- meira Conferéncia Luiz de Castro Faria”. Nagquela oportunidade me vali de algumas bULUDALIZAY AYU dgias que gostaria de agora evocar, para dar consisténcia a minha argumentagao. Algo pen- so ter deixado firmado naquela ocasido que gostaria de retomar agora. Lembraria, primei- ramente, a distingaio que sempre se pode fazer entre costume e norma moral, “o que significa dizer que aquilo que esta na tradigfio ou no costume nao pode ser tomado necessariamente como normative” (Cardoso de Oliveira, 1994, p. 114). Ou, como escreve o filésofo Ernst Tugendhat (1988, p. 48), “é inaveitével que se admita algo come correto ou bom (portanto como norma) porque esta ja dado de antemao no costume, sem poder prova-lo como correto ou bom”. Admitida essa distingao, torna-se sempre valida a indagagio sobre casos de moralidade e de eticidade no ambito de nossa disciplina. E aceitavel, por exemplo, 0 infanticidio que os Tapirapé praticavam até sua arradicagio nos anos 50 pelas Irmazinhas de Jesus? (E seja dito, alias, que tal erradicago foi conduzida habilmente, sem nenhuma vio- léncia, exclusivamente gragas a persuasao pelo discurso, pelo didlogo — para aqueles que ti- verem interesse em melhor conhecé-lo, tive a oportunidade de analisar esse caso nos ter mos da ética discursiva na Conferéneia Castro Fa- ria (Cardoso de Oliveira, 1994, pp. 115-16)] indios e missiondrias tinham suas razdes para tomar uma e outra atitude. Os Tapirapé tinham toda uma justificagao para nfo deixar sobrevi- ver 0 quarto filho, desde que cle viria — por uma lei demografica por clés intuida ao longo de uma experiéncia secular — a aumentar uma populagio limitada as potencialidades do ecossistema regional. J4 as missionarias, por sua f nos mandamentos religiosos, nio pode- riam aceitar passivamente um costume que des- truia uma vida, Para os indios 0 costume se justificava, uma vez que 0 sacrificio de algu- mas vidas valia a vida de toda uma comunida- de; para as missiondrias, a vida de qualquer pessoa é um bem inquestionavel. Duas morais, duas éticas? Sim, todas perfeitamente racionais. Portanto, ndo é a questo da racionalidade que esti em jogo. Diante disso, como lidar pratica- mente com tal situag0? Como guiar a nossa agao quando nfo temos nenhum dogma a sustenté-la? A rigor, toda questo se resume na intersegao de dois campos seménticos diferen* | tes —o indigena e 0 missionario —, uma ques- tio, alias, equacionada pela teoria hermenéu- tica através do conceito de “fustio de horizon- tes”, observavel na pratica dialdgica discursi- va. Isso quer dizer que a solugao das incompa- tibilidades culturais, inclusive as de ordem | moral nascidas do encontro interétnico, esta- ria no dialogo? Creio que para respondermos a isso vale recorrer a uma outra idéia, entéo apresentada: a da distingo dos espagos sociais em que pode ser observada a atualizagao de valores morais. Apel (apoiando-se em Groenewold) distingue trés espagos sociais, que denomina esferas: a) micro, amesoe amacro (ver Apel, 1985 e 1992;| Cardoso de Oliveira, 1994). Apel traz essas esferas para o campo da ética, considerando, assim, uma microética, uma mesoética ¢ uma macroética, correspondendo: a primeira, as ¢s- feras das relagSes face a face que se dio no meio fauiliar, tribal c/ou comunitario; a segun- da, as relagdes sociais permeadas pela ago dos Estados (de direito) nacionais através das ins- tituigdes e das leis por eles criadas; e a tercei- ra, as ages sociais que; por deliberagao inter- nacional, por meio de seus érgios de represen- tagio — como a ONU, a OIT, a OMS ou a Unesco —, devem ser reguladas por uma ética planetéria! O infanticidig tapirapé, por exem- plo, que poderia encontrar justificagao no ni- vel micro, no interior da cultura tribal, j4 vai encontrar sua discriminagéo como crime no nivel meso, inscrito que est no Cédigo Penal, tanto quanto no nivel macro, uma vez que vio~ lenta a Carta dos Direitos Humanos. Voltarei a isso mais adiante. Estamos retomando, assim, um conjunto de idéias que me parecem importantes para a argumentago que desejo desenvolver. Se, de um lado, podemos admitir que a questo da racionalidade das normas morais nada tem a ver com a possibilidade de aceitagdo ou rejei- do das mesmas, desde que elas podem se jus- far plenamente no ambito de moralidades LU, tio diferentes, para no dizer opostas — como bem ilustra 0 caso dos Tapirapé e das missionarias — por outro lado 0 contexto interétnico em que se da a confrontagao entre essas_normas esta contaminado por uma indisfargavel hierarquizagdo de uma cultura sobre a outra, reflexo da dominago ocidental sobre 0s povos indigenas: O processo de do- ‘minago, como todos nds sabemos, no se da apenas péla forga ou pelo peso das tecnologias criadas pelo mundo industrial; da-se também —e € esse 0 ponto que me interessa desenvol- || ver — pela hegemonia do discurso ocidental, \e de raiz européia, Esta é a base da critica que se “faz atualmente a ética discursiva apeliana, numa tentativa de encontrar os seus limites. Nessa direco, um debate muito instrutivo vem se dando em escala internacional, tendo por alvo as comunidades de comunicagao e de ar- gumentagao apresentadas por Apel como con- digo sine qua non da ética do discurso. Afinal de contas, o didlogo interéinico ou intercultural seria efetivamente democratico? Qual a possi- bilidade de um sistema de fric¢gdo interétnica constituir uma efetiva comunidade de comuni- cagdo e de argumentacio que satisfaca os pré- requisitos apelianos? Desde 1989 esse debate vem ocorrendo no Ambito das relagdes Norte/Sul e em torno da ética discursiva em confronto com a “filo- sofia da libertagio” latino-americana. Evocar alguns aspectos desse debate parece-me impor- tante para o rumo de minha argumentagao. Os debates que vém tendo lugar desde entio— na Alemanha, no México, na Russia e mesmo no Brasil (como em Sao Leopoldo, em 1993) — ja geraram varias publicagdes, dentre elas um ‘volume intitulado precisamente Debate em tor- |no da ética do discurso de Apel: diélogo filo- séfico Norte/Sul a partir da América Latina |(Dussel, 1995), tendo por organizador o fild- sofo argentino-mexicano Enrique Dussel, con- siderado o principal tedrico da filosofia da li- bertagao. Sem entrar no mérito dessa filoso- fia, 0 debate, pelo menos como se manifesta nesse livro, é extraordinariamente interessante para o nosso propésito de questionar — se bem ETNICIDADE, EVICIDADE que no horizonte empirico de nossa disciplina — a possibilidade de verificar faticamente 0) cumprimento de um dos requisitos basicos da) ética do discurso: 0 da simetria ow igualdade de posigSes entre as partes envolvidas no di: Jogo. Tanto para Apel como para Habermas, 6 que legitima 0 dialogo — ademais dos quatro “requisitos de pretensio de validez” (a saber: a inteligibilidade, como condi¢o dessa preten- sio, mais a verdade, a veracidade e a retidio) —€ 0 seu cariter democratico! E, para deixar- mos claro o quanto esse cardteré fundamental para que se dé plena fustio de horizontes, vale Jembrar a critica de que foi objeto Gadamer por haver desconsiderado a questo democratica quando escreveu o seu monumental Verdade e método (1960). Isso levou Habermas) a fazer uma de suas criticas mais pertinentes a herme- néutica gadameriana, na medida em que/pés a questéo do poder no interior de qualquer co- munidade de comunicagio, onde teria lugar a “compreensio distorcida® decorrente do pro- cesso de dominacao; um lugar, por sinal, mais) bem elucidado — segundo Habermas — pela “critica das ideologias” do que pela hermenéu- tica de Gadamer (Habermas, 1987). Mas, quan- do essa distorgao se dé numa “comunicagio intercultural”, portanto entre campos semanti- cos teoricamente incomensuraveis, isso agre- ga obstaculos dos mais variados tipos, que so- mente a constatacao Sbvia da assimetria na re~ lagao dialdgica nao esgota por si s6 0 proble- maz Pois, como comenta um outro participante do debate Norte/Sul em torno da ética do dis-_ curso deApel: “Aqui aparece o problema de se a ética discursive — construida no horizonte da comunicagao “intersubyetiva’ — é capaz d enfrentar adequadamente o horizonte da comu nicagao ‘intercomunitéria’” (Ramirez, 1994, p. 98); ou, diria eu, interétnica, a ‘Vé-se, assim, que a perspectiva aberta por aquele debate nos permite vislumbrar a possi- bilidade de um proveitoso encaminhamento do problema, Como mencionei ha pouco, a rela~ cdo dialégica entre membros de comunidades | culturalmente distintas introduz certas idades que merecem um exame mais| E GLOBALIZAVAU \detido. Que 0 digam os indigenistas, imersos \em sua pritica didria precisamente nisso que se poderia chamar de confronto de horizontes | semanticos diferentes; é quando o processo de fusio desses mesmos horizontes enfrenta difi- culdades préprias, a meu ver bastante mais complexas do que aquelas observaveis na fu- so de horizontes que tem lugar entre indivi- duos ou grupos pertencentes a culturas e/ou sociedades ndo-hierarquicamente justapostas, particularmente quando fazem parte de uma mesma e ampla tradigdo histérica, Nesse sen- tido, a hermenéutica gadameriana tem mostra- do sua eficdcia precisamente na exegese de tex- tos de diferentes periodos da historia ociden- tal, com 0 objetivo de inseri-los na inteligibili- dade do leitor moderno, igualmente ocidental ou ocidentalizado; em outras palavras, tratar- se-ia de submeter os textos a um processo de “presentificacdo”. Ja fusdo de horizontes en-| tre culturas enraizadas em tradigdes tao dife- rentes,— como soem ser os povos indigenas| diante das sociedades nacionais latino-ameri- canas — tanto a hermenéutica de Gadamer quanto a ética discursiva de Apel ¢ Habermas, mais do que solugdes geram problemas, quan- do pensamos poder usi-las sem maiores pre- ' caugées. Quais seriam esses problemas? —_| Seguindo, assim, as pistas abertas pelo debate Norte/Sul ao qual estou me referindo, podemos identificar inicialmente alguns des- ses problemas. Sem procurar debaté-los nos termos em que foram explorados pelos filéso- fos participantes daquele evento, uma vez que seriamos obrigados a abordar questes dema- siadamente técnicas, tornando, com isso, mui- to longa esta exposigao, creio que sera sufici- ente para sustentar minha argumentagao limi- tar-me a reformular aqueles problemas, ja agora em termos de nossa perspectiva de antropélo- gos. Nesse sentido, estaremos tratando das re- laces interétnicas que tém lugar no interior de Estados nacionais, particularmente nos da ‘América Latina, E se falamos em relagdes interétnicas nao custa relembrar algumas no- ges a elas associadas € de uso corrente na an- tropologia desta segunda metade do século. ween ++ Quero mencionar a de einicidade: uma nogio que desde logo nos induz a visualizar um p: norama no qual defrontam (melhor diria: se confrontam) grupos étnicos no interior de um ‘mesmo espago social ¢ politico dominado ape- nas por um deles: Abner Cohen, ha anos, defi: niu etnicidade como sendo “essencialmente @ forma de interagao entre grupos culturais que operam dentro de contextos sociais comuns” (Cohen, 1974, p. XI). Pareceu-me, ‘entdo, que fe continuo me valendo dela sua definigéo — — dava bem conta da nogao que todos. nds ti- nhamos do forte componente politico que pre- sidia os sistemas interétnicos, sobretudo quan- do as relagdes observaveis em seu interior es- tavam marcadas pela presenca de um Estado cioso em defender a etnia dominante, isto ¢, aquela que esse mesmo Estado representava Seja no Brasil, no México, na Guatemala ou em muitos outros paises latino-americanos, era precisamente isso que se observava. No Brasil —e fiquemos com essa experiéncia que nos ¢ préxima — todo didlogo entre indios ¢ bran- cus que produza resultados de valor legal é feito através da Fundagao Nacional do Indio, 0 bra- 0 indigenista do Estado brasileiro. Mesmo qué esse Estado seja plenamente um Estado de Di- reito, democratico ao menos em suas caracte- risticas formais, veremos que ‘num confronto entre indios e brancos a Funai, na qualidade de mediadora de um desejavel didlogo entre as partes, tera, em primeiro lugar, de interpretar 0 discurso indigenaa fim de torna-lo audivel & inteligivel ao seu interlocutor branco'(e isso nas raras vezes que esse branco esti disposto a dialogar...). Mas imaginemos que esse branco deseje sempre dialogar. Mesmo neste caso, a ética discursiva gadameriana, que exige uma “argumentagio racional” entre os litigantes como caracteristica basica de qualquer comu- nidade de comunicagao, sempre guardaria um residuo de ininteligibilidade, fruto da distan- cia cultural entre as partes e, inclusive, em re- Jago & insténcia mediadora: a propria Funai. Dussel mostra, por exemplo, que qualquer “in terpelagdo — por ele classificada como “ato de fala” — dirigida pelo componente dominado da relagdo interétnica ao componente dominante— este branco, culturalmente europeu, ocidental TS nao pode cobrar do primeiro a obediéncia aos pré-requisitos de inteligibilidade, verdade, veracidade e retidao.que se espera estejam pre-_ sentes no exercicio pleno da ética do discurso. ‘A propria interpelagao feita pelo indio ao bran- co dominador (nao apenas por ser parte do seg- mento dominante da sociedade nacional, mas, também, como dominador da linguagem do proprio discurso) torna muitas vezes dificil a inteligibilidade da mesma interpelagio e, com ela, sua natural pretensdo de validade, uma vez que falta aquela condigao basica para 0 proferimento de um ato de fala que seja “ver- dadeiro” (isto é, aceito como verdadeiro pelo ouvinte alienigena); que tenha “veracidade”, sendo, portanto, aceito com forga ilocuciondria (de convicgao) pelo mesmo ouvinte; e que ma- nifeste “retidao” ou, com outras palavras, que cumpra.as normas da comunidade de argumen- taco eticamente constituida, normas estas estabelecidas (¢ institucionalizadas) nos termos da racionalidade vigente no pélo dominante da (_telagao interétnica, Como diz o mesmo Dussel “sio ditas normas (a institucionalidade dominadora) a causa de sua miséria”, isto é, da miséria e da infelicidade do pélo dominado. Continua Dussel, 1994, p. 71): De todas as maneiras — na medida em que a digni- dade da pessoa é considerada em toda comunicagio racional como norma suprema, cticamente, pode nio obedecer as normas vigentes, colocando-as em ques- to a partir de seu fundamento mesmo: a partir da dignidade negada na pessoa do pobre que interpela {ou do indio, ou de qualquer exclutdo, aerescento cu]. A ndo-normatividade da “interpelagdo” ¢ cxigida r'se encontrar em um momento fundador ou ori- gindrio de nova normatividade — a institucionali- dade futura de onde o “interpelante” tera direitos vi- gentes que agora no tem. Isso quer dizer que, na relago entre indios ¢ brancos, mediada ou nao pelo Estado — leia- se Funai —, mesmo se formada uma comuni- dade interétnica de comunicagao e de argumen- wee, tagio, e que pressuponha relagdes dialdgicas democraticas (pelo menos na intengao do pélo_ dominante), mesmo assim @ didlogo estard comprometido pelas regras do discurso | hegeménico. Essa situagao estaria somente sit= perada quando o indio interpelante pudesse,' através do didlogo, contribuir efetivamente para a institucionalizagao de uma normatividade in- teiramente nova, fruto da interago dada no in- terior da comunidade intercultural. Em caso| contririo, persistiria uma sorte de comunica 40 distorcida entre indios e brancos, compro- metendo a dimensio ética do discurso argumen- tativo. A necessidade de assegurar as melhores condigées possiveis para uma comunicagio no-distorcida tanto mais ¢ indispensavel quan- to maior for a distancia entre os campos se- minticos em interagdo dialégica, Gostaria de ilustrar isso com um caso observado nos Esta- dos Unidos — e que ja tive ocasido de explo- rar noutra oportunidade (Cardoso de Oliveira, 1992). Refere-se a um choque de pontos de vis- ta entre us judivs uurte-americanos ¢ a “comu- nidade dos museus”, decidida a estabelecer um cédigo ético regulador de sua politica de ob- tengo de elementos culturais indigenas para seus acervos (Hill, 1979). A discordancia en- tre os pontos de vista pode ser entio registrada com relagio aos seguintes tépicos: o direito de coleta de restos humanos e de fazer escavagdes arqueolégicas em territério tribal; e 0 direito de expatriagao de objetos indigenas. O primei- 10 t6pico diz respeito a direitos invocados pela comunidade dos museus, enquanto o segundo se refere a direito reivindicado pelos indios. Esse conjunto de direitos € questionado segun- do diferentes pontos de vista: Relativamente ao primeiro tépico, enquanto os ‘museus argumentam que o povo em geral tem 0 direito de aprender sobre a historia da humanida- de e ndo apenas limitar-se & histéria de seu pré- prio grupo étnico, os indios respondem que isso & uma préfanagao e uma forma de racismo. Alegam ‘0s museus que os indios tradicionalmente nao dio ‘muita importdncia 20 corpo, mas ao espirito; o que

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