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Teoria da literatura e metodologia dos estudos literdrios René Wellek Austin Warren Martins Fontes = Ss] 1S) =} Ss od 1S) ro) a] S onl > a = oO = Teoria da literatura e metodologia dos estudos literarios René Wellek Austin Warren Tradugio LUIS CARLOS BORGES Revisio da tradugaio SILVANA VIEIRA Revisio técnica VALTER LELLIS SIQUEIRA Martins Fontes ‘Sto Paulo 2003, 2. A natureza da literatura pi acces} primeiro problema que nos confronta, obviamente, é a ‘matéria da pesquisa literdtia. O que é literatura? O que nao é li- teratura? Qual ¢ a natureza da literatura? Por mais simples que possam parecer, tais perguntas raramente so respondidas com clareza, 6 definir “Titeratura® como tudo 0 que foi i>) leremos, entio, estudar “a profissio médica no sé ‘culo XIV”, “os movimentos planetirios no inicio da Idade Mé- dia” ou “a feitigaria na Velha e na Nova Inglaterra”. Como ar~ ‘gumentou Edwin Greenlaw, “nada relacionado com a histéria da civilizagao esté fora do nosso campo”, nfo estamos “limita- dos as belas-letras ou mesmo a registros impressos ou manus- critos na nossa tentativa de compreender um period ou civili- zagao” e “devemos ver 0 nosso trabalho & luz da sua possivel ccontribuigao para a historia da cultura”. Segundo a teoria de Greenlaw, ¢ a pritica de muitos pesquisadores, os estudos lite- rarios tornaram-se, assim, néo apenas intimamente relacionados om a historia da civilizago mas idénticos a ela. Tais estudos so literérios apenas no sentido de que se ocupam de matéria im- pressa ou escrita, necessariamente a fonte primordial da maior parte da histéria, Pode-se, naturalmente, argumentar em defesa de tal visio que 0s historiadores negligenciam esses problemas, {que estio muito ocupados com a histéria diplomatic, militar e ‘econémica, ¢ que, portanto, o pesquisador lterério tem justifica- 1. Edwin Greenlaw, The Province of Literary History, Baltimore, 1931, pm, 2 TEORIA DA LITERATURA tiva para invadir e ocupar um terreno fronteirigo. Sem divida, nninguém deve ser proibido de entrar em qualquer drea que de- sejar c, sem divida, ha muito a se dizer a favor do cultivo da historia da civilizagdo nos termos mais amplos. Mas, ainda as- sim, o estudo deixa de ser literario. A objegdo de que isso & apenas uma picuinha a respeito de terminologia nao é convin- seqiiéncia, a literatura sera julgada apenas na medida em que oferecer resultados para esta ou aquela disciplina adjacente, A da civilizagio é uma nega- des livros”, livros que, seja qual for 0 seu tema, s20 “notavei em ome ‘hen ia® No caso, o critério € oe ‘9 em combinago com a dis- no teatro e na ficgdp, ‘8 trabalhos mais importantes slo selecionados com base em “fundamentos estéticos; os outros livros sd0 escolhidos pela re- ‘putago ou pelo valor estético de um tipo um tanto restrto: es- tilo, composigao, forga geral de apr ticas normalmente destacadas.E ing de literatura, Ao dizer que “isto nao é litera- Tura expressamo® fal julgamento de valor}fazemos o mesmo tipo de julgaimento quando falamos que um livro sobre hist6- ria, filosofia ou ciéneia pertence a “literatura”. ‘A maioria daghistras Tiferara§ realmente incluem 0 tra- tamento de filésofos, historiadores, tedlogos, moralistas, poli- ticos e mesmo de alguns cientistas. Seria dificil, por exemplo, imaginar uma historia literdria da Inglaterra do século XVIII sem um tratamento prolongado de Berkeley ¢ Hume, do bispo Butler e Gibbon, de Burke e mesmo de Adam Smith. O tra- tamento desses autores, apesar de geralmente muito mais bre- ve do que o de poetas, dramaturgos ¢ romancistas raras vezes se limita aos méritos estritamente estéticos. Na pritica, temos ° DEFINIGOES & DISTINGOES 3 doscrigaes superficiais e nlo especializadas desses autores em fungao da sua especialidade. Muito corretamente, Hume s6 pode ser julgado como filésofo, Gibbon como historiador, o bis- po Butler como apologista e moralista cristio e Adam Smith ‘como moralista e economista. Mas, na maioria das hist6rias da literatura, esses pensadores so discutidos de maneira frag- mentada, sem 0 contexto adequado ~ a historia do tema do seu discurso ~, isto 6, sem uma compreensio real da historia da fi- losofia, da teoria ética, da historiografia, da teoria econdmica. © historiador literdrio nao se transforma aufomaticamente em um historiador adequado dessas disciplinas. Ele se torna sim- plesmente um compilador, um intruso embaragad estudo de “grandes livros” isolados pode ser altamente recomendavel para fins pedagogicos. Todos devemos aprovar a idéia de que os estudantes ~ e, particularmente, os princi- piantes ~ deviam ler grandes livros ou, pelo menos, bons livros, ‘iio compilagdes ou curiosidades historicas*. Podemos, contu- do, ter diividas de que valha a pena preservar o principio na sua pureza para as cigncias, a historia ou qualquer outro tema ‘cumulativo e progressivo. Na historia da literatura imaginativa, a limitagio aos grandes livros torna ineompreenisivel « conti- “uidade da tradigdo literaria, 0 desenvol lterrios e, na verdade, a propria natureza do processo litera além de obscurecer o pano de fundo das cireunstincias cor ionantes sociais, lingtiisticas, ideoligicas 08. Na_ historia, na filosofia e em matérias similares, ela, na verdade, “introduz um ponto de vista excessivamenie “eststico”. Obvia- ‘mente, nio ha nenkunta outra razao, além da énfase no “estilo” cexpositivo ena organizagio, para destacar Thomas Huxley den- tre todos os cientistas ingleses Como aquele que vale a pena Tet) | Esse critério, com Teeter oe | pularizadores em detrimento dos grandes originadores: dard pre~ | feréncia, e tem de dar, a Huxley em vez de Darwin, a Bergson \ em vez de Kant. 2, Mark van Doren, Liberal Education, Nova York, 1943. 0 00 4 TEORIA DA LITERATURA =) 0 termo'literatura’? parece melhor se 0 limitamos a arte a literatura, isto & a literatura imaginativ®y Ha certas dificul- dades no emprego desse termo mas, em inglés, as outras possi- bilidades, como “fice” ou “poesia”, j4 esto ocupadas por significados estritos ou, como “literatura imaginativa” ow be- las-letras, sio desajeitados e enganosos. Uma das objecdes a “literatura” é a sugestio (na etimologia de litera) de limitagao A literatura escrita ou impressa pois, sem divida, qualquer con- ccepgdio coerente deve incluir a “literatura oral”. Nesse aspecto, © termo alemio Hortkunst € 0 russo slovesnost levam vanta- ‘gem sobre o equivalente inglés. roi “CA maneira mais simples de solucionar a questi € distin) (Cuir 00 particular dado lingua na Titeratura)A Tingua & 0 ‘material da literatura, como a pedra ou o bronze sio o da escultu- 1a, as tintas o da pintura, os sons o da musica. Devemos perce- ‘ber, porém, que. lingua nao é mera matéria inerte, como a pedra, ‘mas é, ela prépria, uma criagio do homem e, assim, carregada com a heranga cultural de um grupo lingiifstico. [LAS principais distingdes a serem extraidas esto entre 0s USO literdrias, os usos cotidianos € 08 usos cientificos da lin- guagem:|Uma discussio desse ponto, de Thomas Clark Pollock, The Nature of Literature’, apesar de verdadeira no que The diz JL» respeito, ndo parece inteiramente satisfatéria, especialmente ao definir a distingdo entre a linguagem liteririae alinguagem otidiana. O problema & crucial endo é, de maneira nenhuma, simples na pratica, j4 que a literatura, ao contrério das outras ar- {s, no possui um veiculo exclusivo e jé que, sem duivida, exis- terirriitas formas mistase transigSes sutis.E bem fcil distin- ‘Wire linguagem da ciéneia da linguagem da literatura. O mero contraste entre “pensamento” ¢ “emogdo” ou “sentimento”, po- rém, no ¢ suficiente. A literatura realmente contém pensa- ‘mento, a0 passo que a inguagem emocional nfo esté confinada exclusivamente 8 literatura: ouga-se uma conversa de aman- tes ou uma briga comum.(Ainda assim, a linguagen Gientifica ) 3. Thomas C. Pollock, The Nature of Literatur, Princeton, 1942. ) DEFINIGOES E DISTINGOES k tO 15 wamente “denotativa”ela almeja uma correspondén- ‘ia de um para um@ntre signo-e referencial)O signo ¢ comple- tamentg arbitrarioje, portanto, pode ser substituido por simbo- los equivalentes. O signo também transparent@) isto é, sem atrair a atengio para si, ele nos dirige inequivocamente para 0 seu referencial _Assim, a linguagem cientifica tende para um sistema de signios como o da matematica ou da légica simbdlica. O seu. ‘deal é uma inguagem universal como a characteristica uni- versalis, que Leibniz comegara a planejar ja no fim do século XVII. Comparada com a linguagem cientifica, a linguagem li- tia rd, de certas maneiras, deficiente, E abundante em iglidadey como qualquer outralinguagem historica,€ mminimos) categorias_arbiririas ou irracionais, como o ical; € permeada de acidentes histbricos, Tem- bbrangas e associagbes. Em u ‘ela éaltamente “cono- tura do leitor, persuadi-lo ¢, por fim, modific: importante distingdo entre a linguagem literaria ¢ a cientifica: za primeira, o proprio signo, o simbolismo sonoro da palavra, € enfatizado,. Todos 0s tipos de téenicas es am ue ara Essas distingdes em relacdo a linguagem cientifica podem ser feitas em graus diferentes por varias obras de arte litera: por exemplo, o padrio sonoro seré menos importante em um romance do que em certos poemas liicos, de tradugao adequa- sivo sera bem menos impor- "que pode disfargar e quase ‘ocultar a postura do escritor, do que em um poera lirica “pes- soal”, O elemento pragmatico, leve na poesia “pura”, pode ser grande em um romance com um propésito ou em um poema satirico ou diditico. Além disso, o gran em que a linguagem é intelectualizada pode variar consideravelmente: hid poemas di- Y 16 ‘TEORIA DA LITERATURA daticos e filoséficos e romances problematicos que se aprox ‘mam, pelo menos ocasionalmente, do uso cientifico da lingua- ‘gem. Ainda assim, quaisquer que sejam os modos mistos evi- dentes em um exame de obras de arte literirias concretas, as distingdes entre 0 uso literirio e 0 uso cientifico parecem claras: a linguagem literéria esta muito mais profundamente envolvi-| dda na estrutura historia da linguagem; ela enfati cia do préprio signo; ela tem o seu lado expressivo e pragmt- co, que a linguagem cientifica sempre desejaré, tanto quant possivel, minimizar. “Mais dificil de estabel ‘otidiana e a Tinguagem € a distingdo entre a linguagem™-) e JA linguagem cotidiana nao € uum coniceito uniforme Iui variantes tio amplas como a ‘inguagem coloqufal, a linguagem do comércio, a Hinguagem oficial, a linguagem da religido, o jargao dos estudantes. viamente, porém, muito do que se disse sobre a linguagem li rria € valido para 0s outros usos da linguagem, exceto o cien- Leen OME Sa eaNy Ro siva,Jembora esta varie de um insipido aniincio oficial ao apeTS ‘apaixonado suscitado por um momento de crise emocional/A CTinguagem cotidiana esté cheia de irracionalidades e mudangas; *Yeontextuais da Tinguagem historica, embora existam momentos » ‘em que almeje quase a precisio da descrigao cientifica. |Apenas ) (2easi@nalmente existe a consciéncia dos préprios signos na “Fingua gent eBEiana, Contdd, tal conscitncia realmente eurge —no simbolismo sonoro de nomes ages ou em trocadilhos. ‘Sem divida, a linguagem cotidiana quer, com muita freqiéncia, obter resultados, inluenciar ages e posturas.(Vas seria (iaiti-1a meramente-&-comunicagio.)A fala de horas a fio de lita Grianga sem um ouvinte € @ tagarelice social quase sem sentido de um adulto mostram que ha muitos usos da lingua- gem que ndo so estrita ou, pelo menos, primordialmente co- municativos. Assim, ¢ quantitativamente, antes de tudo, que alinguagem literdria deve ser diferenciada dos varios usos do cotidiano. Os recursos da linguagem so explorados de modo muito mais de- liberado e sistematico. Na obra de um poeta subjetivo, temos DEFINIGOES E DISTINGOES 7 ‘manifesta uma “personalidade” muito mais coerente e onipre- sente do que a das pessoas como as vemos em situagées coti- dianas. Certos tipos de poesia usardo o paradoxo, a ambigiiida- de, a mudang& contextual de significado, até mesmo a associa- fo irracional das categorias gramaticais, como o género ou 0 temposde modorinteiramente deliberatkD A linguagem poética ‘organiza, comprime os recursos da linguagem cotidiana e, as ve- até comete violéncia contra ela,(em uma tenativade TOR for Ceara pois someting © atencio.)Muitos desses recursos um SoFifor et 3, ou pré-formados, pelasatividades silenciosas e anGnimas de muitas geragGes. Em ceras literatu- ras altamente desenvolvidas e especialmente em certas épocas, 6 poeta limita-se a usar uma convencao estabelecida: a lingua- gem, por assim dizer, petiza por ele. Ainda assim, toda obra de arte impde uma ordem, uma organizaglo, uma unidade aos seus ‘materias, Essa unidade as vezes parece frouxa, como em mui- ena aventuras, mas aumenta até a orga- 2 Giesslocomplecas corrata de erionroemmaanaiat orient Tea ‘mudar uma pal ete eects Pa lavra prejudicar o seu efeito tot - agio exterior definida. A poesia de ver “ios com mais C imas das concepge ‘Jeomtns da esidca:“contemplagie desstresads" °Usitcie sil 2 surgi Moana, prem om pe “sinturegha", Naveen: porte UevSor pease (‘= onion pteet emits ae teenie [Sede at eet Cae eee do. Seria uma concepgio estreita de literatura excluir toda a arte de propaganda ou a poesia diditica¢ satirica, manele cconhecer formas de transi¢o como 0 ensaio, a bi i ‘a literatura retérica. Em diferentes periodos da ieee ‘minio da Tungdo estética parece se expandir ou se contrair: a 18 ‘TEORIA DA LITERATURA carta pessoal, is vezes, foi uma forma de arte, como foi 0 ser- mio, enquanto hoje, em concordancia com a tendéncia con- temporinea contra a confusdo de géneros, surge um estreita- mento da fungdo estética, uma marcada énfase na pureza da “nthor, porém, considerar_ como ¢ & funglo esiética é dominante, enquanto a ee TSS hecer que hd elementos estéticos, como estilo © composig: ‘Emobrasqis possucm um propbsito completamente diferente, ‘do estético, como tratados cientificos, dissertagdes filoséfi- ho eaten comm eens emacs, ee ae as, panfletos politicos, sermdes ‘AX natureza da fiteratura, porém, surge com mais clareza i ae maging, Os enunciados em um romance, em ‘um poema ou em um drama no sao literalmente verdadeiros, niio sio proposigdes logicas. Ha uma diferenga central ¢ im- portante entre um enunciado, mesmo em um romance hist6ri- co ou em um romance de Balzac, que parece comunicar “i formago” a respeito de acontecimentos concretos, € a mesma {nformacdo surgindo em um livro de histéria ow sociologia ‘Mesmo na lirica subjetiva, 0 “eu” do poeta é um “eu” ficcio- nal, dramatico, Um personagem de romance difere de uma fi- ¢gura historica ou de uma figura na vida real. Ele é feito apenas das sentengas que © deserevem ou que sto colocadas na sua boca pelo autor. Ele nfo tem nenhum passado, nenkum ¢, as vezes, nenhuma continuidade de ae ‘rent elimina boa parte da critica dedicada a Hamlet em Wit- tenberg, a influéncia do pai de Hamlet sobre seu filho, ao magro ¢ jovem Falstaff, “i meninice das heroinas de Shakespeare”, & ‘questo de “quantos filhos tinha Lady Macbeth". O tempo ¢ 0 4, A maior parte da obea de EE, Stoll §relovante aqui. Ver também L. L. Schicking, Charakterprobleme be! Shakespeare, Leipzig, 1919 (tad. in- ‘lesa, Londres, 1922) eL. C. Knights, low Many Children Had Lady Mac- DEFINIGOES E DISTINGOES 19 Fe ci rarcontesia mane aparentemente m ee oa Seni € ante arr ee a “cas, Especialmente a partir de uma perspectiva historic poste- rior, podemos ver quao similares so os romances naturalistas nna escolha do tema, do tipo de caracterizagio, dos evento sele- cionados ou admitidos, das_manciras de conduzir 0 didlogo. iscernimos, igualmente, convencionalidade extrema até 1 uma esifutura céniea mas na maneira Como sio tratados o es-) ago e o tempo, na manciFa como aié mesmo 0 didlogo supos-) Camente realista& ‘Tos personagens entram e saem do palco’Quaisquer que sejam “as distingdes entre A tempestade e Casa de bonecas, elas com- partilham essa convencionalidade dramética Se reconhecemos a “ficcionalidade”, a “invengio” ou a “imaginagio” como a caractristica dstintiva da literatura, pen- samos, portanto, na literatura antes em termos de Homero, Dan= te, Shakespeare, Balzac, Keats que de Cicero ou Montaigne, Bos- >eth?, Cambridge, 1933 (wimpresso em Explorations Londres, 1946, pp. 1S- 54), Estudos recente sobee convencionalismo versus natraismo no teatro So 8. L. Bethel, Shalespeare and the Popular Dramatic Tradition, Duthamn, N.C, 1944, e Eric Henley, The Playnright as Thinker, Nova York, 1946, C5ePara observagdes sobre o tempo no romance, ver Edwin Muir, The Sinucture ofthe Novel, Londres, 1928. Para tratamento do tempo em outros séncros, ver T. Zielinski, "Die Behandlung gleichzeitiger Vorginge im ani- Ken Epos", Philologus, Supplementband, VII (1899-1901), pp. 405-99; Leo Spitzer, “Cher zetiche Perspektve in der neueren franzisischen Lyrik”, De rneweren Sprachen, XXX1 (1923), p. 241-66 (eimpress,Stlsnaiien, I, Mu igus, 128, pp Sb$3) Oskac Wale, "Zsitoom im yischen Cevict" Das po Wortkunstwerk, Leipig, 1926, pp. 277-96. Em anos recentes (em parte evi do iatTutncia da flosfiaexisencialista) tem se dado muita atengao ao pro blema do tempo na literatura. Ver Georges Poulet, Etudes sur le temps he ‘main, Paris, tad. inglesa Baltimore, 1956, e La distance inéieure, Pati, 1952, tad. inglesa Baltimore, 1989; A. A. Mendilow, Time and he Novel, Londres, 1952; Hans Meyerhof, Time in Literature, Berkeley, Calif, 1955. Ver tami Emil Staiger, Die Zeit ls Einildungskraft des Dichiers,Zuti- que, 1939, 2" ed, 1953; Ginmther Miller, Die Bedewnng der Zeit in der Er- zahibunst, Bonn, 1946, 20 TBORIA DA LITERATURA suet ou Emerson{ Com certeza, haveri. mteirigos”, Obras) como repiiblica, de Platdo, 20s qu cil negar, pel (Cimitiog nos grandes mitos, passagens de “invengio” e “Tic Tnalidade”, embora sejam, 20 mesmo tempo, primordialmente) Cobras de filosofia.Essa concepsi de iteratura édeseritiva, nio iadora. Nao faz nenhum mal relegar uma obra importante c influente A retérica, a filosofia, ao panfletarismo politico, to- dos os quais podem colocar problemas de anillise estética, de es- tilistica e composigao, similares ou idénticos aos apresentados pela literatura, mas onde a qualidade central da ficcionalidade staré ausente, Essa concepeio, portanto, incluird nela todos os tipos de ficgdio, mesmo © pior romance, a pior pega teatral. A classificagao da arte deve ser distinguida da avaliagio. I 4 —7Uima incompreensio comum deve ser climinada. A liter ‘ura “imaginativa” no precisa usar imagens. A linguagem poé- tica est permeada de imagens, comecando com as figuras mai simples ¢ culminando nos sistemas mitol6gicos de um Blake ¢ tum Yeats, que tudo abarcam, Mas 2s imagens nio sto essenc} para o enunciado ficcional e, portanto, de boa parte da literatu- ra. Ha bons poemas completamente destituidos de imagens; ha ‘mesmo uma “poesia do enunciado™ As in ém disso io devem, vas, sensoriais, visuais, Sob a influéncia de Hegel, estetas do sécu- SSX cou Vischer Eduard von Hartmann agumentirem que toda a arte é o “brilho sensorial da idéia”, a0 passo que outra escola (Fiedler, Hildebrand, Riehl) falou de toda a arte como “pura visibilidade”, Boa parte da grande literatura, po- 6} We are Seven", de Wordsworth, é um exemplo de poema no-fig- 0-4 love all bento things, Trek end wv the de Rober Bridge, {tum exemple de po sm imagens. O to “poesia do enaniado™ fo ‘tendo prineie por Mark van Doren ei deena da posta de Deyn. (Ver ot Dry Stay of his Poetry, Nova Ver, 1946, 67, plea oii ‘amen em 1920) Pode-se, orc, aunentar qu aoe, em un St {io amp, eo pring 8s & pes Ver por exenplo, Willams K ‘Wim ¢ Cleanth Brooks, terry Crtcom. 4 Short Histor, Nova York, 9s) pp. 3830. Te Adsl vom Hildebrand, Das Problem der Form in der bidenden a, Estsburg, 190] (tad aglesa Nova York 1907), Ver am Kunst, DEFINIGOES F DISTINGOES 21 sém, niio evoca imagens sensoriais e, se 0 faz, nao o faz apenas ‘a esmo, ocasional ¢ intermitentemente’. Na deserigio mesmo de lum personagem ficcional, o eseritor pode nao sugerir nenhu- Sonagens de Dostoiévski ou Henry Tan ue pod ‘No maximo, o escritor sugere algum delineamento esque- matizado ou um iinico trago fisico — a pritica freqiiente de ‘Tolstoi ou Thomas Mann. O fato de termos objegdes a muitas ilustragdes, apesar de feitas por bons artistas e, em alguns ca- sos (Thackeray, por exemplo), até mesmo pelo proprio autor, Rie or iecqueaieearcesaacics ‘esquematizado, que nao é para ser preenchido em detalhe. Se tivéssemos de visualizar cada metéfora da poesia fica- riamos completamente aturdidos ¢ confusos. Embora existam Ieitores dados a visualizagao e passagens na literatura em que tais imaginagdes paregam exigidas pelo texto, a questo psico- a metafor aten idiana e € ostensiva na rica, derivam de relagdes fisicas, em Ultima analise’ (abraniger, Jp, clin, sebatnnca assure, Repicee), A pomaa 8 viva esse carder metaforico da Tinguagem e mis torna cons- Gientes dele, asst Como Usa os simbolos € mals Ua Hossa ci- Vilizagio: clissicos, teutnicos, celtas ecristios, ‘bam Hermann Konnerth, Die Kunsttheorie Conrad Fiedlers, Munique, 1909; ‘Alois Riehl, “Bemerkungen 2u dom Problem der Forma in der Dichtkunst, Viereljahrschrif fr wissenschaftiche Philosophie, XXI (1897), pp. 283: 306, XXII (1898), pp. 96-114 (uma aplicago do coneeito de pura visibilida ‘de i literturay; Benedetto Croce, “La teoria dellarte come pura visibiita”, Muov sags di estetia, Bari, 1920, pp. 239-54 8, Theodor A. Meyer, Das Silfgeset der Poesie, Leipzig, 1901 22 TEORIA DA LITERATURA ‘Todas essas distingdes entre literatura ¢ néo-literatura que discutimos ~a organizagio, a expressio pessoal, a percepgio € exploragao do veiculo, a auséncia de propésito pritico e, natu- ralmente, a ficcionalidade — sto reformulagdes, em uma estru- tura de anilise semantica, de termos bem antigos como “uni- dade na variedade”, “contemplago desinteressada’, “distancia estética”, “estruturagio” ¢ “invengao”, “imaginagdo”, “criagao”. Cada um deles descteve um aspecto da obra literaria, um traco cearacteristico das suas diregdes seménticas. Nenhum & satisfa- torio, Pelo menos um resultado deve surgir: uma obra de arte literdria no & um objeto simples mas, antes, uma organizacdo altamente complexa, de cariterestratificado, com miltiplos sig- nificados e relagGes. A terminologia costumeira, que fala de um “organismo”, & um tanto enganosa, jé que enfatiza apenas um aspecto, o da “unidade na variedade”, e leva a paralelos biols- gicos nem sempre relevantes. Além disso, a “identidade de contetido e forma” na literatura, embora a expresso chame a atengdo para as inter-relagdes intimas dentro da obra de arte, & cenganosa por ser excessivamente simplista. Ela encoraja a ilu- siio de que a anilise de qualquer elemento de um artefato, seja de contetido, seja de técnica, deve ser igualmente title, portan- to, absolve-nos da obrigagio de ver a obra na sua totalidade. ““Contetido” e “forma” so termos usados em sentidos muito amplos ediversos para que sejam ‘iteis meramente justapostos; na verdade, mesmo depois de definigdo cuidadosa, eles dicoto- mizam a obra de arte de maneira demasiado simples. A andli se moderna da obra de arte tem de comegar com quest&es mais ccomplexas: 0 seu modo de existéncia,o seu sistema de estratos’. 9, Verna bibliografia deste capitulo os livros nos quis se baseia esta discussdo, 3. A fungo da literatura ‘A natureza e a fungao da literatura devem, em qualquer discurso coerente, ser cortelatas. O uso da poesia decorre da sua natureza: todo objeto ou classe de objetos & usado com mais “@ficiéncia e racionalidade pelo que é ou pelo que é centralmen- te, Ela s6 adquire um uso secundario quando perde primaria: a velha roca forna-se um ornamento, um obj ‘museu; o piano q rami a = de J8 nao Ser ‘arse uma itieserivaninka, De modo similar, jeto decorre do seu uso: éle & 0 que faz. Um ariefato tem a strutura adequada 20 desempenho da Sia fungao, juntamente ‘com quaisquer acessérios que 0 tempo e 05 materiais possibili- tem e 0 gosto julgue desejiveis. Pode haver muita coisa na obra literaria que seja desnecessiria para a sua fungdo literaria, embora interessante ou defensivel por outras razdes. (As concepeoes da natureza € da fungao da literatura aram no curso da historia VA pergunta no ae Se-fecuatmes © SuTTeteHfe, podemos dizer que sim: podemos chegar a um tempo em que a ieatura, ilosofia «a rligio ea 10s, Esquilo e Hestodo se- ianexemplos, talvez. Plato, po ee ralar da Tuta entre os poetas e 05 fildsofos como uma luta antiga e designar’com 0 inteligivel para nds, Nao devemos, por Outro lado, exa- areath gerar a diferenca feita pelas doutrinas da “arte pela arte” no fim do século. XEX ou pelas doutrinas mais recentes de poésie pure. ; eee 10 instrumento de edificagao, nao deve ser is lada 4. dou- “trina tradicional do. Sina ou que 24 TEORIA DA LITERATURA No todo, a leitura de uma historia da estética ou da poética deixa-nos com a impressio de que, basicamente, nio mudaram_ a natureza e a funglo da literatura, tanto quanto estas podem ser colocadas em grandes termos conceituais gerais, para com- parago e contraste com outra atividades e valores humanos. A histéria da estética quase poderia ser resumida como, uma dialética em que a tese ¢ a contratese so 0 dulce e 0 uti- le de Horacio: @ poesia € doce e itil) Qualquer adjetivo separa- damente representa uma concepgdo polar errénea no que diz respeito a fungio da poesia ~ provavelmente é mais ficil corre- Tacionar dulce et utile com base na fungao do que com base na atureza. A visdo de que poesia é prazer (andloga a qualquer ‘outro prazet) responde & visto de que poesia & instrugdo (and- oga a qualquer livro diditico)'. A visio de que toda poesia é ‘ou devia ser propaganda é respondida pela visdo de que é, ou devia ser, som e imagem puros — arabesco sem referéncia a0 mundo das emogdes humanas. As teses antag6nicas chegam a suas verses mais sutis, talvez, nas visdes de que a arte é “brin- cadeira” e de que é “trabalho” (0 “oficio” da ficgao, a “obra” de arte). Nenhuma visio, isoladamente, pode parecer aceitivel. Quando nos dizem que a poesia é “brincadeira”, divertimento espontineo, sentimos que nio se fez justiga nem ao cuidado, a pericia e planejamento do artista nem a seriedade e importan- cia do poema; quando nos dizem, porém, que a poesia ¢ “tra~ balho” ou “oficio”, sentimos a violéncia feita 4 sua alegria e a0 que Kant chamou de sua “falta de propésito”. Devemos des- crever a fungo da arte de uma maneira que faga justiga simul- taneamente ao dulce e ao utile. 1. Horicio (rs poe ‘es fialidades para a poesia rersos 333-44 oferece, na verdade, tts possi- ‘Aut reste volun su dsestarepoetae ‘mn aitpetam gut mise ile dls, [Lectorem delecando pasterque monn ‘As “heresias polars" considerar cada finaldade possivel por si mes- sma ~ so refutadas em RG. Collingwood, Priniples of Art, Oxford, 1938 (capitulos “Art as Magic™ e“Artas Amusement") DEFINIGOES E DISTINGOES 25 A propria formula horaciana oferece um inicio til, lem- brando que a precistio no uso de termos criticos ¢ muito recente, se dermos aos termos horacianos uma extensdo generosa o sufi- ciente para abranger a pritica criativa romana e renascentista. io é preciso considerar que a utilidade da arte se encontra na aplicagao de uma ligo moral, como Le Bossu sustentou sera ra- 730 de Homero para escrever a Iliada ou mesmo como Hegel descobriu na sua tragédia favorita, Antigona, “Util” & equivalen- tea “que nao é perda de tempo”, nfo a uma forma de “passar 0 ‘tempo, algo que mereca atengio séria. “Doce” ¢ equivalente a “nfo aborrecimento”, “nao dever”, “sua propria recompensa”. Podemos usar esse duplo critério como base da literatura ‘ou trata-se antes de um critério da grande literatura? Nas dis- cusses mais antigas, as distingdes entre grande, bom e “subli- terario” raramente surgiam. Pode haver diivida real quanto a ser ou nao a subliteratura “itil” ou “instrutiva’” Pensa-se comu- ‘mente em mera “fuga” ou “divers”. Mas a questio tem de set respondida em termos de leitores subliteririos, ndo de leitores de “boa literatura”. Mortimer Adler, pelo menos, encontraria al- ‘gum deseo rudimentar de conhecimento no interesse do me- ‘nos intelectual leitor de romances. E, quanto & “fuga”, Kenneth Burke lembrou-nos quio simplista pode se tornar uma acusa- lo. O sonho de fuga pode ‘judac um leitor a esclarecero seu desgosto pelo ambiente em que esti loealizado. O artista pode (..] tomar-se “subversive” s6 por cantar, com toda inocéncia, 0 repouso & margem do Mississippi". Em resposta & nossa pergunta, & provével que toda a arte seja “doce” e “itil” aos seus usuarios adequados: que 0 que ela articula seja superior ao seu devaneio ou reflexao auto-induzi- dos, que ela thes dé prazer pela pericia com que articula 0 que cles consideram como o seu proprio devaneio ou reflexdo € pela liberago que experimentam por meio dessa articulacao, 2, Mortimer Adler, rt and Prudence, Nova York, 1937, p. 35 ¢ pase sim K. Burke, Counterstatoment,Nova York, 1931, p. 151 26 TEORIA DA LITERATURA Quando uma obra de literatura funciona com sucesso, as duas “notas” de prazer e utilidade no devem meramente coe- xistir mas fundir-se. O prazer da literatura, precisamos assina- lar, néo é uma preferéncia entre uma longa lista de possiveis razeres, mas um “prazer superior” porque é prazer em um. tipo superior de atividade, isto é, a contemplagio nio aquisiti- va. Ea utilidade ~a seriedade, a instrugdo — da literatura é uma seriedade prazerosa, isto é, nio é a seriedade de um dever que deve ser feito ou de uma liglo a ser aprendida mas uma serieda- de estética, uma seriedade da percepedo. O relativista que gos- ta de poesia moderna dificil sempre pode ignorar o julgamento estético torando o seu gosto uma preferéneia pessoal, no nivel das palavras cruzadas ou do xadrez. O educacionista pode lo- calizar falsamente a seriedade de um grande poema ou roman- ce na informagao hist6riea que fornece ou na ligio moral iti Outro ponto de importincia: a literatura tem uma fungaio ou fungées? No seu Primer for Critics, Boas expie alegremente ‘um pluralismo de interesses e tipos correspondentes de critica, ©, no fim do seu The Use of Poetry and the Use of Criticism, Eliot insiste melancolicamente, ou pelo menos fastidiosamen- te, na “variedade da poesia” e na variedade de coisas que os ti- os de poesia podem fazer em varias ocasides. Mas essas so excegdes. Levar a sério arte, literatura ou poesia €, pelo menos comumente, aribuir a cada uma delas algum uso adequado a si ‘mesma. Ao considerar a visio de Arnold de que a poesia podia suplantar a religido e a filosofia, Eliot escreve: “{..] nada nes- ‘te mundo ou no préximo € substituto de coisa nenhuma [...J”. Isto é nenhuma categoria real de valor tem um equivalente real. Nao ha substitutos reais. Na pritica, a literatura evidente- ‘mente pode tomar o lugar de muitas coisas ~da viagem ou per- ‘manéncia em terras estrangeiras, da experiéneia direta, da vida vicéria e pode ser usada pelo historiador como documento so- cial, Mas a literatura tem um trabalho, um uso, que nenhuma ‘outra coisa pode fazer bem? Ou é um amélgama de filosofia, 3. G. Boss, Primer for Crites, Baltimore, 1937; T. 8, Eliot, Use of Poetry, Cambridge, Mass, 1933, pp. 113,155, DEFINIGOES E DISTINCOES 2 historia, musica e imagens que, em uma economia realmente ‘moderna, seria distribuido? Esta & a questio basica. Os defensores da literatura acreditardo que ela no & um sobrevivente arcaico mas uma permanéneia, assim como mui- tos que mio so poetas nem professores de poesia e que, por- tanto, carecem do interesse profissional pela sobrevivéncia. A experiéncia de valor singular na literatura é basica para qual- quer teoria referente & natureza do valor. Nossas teorias muté- ‘eis tentam progressivamente fazer mais jus & experiencia ‘Uma linha contempordnea afirma a utilidade ¢ a serieda- de da poesia declarando que a poesia comunica conhecimento — uum tipo de conhecimento. A poesia é uma forma de conheci- mento. Aristételes pareceu expressar algo assim no famoso dito de que a poesia é mais filos6fica do que a historia, jé que a historia “relata as coisas que aconteceram, a poesia, tal como po- diam ter acontecido”, o geral €o provavel. Agora, porém, quan- do a historia, como a literatura, parece uma disciplina frouxa, mal definida, e quando a ciéneia € o impressionante rival, afir- rma-se antes que a literatura oferece um conhecimento das par- ticularidades de que a cigncia e filosofia ndo se ocupam. En- quanto um te6rico neocléssico como o dr. Johnson ainda podia pensar em poesia em termos da “grandeza da generalidade”, os teéricos modernos de muitas escolas (por exemplo, Bergson, Gilby, Ransom, Stace) enfatizam todos a particularidade da poesia. Stace diz que a pega Orelo nao é sobre o citime mas so- bre o citime de Otelo, 0 tipo particular de citime que poderia sentir um mouro casado com uma venezianat O cariter tipico da literatura ou a particularidade: a teoria literiria € a apologética podem enfatizar um ou outro pois a li- teratura, podemos dizer, € mais geral do que a historia ¢ a bio- ‘erafia, porém mais particularizada do que a psicologia ou a so- iologia. Mas néo & somente na énfase da teoria literiria que ‘ocorrem mudangas. Na pritica literéria, o grau especifico de generalidade ou particularidade muda de obra para obra e de 4. W.T. Stace, The Meaning of Beauty, Londses, 1929, p. 161 28 TEORIA Dé LITERATURA periodo para perfodo, Pilgrim e Everyman conseguem ser a humanidade. Morose, porém, 0 “humorista” de Epiceno, de Jonson, é uma pessoa muito especial ¢ idiossincritica. O prin- cipio de caracterizagao na literatura sempre foi definido como ‘ode combinar 0 “tipo” com o “individual” — exibindo o tipo no individuo ou o individuo no tipo. As tentativas de interpretar esse principio, ou dogmas especificos derivados dele, no foram muito Gites. As tipologias literérias recuam até a doutrina hora- ciana do decoro ¢ ao repertério de tipos da comédia romana (por ‘exemplo, 0 soldado fanfarrdo, o avarento, 0 filho perdulirio ¢ ro- ‘méntico,o criado confidente). Reconhecemos o tipolégico no- vamente nos livros de caracteres* do século XVII e nas co- médias de Moliére. Mas como aplicar o conceito de maneira mais geral? A ama de Romew e Julieta ¢ um tipo? Se é, do qué? Hamlet é um tipo? Aparentemente, para um piblico isabelino, € um melaneélico, como o descreveu o dr. Timothy Bright. Mas ele € muitas outras coisas também, ¢ a sua melancolia recebe uma génese e um contexto particulares. Em certo sentido, 0 per- sonagem que é um individuo além de um tipo é assim const tuido quando se demonstra que é muitos tipos: Hamlet & tam- bém um amante, um ex-amante, um estudioso, um conhecer de teatro, um espadachim. Todo homem é uma convergéncia ou znexo de tipos ~ mesmo o homen mais simples. Os chamados personagens-tipo sio vistos de maneira “plana”, tal como to- dos nds vemos as pessoas com quem temos um tinico tipo de relacdo; os personagens “redondos” combinam vis6es e rela- ‘Ges, so exibidos em diferentes contextos ~ vida publica, vida privada, terras estrangeiras’. Um valor cognitivo no teatro e no romance parece ser psi- colégico. “Os romancistas podem ensinar-Ihe mais sobre a na- tureza humana do que o psicdlogo” & uma afirmagio conheci * Na iteratura ingles, coletdneas de ensios reves, em prosa ou verso, ‘que descreviam 0s virios tipos possiveis de pessoa. Também conhocidas ios de personagens’.(N. do. T.) lano”e *redondo” so termos de Aspects ofthe Novel, de Forster, Londres, 1927, pp. 103 ss. DERINIGOES £ DISTIVCOES 29 da, Horney recomenda Dostoiévski, Shakespeare, Ibsen e Bal- zac como fontes inesgotaveis. E, M. Forster (Aspects of the No- vel) fala do njimero muito limitado de pessoas cuja vida interior « motivagdes nés conhecemos e considera que o grande servie .¢0 do romance é revelar a vida introspectiva dos personagens'. Presumivelmente, as vidas interiores que ele atribui aos seus personagens sio tiradas da sua propria introspecgao Vigilante. Poderiamos sustentar que os grandes romances sio as fontes dos psicdlogos ou que sio historicos de casos (isto 6, exemplos ilustrativos,tipicos). Mas, aqui, parecemos voltar 20 fato de que 105 psicdlogos usario o romance apenas pelo seu valor tipico ge~ neralizado: eles tirardo 0 personagem de Pére Goriot do am- biente (a Maison Vauquer) e do contexto total dos personagens. Max Eastman, ele mesmo um poeta menor, negaria que a “mente litera” possa, em uma era de ciéncia, reivindicar a des- ‘coberta da verdade. A “mente literdria” & simplesmente a men- tendo especializada, amadora, dos dias pré-cientificos, tentando perdurar etirar vantagem da sua facilidade verbal para eriar a impressio de que esti emitindo as “verdades” realmente im- portantes. A verdade na literatura é 0 mesmo que a verdade fora da literatura, isto é, conhecimento sistematico e publicamente verificavel. O romancista no tem nenhum atalho magico para esse presente estado de conhecimento nas ciéncias sociais que constitui a “verdade” contra a qual deve ser conffontada a sua realidade ficcional. Mas, entio, acredita Eastman, o eseritor imaginativo ~ e especialmente 0 poeta ~ compreende errada- mente a si proprio se pensa na sua fungao primordial como @ de descobrir e comunicar conhecimento, Sua real fungdo ¢ fa- zer-nos perceber 0 que vemos, imaginar 0 que j conhecemos conceitual ou praticamente’. E dificil tragar a fronteira entre a poesia vista como per- cepgaio do dado & a poesia vista como “discernimento artist 6, Karen Homey, Seif Analysis, Nova York, 1942, pp. 38-9 Forster, op. elt, p74. 7. Max Eastman, The Literary Mind: Its Place in an Age of Science, Nova York, 1935, esp. pp. 15588 30 ‘TEORIA Dé LITERATURA co”. O artista nos lembra do que deixamos de perceber ou nos faz ver 0 que, embora estivesse ali o tempo todo, nao tinhamos visto? Lembramo-nos dos desenhos em preto-e-branco em que hh figuras ocultas ou faces compostas de pontos e linhas parti- das: estavam ali o tempo todo mas ndo as conseguiamos ver ‘como todos, como desenhos. Em Intentions, Wilde cita a des- coberta de valor estético no nevoeiro por Whistler, da desco- berta pré-rafaelita de beleza em tipos de mulheres que até en- {Wo no eram vistos como belos ou como tipos. So casos de “conhecimento” ou “verdade”? Hesitamos. So descobertas de novos “valores perceptuais”, de novas “qualidades estéticas”, ‘Vemos geralmente por que os estetas hesitam em negar a ““verdade” como propriedade e critgrio da arte’: em parte, trata-se de um termo honorifico, e ao fazermos essa atribuigdo registra- ‘mos 0 nosso respeito sério pela arte, a nossa compreensio da ar- te como um dos valores supremos; em parte, porque sentimos um temor ilégico de que, se a arte nao é “verdadeira”, ¢ uma ““mentira”, como Platdo violentamente a chamou. A literatura maginativa ¢ uma “Fioglo”, uma “imitagdo da vida” artistica, ver- bal. O oposto de “Ficg0” niio é “verdade” mas “fato” ou “exis- ‘éncia no tempo ¢ no espaco”. O “fato” & mais estranho do que ‘a probabilidade com que literatura deve lida Entre as artes, a literatura, especificamente, parece tam- bbém reivindicar “verdade” por meio da visio de vida (Weltans- chang) que toda obra artisticamente coerente possui. O fil6- sofo ou critico deve achar algumas dessas “visdes” mais verda- deiras do que outras (como Eliot pensa que a de Dante & mais vverdadeira do que a Shelley ou mesmo do que a de Shakespea- re), mas qualquer filosofia de vida madura deve ter alguma medida de verdade —seja como for, ela a reivindica. A verdade da literatura, como a estamos considerando agora, parece ser a verdade na literatura a filosofia que existe, na forma concei- 8. Ver Bemand C, Heyl, New Bearings in Esthetics and Art Criticism, New Haven, 1943, pp. 51-87 9. Ver Dorothy Walsh, “The Cognitive Content of Art, Philosophical Review, LIL (1943), pp. 433-51 DEFINIGOES E DISTINGOES 31 tual sistematica, fora da literatura mas que pode ser aplicada a literatura, ilustrada por ela ou incorporada a ela. Nesse sentido, 1 verdade em Dante ¢ a teologia catélica ¢ a filosofia escolis- tica. A visdo de poesia de Eliot, na sua relagao com a “verda- de”, parece essencialmente desse tipo. A verdade ¢ o dominio dos pensadores sistematicos, ¢ 0s artistas nao sio tais pensado- res, embora possam tentar ser se no houver nenhum filésofo cujo trabalho consigam assimilar adequadamente". ‘Toda a controvérsia parece, em grande medida, semdnti- ca. © que queremos dizer com “conhecimento”, “verdade”, “cognicio”, “sabedoria”? Se toda verdade & conceitual e pro- positiva, entio as artes ~ mesmo a arte da literatura ~ niio po- dem ser formas de verdade. Novamente: se as definigdes redu- toras positivistas so aceitas, limitando a verdade ao que pode ser verificado metodicamente por qualquer um, entio a arte no pode ser experimentalmente uma forma de verdade. A al- temnativa a ela parece ser alguma verdade bimodal ou plurimo- dal: hi varias “maneiras de conhecer”. Ou hé dois tipos basicos de conhecimento, cada um dos quais usa um sistema lingiifsti- co de signos: as ciéncias, que usam 0 modo “discursivo”, e as artes, que usam o “representative”. Ambos sio a verdade? O primeiro é aquele ao qual os fildsofos geralmente tém se refe- ido, ao passo que o segundo abrange o “mito religioso”, assim ‘como a poesia. Poderiamos chamar o segundo “verdadeiro” em vex de “a verdade”. A qualidade da adjetivacdo expressaria a distingdo no centro do equilibrio: a arte é substantivamente bela € adjetivamente verdadeira (isto , ela ndo entra em conflito 10. Eliot, Selected Essays, Nova York, 1932, pp. 115-17: “O posta que ‘pensa™,esereve Flot," meramente o poeta que consegue exprssar 0 equi valenteémocional do pensamento {Toda grande poesia dé a ilusio de uma visio de vida. Quando entramos no mundo de Homero,Séfecles ou Virgilio, {de Dante ou Shakespeare, inclinamo-nos a crer que extamos apreendendo algo que pode ser expressadointlectualmente, pos toda emogio precisa ten- 4e para a formlagao intelectual.” Susanne K. Langer, Philosophy in a New Key, Cambridge, Mass., 1942, “Discursive Forms and Preseatatonal Forms”, pp. 79. 32 ITBORIA DA LITERATURA coma verdade). Na sua Ars Poetica, MacLeish tentou ajustar as reivindicagdes da beleza literéria e da filosofia por meio da fr mula um poema € “igual a: nio verdadeiro”: a poesia é tao si ria e importante quanto a filosofia (ciéncia, conhecimento, sa- bedoria) ¢ possui a equivaléncia de verdade, & como a verdade. Ara. Langer enfatiza as artes plisticas e, mais ainda, a mi- sica em vez da literatura, no seu apelo ao simbolismo represen- tativo como forma de conhecimento, Aparentemente, ela pensa na literatura como, de alguma maneira, uma mistura de “dis- ccursivo” e “representativo”. Mas o elemento mitico, ou imagens arquetipicas, da literatura corresponderia ao seu representativo®. Devemos distinguir as visdes de que a arte & descoberta ou discernimento da verdade do ponto de vista de que a arte ~ espe- cificamente a literatura — é propaganda, isto &, ponto de vista dle que 0 escritor ndo ¢ o descobridor mas o fornecedor persuasi- vo da verdade, O termo “propaganda” é vago e precisa de exa- me*. Na fala popular, ¢ aplicado apenas a doutrinas tidas como ‘perniciosas e difundidas por homens em quem nio confiamos. ‘A palavra sugere calculo, intengdo ¢ geralmente é aplicada a doutrinas ou programas especificos um tanto restritos”. Entdo, limitando 0 sentido do termo, poderiamos dizer que certa arte (0 tipo mais baixo) é propaganda mas que nenhuma grande arte, boa arte ou Arte pode ser. Se, porém, expandirmos 0 termo para ue signifique “tentativa, consciente ou no, de influenciar lei- totes para que compartilhem a nossa postura diante da tio & plausivel a afirmagao de que todos os artistas so ou de- ‘viam ser propagandistas ou (invertendo completamente a posi- so delineada na sentenga anterior) todos os artistas sinceros, responséiveis sdo moralmente obrigados a ser propagandistas 12, Op. cit, p. 288. * Em inglés, temo propaganda tem carter pejorativo,geralmentein- dicando informagies de naturezatendenciesa ou enganosa usidis para romno- ‘verou dvulgar uma determinada caus ou posto de vista de poiticg, (N- do.) 13.0 fato de que os bibloteciris tranguem e os censoes profbam & ‘veda de algun livros ni prova que 6 esses livros ejam propaganda, mes- mo no sentido populr, Prova, antes, que os livros proibidos so propagand de causas reprovadas pla soiedade vigete DEFINIGOES E DISTINGOES 33 Segundo Montgmomery Belgion, o artista lterério é um “propagandista irresponsivel”. Isto , todo escritor adota uma vi- slo ou teoria de vida [..] O efeito da obra € sempre persuadir ok tora aceitar essa visdo ou teoria. Essa persuasio ¢ sempre ilicita, Isto 6,0 letor 6 sempre levado a crer em alguma coisa, e esse as- sentiment ¢ hipndtico ~a arte da representagio seduz 0 lito.) Eliot, que cita Belgion, replica distinguindo “poetas nos quais ¢ até dificil pensar como propagandistas”, os propagan- distas irresponsiveis e um terceito grupo, que, como Lucrécio e Dante, sdo propagandistas “particularmente conscientes e res- ponséveis”; e Eliot baseia o julgamento de responsabilidade na inten¢do autoral eno efeito historico™. “Propagandistas respon- siveis” pareceria, para a maioria das pessoas, uma contradigao em termos mas, interpretado como tensiio de impulsos, tem sua finalidade. A arte séria implica uma visdo de vida que pode ser ‘formulada em termos filos6ficos, até mesmo em fungao de sis- temas" Entre a coeréncia atistica (o que as vezes é chamado “légica artistica”) e a coeréncia filoséfica hd certo tipo de cor relagdo. O artista responsavel no tem nenhuma vontade de con- fundir emogdo e pensamento, sensibilidade e inteleccao, sinceri- dade de sentimento com adequagao de experiéncia e reflexdo. A visio de vida que o artista responsével articula perceptualmente no simples, como a maioria das visdes que conseguem su- ‘cesso popular como “propaganda”, e uma visio adequadamen- ‘te complexa da vida nao pode, por sugestio hipndtica, impelir {ago prematura ou ingénua, Resta considerar as concepgdes da fungdo da literatura aglomeradas ao redor da palavra ‘catarse”. A palavra — grego de Aristételes, na Poética — tem uma longa historia. A exegese do uso que Aristételes faz da palavra permanece em disputa, mas o que Aristételes pode ter desejado dizer, um problema 14, Elio, “Poetry and Propaganda”, em Literary Opinion in America (org. Zabel), Nova York, 1937, pp. 25s 15, Stee, op. it, pp. 164. 34 ‘TEORIA DA LITERATURA exegetico de interesse, nio precisa ser confundido com o pro- blema a0 qual o termo veio a ser aplicado. A funcdo da literatu- ra, dizem alguns, é aliviar-nos —escritores ou leitores — da pres- siio das emogées. Expressar emogdes é libertar-se delas, como se diz que Goethe se libertou da Weltschmer= a0 compor As tristezas de Werther. F também se diz que 0 espectador de uma tragédia ou 0 leitor de um romance experimentam libertagao ¢ alivio. Suas emogbes receberam foco, deixando-0, no final da experiéncia estética, “com a mente calma”". “Mas a literatura nos alivia de emogdes ou, ao contritio, i cita-as? A tragédia e a comédia, pensava Platio, “dio alimento e bebida is nossas emogdes quando deviamos secé-las”. Ou, se a literatura nos alivia das nossas emogdes, elas niio sfio erro- neamente descarregadas quando gastas em ficgdes potticas? Santo Agostinho confessa que, quando jovem, viveu em pec: do moral; contudo, “por tudo isso no chorei, eu, que chorei por Dido morta...”. Certa literatura é incitadora e outra € catar- tica ou devemos distinguir entre grupos de leitores ¢ a nature za da sua reagio™? Novamente: toda a arte deve ser catartica? Esses sto problemas a ser tratados em “A literatura e a psicolo- gia” e “A literatura e a sociedade” mas, preliminarmente, tém de ser levantados agora. ‘Concluindo: a questao referente a fungdo da literatura tem uma longa hist6ria ~ no mundo ocidental, de Plato até o pre~ sente, Nao uma questio instintivamente levantada pelo poeta ou pelos que gostam de poesia; para tais, “A beleza é a sua pro pria razdo de ser”, como foi levado a dizer Emerson. A questio € colocada, antes, por utilitaristas € moralistas, ou por estadis- tas € fildsofos, isto é, pelos representantes de outros valores especiais ou pelos arbitros especulativos de todos os valores. 16. Goethe, Dichnang und Wahrheit, livro XII. Collingwood (op. cit, pp. 121+) distingue “expressar emos4o™ (re) de “air emoe3o”, uma forma de nto-ane, 17. Plato, Repiblica, X, § 606 D; Agostinho, Confssde, I, p. 21% A. Warren, “Literature and Society", Twentieth-Contury English (org, W. S. Knickerbocker), Nova York, 1946, pp. 304-14. DEFINIGOES E DISTINCOES 35 Qual é, perguntam, a utilidade da poesia, afinal ~ cui bono? E fazem a pergunta na dimensdo social ou humana plena. Assim desafiado, o poeta e 0 leitor instintivo de poesia sio forgados, ‘como cidadios moral e intelectualmente responsiveis, a dar al- ‘guma resposta racional & comunidade, Fazem isso em uma pas- ‘sagem de uma Ars poetica. Escrevem uma Defesa ou Apologia dda poesia: 0 equivalente literdrio do que, em teologia, ¢ chama- do “apologética’*. Escrevendo para esse fim e para esse pibli- co provavel, eles naturalmente enfatizam a “utilidade” em lugar do “deleite” da literatura e, portanto, hoje seria semanticamen- te ficil igualar a “funcdo” da literatura a suas relages extri secas. Mas, a partir do movimento romintico, o poeta, muitas vezes, quando desafiado pela comunidade, dew uma resposta diferente: a resposta que A. C. Bradley chama de “poesia pela poesia”, € 0s tedricos fazem bem em deixar o termo “fungzo” servir todo o fmbito “apologético”. Ao usar a palavra assim, dizemos, a poesia tem muitas fungdes possiveis. Sua funcdo primordial e principal é a fidelidade a sua propria natureza. 18, History of Literary Crittem inthe Renaissance, de Spingara (No- va York, ed. rev, 1924, fz 0 levantamento de nosso topicn sob os termos “fungdo”e “ustificativa™ da poesia 19. A. C, Bradley, “Poetry for Poctry's Sake", Oxford Lectures on Poetry, Oxford, 1909, pp. 3-34. 4. A teoria, a critica e a hist6ria literaria Como contemplamos uma base racional para o estudo da literatura, devemos concluira possibilidade de um estudo siste- mitico e integrado da literatura. O inglés nio oferece nenhum, ‘nome muito satisfatério para este. Os termos mais comuns sio literary scholarship (estudos literarios) e philology (filologia). primeiro termo € reprovavel apenas porque parece excluir a “critica” ¢ enfatizar a natureza académica do estudo; € aceité- vel, sem diivida, se interpretamos o termo scholar (estudioso, aacadémico, pesquisador) de maneira to abrangente como fez Emerson. O segundo termo, “filologia”, esté aberto a incom- preensdes. Historicamente, foi usado para incluir nio apenas todos os estudos literarios € lingiisticos mas todos os produtos, da mente humana, Embora sua maior voga tenha sido na Ale- manha do século XIX, ainda sobrevive nos titulos de publica- ‘95es como Modern Philology, Philological Quarterly e Studies in Philology. Boeckh, que escreveu uma fundamental Ency- Hlopiidie und Methodologie der philologischen Wissenschaften (1877, mas bascada em conferéncias dadas desde 1809)', defi- niu “filologia” como o “conhecimento do conhecido” e, portan- to, o estudo da linguagem e das literaturas, das artes e da poli- tica, da religido e dos costumes sociais. Praticamente idéntica ‘historia literéria de Greenlaw, a filologia de Boeckh é obvia- ‘mente motivada pelas necessidades dos estudos classicos, para |. Philip August Boeckh, Bneyklopddie und Meshodologie der philalo- sischen Wissenschafien, Leipzig, 1877 (2! ed, 1886), DEFINIGOES E DISTINGOES 37 (08 quais 0 auxilio da historia e da arqueologia parecem part cularmente necessérios. Com Boeckh, o estudo literatio ¢ ape- nas um ramo da filologia, compreendida como uma ciéncia to- tal da civilizagdo, particularmente uma eiéncia do que ele, com © romantismo alemao, denominou Espirito Nacional”. Hoje, ppor causa da sua etimologia ¢ de boa parte do atual trabalho dos especialistas, muitas vezes compreende-se a filologia como Jingbistica, especialmente a gramética histérica e o estudo das formas passadas das linguas. Como o termo tem tantos € t30 divergentes significados, é melhor abandoné-lo, Outro termo possivel para o trabalho do estudioso da lite- ratura é research (pesquisa). Mas este parece particularmente infeliz pois enfatiza meramente a busca preliminar de materiais e traga, ou parece tragar, uma distingao insustentavel entre os ‘ateriais que tém de ser “pesquisados” e os que estio facilmen- te disponiveis. Por exemplo, é “pesquisa” quando visitamos o ‘Museu Britdnico para ler um livro raro, ao passo que ficar em casa, em uma poltrona, lendo uma reimpressio do mesmo li- ‘y1o aparentemente envolve um processo mental diferente. No ‘maximo, o termo “\pesquisa” sugere certas observagGes prelimi- nares, cuja extensio e natureza irdo variar muito com a natureza do problema, Nao denota com clateza, porém, as sutis preocu- ‘pag&es com interpretacdo, caracterizagio c avaliagdo, que so pe- culiarmente caracteristicas dos estudos literario. No nosso “estudo adequado”, as distingdes entre teoria, critica ¢ historia literdria sio, claramente, as mais importantes. Hi, primeiro, a distingao entre a literatura vista como ordem simultnea e a literatura vista primordialmente como uma série de obras dispostas em ordem cronolégica ¢ como partes inte- ‘grais do processo historico. Hi, entdo, a distingao adicional en- ‘re 0 estudo dos principios ¢critérios da literatura eo estudo das obras de arte literdrias concretas, quer as estudemos isolada- ‘mente, quer em uma série cronol6gica. Ela parece ressaltar mais cessas distingdes a0 descrever como “teoria literiria” o estudo dos principios da literatura, das suas categorias,critrios, ct, e diferenciar os estudos de obras de arte coneretas como “eriti- ca literéria” (de abordagem principalmente estitica) ou “histé- 38 TBORIA DA LITERATURA Fia literiria”, Naturalmente, o termo “critica literdria” muitas ve- es é usado de maneira que inclua toda a teoria litera, mas tal uso ignora tuma distingZo itil. Aristoteles foi um te6ricos Saint- Beuve, um critico, acima de tudo. Kenneth Burke &, em grande parte, um teérico literério, a passo que R. P. Blackmur é um eri- tico literério, O termo “teoria da literatura” poderia muito bem incluir ~ como faz. este livro ~ as necessirias “teoria da critica literdria” e “teoria da hist6ria literdria”. Essas distingBes sio razoavelmente dbvias e t8m aceitagio bem ampla, Menos comum, porém, é a percepeiio de que os mé- todos assim designados nao podem ser usados isoladamente, que esto de tal maneira entrelagados que tornam inconcebiveis a teorialiterdria sem a critica ou a historia, a critica sem a teoria, «ca historia ou a historia sem a teoria ea ertica. Obviamente, a teoria literria & impossivel, exceto com base em um estudo de ‘obras literrias coneretas. Nao podemos chegat a critérios, cate- ‘gorias ¢ esquemas in vacuo. Inversamente, porém, nenhuma cri- tica ou hist6ria & possivel sem algum conjunto de quests, al- {gum sistema de conceitos, alguns pontos de referéncia, algu- ‘mas generalizayes. Naturalmente, nfo se trata aqui de nenhum dilema insuperavel: toda vez que lemos temos algumas idéias preconcebidas e sempre mudamos e modificamos essas percep- ‘98es depois de mais experiéncia com obras literirias. O pro- .cess0 é dialético: uma interpenetrago miitua de teoria e pitica Houve tentativas de isolara historia literdria da teoria e da critica, Por exemplo, F. W. Bateson’ argumentou que a historia literéria demonstra que A deriva de B, ao passo que a critica pronuncia que A é melhor do que B. O primeiro tipo, segundo essa visio, lida com fatos verificaveis; o segundo, com ques- ‘Wes de opinido e f&. Essa disting#o, porém, é inteiramente in- sustentivel. Simplesmente no hé dados na historia literdria {que sejam “fatos” completamente naturais. Ha julgamentos de valor implicitos na prépria escolha de materiais: na distingao preliminar entre livros e literatura, na mera alocago de espago 2. F. W. Bateson, “Correspondence”, Scrutiny, 1V (1935), pp. 181-5 DEFINICOES DISTINGOES 39 ‘este ou Aquele autor. Mesmo a verificagdo de uma data ou ti- tulo pressupée algum tipo de julgamento, um que seleciona es- te livro ou acontecimento especifico dentre os milhdes de outros livros e acontecimentos. Mesmo reconhecendo que hi fatos re- lativamente neutros, fatos como datas, titulos, acontecimentos biograficos, tudo o que reconhecemos ¢ a possibilidade de com- pila os anais da literatura. Contudo, qualquer questio um pouco mais avangada, mesmo uma questo de critica textual ou de fon- tes influéncias, exige atos constantes de julgamento, Um enun-

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