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Musou Nacional/UFRJ | Anthony Seeger OS INDIOS E NOS Estudos sobre sociedades tribais brasileiras “_ ‘EM CIENCIAS SOCIAIS 6 Ricardo Jo Donan ie Aratjo PDOC/FGV e PUC/RI EDITORA CAMPUS LTDA. "Rio de Janeiro 1980 ‘poderd ser reproduzids ou tranamitide ‘sejam quais forem os meios empregados, eletrOnicos, mecdnicos, fotogréficos, gravagiio ou quaisquer outros, sem & ‘permisaiio por escrito da editora. ‘Capa AG Comunices#0 Visual Assessoria ¢ Projetos Lids. Fotodo autor Petf, eantador, compositor e ider cerlmonia dos fndios Suyt Diagramagéo, composicto, paginagfo ¢ revisfo ‘Béitora Campus Ltda. ‘Rua Japeri 35 Rio Comprido ‘Tel, 284 8443/284 2638 20261 Rio de Sensiro RJ Brasil ISBN 85-7001-039-7 Ficha Catalogrifica CIP-Brasil. Catalogacfo-nsfonte ‘Sindicato Nacional dos Béltores de Livros, RJ. Seeger, Anthony, 1945- Sasi (Os fndios © née : estudos sobre sociedades tribals bre- siletras | Anthony Sooger, — Rio de Janeiro : Campus, 1980. (Contribuig6es em cléncias sociais; 6) Biblingrafia 1. fndios da América do Sol — Brasil I. Titulo It. Titu- Jo: Estudos sobre sociedades tribais brasileiras IIL Série cp - 301.2981 ‘98041 so0014 DU - 308(81 =97) APRESENTACAO © trabalho de campo é uma caracteristica basioa da Antropologia moderna, Até 0 final do século XIX, a maior parte dos cientistas voltados para 0 estudo de sociedades ndo-ocidentats ficava em seu gabinete e escrevia sobre povos distantes 4 partir de relatos de viajantes e de narrativas de missiondrios. Existe wna historia, Provavelmente apécrifa, sobre Sit James Frazer, autor do The Golden Bough, a quem se perguntou se hava visitado algum dos poves cujos costumes exéticos ha- viam sido objeto de extensos escritos seus e ele respondeu: “Deus me livre!” O trabalho de campo de Franz Boas, Spencer e Gillen, W. H. Rivers e outros, na pas- sagem do século, mostrou que, se 0 analista fosse ao campo, poderia reunir dados ‘muito mais ricos do que se utilizasse correspondéncia. Bronislaw Malinowski ficou muitos anos na Melanésia durante a Primeira Grande Guerra, Sua “Introdugio” 20s “Rrgonautas do Pacifico Ocidental (Malinowski 1975) continua sendo a melhor discussio sobre @ importincia do trabalho de campo a longo prazo para a Aniro- pologia, Apesar desse evidente comego, por urka série de razbes 0 trabalho de cam- PO continua envolto em mistério, E assunto de conversas sociais e de fuuxicos, mas até hé muito pouco tempo raramente era assunto de reflexdes publicadas. Existem ‘muitos problemas em todo trabalho de canipo que merecem consideragao prévia de um estudante que esté partindo para sua pesquisa: o projeto de pesquist, como en- ‘rar no campo, que papéls pode desempenhar no grupo, como coletar dados. Km ‘meu trabalho de campo kouve problemas e solugdes especificos a mim e a minha Propria situagéo, mas houve também muitas coisas que qualquer um que realize trabalho de campo, especialmente com sociedades indigenas das terras baixas da Arérica do Sul, encontraré, Algamas foram levantadas no artigo abaixo, que éuma revisio da “introdusio” de minha tese de doutoramento (Seeger 1974). CAPITULO 1 PESQUISA DE CAMPO: UMA CRIANCA NO MUNDO* “De todas as ciéneias, a Antropologia é sem divida tnica, no transformar ‘4 mais intime subjetividade em instrumento de demonstragSo objetiva®. Lévi-Strauss, 0 Excopo da Antropologia © material etnogréfico sobre o qual a Antropologia trabalha € quase sempre © resultado da atividade singular do pesquisador no campo, num momento especifi- co de sua trajet6ria pessoal ¢ tedrica, de suas condig¥es de satide ¢ do contexto dado, ¢ essa atividade ¢ exercida sobre um grupo social que se encontra num certo momento de seu proprio processo de transformacdo. O contato € comumente di ficil para ambas as partes, ¢ se a Antropologia pode reivindicar qualquer validade dentro da contingéncia da pesquisa de campo na qual se basela, iso se deve apenas & dificuldade do trabalho ¢ a dedicagio a uma teoria ¢ a um método por parte do pesquisador, ¢ a muita paciéncia por parte do grupo com o qual esté trabalhando, Todo, pesquisador tem, sem davida, em virtude de sua individualidade, uma diferente abordagem de seu objeto, ¢ um estilo préprio de trabalho, que sf0 aspec- tos ditados muitas vezes por circunstancias particulares. Ao deixar por fim © cam- po, ele teve ume experiénecia pessoal intensa e (exalé!) coletou dados teoricamente relevantes. A experiéneia pessoal por que passa e 0s dados que coleta nfo estfo completamente dissociados. Devemos indagar insistentemente pera saber mais em detalhe a manetra como, tuma pessoa trabalhou para coletar os dados que apresenta. Trabalhou por periodos Jongos ou curtos? Fez 0 uso da lingua nativa, de intérpretes, ou de uma lingua de contato? Havia um ou vérios informantes? Fez levantamentos estatisticos ou usou de informantes voluntérios? © modo pelo qual se trabalhou e 0 que se fez.exeroe- £0 um efeito profundo sobre o que quer que seja que se vena a escrever. HA ainda outea questo: toda pesquisa de campo é, até certo ponto, uma vio- lego da sociedade que & estudada, pois os antropblogos, ds vezes, tém de fazer per- * Tradugto de Ivo Frigéro. 2s untas dificeis e desegradaveis. Mesmo em termos de alocagdo de seu proprio tem- ‘po, um informante deve escolher entre responder a perguntas ¢ fazer qualquer ou- {ra coisa. Um pesquisador pode ceusar outras privagdes & comunidade, a0 comer 0 alimento de suas rogas, 20 exigit cuidados por ignorar as convengdes socinis¢ per {g0s naturais, ou a0 insistir em obter rospostas claras sobre assuntos em que a ambi- Bllidade € preferfvel. © segundo grupo de quest6es sobre o trabalho de campo de lum pesquisador deve gravitar em torno de respostas a perguntas como: “Por que thes foi importante responder a suas perguntas?”, “Por que foram eles t80 pacien- tes?", “O que 0s fez aceité-lo?” € “O que é que representava para eles?” Neste capitulo tenciono responder 2 essas indagagées com respeito a mew proprio trabalho de campo entre 0s indios Suyé do Mato Grosso do Norte do Brasil No meu proprio caso, contudo, devo prineipiar pela primeira e vaga formulago do projeto, a fim de explicar por que foi que estudel os Suy4 em particular. A propria experiéncia “pré-campo” no Brasil, antes que eu pudesse chegar até 8 Suyi, foi importante, pois quando consegui atingir 0 campo, apés consilerdvel atraso, a demora mesma so revestiv de amplas conseqiiéncias. Minha propria vida ¢ trabalho 0 campo foi um process0, ndo uma situagto estética; esse processo cul ‘minou com minha altima partida e fot marcado por algumas persistencias na abor- dagem © no método. Era, de certo modo, idiossinerético, porque refletia minha propria personalidade ¢ escolhas, assim como certas contingéncias da situaggo de campo, mas autocontrolado em razo de mea treinamento em teoria e método an- tropol6gice, tal como o tinha entre 1970 e 1978, 1. RAZOES PARA ESTUDAR OS SUYA Havia duas razdes primordiais para que eu desejasse ir para o Brasil central, sendo uma pessoal ¢ a outra teSrica, Eu achava o Brasil central uri lugar fascinan- te, desde minkas aulas de Geografia no quinto ano primério. Os animais estranhos; ‘© numero abundante de insetos e as pequenas sociedades me fascinavam. Pessoal- mente, prefiro pequenos grupos de pessoas e nfo me sinto a vontade em grandes aglomeragdes, sendo capaz de passar muitos meses numa érea remota, mais conten- te do que se tivesse de pesquisar a assisténcia dos jogos de futebol, por exemplo. Hé um elemento de escola pessoal em todos 0s trabalhios de campo. Pelo lado te6rico, interessei-me pelo estudo comparativo das sociedades Jé, na faculdade, ¢ meu primeiro contato com a complexidade da organizagfo social Jé foi através do Professor Maybury-Lewis, em 1966. Os Jé pareciam suscitar muitas das indagagges mais interessantes em Antropologia, e oferecer uma érea ideal para estu- dos comparativos. Continue a estudar as tribos das terras baixas da América do Sul, especialmente as de lingua Jé, no curso de Pos-Graduagao da Universidade de Cornell e mais tarde na Universidade de Chicago. A possibilidade de um estudo comparativo dos Jé cresceu na medida em que membros do Harvard-Central Brazil Project completarant suas pesquisas. Os traba- thos de Terence Turner (1966) ¢ Joan Bamberger Tumer (1967) sobre os Kayapé setentrionais, Jean Lave (1967) sobre os Kstkati, Jilio Melatti (1970) sobre os Krah6, Roberto Da Matta (1971) sobre os Apinayé, David Maybury-Lewis (1965, 26 1967) sobre os Xavante e Xerente, © Christopher Crocker (1967) sobre os Bororo foram contribuigdes importantes para a etnografia dos Jé © dos indios sul-america- nos em geral. Outros estudos, notadamente os de Lanna (1967) e Vidal (1973), ‘também contribuiram para 0 crescente corpus etnogréfico sobre as sociedades de gua 18. ‘Alguns tragos importantes da cultura e da organtzagg0 social parecem comuns a todos os grupos Jé, como por exemplo a subsisténcia e a habitagfo. As andlises comparativas de insttuigSes © crencas numa 4rea como a do Brasil central podem validar hip6teses levantadas no contexto de qualquer um dos grupos, porque estas podem ser testadas em sociedades intimamente relacionadas, e acredito que isso re- presenta uma grande evolugfo em relaggo a prética tradicional de construgdo de ‘uma hipdtese baseada num caso isolado, para entdo extrapoléa diretamente para andlises de tipo “cross-cultural” de maior amplitude, caracteristica” dos utilizadores do Human Relations Area Files. Dado meu interesse em participar de estudos comparativos das sociedades de ingua Jé, decidi estudar os Suyé, Mas, enquanto esbogava meu projeto em 1969, hhavia pros e contras a qualquer proposta de estudo dos Suyé. Eles haviam sido visi- tados durante dois meses, em 1960, por um etnégrafo que eno publicou um art- go sobre eles no National Geographic Magazine: “Brazil's Big-Lipped Indians” ‘Schultz 1962), Schultz encontrara os Suy4 num acampamento tempordtio € ape- rentemente ngo conseguira fazer-se entender; tampouco entendeu os Suys. Embora, no artigo do National Geographic, Schultz ressalte a similaridade entre as linguas, Krahé e Suyé, sugerindo com isso ter podido conversar com eles, num artigo mais cientifico (Schultz 1960/61) descreve sua impossibilidade de se comunicar com qualquer deles, exceto um residente Trumsi, que também nfo falava Suyé. O relato de Schultz indicava que os Suyé eram um amélgama das culturas do Alto-Xingu € ‘Je, que sofriam as conseqlitncias de extrema depopulacéo. © outro ‘inico trabalho publicado .sobre os Suyé caracterizava-os como “uma sociedade em ruinas, na qual o proprio tamantio limitava 0 aleance ¢ 0 in- teresse da andlise” (Lanna 1976:68), Terence Tumer, que durante seu trabalho de campo encontrara um menino Suyé visitando os Kayap6 setentrionais, asegurou- sme que 05 Suyé no estavam provavelmente t20 desorganizados como acreditava Lanna, Nao estava absolutamente claro, contudo, qual seria 0 estado da sociedade Suyé, 0 que representava nitido empecitho a qualquer formulacfo precisa de uma pesquisa de campo entre eles, Ocortera, contudo, um interessante progresso, pois diziase que os belicosos Beigosdle-Pau, 0s Tapayuna, que ostavam sendo “‘pacificados” no rio Arinos, fala- ‘vam uma lingua virtualmente idéntica 4 dos Suy4, e sua populagdo foi desrita co- mo sendo grande ¢ dispersa em pelo menos 12 aldeias. 0 descobrimento de um novo grupo de Suyé tomou o projeto mais interessante ¢ eu tencionava principiar ‘minha pesquisa de campo estudando os Suys orientais no Xingu, onde aprenderia para posteriormente visitar os Arinos e estudar as outras aldeias, o'que estudar partes da ‘mesma tribo” que tinham estado separadas por um perfodo de tempo relativamente curto. Seria um estudo ideal de micromudanga. 2 Com isso em mente, redigi minha proposta de estudo do mito, do ritual e da organi- zagdo social dos Suyé, “para investigar comparativamente a natureza da elagg0 do rnifo ¢ do ritual com aspectos da organizagao social, e coeréncia goal dos siste- mas simbélioos (do meu Plano de Pesquiss de Doutoramento, 1970), em novem tro de 1970 minha esposa e eu desembarcamos no Rio de Janeiro, com a intengto de estar no campo em janeiro de 1971 2. AINFLUENCIA DA BUROCRACIA BRASILEIRA E DA POLITICA INDIGENISTA SOBRE 0 TRABALHO DE CAMPO Esperivamos que nossa ida 0 campo ndo nos fosse criar nenhum problema especial. Muitos anfropotogos haviam trabalhado no Brasil central, todos eles nos contaram estérias sobre a burocracia € como tinham levado dois ou trés meses para obter permissfo das vérias agénclas que supervisionavam os indios e todas as pesqui- sas desenvolvidas por estrangeiros em territério brasileiro. No nosso caso, contudo, passaram-se nfo apenas dois ou trés meses, mas oito, antes que-tivéssemos acesso 4 reserva do Xingu para iniciar a pesquise. Torna-se desnecessério documentar aqui as frustragSes ¢ agonias dos meses devotados a objer as necessérias permissbes. Nos 0 primelro requerimento foi indeferido sem nenhum fundamento prético, ea des peito de nossas manobras nfo conseguimos obter reconsideragso de nossa proposta, Somente em abril de 1971 € que descobrimos que uma nova estrada, a BR-080, es tava sendo construfda ¢, pelo seu tragado, cortaria a reserva do Xingu, nfo tonge da aldeia Suyd, Parte da rede de estradas em construgéo na Bacia Amazinica, a BR080 aparecia nos mapas rodovidrios como estando localizada ao norte da reser- va do Xingu, ficando patente que 0 verdadeiro motivo de nos ter sido negada a per rmissfo para estudar 0s Suyé cra 0 descjo de manter o fato em segredo, até que, conclufda, pudesse ser revelada como um fait accompll. Com a conclusdo da estra- da, todas as Tettas 20 norte de onde cruzava o rio Xingu foram confiscadas pelo Governo Federal, ¢ todos os indios que Id moravam tiverqm de mudar para o sul, para dentro das fronteiras da reserva. A reserva tomouse boessivel a qualquer um através desea estrada, e of conflitos e doengas resultantes do contato dos fazendei- 08 com of indios que se recusaram a se transferir para o sul sto outro trdgico ep sSdio de uma est6ria que continua desde 0 descobrimento da América pelos euo- peus ocidentais Felizmente a akleia Suy nfo foi afetada pela nova estrada, que passou cerca i de 60 km ao norte, nfo sendo portanto atingkia pela desapropriagfo. Com 0 consi derdyel apoio de fontes variadas, conseguimos finalmente obter nossa permissfo ‘para entrar na reserva do Xingu das mfos de uma sisuda secretéria do Presidente da Fundagdo Nacional do Indio, a agéncia para assuntos indgenas, doravante referide pela sua sigla FUNAL Punha-me, com frequéncia, ¢ imaginer qual serie 0 fim de nossa batalha para bier permissfo, e se nfo seria absundo perder tanto tempo esperando, pois todos com quem falivamos no acreditavam que demorasse tanto tempo e sempre nos in- citavam a tentar uma outra fonte de influéncia. Cada espera era somente por “mais algumas semanas”, enguanto tentavamos algo diferente, 2 esses longos meses foram 8 lum enorme esooadouro de nossas energias.e recursos. Nesse perfodo, conhecemos muitas pessoas gents, algumas das quais citei nos agradecimentos, nosso dominio do portugués umentou ¢ fizemos algumes viagens, mas sobretudo fizemos bons amigos. Algum beneficio ndo-intencional pode assim terresultado de nossa longa est da no Brasil, antes de ir'ao campo, mas, quanto ao trabalho propriamente dito, 0 feito foi realmente importante, Apés oito meses de espera, caso trabalhar com 0 Suyé se tivesse tomado inviével ou insatisfatério, nfo haveria qualquer altemativa, 4a nfo ser ir até 0 fim ¢ eu jé perdera tanto tempo que até mesmo cogitar em mudar de tribo era bastante desagradével. Minha sorte com os Suyé estava langada e toma- mos 0 avifo em Sfo Paulo para o Xingu em fins de junho de 1971. 3. CHEGADA NO CAMPO: UMAENTRADA MUSICAL, Quendo embarcamos no DC3 da Forga Aérea Brasileira que nos levatia 20 Posto Leonardo Villas Boas (doravante, simplesmente, Posto Leonardo), foi grande nossa sorte em ter como companheiro de viaggin o St. Claudio Villas Boss, que era ‘ent o encarregado da parte setentrional do Parque Nacional do Xingu, onde vivem ‘98 Suy6, Juntamente com seu irmo Orlando, ele foi candidato ao Prémio Nobel da Paz, Quase nfo nos falamos durante o vibratorio e barulhento véo. Sentdvamos de lado, a0 longo das paredes do avigo despressurizado, com sua carga de bolas de bor- racha ¢ tecido (para atrair certas tribos hostis e para manter outras déceis), arroz, feijGo, verduras (para abastecer as bases da Forga Aérea no Brasil central), ¢ a odori- fera carcaga de um boi, recentemente abatido, para abastecer a Base Jacaré, da For- @ Aérea, no Xingu. © Posto Leonardo 6 um amontoado de casas relativamente grande, que inchui ‘um pequeno hospital, uma casa de hspedes, residéneias dos Villas Boas ¢ um gran- de refeitério, ¢ também certo némero de casas menores para os trabalhadores. O Posto Leonardo sempre nos pareceu uma cidade, jd que possui eletricidade & noite tem algumas casas ¢ 05 tetos sfo de folha de zinco ou telha, a0 invés de palha. Em nossa primeira noite, Claudio Villas Boas comentou que ouvira dizer que cantéva- mos e perguntousnos se gostarfemos de cantar. Fomos buscar nossos instrumentos «, aps afar 0 banjo e o violo, iniciamos uma noitada musical que se prolongou por algumas horas. Fizemos sucesso imediato, nZo somente junto ao Sr. Vilas Boas € 0s trabalhadores brasileiros do Posto!, mas também com os {ndios que ali estavam de visita, e que tinham vindo de suas aldeias a alguma distancia. Na manhS seguinte Claudio desceu o Xingu em direedo a Disuarum, num equeno barco, prometendo falar com os Suyd e contar-lhes sobre nossa vinda. Falou com eles, mas no soubemos os detalhes do que disse, até meses mais tarde. 1 satel o termo “brasilezos" para me referr a quaisquer ndo-indios, de ascendéncia euro: pila, nepra ou mestica que seam cidaddos do Bras les nem sempre sfo “brancos”, nem podem sor chamados de “civilizados", tendo em vista su comportamento em relagdo aos dios, endo portanto exato 9 teemo “brasileiro” para distinguir pesioas que sfo eulturalmente nfo-indios daquelas que © sf0 ~ embora os indios também sojam, de certo modo, brasleiros, 2» Ble dissera aos Suy que éramos misicos, que meu pai era um homem importante fe que vidramos para aprender a Lingua ea .msica Suya. Os Suyé poderiam pedir-nos ‘que cantdssemos a qualquer hora, que cantarfamos, @ caso n€o gostatsem de n6s overiam avist4o e ele nos mandaria embora, Perto de concluir minha pesquisa, des- ‘cobri que ele havia contado aos Suyé que nés, finalmente, escrevfamos um livro, que seria lido por ele, e que caso os Suyé no nos tivessem contado a verdade, no fios tivessem ensinado bem, ficaria zangado com eles. Os Suyé respeitavam muito Claudio Villas Boas, por razdes que descrevo no Capitulo 2, ¢ 0 resultado de sua ‘entusistica recomendapdo aos Suyé foi uma recepefo favortvel por parte deles. Gastamos mais de duas semanas no Posto Leonardo, aguardando uma oportu- nidade para tr até Disuarum, e passdvamos o tempo visitando diversas tribos, cujes aldelas ngo ficavam muito distantes do Posto, ¢ solidificando nossa reputagdo de ‘cantores, pois solicitavam-nos que cantéssemos quase todas as noites, ouviam nossas est6rias ¢ indios vistantes aprendiam nossas cang6es. Um dis fomos presenciar uma ceriménia entre os Yawalapiti, uma tribo préxima do Posto Leonardo e talvez. a mais “rica” em termos de. bens de origem ocidental. Fomos convidados a voltar no dia seguinte para cantar para eles em pagamento, e, enquanto cantévamos, um Yawalapiti trouxe um pequeno gravador cassete de sua casa e gravoU nossas can- 496¢3, do mesmo modo como acabsramos de gravar as suas. Soubemos depois que ele levou 0 gravador as outrasaldelas e tocou nossa mtsice para eles também, ¢ em todas as visits subseqdentes ao Posto Leonardo sempre nos pediram para canter, reiro, quando nossa satide foi abalada por repetidas crises de maldria. Nesses meses finais, cacei e pesquei menos ¢ fiz mais trabalho antropologico, mas as vezes me can- sava de meu papel de manipulador de conversas ¢ de espido, parasitdrio e dependen- te, Deixamos 0 campo em principios de fevereiro de 1973. De margo a junho minis trei um curso, com o Professor Roberto Da Matta, no Museu Nacional do Rio de Janeiro, Judy retomou aos Suyé em abril-maio para verficar certo mémero de ques- es basicas. Retrospectivamente, doume conta de que, de certa forma, fui criado pelos Suyd. Quando 14 chegamos pela primeira vez, trataram-me como uma crianga — 0 que eu era, j6 que nfo sabia falar ou ver como eles viam. Levei meses, por exemplo, para ver a sombra ou as ondulagSes de um pelxe répido na égua e para atlrar com presteza para ating-lo com a flecha, Ngo sabia distinguir os sons que os Suys ou- viam, pois nfo os entendia e sequer os conhecia, No inicio, nfo me deixavam fora de vista, Nunca saf sozinho numa canoa ¢ nunca vaguei desacompanhado pela fo- resta, embora caminhasse pelas rogas. Aprendi a pisar exatamente onde eles pisavam. para evitar por os pés em espinhos, araigs e formigueiros, e aprendi lentamente on- de era bom pescar ¢ como fazé-o. NFo compensava para os adultos despender seu. ‘tempo me ensinando, e por isso me mandavam sair com os meninos que sabiam mais do que eu. s Suyé ensinaram-me a falar com 2 mesma paciéncia com que ensinam a seus filhos, ¢, espantados com minha habilidade em anotar as coisas ¢ ainda assim ésque- fas, viviam a me testar, Também usavam a téenica de dizer uma frase obscena ‘muito rapidamente para que eu a repetisse, e entdo cafar na risada, quando 0 fazia.. Contavamme coisas & noite, do mesmo modo que os pais fazem com seus filhos, € interessavam-se em saber se eu entendera as coisas corretamente. Sempre me indi- cavam @ pestoa que sabia mais sobre qualquer assunto, quer fosse mito, misica nome de casa, genealogia ou historia, ¢ ful instrufdo a nao trabalhar com as mulhe- tes ou com os jovens porque nada sabiam, Se houve de minha parte alguma falha para compreender as coisas que me foram explicadas, isso ndo reflete as honestas 34 tentativas de todos os Suy4, Tratavam-me como um menino de 12 anos quando par- ‘timos, pois eu sabia remar, pescar ¢ cagar pelos arredores, como o faz um menino de 12 anos, Sabia conversar adequadamente, mas sem o discemimento e controle de imagens ¢ metéforas que os adultos sabiam empregar. Acima de tudo os jovens de- \ ‘vem ouvir e aprender, ¢ de certo modo eu era um menino ideal de 12 anos. ‘ ‘As mulheres supervisionavam o treinamento de minha esposae ela aprendeu a preparar nossa comida, a tecer, 2 falar Suys e a fofocar horas a fio. Fora promovida + de raspadora de rafzes de mandioca a “dona-conttoladora” de quantidades de fari- raha de mandioca e de mingau. As mulheres ensinavamihe a lingua de modo que podiam fazer-he perguntas e vice-versa, e ela nfo raro me fornecia dados import tes ¢ as'vezes testemunhava sozinha um fato, pois somente as mulheres era permit do presenciar 0 nascimento de uma criangs, por exemplo. De certo modo, Judy po- dia gozar a permanéncia entre os Suyé mais do que eu, pois ndo era obrigada a ser uuma antrop6loga, e podtia relacionar-e com os Suy como um ser hurmano, por sim- patia, enquanto cu sempre tinha de permanccer um cientista social também, Por que os Suy nos aceitaram? J4 sugeri que a resposta nfo € simples. No : inicio no hd ddvida de que foi gracas & apresentagfo de Claudio Villas Boas, mas ‘em janeiro de 1972 ee deixou o Xingu e munca retornou a Diauarum durante nossa : permanéncia, Nossa misica fora parte da raz e nossos presentes também, pois, as vezes, 03 carregamentos de provis6es para a reserva da FUNAI eram interrompidos, fr e represontavamos a tinica fonte de balas, Linh» de pesca, pequenos anz6is e outros artigos. Todos os Suy apreciavam nossa ajuda inédica, ¢ as mulheres Suyé gostavam c de minha esposa ¢ desfrutavam sua presenga. Hé muito que rir de um par de adultos deiajeitados que agem como criangas, # 08 Suyé gostam muito de rir. Também respeitavam muito meu interesse nos aspec- tos de sua prépria sociedade que eles mesmos achavam interessantes: ritual, mésica, est6rias, parentesco e ideologias, ¢ eu era pretexto para a realizagio de rtuais, para ‘que puidessem me ensinar, de modo que aprendessee gravasse Quando deixamos a aldeia, em feverciro de 1973, os Suyé disseram; mais por ‘ ramaticidade que por raz6es reais: primeiro, que todos iriam morrer caso ndo es véssemos If para medicé-tos; segundo, que nfo teriam mais acesso aos bens, porque a ‘go estariamos Is para fornecé-los; e, terceiro, que os homens no passariam mais , tanto tempo na casa dos homens porque eu nfo estaria 16. Convidaram-nos a voltar, : e disseram que, caso eu tivesse algum amigo que quisesse aprender sua lingua e sua ‘misica,ficariam felizes em the ensinar, da mesma forma que & mim, De fato, retornamos em dezembro de 1975, para encontrélos em excelente estado de espitito e satide. Fomos recebidos com entusiasmo ¢ imediatamente in- corporados as suas atividades como se jamais houvéssemos estado ausentes, eumade rminhas grandes dificuldades era que, enquanto eles permaneciam fortes como nun- . a, eu me encontrava fora de forma, apés dois anos passados diante de uma qu na de escrever elétrica € de um quadro-negro. J4 nfo podia remar como antes, correr ‘G0 rapidamente atrds de macacos que desapareciam por entre as drvores, ¢ cantar tanto, comendo tfo pouco como anteriormente. Demoramos, os Suyé eu, algum ‘tempo para nos dar conta disso, ¢ esse periodo teve um final abrupto apés mais ou 35 ih $$ $$$ __— ‘menos dois meses, quando parti com pneumonia, Consegui, contudo, expandir consideravelmente 0 meu dominio da lingua e solucionei algumas das quest6es le- vantadas enquanto escrevia minha dissertagzo. Morar no Brasil ¢ trabalhar no Museu Nacional entre 1975 ¢ 1979 tornou os, contatos que temos com os Suyé mais vatiados, Retomnei para uma breve visita em julho de 1976, e estava a caminho em 1977 quando uma crise de maléria tornou 2 viagem impossivel. Ao invés disso, foi um Suyé que se enoontrava em SGo Paulo pa- ra tratamento médico que nos visitou no Rio, e entéo tive a sensagGo de me sentir ‘como um nativo, e, quando © homem que nos visitava repetidamente perdia seu sen- tido de diregdo nas ruas, eu the dizia: “Lemira-se de como eu era assim que cheguei a sua aldeia? Nao conhecia nada, e se voo! vivesse aqui por um longo periodo de tempo, voob aprenderia”. Ele concordou que sempre leva algum tempo para se aprenderem as coisas. Posso imaginar as coisas que contou ao retornar & aldeia, pois estava obviamente escandalizado com o fato de dormirmos num quarto diferente do de nossa filha Estou planejando outra viagem a aldeia Suys, para conversar mais profunda- mente com eles sobre sua mésica — um t6pivo que consegui desenvolver, conside- ravelmente, emt 1975-76 (Seeger 1977 ¢ Capitulo 4 deste volume)”, Umma das dificuldades de um antropélogo ¢ saber quando deixar de trabalhar com um grupo. Quando deixei o campo em 1973, estabelect arbitrariamente 0 pprazo de cinco anos para terminar o trabalho principal sobre os Suy4, de modo que ‘me pudesse voltar para outros t6picos e outras sociedades, e este livro & um passo importante nesse processo 5. MEUS METODOS DE CAMPO Minha rotina didria era dirigida no sentido de maximizar as oportunidades de ouvir os Suy4 que conversavam, de perguntar e de observar. Em média, um dia de ‘um perfodo néo-cerimonial comegava entre 4h30min e Si, quando todos tomavam banho no rio, que estava mais aquecido que o ar da madrugada. Entfo, caso nfo fos- ‘© cagar ou pescar, minha esposa e eu famos a todas as casas com uma caixa de re- rédios, para ver se alguém nevessitava de tratamento, Era mais facil ir até as outras ‘casas, porque algumas das pessoas indo se sentiam & vontade em nossa casa, € por- ‘que, quando 0s Suy4 apanham maliria, no saem de suas redes. Quando assim fazia- ‘mos pela manhf, nfo éramos chamados 0 resto do dia, a menos que houvesse uma femergéncia, Ao visitar as casas, eu podia ver as pessoas ¢ 0 que fuziam. Costuméva- ‘mos conversar um pouco em cada casa, ¢ caso as pessoas estivessem bem, nossas sondas médicas duravam apenas alguns minutos, mes quando havia resfriado, infec- ‘@es pulmonares e maléria, despendfamos mais de uma hora. Podia entfo trabalhar, caso nada acontecesse, escrevendo meu diétio, ou inter. rogando as pessoas que permaneciam na aldeia. Aqueles que se encontravam cagan- 0 ow pescando costumavam voltar cerca do meio-dia, caso fossem bem sucedidos, ¢ centio fazfamos nossa primeira refeiggo do dia, Néo havia horério fixo para as refei- > ssa viagem fot feita em agosto-outubro de 1978, 36 «es na aldeia e comfamas sempre que qualquer alimento fosse introduzido em nos- sa casa, Uma das contribuigdes importantes de minha esposa era que ela podia ficar fem casa e guardar alimento para mim, caso eu estivesse em algum outro lugar quando ' ele fosse distribuido. ‘A parte mais quente do dia eu passava dormindo ou escrevendo. O inicio da tarde era uma boa hora para encontrar as pessoas e fazer perguntas,¢ entdo eu volta va a eserever meu difrio, Ao cair da tarde, costumava fazer outra ronda pelas casas, tratando os doentes quando necessitio, ¢ freqientemente obtendo um pouco do ‘que comer no caminho."A magnifica luz do sol poente, es familias agrupavam-se defronte as casas, conversando e brincando com as criangas, ¢ nos juntévamos a elas. ‘Ao creptiseulo, os homens congregavam-se no centro do patio da aldeia ¢ conversa ‘vam, cantavam ou nos pediam para fazé-lo. As mulheres agrupavam-se defronte as ‘casas para conversar. Como nfo trouxera qualquer fonte de luz além de velas, que ‘usivamos a noite para medicar ¢ em emergéncias, nfo trabalhava apés o anoitecer. Ao invés disso, costumava juntar-me aos homens no centro ¢ ouviaslhes as converses, com crescente entendimento. As vezes aprendia coisas; freqiientemente, nada, Os ‘ homens davam informagdes voluntérias quando havia luar suficiente para escrever, © ou ocasionalmente verificava aspectos sobre 0s quais queria certificar-me de que havia um consenso, Raramerite eu era o centro da atengfo nessas reunies, que ser viam, em geral, para longas narragGées de cacadas, assuntos politicos e exercicios de orat6ria. Quando os mais idosos ism dormir, entre 20h30min e 22h, eu também me retirava, deixando 0 pétio pars’ os jovens que buscavam suas aventuras amorosas & noite, ¢ dormiam durante 0 dia mais do que os adultos ou o proprio antropélogo. Nossa casa, no raro, era muito ativa & noite, mas eu dormia profundamente ¢ per- ia todo o ir e vir sub-repticio. Os Suyd costumavam nos aoordar quando ocorria algum evento piblico tal como um nascimento, um eclipse ou uma chuva de meteo- ros, 0 que tornava vantajoso viver com eles numa mesma casa £ claro que a pesquisa de campo sistemitica era dificil em tais circunstincias. Meu trabalho era sempre algo esporddico, 0 que tinha um efeito danoso sobre os dados € prolongava minha permanéncia no campo. Sempre carregava comigo um equeno cademo, onde escrevia tudo que me interessasse e, nos longos dias de per ca, costumava pensar sobre o que aprendera ¢ anotava as perguntas que deveria f2- ze. Levantava quest®es sobre determinado t6pico e, assim equipado, costumeva t ‘roourar pelas pessoas que considerava indicadas para respondé-las. Nos primeiros meses, observei muito ¢ aprendi a lingua que procurava sempre melhorar. As coi- sas que nfo conseguia perguntar ou compreender em um més, deixava de lado, para retomé-las no més seguinte, A procura de pessoa para responder as minhas perguntas era muito diffeil e eu no gostava de me impor, pois, quando se sentem. ; pressionados, os Suyé so mesires em circunl6quios, e, quando famintos, nfo se ‘ke interessam em dar longas respostas ds perguntas. Quando satisfeitos, geralmente iam dormir. Havia vezes em.que isso nfo acontecia, ¢ eu aproveitava esses ocasi6es com a maior habilidade possivel. As vezes, ninguém com quem podia conversar s¢ en- q contrava na aldeia, e no dia seguinte eu mesmo tinha de sait para pescar. As vezes, ‘por outro lado, ficavam na aldeia e eu escrevia pdginas e péginas de material. 37 bo Nfo utilize: entrevistas estruturadas, ¢ a lista de perguntas que carregava ser- via apenas de base. E extremamente diffoll conseguir uma resposta para uma per- gunta abstrata e analitica, tal como: “Por que vooé faz isto ¢ aquilo?” Bu costuma- va fazer breves anotagGes durante as entrevista, e entSo as reescrevia do modo mais completo ¢ possivel. Usava um gravador somente para as nartativas, misice © descrigdes de ceriménias que ngo podia presencia. Nio me utlizei apenas de alguns pouoos informantes, mas sim de todos os ‘membros da aldeia. Havia individuos, contudo, que eram especialistas em certas ‘reas e cujas informagGes sempre forneciam os maiores e melhores detalhes. Cada ‘um desses bons informantes tinha uma especialidade, alguma coisa em que ele, pat- ticularmente, era bom ou que conhecia bem, e os Suys eram de extrema coeréncia nas informagoes que me transmitiam, pois embora dissessem mais sobre um deter- ‘minado assunto, nunca se contradiziam. Em relagdo a todos'os pontos importantes, eu sempre interrogava vérios informantes, especialmente no inicio, 0 que se tommou difleil de fazer porque todos concordavam que a pessoa que falava primeiro conhe- a 0 assunto melhor do que todos. Costumavam dizer que conheciam mal alguns assuntos e me indicavam outra pessoa Descobri que 0 Suyé pensam muito contextualmente, Minhas perguntas ge- zais, durante 0s primeiros quatro meses, despertavam respostas superficiais ¢ confu- sas. Contudo, durante cetimonial de nominaglo, todos os Suyd pensavam muito sobre 0 fato, as relarbes implicadas, ¢ sobre os grupos cerimoniais que desempe- i ‘nham of rituais. Quando alguém morria, todos me forneciam ricos dados sobre a morte e 0 que existe além dela. Quando acusagdes de bruxaria ocupavam 0 espirito de todos, todos se interessavam em conversar sobre bruxos. Achei muito produtivo, assim, investigar em profundidade 0 que acontecia na aldeia no momento da inves ‘ga6f0, usando virios informantes, ¢ obtendo informagSes de minha esposa sobre 0 h que as mulheres diziam, ‘Outra tética que aprendi a aproveitar foi a da casualidade do processo de des- coberta, pelo qual eu aprendia coisas novas ¢ isuspeitadas e tentava fazer todas as perguntas que podia imaginar. Fiz.0 melhor que pude para tirar 0 méximo das opor- tunidades, especialmente depois que comecei a entender o que conversavam. Sem- pre que ouvia algo, anotava em meu cademo e pedia mais tarde que a pessoa me dissesse mals sobre o assunto, e, desse modo, muito aprendi. Um homem comen- tou um dia com outro que teria boa sorte cagando porque tivera um sonho (0 que i ‘me dava acesto a simbolos on{ticos) e, em outra ocasifo, ouvi um indio pergun- : tando a outro: “Voce se transformou num péssar0 ¢ vou para 0 c6u com sua av?” ; (© que me introduzia nas visdes febris). Residir numa casa grande, com 35 pestoas, como fizemos, era uma ajuda inestimével. Também pastei muitas horas ouvindo conversas na casa dos homens e durante as reunies notumas, s Suyé, ocasionalmente, mencionavam informagdes que achavam que eu de- vveria saber, As vezes, diziam: “Vooé sabia disso ¢ disso?”... Freqientemente faziam porguntas d noite e eu tinha de me esforgar para lembrar os pontos principais,¢ ano- tar ou continuar no dia seguinte. Uma noite, um t6pico importante foi levantado desse modo por uma india, sentada préximo a rede de minha mulher, que disse: 38 “Voce sabe...” © nos deu uma lista para termos indiretos de referéneia para afins, ‘que eu nfo suspeitava existirem. Ouvir a conversa Suy4, quando conversavam entre si, era muito importante, porque, quando falavam diretamente comigo, quase sem- pre simplificavam as coisas, como 0 faziam com as criangas, ¢ s6 usavam vocabulrio que sabiam que eu conhecia. ‘A descoberta acidental de reas novas continuou nas iltimas semanas de ‘minha permanéncia, Terminei meu trabalho no porque acreditasse saber tudo, mas ‘porque sabia o suficiente a respeito das éreas que me interessavam. Fiz realmente al- ‘gum trabalho sistemético, usava fotografias de todas as pessoas da aldeia para des- cobrir como as pessoas se dirigiam e se referiam umas as outras, ¢ pesquisei a maior ‘parte dos pontos com diversos informants. Caso algo mais interessante ou relevante do que aquilo com que trabalhava acontecia, deixava tudo para observar 0 novo evento. No final, foi.g questionamento sistemético, aliado a0 que cuidadosamente ‘ouvia, que fornecen os dados para este trabalho. Minha experiéncia pessoal com os ‘Suyé foi importante, mas como acontece com toda boa Antropologia, minha expe- rincia fof um auxilio na coleta de dados mais ricos, ao invés de um obstéculo, 6, DADOS OBTIDOS E DADOS INACESSIVEIS HA certos tipos de dados que eu consegui obter e outros que nfo pude inves- tigar durante minha estada entre os Suyé. Por vérias razbes histGricas (ver Seeger, no prelo-s), os Suyé nfo viviam como acreditavam que deviam viver, pois a moradia, «a iniciagfo masculina ¢ a vida cerimonial estavam profundamente afetadas pela de- populagfo. A ideologia Suyé ndo concordeva plenamente com a prética que desen- ‘volviam desde as severas perdas populacionais. A vide cerimonial fora também afe- tada pela auséncia de certo némero de homens que participava de uma expedigf0, a pedido de Claudio Villas Boas, durante a maior parte de minha estada. Os Suyd sentiam agudamente a falta desses homens durante os perfodos cerimoniais. Foi ime possivel testemunhar certos rituals; alguns deles no aconteciam ha décadas. Fiz to- . ddas as tentativas para observar as mucangas que haviam ocorrido na sociedade Suyd, sas estes trabalhos de modo algum so reconstituig6es hist6ricas. ‘O material que nfo conseguia obter sobre a organizago social e as ceriménias cextintas era precisamente o que esperava aprender dos grupos Suya remanescentes xno rio Arinos em 1970. Foi somente aps 10 meses entre os Suyé, no Xingu, ¢ apro- ximadamente dois anos no Brasil, que soube ao certo que nao havia mais nenhum ‘grupo Suyé 4 ser estudado. Fiz 0 possivel para sanar as falhas de meus dados, atra- vés de longas entrevistas com os sobreviventes dos Arinos que tinham sido removi- dos para adi Suy, mas oe tbalo fi realmente prjuicado pr inka i possiblidade de visitar um segundo grupo Suys. Embora tent coletado um bom material sobre as acuagies de bruxari, durante minha permanéncia foi impossivel obter dados hist6ricos completos. Em sgeral, 0s Suys respondiam a todas as quest6es, mas mostravam-se muito relutantes fem repetir quaisquer “més palavras” dos bruxos no passado. Néo pude coletar ricos dramas sociais, pois a maior parte dos mesmos gira em torno de acusagdes de bruxt tia, Somente os bruxos falavam “ids palavras”, e até mesmo repeti-las representa- 39 ea va algo de mau, Os Suyé também nfo quiseram cantar duas de suas canoes, porque © préprio ato de tocé-las num gravador representava uma ameaca a aldeia, pois pro- vocaria 0 ataque de indios inimigos. Permitiram-me gravar cantos que podiam preju- dicar somente os individuos, ¢ mesmo assim longe da aldeia, mata adentro, com a condiggo de nfo as tocar enquanto permanecesse no Xingu. Os Suyd ensinaram-nos tudo 0 que puderam, foram bons companheiros, € juntos passamos bons ¢ maus momentos. Foi um poyo paciente e generoso 0 que me treinou para ser um antropélogo ¢ um pouco Suyd. Orgulhavam-se de nosso pro- ‘sress0 ¢ preocupavam-se quando adoeciamos. O aprendizado freqiientemente se fa- ia em duss diregbes; ds vezes eu respondie a tantas perguntas quantas perguntava, €

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