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CARLO GINZBURG O fio e os rastros Verdadeiro, falso, ficticio Traducto Rose Freired’Aguiare Eduardo Brandao &, ‘CosipaNaia Das Letnas 6. Tolerancia e comércio — Auerbach lé Voltaire’ a Adriano Softi tas poucos anos antes), encontra-se uma pégina famo: Entrem na Bolsa de Londres,esse lugar maisrespeitével do que mui- tas cortes; verdo reunidos af os deputados de todas as nagdes para 4 promessa do quaker. Ao sairem dessasreu- aides pacificas livres, uns vio para asinagoga, outros vlo beber; edo Espirito Santo; aquele faz cortarem o prepticio do filho em * Em 1999, discut ros da Ucta, com os pi (Department of History, Francesco Orlando, com Adriano Sofri. A vers sgdeseascriticasqueme foram comunica una versto anterior destas piginas,em inglés,com meus alu Gajano,com jana leva em conta as suas por David Feldman. todos, bse ‘omen agradecimento, 2 a esperara todos estao contentes.' Erich Auerbach deteve-se longamente nesse texto em seu ‘Sua analise se abria com uma adver- A frase assim como nao era 6bvia para Auerbach a nogao de realismo. Entre as muitas variantes de realismo analisadas em Mimesis,encontramos o realisono moderno, exemplificado pelos romances de Balzac Stendhal, nos quais acontecimentos ¢ expe- riéncias pessoais se entrelagam com forcas histéricas impessoais,? Uma dessas forcas é 0 mercado mundial evocado por Voltaire na pagina sobre a Bolsa de Londres. Auerbach, por sua vez, preferin ias religiosas forade seus respectivos contextos, faz delas algo de absurdo e cémico. Trata-se, observava Auerbach, de uma “técnica de refletor Especialmente nas épocas agitadas,o piblico sempre cai nessa are- Duca, e todos somos capazes de extrair um bom niimero de exemn- plos do passaclo mais recente. (..] Quando uma forma de vida ow lum grupo social esgotou seu papel ou apenas perdeu o apoio ou a tolerancia, qualquer iniquidade que a propagandaatirar contra ele seri saudada com alegria sidica* A referencia explicita ao nazismo torna aaflorar logo depois, numa observagio amargamente irénica sobre Gottfried Keller: “Esse homem feliz nao podia conceber nenhuma mudanga pol tica importante que nao fosse ao mesmo tempo uma expansio da liberdade”. Mimesis, escreveu ‘retrospectivamente Auerbach, “é,de 35 maneira plenamente consciente, um livro escrito por um homem determinado, numa situagao determinada, no inicio dos anos 40 em Istambul”® Com essas palavras, Auerbach reafirmava a sua fidelidade ao perspectivismo critico que havia elaborado refle- tindo sobrea Ciéncia novade Vico: Mais de cingienta anos se passaram desde a publicagao de Mimesis,A vor de Voltaire na pagina comentada por Auerbach soa hoje mais forte do que nunca, Mas para ler adequadamente essa izar uma perspectiva dupla, bifocal, que leve pagina devemos 1 em conta tanto Voltaire quanto seu agudissimo leitor. 2. Abrincadeira.com a palavra infidéle assim como, em geral, a pagina de Voltaire sobre a Bolsa de Londres poderiam ter sido inspiradas no célebre elogio da liberdade intelectual e religiosa de Amsterdacontido no iltimo capitulo do Tratado teolégico-politico de Spinoza (1670): ‘Tome-se como exemplo a cidade de Amsterda, que, com seu tio grande crescimento ¢ coin admiragao de todas as nacbes, experi- mentdo fruto dessa liberdade Com efeito, nessa mui venturose Repiblica e Resa proemitientissima cidade, todos os homens, de ‘qualquer seita ou nagdo, vivem em suma.conc6rdia , para que ‘emprestem seus bens paraalguém, somente procuram sabersepor- ventura érico ou pobre ese costuma agir com bos-fé ou com dolo num bona fide, an dolosolitussitager As tiltimas palavras, na andnima tradugao francesa do Tra- tado teol6gico-politico publicada em 1678 e difundida com trés frontispfcios diferentes, seguem de perto o original latino: “S'i est homme de bonne foy ou accotitumé & tromper”* Nos escritos de Spinoza, a palavra “fides” tem, dependendo do ng E contexto, preconceito, piedade, lealdade etc.’ A passagem do ambito r paraoambito pe {ogico-potitica:“Enfim, se levarmosem conta ofatodequeadevogio de um homemao Estado, como a Deus, sé pode ser conhecida atra- vés das ages” | Quod sideniquead hoc etiam attendaius, quod fides cognosci potest..)." Nessas palavras ressoa o eco de um dos autores preferidos de Spinoza, Nos Discursos sobrea primeira década de Tito antiga Roma." Mas no elogio de Amsterda e das suas liberdades, “fides” — mais precisamente a nogao juridica de “bona fides” [boa- 8] —significa confiabilidade comercial." Spinoza parece ter aberto ‘caminho paraa tirada de Voltaire sobreabancarrota como formade infidelidade. Tornamos a encontré-la, transformada em declaracao solene, nas notas dedlinheiro americanas: “In God we trust.” O cotejo entre o clogio de Amsterdi ea descrigao da Bolsa de Londres reforga a hipétese, jé formulada numa base totalmente diferente, de que Voltaire conheceu 0 Tratado teoldgico-politico antes de publicar as Cartas flaséficas.* Mas o tom dos dois trechos é diferente. Para Spinoza, Amsterd era a demonstragio viva da {sede que. libéerdade'de pensamento nio € perigosa do pontode vista politico, mas ao contrério contribui para idade geral por meio da prosperidade do comércio, Voltaire) mais de meio século depois, dava a entender que em Londresaprosperidade do comércio havia tornado as divisdes teligiosas totalmente irrele- vantes, Na batalha hist6rica entre razao e intolerancia re iosaya Inglaterra era, para Voltaire, um modelo: Quoit N'est-ce done quien Angleterre Que les miortelsosent penser? us sibio” em “pensar” fazem parte da poesia escrita por Voltaire quando da morte da atriz Adrienne Lecouvreur. Meio século depois, Kant escotheu as mesmas palavras de Horicio, na mesma acepgiio defor- ‘mad, para sua famosa definigao do ta taire serviu-se do estr transforma uma.coisa fa ‘mento notou que os filésofos fizeram largo uso dele. Nas Cartas filo- ‘séficas, encontramo-lo a cada passagem. Eis como Voltaire descreve na primeira carta seu encontro com um quaker ndo nomeado: “Havia mais gentileza no ar aberto e humano do seu rosto do quehé em puxar uma pernaatrés da outraelevarna mao o queéteito para cobrira cabeca"." Com uma perifrase laboriosa, deliberadamente deselegan Voltaire convida o leitor a compart ar 0 desprezo do quaker s. Pouco depois, o desprezo é ampliado aos ritos num pouco de Depois do batismo, a guerra. Valendo-se do costumeiro pro- cedimento deestranhamento,o quaker descreve, econdena,alis- tamento para o servico militar: n6 cidadaos fazendo barulho com dois pauzinhos num couro deburro bbem esticado."* © procedimento literério usaco por Voltaire tem ‘umalonga tradicao que remontaa Marco A\ ‘mentos, Marco Aurélio diz do laticlavo dos senadores romanos: “Aquela toga orlada de piirpura nada mais é que la de carneiro im- pregnada de sangue de peixe” Voltaire langou sobre os comporta- ‘mentos sociais um olhar parecido, reduzindo pessoas e aconteci- ‘mentos 0s scus componentes essenciais. Os soldados nao passam de “assassinos vestidos de vermelho, com um quepe de dois pés de altura’sem vezderufaro tambor, eles fazer “barulho com doispau- zinhos num couro deburro bem esticado” Atéos gestos mais Sbvios se tornam estranhos, opacos, absurdos, como se vistos pelos de um estrangeito, de um selvagem ou de um como Voltaire seautodefiniu num escri ‘Mas 0 modelo de Voltaire era in de notas, redigido durante o losophe ignorant, is tardio. Num dos seus cadernos em Londrés (1726-8), Voltaire ipava 0 suco da sexta carta filos6- fica:“A Inglaterra 60 ponto deencontro de todas s rel como a Bolsa é ponto de encontro de todos 0s forasteitos”. Em outta passagem, Voltaire anotou, nasuaincerta grafiainglesa,uma versio mais elaborada da mesma idéia feruma comparagio que ant Onde ni verdade de consciéncia raramente seer nt dade decomércio, porquea mesma tirania to ‘ocomércioea re gio. Nas reptiblicas e nos outros paises orto uma quantidade de religide ses, pode-se ver num ala denavios.O mesmodeus n7 €adorado de formas diversas por hebreus, maomictanos, pagios, cardlicos, quakers, anabatistas, que escrevem obstinadamente uns contra os outros, mas comerciam livremente, com confianga ¢ em paz;comobonsatoresque, depois de terem rec seus papéisehi- taclo um contca o outro no paleo, passam o resto do tempo bebdendo juntos.” O titulo dado a esse trecho — A Tale ofa Tub— foi conside- rado“des nite” pelo organizador moderno doscadernosdenotas de Voltaire." Na realidade, esse titulo nos diz por que caminhos a técnica do estranhamento havia passado a fazer parte da elabora- 80 das Cartas filosdficas. Em A Tale of a Tub (Conto do Tonel] (1704), Swift havia contado, com continuas digressdes, a historia de trés filhos que brigam pela heranga do pai: uma parabola que simbolizava as disputas entre a Igreja de Roma, a Igreja da Ingla- terra e os dissidentes protestantes. Embora criticando asper mente tanto os catélicos quanto os entusiastas,* Swift declarava abertamente queos pontos de concordancia entre os cristioseram. mais importantes do que as suas divergencia Voltaire voltoua fonteda parabola de Swift, historia dos teésané Em suas notas que um vetho pai deixa para os filhos; mas amplion a referencia origindria a cristaos, hebreus ¢ maometanos, incluindo até os ambientada na Bolsa de Londres, em vez imo, os pagtos desapareceram e a mensagem aisatenuada, Masa divida dé Voltaire para contSwitt mais ampla, A Tale ofa Tab anunciava a publica on outros escritos do seu andnimo autor, entre os quais“Uma viagem o iminente de a Inglaterra de uma personalidade eminente de Terra incognita, traduzida do origin: ia que reaparece alguns anos depois em * Membrosdeseitaseligiosasinglesasquesedi Espirit Santo, wpiradas pelo 18 forme invertida nas Viagens dle Gulliver (1726).Sem as Viagens de Gulliver, Voltaire nunca tera sido 0 que foi.” Podemos imaginaro \entusiasmo com que leu oinventério dosobjetos contidosnosbol- sos de Gulliver, eserupulosamente redigido por dois mintisculos habitantes de re esses objetos havia: toma grossa corrente de prata com uma maravilhosa espécie de engenhoca na ponta, Mandamos que tirasseaquilo que estava pen: durado na corrente: era um globo feito metade de prata, metade de ‘ummetal transparente,edesse lado transparente vimosdesenhadas le levou essa engenhoca a J umas estranhas figuras circulares | nossos ouvidos; ela fazia um barulho incessante, parecido com ode umaroda-d’gua. Econjecturamosque deviaseralgum animal des- comhecido ou o deus que ele adorava; mas esta iltima hip6tese & mais verossimil* Swift transforma um objeto cotidianio numa coisa sagradas Voltaire transforma um evento sagrado numa coisa cotidiana: ‘Celui-ci va se faire baptiser dans une grande cteve ...]” [Este vai se fazer batizar numa grande pia...]." Em ambos os casos, vemos desenvolver-se a mesma estratégia de estranhamento. O olhar estupefato do estFanho destréia aura gerada pelo costume ou pela reveréncia, Neahuma aura envolve, porém, os intercimbios comerciais que se realizam na Bolsa de Londres: a racionalidade deles € dbvia, Na seco das Cartas filosdficas dedicada a Swift (“Vingt-deu- me lettre: Sur M, Pope ct quelques autres pottes fameux”) no se diz nada sobre as Viagens de Gulliver. Mas na edigao ampliada, publicada em 1756, Voltaire inseriu uma longa passagem sobre A ‘Tale of a Tub, identificando como fontes a histéria dos trés anéis e Fontenelle. E conchait: 19 Portanto,quase tudo Gimitagdo.A iia das Cartas pers irada da ivrosa mesma coisa que como fogo em nos- s0s lares; vamos buscar fogo no vizinho, acendemos o nosso, pas loa outros, eele pertencea todos Uma espléndida confissao mascarada, 4,Ao que tudo indica, Auerbach nao tinha lido o ensaio de Chklévski sobre o estranhamento.” Mas as idéias de Chkl6vs mediadas por Serguei TretiaXoy, fiveram uma influeneia decisiva sobrea obra de Brecht, que Auerbach certamente conhecia muito bem. O Verfremdungseffekt de Brecht, tao profundamente ligado Atradicao do Iluminismo, recorda de pertoa'técnica do refletor” usada por Voltaire.” Auerbach salienta, daquela técnica, apenas osriscos, nao 0 potencial criti {20 unilateral que surpre~ ende. Claro, os procedimentos artisticos ou literdrios sao meros instrumentos, que podem ser usados para fins diversos ou até opostos. Uma arma (eo estranhamento também é uma) pode servir para matar uma crianga ou para impedir que uma crianga seja morta, Mas se examinarmos mais de pertoa fungio do estra- nhamento nos escritos de Voltaire vemos emergir uma histéria mais complicada, que langa uma nova luz sobre a descrigao da Bolsa de Londres e— indiretamente — sobrea leitura que Auer- bach dela fez. A publicagao das Cartas filoséficas (1734) coincidiu com a redacao do Tratado de metafisica, reelaborado até 1738." Nessa obra depois da sua morte, Voltaire explorou a fundo as potencialidades subversivas do olhar de estranhamento que cle havia pousado na \completa, ndo destinada ao puiblico ¢ impressa somente 0 «sociedade inglesa, Na introducdo (“Diividas sobre © homer”) cescrevet Poucos se atrevem a ter uma nogao ampla do que é0 homem. Os ‘camponeses deuma parteda Europanao tem da nossaespécieoutra ‘que a de um animal de dois pés, peleamorenada, que articula algumas p wres cul ‘aaterra, paga, sem saber por qué, certostri- butos a um outro animal que chamam de rei, vendem seus produ- tos 0 mais caro que podem e se retinem certos dias do ano para centoar preces numa lingua que no entendem,” ‘6 trinta anos depois Voltaire searriscoua publicaresse tre- cho, em forma reelaborada, na pseudénima Philosophie de Phistoire [Filosofia da histéria), republicada depois como intro- dugdo ao Bssai sur les moeurs [Ensaio sobre os costumes} nova verstio,a descrigdo de estranhamentd da sociedade france- saeraatribuida, de uma maneira decerto mais plausivel, 20 pré- prio Voltaire. No Tratado de metafisica, entretanto, 0 ponto de vista dos camponeses introduzia em rapida sucessio os pontos de vista, igualmente parciais, de um rei, de um jovem parisiense, de um jovem turco, de um padre, de um fildsofo. Para transcen- der essas perspectivas limitadas, Voltaire imaginava um ser vindo do espago: uma invengao de cunho swiftiano, retomada mais tar- ‘de em Micrémegas.” Tendo partido em busca do homem, o via- jante ve" simios, elefantes,negros, todos os quais parecem ter alguns Iampejos de razdo imperfeita’. Com base nessas experiéncias, declara: Ohomem é um ani gro que tem Id na cabega,caminhe sobre cduas patas,€ quase tdo habil quanto um simio, menos forte que os outros animais do seu tamanho, dotado de um pouco mais de idéias do que estes e maior fa valéncia cara a Voltaire), permite-Ihe enxergar uma verdade d is. Pouco a pouco,o viajante tles- cobre que aqueles seres pertencem a espécies diversas, cada uma das quais com uma origem independentee uma posigao precisa na ¢grandiosa hierarquia do cosmo: “Finalmente vejo homens que me parecem superioresaosnegros, assim como os negros so superio- res aos macacos ¢ os macacos so superioress ostras ¢ aos outros animais da mesma espécie”? Para frisar a diversidade entre as espécies humanas, Ve comparou-as a diversos tipos de érvore. Vinte anos depois, essa ja ¢ retomada e desenvolvida no Essai sur les moeurs (cap. ire anal ‘cxv). Mais uma vez, os negros tinham na argumentacao de Vol- taire uma importincia decisiva: A membrana mucosa dos negros, reconhecidamente negra ¢ que é tadequehdemcadaespé- causa da cor deles,é uma prova ms ‘um princfpio que os dife- io esses diferentes ss das nagbes, que vemos mudar _graus de génio e essa caracte por causa disso que os negros sio escravos dos {Go raramnen! sens, So comprados nas costas da Africa como.nims, ransplantados para nossas coldnias da ‘América, servem a um pequentssimo grupo de europeus.” Voltaire pensava que 2 historia humana se desenvolvera no interior de uma hierarquia constituida pelas diversas espécies famos pelas ragas. Muito embora as palavras, humanas —hoje sem na época, parece absolute (como se fez tantas vezes) se Voltaire era numa escala sustenta que) uum racistaem senso lato, nunca aderiu plenamente ao racismo em ~senso estrito: mas chegou bem perto, cada vez que falou dos negros mesma estupidez’ Taioria dos negros ¢ todos os cafres anos depois, em 1775, acrescentou: “E muito tempo” la permanecerao por 5. Aatitude de Voltaire em relagio a questio da raga, mai pecificamente quanto aos negros, era amplamente compartilhada pelos fildsofos.” Mas um dado pessoal pode ter contributdo para reforgd-la. Desde jovem Voltaire havi Companhia das Indias, queestavalargamenteenvolvida no comér- ciodeescravos.” Voltaire que, como sesabe, tinhaum excelente faro la estava a par disso. E, em tado caso, tréfico de escravos era um elemento importante do sistema econé~ wwestido vultosas somas na para os negécios, sem dt Des nowveaue biens, nésaux sources du Gange, [0 supérfluo, coisa muito necessiri Univ ambos os hemisférios. Naa vedes esses dgeis navios Que de Texel, de Londres, de Bordeaux, jo buscar, por um felizintercémbio, tos nascidos nas cabeceiras do Ganges, vvencedores dos mugulmanos, Novos pro Enquanto longe de n ‘Os vinhos da Franga inebriam os sultoes?) © tom frivolo dese pequeno poema rococé contrasta com a gravidade do seu contetido, Uma das mercadorias que haviam contribufdo para unificar os dois hemisférios eram os “animais negros” vendidos como escravos. O luxo estinmula 6 progress, havia explicado Mandeville na Fabula das abelhas* Mas 0 para- doxo de Mandeville sobre os vicios privados que geram virtudes puiblicas se referia unicamente aos Estados europeus. O parafso terrestre evocado na euférica conclusao de “Le mondain” (“O ‘paraiso terrestreéonde estou” era frutoda pilhagem sistemética do mundo. 6.As raizes setecentistas das ideologias racistas mais tardias, embora muitas vezes revolvidas, nao esto em discussio. Nao creio, porém, que elas expliquem a aproximagao entre Voltaire ea propaganda nazista, proposta por Auerbach, Claro, ndo se pode excluir que Auerbach tenhase sentido pessoalmente ofendido pelo comentario sarcéstico de Voltaire sobre 0s ritos judaicos. A perse- guigdo nazista havia feito de Auerbach um judew eum exilado.* O verso de Marvell posto em epigrafe a Mimesis (“Had we but world 4 enough and time..”)alude ironicamente as limitagSes hist6ricas ¢ geogréficas que haviam condicionado a génese do livro, A ironia escondia outra, mais amarga: Marvell prossegue garantindo & amada relutante que, se quiser, pode resist dos judeus” [sill he conversion of the Jews]. Mas a irritagao mes- clada de admiragao que Auerbach manifesta por Voltaire tinka implicagoes mais vastas. No inicio do seu exitio em Istambul, Auerbach esereveu algu- mas cartas a Walter Benjamin, com quem tinha, evidentemente, relagoes de amizade, Numa delas, datada de 3 de janciro de 1937, ‘Auerbach fala das suas primeiras impressdes sobrea Turqu acle“até a conversto © resultado [da politica de Kemal Atatiirk] é um nacionalismo fanaticamente host tradigao; uma ej jodetodaaherangacul- tural maometanas a construgio de uma relagio imaginéria com uma identidade turca origindriaeuma modernizagto teenolégica& européia |... © resultado é um nacionalismo extremo, acompa- rhado pela destruigao simultinea do carster hist6rico nacional, Esse quadto, que em palsescomoa Alemanha,altilia eatéa Russia @)nioév a todos, aparece aquiem plena evidéncia. Seguia-se uma previsio: ara mim, esté se tornando cada vez mais claro quea atual situagio internacional nada mais é que uma asticia da providénc’ Vorsehng], destinada a noslevar, por um caminho tortuoso e san- ei rantoc rumo 2 uma internacional da tri idade ea um espe- al, Umaclescontianga desse género étinhameocorrido ‘na Alemanhae na Iélia,ao vera tremenda faltade autenticidade da propaganda do"sanguee terra’, mass6 aqui as provas dessa tendén- cia me pareceram quase certas.* 2s ‘As ditaduras nacionalistas (o termo“Ruissia’,embora acom- panhado de um ponto de interrogagio, ésintomético) eram por- tanto uma etapa de um processo histérico que terminaria apa- gando todas as caracterfsticas espectficas, inclusive as nacionais, Jevando a afirmagao de uma civilizagao indiferenciada em escala mundial. Essatrajetoria paradoxal sugeria a Auerbach aexpressao “astticia da providéncia”: uma fusdo, inspirada em uma observa

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