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POLARIZAÇÃO
Augusto Cezar Barbosa Figliaggi
RESUMO
Pensando na linguagem das Histórias em Quadrinhos enquanto Artes e que as artes são
extremamente passíveis de serem analisadas pelo recorte da Semiótica da Cultura, o
presente trabalho se propõe a se atentar a observância sobre como certos conceitos dessa
disciplina semiológica se comporta nessa linguagem artística, mais especificamente
como agem a idéia de segunda-realidade e da polarização no âmbito da produção das
Histórias em Quadrinhos. Pensando principalmente em como, ao mesmo tempo em que
se origina desse ambiente imaginário, as HQs também alimenta esse universo de idéias.
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Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia. Disponível em <http://www.cisc.org.br/linhas/>.
Acesso em 10 julho de 2010.
desses manifestos são as Histórias em Quadrinhos. Os Quadrinhos mesclam códigos
imagéticos a elementos da escrita para criar uma linguagem artística que, como todo
manifesto das artes, é reflexo dos elementos culturais de uma determinada sociedade,
mas ao mesmo tempo em que reflete esses códigos, também os reafirma. Criando um
ciclo que se alimenta do corpo social e ainda assim, o nutre.
Existem variadas maneiras de referenciar-se às Histórias em Quadrinhos, alguns
a tratam como Arte Sequencial2; outros preferem Banda Desenhada3, outros utilizam
ainda a abreviação como HQ, mas todos referem-se ao mesmo manifesto artístico. Um
manifesto que se articula em elementos comuns para comunicar seus signos, isto é, faz
uso de uma mesma estrutura sígnica no processo de comunicação. São vários os
recursos que pertencem especificamente a essa linguagem; como o requadro, que
seriam as supostas molduras que evidenciam o desenho que compõe um plano da cena
da narrativa, e limitam esse desenho para que a narrativa passe ao outro, é o
“quadrinho” em si; ou os balões, que são os elementos imagéticos que indicam como o
enunciado de determinado personagem da história se pronuncia; os elementos que
pertencem de maneira particular à linguagem das Histórias em Quadrinhos compõem
uma estrutura simbólica desse manifesto artístico, estrutura essa que leva o espectador
deste tipo de arte, uma vez iniciado neste processo, a compreender os elementos
simbólicos e criar em seu intelecto toda uma maneira de relacionar-se com esses signos.
Abordando essa estrutura à luz da Semiótica da Cultura, ela é colocada como um
sistema modelizante de segundo grau. Isto porque a linguagem (neste momento
entende-se como linguagem o idioma que unifica determinado grupo social) seria um
sistema modelizante de primeiro grau; e é a partir da língua que se configuram as
estruturas de um sistema secundário. Irene Machado aponta essa relação entre os
sistemas da seguinte maneira:
2
Como Will Eisner em sua obra Quadrinhos e Arte Sequencial, 1999; ou Scot McCloud em reiventando os
Quadrinhos, 1995.
3
Esta maneira de referenciar-se é bastante comum em Portugal, mas também utilizada por brasileiros, como é o caso
de Moacy Cirne, em seu livro História e Crítica dos Quadrinhos Brasileiros
São as presenças dos elementos exclusivos dessa linguagem artística que
colocam as HQs como um sistema modelizante independente, que atua de maneira
específica na recepção de seu conteúdo. A apreensão de uma narrativa de História em
Quadrinhos só é completa, ou o mais próximo que se pode chegar dessa completude, se
todos os signos incluídos na narrativa forem aprendidos. As palavras observadas
separadamente das imagens figurativas, ou as figuras separadamente dos requadros ou
outros elementos visuais mais abstratos, não surtem o mesmo efeito. Desse modo é
colocada a Arte Sequencial como uma linguagem artística que atua relacionando
diferentes aptidões cognitivas do receptor, pois trabalha com a linguagem verbal (texto
escrito) e imagética. Uma compreensão sobre essa maneira específica de fruir as HQs é
oferecida por Andraus quando aponta:
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Que estabele principalmente a tríade de signos: ícone, índice e símbolo
ícones não demonstram. Construindo quase uma realidade paralela, ou, ao menos,
reafirmando uma realidade paralela já existente em sua mente. Mc Cloud aponta que um
dos espaços em que a mente do leitor mais age é naquilo que não está construído com
imagens ou textos nas Histórias em Quadrinhos. No exemplo mostrado na figura 01 ele
apresenta dois quadros de uma história, e faz o seguinte apontamento:
figura 01
“Neste exemplo, posso ter desenhado um machado erguido, mas não sou eu
quem desfere ou decide o impacto do golpe, nem quem gritou ou porquê.
Esse, caro leitor, foi seu crime especial. Cada um cometeu de acordo com seu
próprio estilo. Matar um homem entre os quadros significa condená-lo à
milhares de mortes.” (McCloud 1995, p.68)
Assim sendo, essa segunda realidade é uma invenção mental que se opera sobre
as circunstâncias dadas pela primeira realidade. Uma surge, quase como uma resposta à
outra.
É evidente que na Arte Sequencial, por mais que o crime seja cometido com essa
cumplicidade com o leitor, o quadrinista propõe um certo controle sobre o que será
pensado entre um quadro e outro, pois, por mais que um símbolo dê margem para
distintas interpretações de como o crime foi ocorrido, é a partir de outros elementos
também simbólicos que esse assassinato é montado. Ou seja, um símbolo como o
requadro, que seria o espaço entre os quadros de uma HQ, permite dar lugar a uma série
de particularidades sobre como ocorrera a ação entre os quadros, mas ainda assim leva à
idéia básica de que alguma ação acontecera entre uma cena e outra. Isto é, ainda que não
se saiba o quê, algo acontece naquele espaço. Sabe-se disso, pois um símbolo sempre
representa algo que não está ali naquele momento, então, ainda que a ação não apareça e
não permita saber como ela aconteceu, ou o que aconteceu exatamente, sabe-se que algo
ocorreu. Essa natureza do símbolo é colocada por Bystrina como natureza do signo em
si, quando observa:
“O signo tem que ser capaz de ser percebido pelos sentidos, tem de ser
produzido por seres vivos – animais ou homens – e recebido e interpretado
por receptores igualmente vivos. Cada objeto conhecido por nós contém em
si uma informação latente, que nós percebemos pelos nossos sentidos. Neste
momento, aquela informação latente modifica-se e se transforma numa
informação atualizada. Por isso, tudo o que percebemos já é uma informação
atualizada do objeto. Os signos são objetos especiais porque não contêm
apenas informações sobre si próprios, mas também informações sobre aquilo
que está imanente dentro dele” (BYSTRINA, 1990, p.02-03)
Desse modo, a idéia do herói, ainda que surja no pensamento individual, vêm
das referências coletivas, ou seja, vem do social, ou ainda, do cultural. Vêm da segunda
realidade instaurada e pretende ser uma opção de superação diante do mal dominante. O
herói abarca a idéia do pólo positivo diante da assimétrica disputa com o negativo. Nas
tradicionais histórias do Super-Homem5, ele está em constante embate não apenas com
um inimigo, mas vários; idem com Capitão-América6, que enfrenta tropas de inimigos
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Personagem criado por Joe Shuster e Jerry Siegel, sua primeira aparição foi em 1938 na revista Acton Comics n. 01.
Atualmente o personagem é propriedade da editora DC Comics.
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Personagem criado por Joe Simon e Jack Kirby, sua primeira aparição foi em 1941 na revista Captain America
Comics n. 01. Atualmente o personagem é propriedade da Empresa Walt Disney Company.
inteiras. A idéia da simbologia é presente nesses personagens, e remontam todo o
referencial que habita mentes que os criam, os dois foram criados por autores dos
Estados Unidos, e trazem em seus uniformes as fortes cores da bandeira desse país.
Curiosamente um dos criadores do Capitão América é judeu, Jacob Kurtzberg,
conhecido como Jack Kirby (McCloud, 2006, p. 109), e sua criação é um herói que luta
contra os nazistas em suas primeiras histórias. Quase como uma resposta material para
as possíveis vontades imateriais que habitavam a segunda realidade do autor. Nos idos
da Guerra Fria, o principal inimigo deste mesmo herói é um vilão chamado Caveira
Vermelha, que habita a Rússia, o próprio nome do vilão faz alusão ao comunismo. Mas
uma vez, a idéia de símbolos específicos remonta um imaginário que culminam em
obras não-imaginárias.
Assim sendo, o objetivo não é a discussão acerca das operações de interesse do
autor, em colocar sua visão sobre outras; e nem questionar se, naquele momento, as
editoras que publicavam tais obras faziam uso delas como estratégias maniqueístas; mas
sim perceber como o ciclo material/imaterial ocorre a partir das Histórias em
Quadrinhos. Em suma, um determinado sujeito capta ou sofre da realidade material as
mais variadas situações referenciais que criam em seu intelecto todo uma existência
ideal (segunda realidade). Esse universo de idéias entra em contato com outros
universos de idéias, e sujeitos que compartilham um mesmo mundo imaginável, acabam
compartilhando símbolos comuns, caso esses símbolos pertençam ao modo específico
de se produzir algo, esse “algo” torna-se uma disposição de estruturas (sistema
modelizante de segundo grau). Esse sistema, que foi criado a partir do mundo ideário,
também o alimenta, criando um ciclo cultural. Ou seja, aquilo que é refletido também é
o que é construído. O seu reflexo é o que te constrói.
REFERÊNCIAS
CIRNE, Moacy. História e Crítica dos Quadrinhos Brasileiros. Rio de Janeiro: Ed.
Europa: FUNARTE, 1990.
EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Sequencial. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
PEIRCE, Charles S. Semiótica. Tradução: J. Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Ed.
Perspectiva, 1999.