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Franz Kafka

NAS GALERIAS
Seleção, apresentação e tradução
A parede e o sangue dela FLÁVIO R. KOTHE
http://aparedeeosanguedela.blogspot.com

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Estação Liberdade
© Tradução de Flávio R. Kothe
Editora Clube do Livro Ltda.
Estação Liberdade
Rua Fagundes, 61 - Fone: (011) 279-2185
São Paulo - SP - CEP 01508
Fundador: Mário Graciotti

Responsabilidade editorial: Jiro Takahashi


Supervisão editorial: Maria Carolina de Araújo (Sintagma Editorial)
Revisão: Cássio de A. Leite
Capa: Juan José Balzi
Ilustração de capa: "No circo", de Juan José Balzi

MEC / UFF
NDC / DST
SEÇÃO D£ AQUISIÇÃO DE LIVROS I
" H á muita esperança,
só não para nós."

Kafka
Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Kafka, Franz, 1883-1924.


Nas galerias / Franz Kafka ; seleção,
apresentação e tradução Flávio R. Kothe. São Pau-
lo : Estação Liberdade, 1989. ;

1. Ficção alemã I. Kothe, Flávio R. II. Título.

89-1523 CDD-833.91

Índices para catálogo sistemático:

1. Ficção: Século 20: Literatura alemã 833.91


2. Século 20 : Ficção: Literatura alemã 833.91
SUMARIO

Formas da contradição em Kafka


(por Flávio R. Kothe) 9
A sentença 25
Um relato a uma academia 37
Um cruzamento 46
A ponte 49
O silêncio das sereias 51
Prometeu 53
O abutre 54
Pequena fábula 56
Das comparações 57
Na colônia penal 58
Uma página antiga 88
Ante(s) (d)a lei 91
Sobre a questão das leis 93
Onze filhos 96
Uma pequena mulher 101
Nas galerias 109
Um artista da fome 111
Josefina, a cantora, ou O povo dos ratos 122
A verdade sobre Sancho Pança 140
O Autor 141
Cronologia dos textos 142
Formas da contradição em Kafka

Toda narrativa tem por fulcro um conflito, que é sempre


expressão de uma contradição existente na sociedade. Se a mani-
festação e a administração dos conflitos sociais constituem a polí-
tica, também o fulcro da narrativa é o político.
Como se dão e se encaminham essas contradições nos tex-
tos de Kafka aqui reunidos?
Em "A sentença" tem-se primeiro uma rivalidade implícita
e depois um antagonismo explícito entre pai e filho, o que acaba
sendo "resolvido" com o suicídio, ou melhor, com a execução
da sentença que o pai profere contra o filho, às vésperas de seu
próprio aniquilamento natural. Se aí o filho é como que castrado,
primeiro, para depois ser liqüidado pelo pai, que o condena à
morte, em "A metamorfose" (escrito de 18 de novembro a 12
de dezembro de 1912 e publicado em 1915), ele morre enquanto
gente, logo no início da história, como decorrência da explora-
ção e alienação a que é submetido.
Já no começo da narrativa, Gregor Samsa aparece trans-
formado num monstruoso inseto só que ele não acredita de ime-
diato no que lhe aconteceu: imagina que se trata de um pesa-
delo, trata de dormir mais um pouco etc. Sua metamorfose é
paulatina: se o corpo já se alterou, a voz ainda se mantém
humana, embora com um leve ruído diferente, para aos poucos
ir-se tornando cada vez mais ininteligível até chegar ao incom-

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em nível de conteúdo, no entanto, todo o relato gira em torno
preensível. Nesse processo, há um momento em que Samsa res- de Gregor Samsa, mas não só enquanto protagonista, pois até
ponde de dentro do quarto para o gerente (que está do lado de o modo de os outros serem designados (o pai, a mãe, a irmã,
fora) e já não se sabe mais se, igual ou ao contrário do leitor, o chefe) está de acordo com a perspectiva dele. Assim, as cate-
foi possível compreender o que ele disse, embora suas assertivas gorias analíticas da retórica, teoria e crítica literárias mostram-
anteriores tenham sido entendidas. Ainda que os demais não se insuficientes diante, da estrutura e natureza dialética dessa fic-
saibam disso, Gregor continua entendendo tudo até o fim. Eles ção. Nela não ocorre, porém, apenas a metamorfose do homem
não entendem que ele entenda, e isso já os transforma de certo em animal, mas também o inverso.
modo em insetos, e faz com que ele, sob uma aparência de "Um relato a uma academia" tem por personagem-narra-
inseto, alcance um estágio mais alto de humanidade e consciência. dor um macaco que, após ser caçado, consegue transformar-se
Gregor Samsa acordar, certa manhã, metamorfoseado em em humano: relata a uma academia de ciências como aprendeu
inseto não é nenhuma ficção ou mera metáfora subjetiva: é a se comportar e a falar como gente. Só que o comportar-se
pura realidade. Fantástico é apenas que nem ele nem os outros humanamente começa com o cuspir, o fumar e o beber. O ensino
percebam que já estão transformados em insetos antes mesmo lhe é ministrado por um marujo à custa de queimaduras. Mais
de Gregor aparecer sob a forma de inseto. A objeção de Lukács tarde, os homens é que o servem: típica nesse sentido é a cena
— a de que falta uma certa moldura para essa abrupta alegoria em que ele se refestela junto da escrivaninha, enquanto seu
— diluiu-se, no entanto, diante do fato de que os índices dessa gerente aguarda instruções. Ele, o ex-macaco, é o senhor da
moldura vão aflorando a cada passo, ao longo da narrativa, fala; os homens da ciência estão reduzidos ao silêncio do ani-
da totalidade em que essa metamorfose encontra sua justifica- mal (assim como o estão os leitores, que aparentemente podem
tiva e explicação. Gregor é explorado não só no trabalho como sentir-se acima dos acadêmicos, mas se encontram ironicamente
também na família: sob a aparência de bondade, rodeia-o de na mesma posição de suposta superioridade).
fato o puro interesse financeiro. Há inclusive uma dívida do Esse mundo às avessas, essa carnavalização, ao fazer do
pai para com o chefe de Gregor, que o prende ao serviço e que macaco um humano, também mostra os homens como animais,
poderia ter sido resgatada com o dinheiro secretamente guar- colocados como que na jaula do zoológico para a qual destina-
dado pelo pai. No entanto, quando fica sabendo disso, ao invés vam o macaco-narrador. O macaco macaqueia o homem, mas
de revoltar-se contra o pai, Gregor acaba por aceitar a safadeza o homem se torna macaco do macaco. A rigor, uma estranheza
como sabedoria. E não consegue sair jamais de seu estado de permanente os separa, assim como se instaura uma estranheza
inseto. do ex-macaco diante dos outros macacos (o que se revela na rela-
Não se tem aí, contudo, apenas uma animalização (ou inse- ção dele com a macaquinha, que não é explorada nesse conto,
tização) de um homem, pois enquanto inseto monstruoso ele pois faria seu tom cômico naufragar na tragédia da solidão abso-
consegue ser o mais humano dos personagens. A rigor também luta e da estranheza sem remédio). Temas filosóficos fundamen-
não se pode falar de uma antropomorfização de um animal, tais relativos à especificidade e superioridade do homem são tan-
pois esse animal era e continua sendo um humano (pois pensa, gidos ao longo do texto: a sabedoria enquanto desistência de
sente, entende). Na forma aparente, os demais personagens não qualquer teimosia (ou persistência ou auto-afirmação), a pene-
se transformam em insetos, mas no fundo, por seus gestos, com- tração no mundo humano como submissão a um jugo, o humano
portamentos, pensamentos, eles são todos insetos (só que não como reino da necessidade e não da liberdade, a liberdade como
sabem que são e agem como se não fossem, o que os reduz ainda puro reconhecimento da necessidade mais premente, o livre-arbí-
mais a insetos). De um ponto de vista formal, "A metamorfo- trio como mera tentativa de encontrar uma saída, o aprendi-
se" é uma narrativa em terceira pessoa com narrador onisciente;
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zado como coação e não como opção, a opção como aceitação as errâncias de Odisseu são vistas como uma alegoria da pró-
da alternativa aparentemente menos ruim etc. pria marcha civilizatória). As sereias têm, no entanto, uma
É claro que o fato de Kafka pertencer à minoria de uma arma ainda mais poderosa do que seu canto, ou seja, seu silên-
minoria, a um grupo social reprimido dentro de outro grupo cio: ninguém resistiria à sensação de vitória por ter superado a
social reprimido, tendo ao mesmo tempo a cultura do domina- quem homem nenhum conseguira superar. Para enfrentar Odis-
dor austríaco, é o substrato social dessa relação entre um ex- seu, contudo, elas não cantam nem apenas negam o canto pelo
macaco e os representantes oficiais do saber. O ex-macaco do silêncio: negam a negação, superam ambas as posições, ao nem
conto é um absoluto solitário: não é nem propriamente um ser cantar nem silenciar, mas apenas fazer de conta que cantam.
humano (afinal, guarda ainda as características físicas de um Elas, as sedutoras, estão encantadas com Odisseu, mas este con-
macaco) nem é mais um autêntico macaco (já porque fala e se tinua intimamente encantado com sua antiga esposa; é a ela que
comporta igual a um ser humano). Essa contradição irresolúvel está buscando; ela é a sereia pela qual está seduzido. Ele, que
(exceto pela morte) não aparece como tragédia, pois é abordada deveria ser seduzido, não pode ser seduzido (mas por causa não
como comédia. O narrador precisa mostrar-se vencedor, como de recursos externos e sim de sua constelação interna). Numa
alguém que deu a volta por cima, e não como alguém que não reversão total da tradição, o seduzido seduz, as sedutoras são
sabe de que forma sair do encalacramento. seduzidas. Mas se a cera e as correias são um modo de Odisseu
Não é esta, porém, a perspectiva final de "Um cruzamen- neutralizar o poderio do canto das sereias, enquanto negação
t o " : o animal, meio-cordeiro e meio-gato, com feições e com- do canto ele tem sua eficácia renegada pelo texto. Essa negação
portamentos de cordeiro e de gato, é um ente absolutamente sin- da negação é, contudo, superada pelo adendo, no qual se afirma
gular, diferenciado, que não reconhece semelhantes. Pode até que Odisseu sabia que seus truques eram insuficientes: ele teria
tentar comportar-se como cão ou ser humano, mas a única "so- apenas fingido apostar neles para, assim, enganar a Deusa do
lução" para essa antinomia sem síntese possível a aparecer no Destino. Ocorre, então, uma espécie de superação negativa da
conto é a faca do açougueiro. negação da negação, de um modo semelhante ao que ocorrera
Do mesmo modo, "A ponte" — figura típica de ligação com as sereias quando não cantavam nem apenas silenciavam,
entre extremos opostos — não resiste às tentativas de apalpá-la mas silenciosamente fingiam que cantavam.
e testá-la: acaba se rompendo e se aniquilando junto com aquele "Prometeu" também retoma criticamente a tradição clás-
que a vai utilizar. A posição dela, nas alturas, em lugar remoto, sica grega, reinterpretando o mito, colocando diversas alternati-
fora dos mapas, representa de certo modo a própria consciência vas ao conflito entre esse deus e Zeus. O que Kafka não leva
de Kafka enquanto criador literário, mas corresponde também em conta é a solução — tão importante para o mito e para
ao que representa a tensão antinômica nesse animal meio-gato Marx — de que esse deus, que foi castigado por ter tentado sal-
e meio-cordeiro ou no Samsa-inseto, incapaz de conviver com var a humanidade dando-lhe o princípio civilizatório do fogo,
gente ou de encontrar insetos semelhantes. sabia que um dia ainda seria salvo por Hércules, a corporifica-
"O silêncio das sereias" é uma obra-prima de alegoria dia- ção da força bruta da humanidade. Nas versões de Kafka, ao
lética. Primeiro é rememorado o célebre episódio da Odisséia, invés de se ter a esperança implícita de que o operariado viesse
o encontro de Odisseu com as sereias. Mas a versão clássica é um dia a liberar e libertar a própria possibilidade de o homem
logo negada como impossível de ser sustentada, pois recursos atingir um estágio mais elevado de desenvolvimento, aparece a
como cera e correias não seriam capazes de resistir ao poderio hipótese de Prometeu confundir-se com a rocha, de ocorrer o
do canto das sereias (que, na tradição da cultura alemã, são vis- olvido ou o cansaço de tudo, mas, mesmo que o conflito se
tas como apelo à regressão a um estado de natureza, enquanto resolvesse assim, diz ele, restaria sempre o inexplicável testemu-

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nho da montanha rochosa. Constrói-se assim um enigma, ao juntar margens opostas, levando contudo ao despedaçamento
invés de uma solução para os caminhos do homem. total, que é, aliás, o que normalmente ocorre como bad end
Em "O abutre", numa versão talvez em tom menor e até nas histórias de Kafka, fazendo dele um autor antitético à narra-
parodística da águia que ataca o deus grego, a vítima tem ape- tiva trivial.
nas, no momento, a possibilidade de optar pelo menor dos "Na colônia penal" trata de uma sofisticada máquina de
males, já que não consegue evitar o ataque: prefere sacrificar tortura e aniquilamento, destinada a eliminar todo elemento
as botas e, depois, ainda os pés, para não perder o rosto, parte que, naquela comunidade, possa representar, real ou suposta-
mais nobre e vital. Optar pela radicalização, tentando matar a mente, alguma espécie de contradição. Só que a natureza bár-
ave, quando não haveria condições para sustentar isso, acaba bara, autoritária e arbitrária desse tipo de punição acaba desper-
se mostrando um comportamento suicida: exige na verdade um tando por si mesma sua oposição e negação. Todos se afastam
longo tempo de preparo e ajuda de mais alguém, mas o poder da máquina, não assistem às execuções, e o novo comandante
vigente, ao sentir-se de algum modo ameaçado, radicaliza e des- não é favorável a ela. Nessa constelação de confronto entre os
fecha o ataque. É um ataque mortal, em que os dois pólos da favoráveis e os contrários à máquina, a presença do viajante
contradição se aniquilam mutuamente. torna-se estrategicamente importante, pois ele é encarado como
Na "Pequena fábula", um camundongo fala da imensi- corporificação da ciência. Ele se torna o elemento catalisador
dade do mundo e da sensação de segurança oferecida pelas pare- que desencadeia uma total reversão, pela qual o condenado é
des. Prevê que logo adiante uma armadilha o espera. Ouve-se solto na hora de ser executado, enquanto o carrasco se torna
uma sábia voz dar-lhe um conselho fraternal, mas é a voz de réu e, enquanto juiz, aniquila a si mesmo sem encontrar a alme-
seu inimigo natural (e nele o pequeno inocente havia confiado). jada paz. Assim, o conflito parece resolver-se com a eliminação
O vôo da coruja de Minerva dá-se ao entardecer, depois do de um dos pólos da contradição, mas a promessa de ressurrei-
transcurso dos acontecimentos — só então é que se fica sabendo ção do antigo comandante, inscrita como ameaça em sua lápide,
como se deveria ter agido antes, para não cometer tantos erros mantém o conflito, ainda que se tenha tido um percurso pelo
nem sofrer tamanhos prejuízos —, mas essa sabedoria de nada qual o dominante de antes torna-se o dominado de agora (po-
adianta para o camundongo, pois sua própria existência é o dendo haver, portanto, a reversão novamente, fazendo o domi-
preço por ele pago. A vida dele se acaba, assim como se ani- nante de agora tornar-se o dominado depois). O protagonista
quila e finda o texto (e este começa a existir no leitor assim trata de escapar desse inferno, encerrando-se assim essa narra-
como o camundongo dentro do gato). A contradição antagô- tiva. Não se tem aí o modo como a história costuma resolver
nica entre gato e camundongo acaba aqui — ao contrário do seus conflitos: pela ação organizada, sistemática, de todos os
que acontece na narrativa trivial, em que o ratinho sempre vence que partilham de um ideário contra aqueles que partilham de
o poderoso gatão — de seu modo mais lógico e natural: com a outro. Essa possibilidade chega a aparecer, contudo, na obra
derrocada da parte mais fraca. Ao invés de fomentar a ilusão, de Kafka.
a ficção aqui é, em seu realismo, resplendor da verdade. "Uma página antiga" pode ser um reflexo da presença aus-
"Das comparações" tem por tema exatamente o jogo entre tríaca em Praga, mas nem por isso deixa de ser uma alegoria
o sentido literal e o metafórico, mas isso de um modo tão sagaz de toda a situação de quando um país se encontra dominado,
e astuto que repete o enigma contido em cada uma das histórias, inclusive nós mesmos hoje. Estrangeiros chamados pelo palácio
fazendo com que aquilo que parece uma vitória, no sentido lite- dominam a população e intimidam os soldados do país. A popu-
ral, seja uma derrota, no sentido metafórico, e vice-versa. lação é incapaz de se defender diante desses nômades agressivos
Como se viu, "A ponte" é a própria alegoria da tentativa de e armados. Estes aparecem de modo caricato: seus cavalos

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comem carne junto com os donos e são capazes de comer um Para o povo, torturado sob leis que não conhece, resta então
boi vivo. Essa caricatura que permite o cômico é, por sua vez, — segundo o texto — procurar registrar os comportamentos
possibilitada pelo fato de se ter como que um deslocamento dessa aristocracia para descobrir quais são essas leis e sua juris-
para uma situação "antiga" de algo que, enquanto atualidade prudência, tratando assim de sofrer menos. A possibilidade de
e contexto, talvez tenha mais aspectos dolorosos. Quem deveria que elas possam ser fundamentalmente a defesa dos interesses
enfrentar os estrangeiros, ou seja, o rei com seus soldados, não c privilégios dessa classe dominante, à base da exploração do
o faz, mas apenas contempla complacente a exploração e o ter- trabalho do povo, é algo ironicamente descartado como sendo
ror a que o povo é submetido; quem acaba sendo obrigado a coisa fantástica demais para ser acreditada. Um pequeno par-
se defender dos estrangeiros — os artesãos e comerciantes ofen- Lido afirma, como consciência-limite, que lei é tudo aquilo que
didos em seus interesses — não tem condições de fazê-lo. Tam- a aristocracia faz (ou aquilo que faz a aristocracia), mas ele
bém não é possível conversar com os estrangeiros, pois sua lín- reconhece, em última instância, o direito à existência da aristo-
gua de gralha é ininteligível, e eles não estão nem um pouco inte- cracia, e isso o torna menos atraente (como se, paradoxalmente,
ressados nas instituições locais. Repete-se assim a situação pro- o partido mais radical não tivesse mais adeptos por não ser bas-
posta como fábula em "O abutre". tante radical).
"Ante(s) (d)a lei" configura semelhante conflito: alguém Conforme outra formulação, se a única lei que de fato se
quer resolver uma situação, a solução parece estar logo adiante, conheceu é a da aristocracia (já que, em termos marxistas, toda
ele tenta alcançá-la de vários modos, mas jamais consegue. Tal- lei sempre foi uma lei que serviu para assegurar a dominação
vez precisasse ter tido a coragem que, em "O abutre", o prota- de classe e a exploração do homem pelo homem), como seria
gonista teve ao admitir a possibilidade da ação armada (mas então possível lutar por algo que ainda acabaria sendo lei, mesmo
do outro, para benefício próprio, esperando que o outro fosse que aparentasse ser a lei da igualdade efetiva de todos perante
resolver seu problema). Ao não assumir o risco de enfrentar os a lei? Não sendo suficiente a igualdade formal de todos perante
possíveis perigos, ao ficar aguardando as soluções, o protago- a lei, então a lei de fato igualitária precisaria primeiro deixar
nista fica ante a lei, diante da lei, porque está antes da lei, aquém de ser "lei". Ela precisaria ser, por exemplo, um princípio a
da lei: ele não chega até a lei, ele só aceita a lei do outro como que todos aderissem sem coação nem coerção. Assim se postula
a sua própria, ele mesmo não tenta fazer a lei. Daí o título suge- a questão da utopia. Se,a utopia — com sua "lei" ideal, numa
rir-se como "Ante(s) (d)a lei". estrutura e organização social completamente diversas das que
"Sobre a questão das leis" recoloca de modo magistral a humanidade viveu até hoje — fica intrinsecamente marcada
esse problema nevrálgico. Mais do que um sofisma jurídico, pela esperança nela projetada a partir da negatividade do exis-
formula um sofisma político-ideológico. Numa comunidade, as tente, então ela resguarda pelo avesso essa negatividade que,
leis supostamente existentes são todas da aristocracia (que não junto com a esperança, nela foi posta. Não deveria, portanto,
se confunde aí com a nobreza feudal, mas com a elite domi- ser concretizada; no entanto, não havendo sua concretização,
nante de qualquer sociedade de classes). As leis não são explíci- também não haveria aquilo pelo qual lutar, aquilo que postu-
tas nem claras; elas são um segredo da aristocracia, dos donos lasse a diferença efetiva entre o existente (repleno de negativi-
do poder (não basta o princípio formal da igualdade de todos dade nos mais surpreendentes lugares) e aquilo que deveria exis-
perante a lei e o da transparência jurídica para se ter superado tir. Inclusive a aristocracia está ainda contida no gesto de um
esse quadro, pois ele pode se recolocar no princípio de que partido que se coloque como vanguarda de libertação das mas-
"para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei"). Não só as leis sas. Só que a posição de parte do povo — querendo esperar
são segredo da aristocracia, mas também a interpretação delas. ainda por séculos que se forme um acervo amplo dessas leis e

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de suas interpretações ditadas pela aristocracia — não permite defeitos graves: a própria proximidade consangüínea acarreta
que qualquer partido possa colocar-se de um outro modo que proporcional afastamento (e, ao mesmo tempo, permanente pro-
não seja a repetição e a reprodução do próprio princípio aristo- ximidade apesar da distância).
crático. Semelhante "contradição do amor" ocorre no conto "Uma
O que esse texto não mostra, contudo, é o fato de que a pequena mulher", que gira em torno de uma mulher que odeia
história não pára por causa de um impasse teórico, de um sofisma mortalmente o personagem-narrador: seja lá o que for que ele
(uma vez que, de algum modo, ele não deve ser expressão da rea- faça ou deixe de fazer, ela o odeia. Ela é uma alegoria do ódio
lidade objetiva). A história não opera segundo uma lógica isenta absoluto: racial, político, ideológico, pessoal. Ele inclusive pro-
de contradições: ela admite a hipótese de uma aristocracia, uma cura modificar-se, poderia até mesmo tentar suicidar-se, mas
elite, liderar uma revolução destinada a liqüidar a superioridade tudo se torna sempre novo motivo de ódio; e a hipótese de que
de uma classe sobre outra e, portanto, a própria classe enquanto esse ódio seja amor às avessas precisa ser também descartada.
tal. O texto de Kafka estaria errado em seu horizonte por demais Essa contradição entre os dois personagens se coloca de um
limitado se a ironia a ele subjacente e a permear todos os seus modo tão profundo e tão sem remédio quanto o antagonismo
poros não acenasse com um horizonte de consciência que se intrínseco ao animalzinho que era meio-cordeiro e meio-gato.
encontra além de tudo aquilo que nele está dito, mas que, ao Só o aniquilamento final dos dois pólos da contradição enquanto
mesmo tempo, se encontra em cada um de seus momentos. tais é que se mostra capaz de resolver isso de algum modo.
Ainda que não tenha sabido formular os caminhos políti- O conflito é o cerne de todas as narrativas de Kafka, sem
cos da revolução, Kafka buscou no seu tempo a informulada que jamais se encontre nelas (a não ser ironicamente) a solução
lei que leva à morte, criticou a alienação capitalista e o arbítrio positiva, ingenuamente otimista, que caracteriza a estrutura pro-
das oligarquias, embora já tenha sido visto apenas como um autor funda das narrativas triviais (onde o Mal é extinto e o Bem ven-
sionista ou predestinado a combater avant la lettre a "burocra- cedor, onde mais forte que o ódio é o amor, onde o bandido é
cia stalinista". A publicação de seus escritos burocráticos revela liqüidado e o mocinho impõe a boa ordem, onde o esforçado
que, por sua própria atividade profissional — tratar da questão rapaz acaba casando com a bela moçoila: e é disso que o povo
do seguro trabalhista e em especial de acidentes no trabalho gosta, pois de ruim já chega a realidade). Qual é então a posi-
numa época em que essa assistência social não era garantida e ção da arte? Qual deve ser a postura do artista? Que tipo de
estava na ordem do dia das reivindicações operárias —, Kafka obra deve ser produzida?
estava no cerne da luta de classes de sua época. Mas a vida con- "Nas galerias" é um texto curto, mas de construção com-
creta na produção aparecia para ele sob a forma de processos plicada, com parágrafos longos cheios de orações intercaladas
burocráticos, sob a forma de papel, de fantasmagoria. Isso é e um sutil jogo entre o ficticiamente real e o apenas suposto.
determinante de seu modo de produção literária. Que a contra- Há dois diretores do circo: uma vez o tirano; outra, o pai.
dição entre burguesia e proletariado seja, em última instância, Qual o verdadeiro? Duas amazonas aparecem a cavalgar num
antagônica, pode encontrar sua manifestação em diversos tipos picadeiro de circo: uma, hipotética, é decadente e tuberculosa;
de enredo e personagens, por maiores que tenham sido os deslo- a outra, efetiva, é jovem e bonita. Ambas são, também, alego-
camentos do contexto para o texto e vice-versa. rias do artista daquela época, espelhos em que um espectador se
"Onze filhos" é um conto em que um pai passa em revista vê, possivelmente um alter ego do autor. A primeira amazona
seus filhos, como que salmodiando alegoricamente e em tom - a real? — é descartada (como se descarta a arte da negativi-
menor os onze povos de Israel. Por maiores que sejam as quali- dade, a arte "doentia") na realidade, pois show is business, e
dades de cada um deles, o pai reconhece em cada um diversos o espetáculo precisa ser atraente para ser vendido (embora não

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precise ser nem seja verdadeiro: ao contrário, possui algo que doxos: torna espetáculo, destinado a atrair multidões, algo que
efetivamente não há nele em tal grau, supremo perigo). Como por natureza é deprimente (mas como poderia a arte deixar de
as relações de poder desse sistema só permitem que a segunda ser doentia se reflete uma sociedade doente?); faz com que
cavalgue, revestindo-se de todo um fingimento de perícia e peri- várias pessoas possam comer e se divertir, enquanto ele mesmo
culosidade através da encenação não só do empresário e diretor, não come nem sequer se diverte; a culminância na perfeição
mas de todos os auxiliares e da própria amazona, não chega a dessa arte significa o aniquilamento do artista. É provável que
ocorrer para o público o surgimento da verdade, não se consuma a gênese mais ou menos inconsciente desse conto derive da remu-
a interrupção dessa deprimente palhaçada (coisa que só poderia neração do artista enquanto artista: como tal, o escritor se encon-
eventualmente ocorrer se a primeira amazona, a hipotética, de tra condenado a morrer de fome. Há um profundo sarcasmo
fato aparecesse assim). Se a verdade da segunda amazona é a no gesto de se investir na pele de um faquir, que, dispensando
primeira (como no caso do diretor), o engodo encenado como qualquer vigilância, tinha, por ponto de honra, passar fome e,
arte não consegue, apesar do resplendor, superar a caricatura, por ideal, bater todos os recordes de jejum. Depois de morto,
a paródia dessa paródia, e sem que se tenha, contudo, uma ter- o faquir é substituído na jaula por um jovem macho de pantera:
ceira amazona em que a arte pudesse resplandecer em toda a assim como aquele era um ser para a morte, este último é um
sua plenitude. Será que o espectador apenas chora sem saber ser para a vida. Ambos estão em absoluto contraste, mas a obs-
que chora; será que chora por não saber, ou, porque sabe a dife- tinação do jejuador em superar todos os limites conhecidos e
rença entre realidade e aparência, acaba chorando solitário? tolerados nessa arte acaba sendo também manifestação suprema
É claro que a arte de cavalgar aparece aqui como alegoria de vida: com o olhar da pantera identifica-se o olhar do faquir,
da arte em geral e, especificamente, da literária. Não há no e negra é sua cor.
conto superação da contradição entre uma descoberta da ver- "Josefina, a cantora ou O povo dos ratos" tem em seu
dade pela primeira amazona (primeiro parágrafo) e a aparência segundo título a sugestão da continuidade da linhagem das
de beleza encenada, pela segunda (segundo parágrafo): o que metamorfoses, mas nenhuma transformação animal ocorre.
dialeticamente supera essa contradição é algo que não é explici- Ao acrescentar, na revisão, o segundo título, Kafka disse: "Títu-
tado, a não ser com o choro do espectador. Este se encontra los com ou não são bonitos, mas aqui isso talvez tenha um sen-
em total antítese, por sua vez, em relação ao público ausente e tido especial. Guarda algo de uma balança". É geralmente
aos que estão no picadeiro. Ele representa um estágio implicita- interpretado como uma reflexão sobre o próprio povo judaico,
mente mais avançado do que o trivial da contemporaneidade; mas o narrador não pertence ao partido dos adeptos de Jose-
mesmo assim, no entanto, é preciso perguntar se, embora ele fina e pode-se ler o conto inclusive como uma desconfiada e irô-
acuse com seu gesto o deprimente do espetáculo, ele próprio nica reflexão de Kafka sobre sua própria obra. Por isso não se
não é um espetáculo deprimente. Será que não haveria outras sabe ao certo se ela é ou não uma grande artista (como o pró-
alternativas para ele? Será que não haveria alternativas nesse prio autor podia estar incerto sobre sua produção, mas ao mesmo
circo? E ainda que essa jovem amazona fosse a alegoria da quin- tempo já refletir sobre certas reações do público e da crítica).
tessência de todo o circo da arte contemporânea, será que não E sugerido que ela não seja uma grande artista, ainda que uma
haveria um mundo possível além do circo? série de coisas indique o contrário, restando de modo perma-
"Um artista da fome" é um conto cruel. Mais cruel do nente o enigma do por que ela tanto fascinaria os outros. A
que ele, contudo, é a realidade que espelha: a fome do povo e artista tem uma série de reivindicações, que em geral não são
a do artista na fase da acumulação primitiva de capital. O atendidas pelo povo; ela também pretende influenciar nos tem-
faquir é aí a própria alegoria do artista. Ele vive diversos para- pos difíceis, mas também disso se duvida. A instância privile-

20 21
giada da figura do/da artista é posta em dúvida; além disso,
embora no fim seja reconhecida a fama dessa figura, e ela acabe
sendo inserida na "incontável multidão dos heróis de nosso
povo", isso de nada adianta, pois um povo que não cultive a
memória histórica também não irá lembrar-se dela. Não há,
portanto, razão para o artista pretender privilégios (que não são
reconhecidos); é um engano pretender que ele possa ajudar a
proteger o povo (pois de fato torna-o mais vulnerável); inclu-
sive nem existe espaço para a arte quando se está lutando pela
nua e crua sobrevivência física: também de nada adianta preten-
der qualquer imortalidade mediante a arte (porque tudo acabará
sendo esquecido, e quem morre morreu).
"A verdade sobre Sancho Pança" é uma reflexão sobre
elementos da grande tradição humanística européia e sobre o
próprio processo de criação artística. Ao contrário do que apa-
rece no romance de Cervantes e muito mais de acordo com o
funcionamento da ficção, não é Sancho Pança quem acompa-
nha a Dom Quixote: este é uma invenção daquele. E Quixote
fazendo suas estrepolias pelo mundo como uma espécie de alter
ego, demônio interior de um pacato cidadão (proporcional inclu-
sive a seu grau de pacatice), o espaço lúdico da fantasia permite
não só que o cidadão se mantenha pacato, mas leva-o até mesmo
a um proveitoso diálogo. As duas figuras antitéticas se mantêm,
mas às avessas da tradição. Com essa nova antítese torna-se
possível pensar numa síntese hipotética entre o proposto pela
ficção e o imposto pela realidade.
Assim também outros textos de Kafka poderiam ser exami-
nados, no levantamento das formas de contradição e dos modos
de conflitos quê constituem a própria espinha-dorsal, a domi-
nante, de suas narrativas. Que isso assim fosse, foi, não escolha
de Kafka, mas imposição de sua experiência. Graças ao autor,
contudo, cria-se um horizonte de consciência a que o leitor
pode talvez ascender sem os enormes custos pagos por ele.

Goiânia, junho de 1986.


FLÁVIO R. KOTHE

22
A sentença
Uma história de Franz Kafka
Para a Srt a Felice B.

Era manhã de um domingo da mais bela primavera. Georg


Bendemann, um jovem comerciante, estava sentado em seu quarto
particular, no primeiro andar de uma dessas casas baixas, de cons-
trução leve, que se estendiam ao longo do rio numa longa série,
quase só se diferenciando na altura e na coloração. Tinha recém-
concluído uma carta a um amigo de juventude que se encontrava
no estrangeiro, fechou-a com lúdica lentidão e, com o cotovelo
apoiado sobre a escrivaninha, ficou então olhando para o rio, a
ponte e as encostas da outra margem em seu verde suave.
Meditava sobre esse amigo que, insatisfeito com suas pers-
pectivas de progresso em casa, há anos já se refugiara literal-
mente na Rússia. Agora ele tinha negócios em Petersburgo, que
no início haviam corrido muito bem, mas há muito já pareciam
parados, como se queixava o amigo em suas cartas cada vez
mais raras. Assim ele se matava inutilmente trabalhando no
estrangeiro, a esquisita barba apenas escondia muito mal o rosto
bem conhecido desde a infância, rosto cuja pele amarela parecia
indicar uma doença progressiva. Segundo contava, ele não tinha
nenhum relacionamento efetivo com a colônia dos seus compa-
triotas lá existente, mas também quase nenhum relacionamento

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social com famílias locais e, assim, ele se estruturava para uma um ínfimo afastamento de um pequeno comerciante, embora
definitiva vida de solteiro. centenas de milhares de russos viajassem tranqüilamente pelo
O que é que se devia escrever para um homem desses, que mundo. No decorrer desses três anos, no entanto, justamente
evidentemente havia dado com os burros n'água, um homem do para Georg muita coisa havia se modificado. Da morte de sua
qual se podia sentir pena, mas que não se podia ajudar? Será mãe, que ocorrera há cerca de dois anos e desde a qual Georg
que se devia, talvez, aconselhá-lo a voltar novamente para casa, vivia com seu velho pai na mesma casa, o amigo ainda havia
transferir sua experiência de volta para cá, retomar todas as anti- ficado sabendo e manifestado em uma carta suas condolências
gas relações de amizade — para o que não existia, aliás, nenhum com uma secura que só podia ter sua explicação no fato de que
obstáculo — e de resto confiar na ajuda dos amigos? Isso signifi- a tristeza por um acontecimento desses torna-se completamente
cava, no entanto, nada mais que dizer ao mesmo tempo a ele, inimaginável no estrangeiro. Desde aquele momento, Georg
de um modo preventivo sim, mas tanto mais melindroso, que havia, porém, se dedicado aos seus negócios com maior decisão.
suas tentativas até agora tinham fracassado, que ele finalmente Talvez o pai tivesse, durante a época em que a mãe vivia, impe-
deveria desistir delas, que devia voltar e, como alguém que vol- dido-o de desenvolver atividades realmente próprias, por querer
tou definitivamente, precisaria deixar-se contemplar por olhos fazer valer nos negócios apenas seu próprio ponto de vista, tal-
espantados, que só seus amigos é que entendiam de alguma coisa vez o pai tivesse, desde a morte da mãe, apesar de continuar
e que ele era uma criança velha, que simplesmente teria de imitar ainda trabalhando na firma, se tornado mais reservado, talvez
os exitosos amigos que haviam ficado em casa. E será que ainda — o que era até muito provável — felizes acasos desempenhas-
era, então, certo que todas as desgraças que precisariam ser apron- sem um papel muito importante, em todo caso o negócio havia,
tadas contra ele teriam uma finalidade? Talvez nem sequer se con- porém, se desenvolvido de um modo totalmente inesperado nes-
seguisse trazê-lo de volta para casa — afinal, ele mesmo dizia ses dois anos, havia sido necessário duplicar o número de fun-
não entender mais as condições vigentes na pátria — e então, cionários, o volume de negócios havia se quintuplicado, um pro-
apesar de tudo, permaneceria lá no seu estrangeiro, amargurado gresso ulterior se prenunciava indubitavelmente.
ainda mais um pouco com os conselhos e ainda mais um tanto Mas o amigo não tinha nenhuma noção dessas mudanças.
distanciado dos amigos. Se, porém, seguisse realmente o conselho Anteriormente, pela última vez talvez em sua carta de pêsames,
e viesse a ser sufocado — naturalmente não de propósito, mas ele havia tentado convencer Georg a emigrar para a Rússia e
através dos fatos —, e se ele não se achasse com seus amigos e se expandido sobre as perspectivas que existiam em Petersburgo
também não sem eles, se ele se sentisse envergonhado, se real- justamente para o ramo de negócios de Georg. As cifras eram
mente não tivesse daí mais nenhuma pátria e nenhum amigo diminutas em comparação com o volume que a firma de Georg
mais, será que não seria muito melhor para ele já ficar no estran- havia agora assumido. Mas Georg não tivera nenhum desejo
geiro, assim como estava? Nessas circunstâncias, será que se pode- de escrever ao amigo sobre seus êxitos nos negócios, e, se o
ria pensar que ele efetivamente iria progredir aqui? tivesse feito agora adicionalmente, isso teria de fato tido uma
Por essas razões, caso ainda se quisesse de algum modo aparência estranha.
manter o contato epistolar, não se podiam fazer-lhe comunica- Assim, Georg limitava-se a escrever para o amigo somente
ções propriamente ditas, como se faria sem pruridos inclusive sobre eventos sem importância, como eles se acumulam na
a conhecidos mais distantes. Agora o amigo já não havia estado mente quando se fica meditando num domingo calmo. Ele não
por mais de três anos na pátria e tratava de explicar isso de queria outra coisa senão deixar imperturbada a concepção que
modo muito precário com a insegurança das relações políticas o amigo por certo havia formado da cidade natal nesse longo
na Rússia, que, nessa perspectiva, não permitiam nem mesmo ínterim e com a qual ele havia se conformado. Assim aconteceu

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a Georg ter notificado, por três vezes, ao amigo o noivado de para o fim. Noivei com uma certa senhorita Frieda Brandenfeld,
um ser humano qualquer com uma jovem igualmente indiferente, uma jovem de família abastada, que só fixou residência aqui
em cartas bastante espaçadas entre si, até que o amigo, em todo bastante tempo após sua partida e que, portanto, você dificil-
caso bem contra os propósitos de Georg, começou então a inte- mente deve conhecer. Ainda hão de se encontrar oportunidades
ressar-se por esse bizarro evento. para contar-lhe maiores detalhes sobre minha noiva, por hoje
Mas Georg preferia escrever-lhe sobre semelhantes coisas basta dizer-lhe que estou bastante feliz e que em nosso relacio-
a confessar que ele mesmo, há um mês, tinha noivado com uma namento só se alterou alguma coisa na medida em que, ao invés
certa senhorita Frieda Brandenfeld, uma jovem de família abas- de você ter em mim um amigo completamente comum, terás
tada. Com freqüência falava com sua noiva sobre esse amigo e um amigo feliz. Além disso, em minha noiva, que lhe envia de
a singular relação epistolar em que estava com ele. coração um abraço e que em breve irá escrever-lhe pessoalmente,
— Então ele nem vai vir para o nosso casamento — dizia recebes uma amiga sincera, o que para um solteirão não é total-
ela — e eu tenho, afinal, o direito de conhecer todos os seus mente despido de importância. Sei que muita coisa impede você
amigos. de nos visitar, mas será que meu casamento não seria a oportu-
— Eu não quero incomodá-lo — respondia Georg —, nidade certa para passar por cima de todas as dificuldades?
entenda-me direito, provavelmente ele viria, ao menos creio que Mas seja lá como for, aja como melhor lhe aprouver e só de
sim, mas se sentiria forçado e prejudicado, talvez acabasse por acordo com seus bons propósitos".
invejar-me e ficasse insatisfeito, incapaz de algum dia eliminar Com essa carta na mão, Georg havia ficado sentado longa-
essa insatisfação, ao ter de viajar novamente sozinho de volta. mente junto à sua escrivaninha, tendo o rosto voltado para a
Sozinho, sabe você o que é isso? janela. A um conhecido que, ao passar pela ruazinha, o havia
— Sim, mas será que ele não pode ficar sabendo do nosso cumprimentado, ele mal havia respondido com um sorriso ausente.
casamento de outro modo? Ele enfiou por fim a carta no bolso e saiu de seu quarto atra-
— Isso eu não posso, em todo caso, impedir, mas, com o vés de um corredor obliquamente na direção do quarto de seu
modo de vida dele, isso é pouco provável. pai, no qual ele há meses já não havia estado mais. Normalmente
— Se você tem amigos assim, Georg, não devia nem sequer também não havia nenhuma necessidade de fazê-lo, pois estava
ter noivado. em contato permanente com seu pai na firma, almoçavam ao
— Sim, isso é culpa de nós dois; mas mesmo agora eu não mesmo tempo num restaurante, à noite cada um se ajeitava como
quereria outra coisa. melhor lhe aprouvesse, no entanto em geral ambos — quando
E se ela então, respirando ofegante sob seus beijos, ainda Georg, como costumava então ocorrer, não estava junto com
objetava: amigos ou, agora, visitando sua noiva — ficavam sentados ainda
— Na verdade isso me deixa doente — ele considerava por algum tempo, cada um com seu jornal, na sala de estar.
realmente inofensivo escrever tudo ao amigo. Georg espantou-se com a escuridão reinante no quarto do
— Eu sou assim, e assim ele precisa me aceitar — dizia ele pai, mesmo nessa manhã ensolarada. O alto muro, que se erguia
para si mesmo —, não posso recortar em mim e de mim uma do outro lado do pátio estreito, lançava portanto uma sombra
pessoa que talvez fosse mais adequada do que eu para uma ami- assim. O pai estava sentado num canto junto à janela, recanto de-
zade com ele. corado com diversas lembranças da finada esposa, e lia o jornal,
E, de fato, na longa carta que escrevera nesse domingo que ele mantinha de lado ante os olhos, com o que procurava com-
pela manhã, ele noticiava ao seu amigo, com as seguintes pala- pensar uma fraqueza qualquer da vista. Sobre a mesa estavam os
vras, o noivado ocorrido: "A melhor novidade eu a poupei restos do desjejum, do qual parecia não ter sido consumido muito.

28 29
— Ah, Georg! — disse o pai, indo logo ao seu encontro. rei mais em dar-lhe a notícia. Antes de despachar a carta, eu
O seu pesado chambre abriu-se enquanto andava, as pontas
quis, no entanto, dizê-lo a você.
esvoaçavam à sua volta. "O meu pai ainda continua um gigan-
— Georg — disse o pai e repuxou a boca desdentada em
t e " — disse Georg para si mesmo.
toda a sua extensão —, escute uma vez! Você veio até mim por
— Ora, aqui está insuportavelmente escuro — disse ele causa dessa questão, para se aconselhar comigo. Isso honra
então.
você, sem dúvida. Mas isso não é nada, é pior que nada, se
— Sim, está bastante escuro — respondeu o pai. você agora não me disser toda a verdade. Eu não quero reme-
— Você fechou até mesmo a janela?
xer em coisas que aqui não cabem. Desde o falecimento de nossa
— Prefiro assim.
querida mãe, andaram acontecendo certas coisas pouco bonitas.
— Mas está bem quente lá fora — disse Georg, como um Talvez também chegue a hora delas e talvez ela chegue mais
adendo ao anterior, e sentou-se.
cedo do que pensamos. Na firma não fico sabendo de diversas
O pai retirou a louça do desjejum e colocou-a sobre uma coisas, talvez elas não me sejam escamoteadas — não quero
arca. agora nem sequer estabelecer a suposição de que elas me são
— Eu só queria mesmo dizer-lhe — continuou Georg, que escamoteadas —, eu já não sou mais suficientemente forte,
acompanhava de modo bastante distraído os movimentos do minha memória começa a falhar, não tenho mais olho para
velho homem — que acabei agora noticiando, afinal, meu noi- todas essas coisas. Esse é, em primeiro lugar, o curso da natu-
vado para Petersburgo. Puxou a carta um pouco para fora do
reza e, em segundo lugar, a morte da nossa mãezinha me aba-
bolso e deixou-a cair novamente de volta.
teu muito mais que a você. — Mas já que estamos mesmo tra-
— De que modo para Petersburgo? — perguntou o pai. tando dessa questão, por causa dessa carta, então eu lhe peço,
— Ora, para o meu amigo — disse Georg, procurando os Georg, trate de não me enganar. É uma coisinha de nada, não
olhos do pai. — "Na firma ele é, no entanto, bem diferente" vale nem a pena mencioná-la, por isso não me engane. Você
— pensou ele —, "com que solidez está ele aqui sentado, com realmente tem esse amigo em Petersburgo?
os braços cruzados por cima do peito".
Georg ergueu-se desconcertado.
— Sim. O seu amigo — disse o pai com ênfase.
— Vamos deixar para lá os meus amigos. Mil amigos não
— Você está sabendo, pai, que eu primeiro queria escon- substituem o meu pai. Você sabe o que eu acho? Você não se
der diante dele o meu noivado. Por precaução, por nenhuma cuida suficientemente. Mas a idade exige seus direitos. Você
outra razão. Você mesmo sabe como ele é uma pessoa difícil. me é indispensável na firma, isso você sabe muito bem, mas se
Eu disse para mim mesmo, ele bem que poderia ficar sabendo a firma chegar a ameaçar sua saúde, ainda amanhã fecho tudo
de meu noivado por algum outro modo, mesmo que isso tam- para sempre. Assim não dá. Nós precisamos introduzir aí um
bém seja pouco provável com a vida solitária que ele leva novo modo de vida para você. Mas de modo radical. Você fica
— não posso impedir isso —, mas de mim mesmo é que ele não
devia ficar sabendo. aqui sentado no escuro enquanto na sala você teria uma bela ilu-
minação. Você fica só beliscando no café da manhã, ao invés
— E agora você mudou outra vez de opinião? — pergun- de se reforçar a valer. Fica sentado com a janela fechada,
tou o pai, colocando o enorme jornal sobre a borda da janela, quando o ar fresco lhe faria bem. Não, meu pai! Eu vou bus-
e sobre o jornal os óculos, que ele cobriu com a mão. car o médico e nós vamos seguir as recomendações dele. Nós
— Sim, andei revendo minha opinião. Se ele é um bom vamos trocar de quarto, você vai lá para o quarto da frente,
amigo meu, disse comigo mesmo, então o meu feliz noivado eu venho para cá. Não haverá nenhuma alteração para você,
deve ser uma felicidade também para ele. E por isso não demo-
tudo vai ser levado junto. Mas tudo isso tem tempo, deite-se

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agora ainda um pouco na cama, você precisa muito de descanso. pai. Ainda não tinha falado expressamente com sua noiva sobre
Venha, eu vou ajudá-lo a tirar a roupa, você vai ver que posso como pretenderiam organizar o futuro do pai, pois tinham pres-
fazer isso. Ou se você quiser ir logo para o quarto da frente, suposto tacitamente que ele ficaria sozinho na antiga moradia.
então deite-se por enquanto na minha cama. Isso seria, aliás, Mas agora de repente decidiu, no entanto, levar com toda cer-
muito sensato. teza o pai junto para sua futura residência. Olhando com maior
Georg estava parado logo ao lado de seu pai, que havia cuidado, quase até parecia que já poderiam vir tarde demais os
deixado cair sobre o peito a cabeça, com o cabelo branco desali- cuidados que lá precisariam ser ministrados ao pai.
nhado. Em seus braços ele carregou o pai para a cama. Teve uma
— Georg — disse o pai em voz baixa, sem se mover. horrível sensação ao notar que, durante os poucos passos na
Georg logo ajoelhou ao lado do pai, viu as dilatadas pupi- direção da cama, o pai brincava junto ao seu peito com sua cor-
las no seu rosto cansado dirigidas de viés para ele. rente de relógio. Não pôde sequer deitá-lo na cama, tão firme
— Você não tem nenhum amigo em Petersburgo. Você ele se segurava nessa corrente de relógio.
sempre foi um brincalhão e mesmo em relação a mim você não Mas assim que estava na cama, tudo parecia bem. Ele
conseguiu conter-se. Como é que você teria, afinal, um amigo mesmo se cobriu e puxou então o cobertor ainda especialmente
justamente lá! Eu nem consigo acreditar nisso. acima dos ombros. Não foi inamistoso o olhar que lançou para
— Lembre mais uma vez, pai — disse Georg, e levantou cima, na direção de Georg.
o pai da poltrona, tirou-lhe o chambre, enquanto ele se manti- — Não é verdade que você já está se lembrando dele? —
nha de pé bastante fraco —, logo fará três anos que meu amigo perguntou Georg, meneando animadoramente a cabeça.
veio nos visitar. Eu ainda me lembro de que você não gostava — Estou agora bem coberto? — perguntou o pai, como
muito dele. Pelo menos duas vezes ocultei de você a presença se não pudesse examinar se os pés estariam bem cobertos.
dele, apesar de ele estar justamente sentado em meu quarto. — Fique bem quieto, você está bem coberto.
Eu conseguia entender bastante bem, sim, sua aversão a ele; — Não! — exclamou o pai, de um modo que a resposta
meu amigo tem lá suas esquisitices. Mas depois você chegou se chocou com a pergunta, jogou a coberta de volta com uma
inclusive a palestrar muito bem com ele. Pois naquela ocasião força tal que, por um momento, ela, ao voar, abriu-se comple-
eu fiquei ainda tão orgulhoso por você escutá-lo, menear a cabeça tamente, e ele ficou de pé na cama. Com uma só mão apoiou-
e fazer perguntas. Se você pensar um pouco, deve se lembrar. se levemente no teto.
Ele contou naquela ocasião histórias incríveis da revolução russa. — Você queria me deixar bem tapado, eu sei disso, meu
Como ele, por exemplo, numa viagem de negócios em Kiev, filhotinho, mas eu ainda não estou tão tapado. E mesmo que
havia visto, durante um tumulto, um religioso, em cima de um sejam minhas últimas forças, elas são suficientes para você, até
balcão, e que se cortou uma enorme cruz de sangue na palma demais para você. Eu conheço bem esse seu amigo. De acordo
da mão, ergueu essa mão e conclamou a multidão. Você mesmo com meu coração, ele seria um filho para mim. Por isso você
andou recontando algumas vezes essa história. também o andou enganando durante todos esses anos. Por que,
Enquanto isso, Georg havia conseguido fazer o pai nova- se não? Será que você não acredita que eu chorei por ele? Por
mente sentar e, com cuidado, despir-lhe a calça de tricô, que ele isso é que você, afinal, se tranca no escritório, ninguém deve
usava por cima das cuecas de linho, assim como as meias. Ao perturbar, o chefe está ocupado — só para que você possa escre-
contemplar o estado da roupa de baixo, não especialmente lim- ver suas falsas cartas para a Rússia. Mas felizmente ninguém
pa, ele se acusou de ter descuidado do pai. Seguramente teria precisa ensinar ao pai quem é o filho. Assim que você acreditou
sido também sua obrigação cuidar da troca dessa roupa de seu ter agora conseguido afundá-lo, afundá-lo tanto que você podia

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sentar com seu traseiro em cima dele e ele nem iria mexer-se, e no momento da resposta seja você ainda o meu filho vivo —,
então o senhor meu filho decidiu casar-se! o que me restava então, naquele meu quartinho dos fundos, perse-
Georg ficou olhando para o horrendo quadro pintado por guido por empregados desleais, velho até à medula? E meu filho
seu pai. O amigo de Petersburgo, a quem o pai de repente conhe- andava em júbilo pelo mundo, concluía negócios que eu havia pre-
cia tão bem, impressionou-o como nunca. Perdido na imensa parado, virava cambalhotas de satisfação e se afastava de seu pai
Rússia, assim o viu. Junto à porta da firma vazia, saqueada, com o rosto cerrado de um homem de bem! Será que você acre-
assim o viu. Entre as ruínas das prateleiras, das mercadorias dita que eu não teria amado você, eu, de quem você se originou?
arrebentadas, da iluminação a gás caída, mal se sustendo ainda — Agora ele vai inclinar-se para a frente — pensou
de pé. Por que tivera ele de ir tão longe!? Georg —, e se ele caísse e se arrebentasse! — Essas palavras
— Mas olhe para mim! — gritou o pai, e Georg correu, zumbiram através de sua cabeça.
quase fora de si, até a cama, para pegar tudo, mas parou no O pai inclinou-se para a frente, mas não caiu. Não tendo
meio do caminho. Georg se aproximado como ele havia esperado, levantou-se
— Porque ela ergueu as saias — começou o pai a falar com novamente.
a voz afetada — porque ela ergueu as saias assim, a galinha — Fique onde está, eu não preciso de você! Você pensa
nojenta — e, para encenar isso, ele ergueu o camisolão tão alto que ainda tem forças para vir até aqui e só fica se contendo por-
que se via na sua coxa a cicatriz dos seus anos da guerra — por- que quer. Mas não se engane! Sempre sou ainda o mais forte.
que ela ergueu as saias assim e assim e assim, você se envolveu Sozinho talvez eu tivesse de recuar, mas a mãe me deu a força
com ela, e para você poder gozar com ela sem ser atrapalhado, dela, com seu amigo eu tenho um maravilhoso contato, e sua
você desonrou a memória de nossa mãe, traiu o amigo e enfiou clientela eu tenho aqui no bolso!
seu pai na cama para ele não poder fazer nada. Mas será que — Até no camisolão ele tem bolsos! — disse Georg para
ele pode ou não pode fazer nada? si mesmo, acreditando que, com essa observação, ele podia torná-
E ele ficou de pé sem se segurar e dançando lançava as per- lo um homem impossível para o mundo inteiro. Só por um ins-
nas. Ele resplandecia perspicácia. tante pensou isso, pois continuava esquecendo tudo.
Georg ficou parado num canto, o mais longe possível do — Fique se pendurando na sua noiva e venha me enfrentar!
pai. Há um bom tempo ele havia se decidido firmemente a Eu vou varrê-la de seu lado, você nem sabe como!
observar tudo com a maior exatidão, para que não pudesse ser, Georg fazia caretas como se não acreditasse nisso. O pai
de algum modo, surpreendido por avessas vias, de trás, de cima apenas meneava a cabeça, enfatizando a verdade daquilo que
para baixo. Lembrou-se agora de novo da já olvidada decisão dizia, na direção do canto de Georg.
e esqueceu-a assim como se puxa uma linha curta demais atra- — Como você andou me divertindo hoje, quando veio e
vés do buraco de uma agulha. me perguntou se devia escrever para seu amigo sobre o noiva-
— Mas então o amigo não foi, afinal, traído! — gritou o do. Ele está sabendo de tudo, seu bobinho, ele está sabendo de
pai, e seu dedo indicador, movendo-se para lá e para cá, refor- tudo! Eu escrevi para ele, porque você esqueceu de me tirar o
çava isso. — Eu era o representante dele aqui nesse lugar. material para escrever. Por isso é que há anos ele não vem mais,
— Seu comediante! — não pôde Georg conter-se de excla- ele sabe tudo mil vezes melhor do que você mesmo, suas cartas
mar, reconhecendo logo o erro e mordendo, só que tarde ele amassa na mão esquerda sem ler, enquanto na direita levanta
demais — com os olhos arregalados — sua língua, a ponto de as minhas para ler.
vergar os joelhos de tanta dor. — Dez mil vezes! — disse Georg, para caçoar do pai, mas
— Sim, é claro que encenei uma comédia! Comédia! Boa ainda dentro de sua boca essas palavras adquiriram um tom
palavra! Que outro consolo restava ao velho pai viúvo? Diga — mortalmente sério.

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— Há anos já estou esperando que você me aparecesse com
essa pergunta! Você acredita que alguma outra coisa ainda me
preocupa? Você acredita que eu leio jornais? Olhe aí! — e jogou
até Georg um jornal que de algum modo havia sido trazido
junto para a cama. Um jornal antigo, com um nome já comple-
tamente desconhecido a Georg.
— Quanto tempo você vacilou antes de tornar-se maduro!
A mãe teve de morrer, ela não pôde vivenciar esse dia feliz; o
amigo está se afundando lá na sua Rússia, há três anos ele já
estava maduro para ser jogado fora, e eu, você está vendo
como a coisa anda comigo. Para isso você bem que tem olhos!
— Quer dizer que você andou me espiando! — gritou Georg.
Compassivo, sem dar-lhe importância, o pai disse:
— Isso você provavelmente já queria dizer bem antes. Um relato para uma academia
Agora já nem cabe mais.
E em tom mais alto: Excelentíssimos Senhores da Academia!
— Agora você sabe, portanto, o que ainda existia além de
você; até há pouco só sabia de você mesmo. Era com certeza Os Senhores concederam-me a honra de convidar-me para
uma criança inocente, mas, com ainda maior certeza, era um apresentar um relato à Academia sobre a minha anterior vida
homem demoníaco! — E por isso fique sabendo: eu sentencio
de macaco.
você à morte por afogamento!
Infelizmente não posso atender ao convite neste sentido.
Georg sentiu-se expulso para fora do quarto; carregou ainda
Quase cinco anos me separam do estado macacal, tempo talvez
consigo o estrondo com que atrás dele o pai caíra na cama. Na
curto se medido pelo calendário, mas infinitamente longo para
escadaria, sobre cujos degraus ele se apressou como sobre um
atravessar a galope, como eu o fiz, acompanhado em alguns tre-
plano inclinado, ele esbarrou com sua empregada, que estava
então querendo subir para arrumar o apartamento após a noite. chos por homens aprimorados, conselhos, aplausos e música
orquestral, no fundo porém sozinho, pois toda a companhia se
— Jesus! — gritou ela, e cobriu o rosto com o avental,
mas ele já havia desaparecido. manteve, para ficarmos dentro da imagem, longe da barreira.
Ele saltou portão afora, ia sendo arrastado pela estrada Tal resultado teria sido impossível, se eu tivesse me agarrado
na direção da água. Já segurava o parapeito como um faminto teimosamente à minha origem, às minhas recordações da juven-
segura um alimento. Balançou-se por cima do parapeito, como tude. Desistir de qualquer teimosia foi, para ser exato, a lei
o destacado ginasta que ele fora, para orgulho de seus pais, mais alta que eu havia me imposto; eu, macaco livre, submeti-
em sua juventude. Ainda segurou-se com mãos cada vez mais me a esse jugo. Mas com isso minhas recordações obscureceram-
fracas, espreitando, por entre as barras do parapeito, um ôni- se cada vez mais. Se no início, caso os homens o quisessem, a
bus que, facilmente, iria sufocar sua queda, e exclamou baixinho: volta ainda teria sido possível através do imenso portão que o
— Queridos pais, afinal eu sempre amei vocês — e deixou- céu constitui sobre a terra, foi este se tornando, com a evolução
se cair. imposta a chicote, cada vez mais baixo e estreito; cada vez me
Nesse instante passava sobre a ponte um fluxo interminá- senti melhor e mais incluído no mundo dos homens; a tempes-
vel de tráfego. tade que soprava lá do meu passado foi se amainando; hoje é

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apenas uma aragem que me refresca os calcanhares; e o buraco O segundo tiro me atingiu na parte inferior da região ilíaca.
longínquo, por onde ela vem e por onde eu vim outrora, tornou- Foi grave; por causa dele até hoje eu manco um pouco. Há
se tão pequeno que, se para tanto me bastassem as forças e a alguns dias li um artigo de um desses dez mil cabeças-de-vento
vontade de correr até lá, eu teria de mandar rapar o pêlo do que se manifestam sobre mim nos jornais: que minha natureza
corpo para atravessá-lo. Falando francamente, por mais que de macaco não estaria ainda bem reprimida; prova disso seria
eu goste de escolher imagens para essas coisas, francamente que, quando pessoas me visitam, eu teria prazer em tirar as cal-
afirmo que a sua macaquidade, meus Senhores, desde que os ças para mostrar onde aquele tiro acertou. De um sujeitinho
Senhores tenham algo semelhante atrás de si, não lhes pode estar desses, se devia arrancar a tiros um por um cada dedinho de
mais distante do que a minha em relação a mim. Ela coça os sua mão de escriba. Eu, eu posso tirar minhas calças à frente
calcanhares de qualquer um que anda aqui sobre a terra: tanto de quem eu quiser; ali nada mais vai-se encontrar do que pêlo
do pequeno chipanzé quanto do grande Aquiles. bem cuidado e — escolhamos aqui, para um determinado fim
Contudo, no sentido mais estrito talvez eu possa responder uma palavra determinada, mas que não deve ser mal-entendida
à questão dos Senhores, e faço-o até com grande alegria. A pri- — a cicatriz de um tiro sacrílego. Tudo está bem à mostra; não
meira coisa que aprendi foi: dar o aperto de mão; aperto de há nada a esconder; quando se trata da verdade, todo megalo-
mão revela franqueza; tomara que hoje, quando estou no ápice maníaco joga fora as melhores maneiras. Se, no entanto, aquele
de minha carreira, acrescente-se a palavra sincera àquele pri- escriba tirasse as calças quando viessem visitas, isso teria outra
meiro aperto de mão. Para a Academia, isso não vai acrescen- aparência e sentido. Quero até considerar como sendo um sinal
tar essencialmente nada de novo, vai ficar muito aquém do que de juízo que ele não o faça. Mas então ele que me deixe em paz
me foi solicitado e do que, com a melhor das boas vontades com suas sutilezas.
ainda posso dizer — mesmo assim, deve mostrar a linha-mestra Depois daqueles tiros, acordei — e aqui começam aos pou-
de como um ex-macaco penetrou e se afirmou no mundo dos cos minhas próprias recordações — numa jaula da coberta
homens. Eu certamente não deveria, porém, dizer nada do que média do vapor hagenbeckiano. Não era uma jaula com quatro
direi, se não estivesse totalmente seguro de mim mesmo e se paredes de grades; mais pareciam três paredes fixadas numa
minha posição em todos os teatros de variedades do mundo civi- caixa; a caixa constituía, portanto, a quarta parede. Isso tudo
lizado já não tivesse se firmado inabalavelmente. era baixo demais para ficar de pé e estreito demais para sentar.
Sou oriundo da Costa do Ouro. Sobre como fui capturado, Eu estava, portanto, de cócoras, com os joelhos dobrados e tre-
dependo do relato de terceiros. Uma expedição de caça da firma mendo, e, como eu provavelmente não queria ver ninguém, só
Hagenbeck — aliás, com o chefe dela já andei esvaziando desde queria ficar no escuro, voltado para a parede da caixa, enquanto
aquela época alguma garrafa de bom vinho tinto — estava atrás de mim as grades me espetavam a carne. Considerava-se
emboscada nas moitas da margem, quando à noitinha fui beber vantajoso guardar animais selvagens desse modo durante os pri-
com o bando de macacos. Tiros foram disparados; fui o único meiros tempos, e hoje, depois de minha experiência, não posso
a ser atingido; levei dois tiros. negar que este é, de fato, o caso (dentro da perspectiva humana).
Um na fuça; este era leve; mas deixou uma grande cicatriz Naqueles tempos, porém, eu não pensava nisso. Pela pri-
vermelha e sem pêlo que me trouxe o horrível nome de Pedro Ver- meira vez em minha vida não tinha saída; ao menos para a
melho, totalmente inadequado, de certo inventado por um macaco, frente eu não tinha; à minha frente o que havia era a parede
como se eu me diferenciasse, apenas pela mancha vermelha na da caixa, tábua presa com tábua. Reconheço que entre as tábuas
bochecha, de um macaco adestrado chamado Pedro, há muito já havia uma fresta de alto a baixo, fresta que, quando a descobri
falecido e famoso apenas aqui e ali. Isso dito só de passagem. pela primeira vez, saudei com o uivo mais feliz da irracionali-

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dade, mas essa fresta não era nem de longe suficiente sequer também está o engano correspondente. Muitas vezes, no teatro
para pôr o rabo de fora, nem era possível alargá-la com toda a de variedades, antes de subir ao palco, vi pares de artistas traba-
força de um macaco. lhando no trapézio. Eles oscilavam, balançavam, saltavam, sus-
Conforme me foi contado mais tarde, devo ter feito excep- pendiam-se nos braços um do outro, um suspendia o outro pelos
cionalmente pouco barulho, donde se concluiu que em breve eu cabelos com a boca. "Também isso é liberdade humana", pen-
iria morrer ou, caso me fosse possível sobreviver aos críticos pri- sei eu, "movimento autocontrolado". Tu, escárnio da divina
meiros tempos,seria muito fácil de amestrar. Sobrevivi a este natureza! Com essa visão, nenhuma elaboração ficaria de pé
período. Soluços abafados, catação dolorida de pulgas, cansada diante do escárnio da macacada.
lambeção de coco, bater na parede da caixa com a cabeça, exibir Não, eu não queria liberdade. Eu só queria uma saída: à
a língua quando alguém passasse por perto — essas foram as pri- direita, à esquerda, para onde fosse; eu não impunha outras exi-
meiras ocupações da nova vida. Em tudo isso, porém, apenas gências; mesmo que a saída fosse um engano; a exigência era
um sentimento: a falta de saída. Hoje só posso, naturalmente, pequena, o engano não seria maior. Em frente! Em frente! Só
retratar com palavras humanas o que outrora foi sentido à moda não ficar parado com os braços para cima, apertado contra as
símia; por isso faço-o mal, mas, se não posso mais atingir a paredes de um caixote.
antiga verdade do macaco, ela ao menos se encontra na direção Hoje. percebo claramente: sem a máxima calma interior,
do que descrevo. Quanto a isso, não resta a menor dúvida. eu jamais teria escapado. E, de fato, devo talvez tudo o que
Até então eu sempre tinha tido muitas saídas, e agora mais me tornei à calma que me sobreveio lá no navio após os primei-
ros dias. A calma, por sua vez, devo-a ao pessoal do navio.
nenhuma. Estava completamente preso. Se tivessem me pregado
com pregos, minha liberdade de movimentos não se teria tor- Apesar de tudo, eram boa gente. Ainda hoje gosto de lem-
brar o som de seus pesados passos, passos que outrora ecoavam
nado menor. Por que isso? Coce entre os dedos de seu pé até
em minha dormência. Os marinheiros tinham o costume de fazer
rasgar, e você não vai encontrar a causa. Fique se apertando
tudo com o máximo de lentidão. Se um deles queria esfregar
contra as grades até que elas quase o partam em dois, e você
os olhos, levantava a mão como se fosse um peso. Seus chistes
não vai encontrar a causa. Eu não tinha saída, mas precisava
eram pesados, mas cordiais. O sorriso deles estava sempre mistu-
me arranjar uma, pois, sem ela, eu não podia viver. Enjaulado rado com uma tosse que parecia perigosa, mas que nada signifi-
para sempre nessa caixa, eu seguramente teria morrido. Na firma cava. Eles sempre tinham na boca alguma coisa para cuspir e
Hagenbeck, porém, macacos ficam em jaulas desse tipo. Deixei, era-lhes indiferente onde iriam cuspir. Sempre se queixavam de
portanto, de ser macaco. Um claro, bonito raciocínio, que eu, que minhas pulgas pulavam neles; mas nem por isso ficavam
de algum modo, tive de chocar em minha barriga, pois macacos seriamente bravos comigo; eles sabiam simplesmente que no
pensam com a barriga. meu pêlo se desenvolveram pulgas e que pulgas pulam; confor-
Temo que o que eu entendo por saída não seja entendido mavam-se com isso. Quando não estavam de serviço, alguns se
de maneira exata. Uso a palavra em seu sentido mais comum e sentavam em meia-lua ao meu redor; espichados sobre caixas,
pleno. Propositadamente não digo "liberdade". Não quero me pitavam cachimbo; e às vezes um pegava um pauzinho e me
referir a esse grande sentimento de liberdade para todos os lados. coçava onde me fosse agradável. Caso me convidassem hoje a
Como macaco, talvez eu o tivesse conhecido e já conheci homens fazer uma viagem nesse navio, eu certamente recusaria o con-
que sentem saudades disso. Quanto a mim, porém, eu não que- vite, mas é certo também que não seriam apenas recordações
ria liberdade nem então nem agora. Cá entre nós: entre os desagradáveis que eu poderia ter daquela entrecoberta.
homens, vezes demais a gente se engana com liberdade. E assim A tranqüilidade que consegui no círculo dessas pessoas
como a liberdade está entre os sentimentos mais sublimes, assim me absteve de qualquer tentativa de fuga. Revendo a partir de

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hoje, parece-me que ao menos eu tinha intuído que, se eu qui- Tive mais trabalho com a garrafa de cachaça. O cheiro
sesse viver, teria de encontrar uma saída, mas que ela não seria me desagradava; eu me esforcei e me forcei com todas as forças,
atingível através da fuga. Não sei mais se uma fuga teria sido mas passaram semanas até que eu me dominasse. As pessoas
possível, mas creio que sim; a um macaco a fuga deve sempre levaram essas lutas interiores surpreendentemente mais a sério
ser possível. Com meus dentes de hoje preciso tomar cuidado do que qualquer outra coisa em mim. Eu também não distingo
até para quebrar uma simples noz; naquela época, porém, creio nitidamente as pessoas em minhas recordações, mas havia alguém
que com o tempo me deveria ter sido possível rebentar a tranca que, de dia ou de noite, sozinho ou acompanhado, vinha sem-
da porta. Não o fiz. E o que eu poderia conseguir com isso? pre de novo, nas horas mais variadas; ele se colocava na minha
Mal teria posto a cabeça fora, eles teriam me prendido de novo frente e me dava aulas. Ele não me entendia, queria resolver o
e enfiado numa jaula ainda pior; ou então, sem querer, eu have- enigma do meu ser. Girava devagarinho a rolha da garrafa e
ria de esconder-me com outros animais, com as enormes cobras me olhava para ver se eu havia entendido; reconheço que eu
do outro lado, e teria expirado em seus abraços; ou então pode- sempre o olhava com uma atenção selvagem, atabalhoada; um
ria conseguir sair furtivamente até à coberta superior e pular tal discípulo dos homens nenhum professor de humanos encon-
para fora do navio; eu teria balançado sobre o oceano por uns tra sobre o globo terrestre; depois que a garrafa estava desarro-
instantes e depois me afogado. Atos de desespero. Eu não calcu- Ihada, ele a erguia até a boca; eu o seguia com o olhar até a
lava de maneira tão humana, mas sob o impacto das circunstân- goela: ele acena, satisfeito comigo, e põe a garrafa nos lábios;
cias comportei-me como se tivesse calculado. encantado com o conhecimento paulatino, eu me coço no com-
Eu não calculava, mas observava com toda a calma. Eu via primento e na largura onde compete; ele se alegra, coloca a gar-
esses homens subirem e descerem, sempre os mesmos rostos, os rafa na posição e toma um gole; eu, impaciente e desesperado
mesmos movimentos, muitas vezes eles me pareciam ser um só. por imitá-lo, sujo-me todo em minha gaiola, o que lhe traz de
O homem ou esses homens se locomoviam, sem serem molesta- novo grande satisfação; e agora, estendendo a garrafa longe de
dos. Uma elevada meta alvorecia em mim. Ninguém me prome- si e trazendo-a em curva ascendente outra vez aos lábios, ele,
teu que as grades seriam abertas se eu me tornasse igual a eles. inclinado para trás com um exagero didático, bebe-a até o fim
Tais promessas não são feitas para realizações aparentemente de uma talagada só. Eu, esgotado pela exigência excessiva, não
impossíveis. Se, contudo, elas são completadas, as promessas posso mais prestar atenção e pendo fraco na grade enquanto ele
depois também aparecem exatamente onde antes foram procura- conclui a lição teórica coçando a barriga e mostrando os dentes.
das em vão. Só que não havia nada nesses homens que me atraísse Só agora começa o ensaio prático. Será que não estou esgo-
muito. Se eu fosse partidário daquela liberdade já citada, certa- tado demais pelo ensinamento teórico? Certamente, esgotado
mente teria preferido a saída pelo oceano, que me era mostrada demais. Isso faz parte de meu destino. Apesar disso, pego, tão
no olhar sombrio desses homens. De qualquer modo, eu já os bem quanto posso, a garrafa que me é estendida, tremendo, tiro-
observava muito antes de pensar tais coisas. Sim, as observa- lhe a rolha; com o êxito, novas forças surgem aos poucos; já
ções acumuladas é que me levaram na direção determinada.
difícil de distinguir do original, ergo a garrafa; coloco-a na posi-
Era tão fácil imitar as pessoas. Cuspir eu já sabia nos pri- ção e — e jogo-a fora com nojo, apesar de ela estar vazia e só
meiros dias. Nós nos cuspíamos daí reciprocamente na cara; a o cheiro ainda enchê-la, jogo-a com nojo ao chão. Para grande
diferença era apenas que eu depois me limpava a cara lambendo, pesar de meu mestre, para meu maior pesar; não faço as pazes
e eles não. Em breve eu já fumava o cachimbo como um velho; nem com ele nem comigo mesmo jogando fora em seguida a
se, além disso, eu comprimia o fornilho com o dedão, toda a garrafa, não esquecendo de coçar a barriga com capricho e arre-
entrecoberta rejubilava; o que, por muito tempo, eu não entendi ganhando os dentes ao mesmo tempo.
foi apenas a diferença entre o cachimbo cheio e o cachimbo vazio.

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Vezes demais a aula transcorria assim. E para honra de meu reza de macaco corria veloz para longe de mim, aos trambolhões,
professor: ele não ficava irritado comigo, de fato às vezes ele de tal modo que meu primeiro professor quase ficou besta com
me punha o cachimbo aceso no pêlo, até que, nalgum ponto isso, em pouco tempo teve de desistir das aulas e ser levado
quase fora de meu alcance, começasse a chamejar, mas daí ele para um sanatório. Felizmente em breve ele pôde sair.
mesmo apagava o fogo com sua mão cheia de bondade; ele não Mas gastei e desgastei muitos professores, até vários profes-
estava bravo comigo, compreendia que combatíamos lado a lado sores simultaneamente. Quando já havia me tornado mais seguro
contra a natureza macacal e que eu ficava com a parte mais pesada. de minhas capacidades, o público acompanhava meus progressos
Mas que grande vitória para ele e para mim quando, numa e meu futuro começava a brilhar, contratei eu mesmo os professo-
noite, diante de um auditório imenso — talvez houvesse uma res, deixei-os em cinco quartos contíguos e aprendia com todos
festa, um gramofone tocava, um oficial passeava entre as pes- ao mesmo tempo, pulando de um quarto para o outro sem parar.
soas — eu, naquela noite, apanhei, sem ser notado, uma gar- Esses progressos! De todos os lados, esse penetrar dos raios
rafa de cachaça deixada por descuido em frente à minha jaula, do saber num cérebro que desperta! Não o nego; isso me ale-
arranquei, sob a atenção crescente da sociedade, a rolha con- grava. Mas também reconheço: eu não superestimava isso, nem
forme os ensinamentos, coloquei a garrafa na boca e sem vaci- naquela época, muito menos hoje. Através de um esforço que
lar, sem fazer caretas, como um pau-d'água diplomado, esva- até agora não se repetiu na face da terra, alcancei o nível médio
ziei-a toda, deveras e verdadeiramente; joguei fora a garrafa, de cultura de um europeu. Em si talvez isso não fosse nada,
não mais como um desesperado, mas como um artista; de fato mas é, contudo, alguma coisa na medida em que me ajudou a
esqueci de coçar a barriga; em compensação, porém, porque sair da jaula e me arranjou esta saída especial, esta saída
eu não podia fazer diferente, porque eu precisava, porque os humana. Existe uma esplêndida expressão idiomática: "dar no
sentidos me zumbiam, eu exclamei " a l ô " em alto e bom tom, pé"; foi isso o que fiz, dei no pé. Eu não tinha outra saída, sem-
esvaí-me num som humano. Com este grito pulei para a comu- pre se pressupondo que a liberdade não era uma escolha.
nidade humana e senti o eco "ouçam só, ele fala" como um Se contemplo minha evolução e seu objetivo até agora, não
beijo sobre todo o meu corpo suado. me lastimo nem estou satisfeito. Com as mãos nos bolsos, a gar-
Repito: não me atraía imitar os seres humanos, eu só imi- rafa de vinho sobre a mesa, estou meio sentado, meio deitado
tava porque procurava urna saída. Por nenhum outro motivo. na cadeira de balanço e olho pela janela. Se alguém me visita,
Mesmo a cada vitória pouco estava feito. A voz me abandonou recebo-o conforme é devido. Meu empresário está na antecâ-
logo de novo; só se ajustou depois de meses; o horror à garrafa mara; se toco a campainha, ele vem e ouve o que tenho a dizer.
de cachaça voltou até mais forte. Mas minha diretriz estava defi- A noite quase sempre tenho apresentações no teatro e alcanço
nitivamente tomada. êxitos dificilmente superáveis. Se, tarde da noite, volto para
Quando em Hamburgo fui confiado ao primeiro amestra- casa depois de banquetes, sociedades científicas, encontros agra-
dor, logo reconheci as duas possibilidades que me estavam aber- dáveis, uma pequena chipanzé seminua me espera e eu me dou
tas: jardim zoológico ou teatro de variedades. Não vacilei. Eu um tempo com ela à moda dos macacos. Durante o dia não
me disse: invista todas as suas energias para entrar no teatro quero vê-la, pois ela tem no olhar a loucura do animal domés-
de variedades; esta é a saída; o zoológico é apenas uma nova tico perturbado; só eu reconheço isso, e não consigo suportá-lo.
jaula, se entras nele, estás perdido. Em suma, consegui de algum modo o que eu queria. Que
E eu aprendi, meus Senhores. Ah sim, a gente aprende não se diga que não valeu a pena. Aliás, não quero o julga-
quando precisa; a gente aprende quando quer uma saída; a mento de nenhum homem, só quero difundir conhecimentos,
gente aprende sem comiseração. A gente se vigia a si mesmo eu relato apenas; também aos Senhores, ilustres membros da
com o chicote; a gente se arrebenta à mínima oposição. A natu- Academia, eu apenas relatei.

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depois de sua morte, se ele se sente solitário, por que motivo
ele não tem filhotes, como é que ele se chama e assim por diante.
Não me dou ao trabalho de responder, mas me contento
em mostrar aquilo que tenho. Às vezes as crianças trazem gatos
consigo, uma vez até trouxeram dois cordeiros junto. Mas, con-
tra as expectativas, não houve cenas de reconhecimento. Os ani-
mais ficaram se olhando calmamente com olhos de animal e,
ao que parece, aceitaram sua existência como um fato divino.
No meu colo, o bicho não sabe o que é medo nem perse-
guição. Grudado em mim, mais se sente bem. É fiel à família
que o criou. Isso não é, obviamente, nenhuma fidelidade fora
do comum, e sim o correto instinto de um animal que efetiva-
mente tem inúmeros aparentados, mas talvez nenhum parente
Um cruzamento consangüíneo, e para o qual é, portanto, sagrada a proteção
que encontrou entre nós.
Tenho um animal muito singular, meio-gatinho, meio-cor- Às vezes preciso rir quando ele fica me farejando, enrosca-
deiro. É parte da herança de meu pai. Só se desenvolveu, no se entre minhas pernas e nem pode mais ser separado de mim.
entanto, à minha época; antes ele era muito mais cordeiro do Não satisfeito em ser cordeiro e gato, quase quer ser também
que gatinho. Mas agora tem de ambos a mesma parcela. Do ainda um cão. — Uma vez quando eu — como pode, afinal,
gato, cabeça e garras; do cordeiro, tamanho e formato; de acontecer a qualquer um — não conseguia achar saída em meus
ambos, os olhos, que são inquietos e selvagens, a pelugem, que negócios e em tudo o que com isso se relaciona, eu queria dei-
é macia e rala, os movimentos, que são tanto um saltar quanto xar ruir e descambar tudo e, nesse estado de ânimo, eu estava
um rastejar. Em cima do parapeito da janela, sob a luz do sol, em casa, atirado na cadeira de balanço, com o animal no colo;
ele se enrosca todo e ronrona, no campo corre como louco e olhei então, por acaso, uma vez para baixo, e vi que lágrimas
mal se consegue apanhá-lo de novo. Dos gatos foge, cordeiros pingavam de seus imensos bigodes. — Eram minhas, eram dele?
ele quer atacar. Nas noites de luar, as ripas do telhado são seu — Teria esse animal com alma de cordeiro também um coração
caminho predileto. Miar não sabe, e de ratos ele tem horror. humano? — Não herdei muito de meu pai, mas essa é uma
Pode ficar horas espreitando à beira do galinheiro, só que nunca herança que bem se pode exibir.
ainda aproveitou uma oportunidade para matar. Ele tem as duas inquietações dentro de si, a do gato e a
Eu o alimento com leite adocicado, é o que mais lhe agrada. do cordeiro, por mais diversas que sejam. Por isso é que sua
Em longos goles, sorve-o para dentro de si por entre seus den- pele lhe é estreita e apertada demais. — Às vezes ele pula ao
tes de felino. Naturalmente, é um grande espetáculo para as meu lado em cima da poltrona, apóia-se com as pernas diantei-
crianças. Domingo pela manhã é horário de visita. Fico com o ras em meu ombro e encosta seu focinho junto à minha orelha.
bichinho no colo e a criançada de toda a vizinhança põe-se ao É como se ele me dissesse alguma coisa e, de fato, ele se inclina
meu redor. São então feitas as perguntas mais mirabolantes, então para trás e me olha no rosto para observar o efeito que
perguntas que pessoa alguma consegue responder: por que só a comunicação exerceu sobre mim. E, para ser agradável, faço
existe um único animal desses, por que justamente eu o tenho, de conta que entendi alguma coisa, e meneio a cabeça. — Então
se já existiu antes dele um bicho assim e como é que vai ser ele pula para o chão e põe-se a dançar de um lado para o outro.

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Talvez a faca do açougueiro fosse para esse animal uma
redenção, mas esta eu tenho de negar a ele enquanto parte de
uma herança. Por isso ele terá de esperar até que a respiração
nele desapareça por si mesma, ainda que às vezes fique me
olhando como que com compassivos olhos de gente, a clamar
por uma ação compassiva.

A ponte

Eu era rígida e fria, eu era uma ponte, sobre um abismo


eu jazia. Do lado de cá estavam as pontas dos pés, do lado de
lá as mãos encravadas, na lama inconsistente meus dentes afer-
rci. As abas de meu casacão flutuavam dos meus lados. Nas pro-
fundezas murmurejava o gélido regato de trutas. Nenhum turista
errava por essas inviáveis alturas, a ponte não estava ainda regis-
trada nos mapas. — Assim eu jazia e esperava; eu tinha de espe-
rar. Sem ter desmoronado, nenhuma ponte um dia erigida con-
segue deixar de ser ponte.
Uma vez, por volta do anoitecer — era a primeira vez, era
milésima, não sei — meus pensamentos andavam sempre para
lá e para cá, e sempre em círculos. Por volta do anoitecer de
um dia de verão, mais sombrio ressoava o riacho, súbito passos
de um homem escutei! Na minha direção, na minha direção.
Estende-te, ponte, coloca-te em posição; viga sem balaústre,
sustenta o que te foi confiado. Sem que se note, trata de com-
pensar e equilibrar a insegurança do seu passo; mas, se ele vaci-
l.n , dá-te então a conhecer e, como um deus da montanha, pro-
jeta-o em terra.
Ele chegou, e com a ponta de ferro de seu bordão me aus-
Bllltou; em seguida ergueu com ele as abas de meu casaco, colo-
cando-as ordenadamente em cima de mim. Meu cabelo desali-
nhado ele percorreu com a ponta e, provavelmente olhando de

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modo selvagem ao redor, deixou-a por longo tempo enfiada den-
tro dele. Mas depois — eu já o sonhava por montes e vales além
— ele me pulou com os dois pés bem no meio do corpo. Em
selvagem dor estarreci, completamente sem saber, toda inocente.
Quem era? Uma criança? Um sonho? Um salteador? Um sui-
cida? Um tentador? Um aniquilador? E eu me voltei e virei
para vê-lo. — Uma ponte a se revolver. Eu nem sequer havia
ainda me voltado toda e já ia despencando então, despencando,
já ia sendo escangalhada e empalada pelos pedregulhos pontu-
dos, que sempre me haviam olhado com tanta cordialidade lá
da água a correr.

O silêncio das sereias

Prova de que inclusive meios insuficientes, até mesmo infan-


tis, podem servir para a salvação:
Para se precaver contra as sereias, Odisseu encheu os ouvi-
dos de cera e fez-se amarrar ao mastro. Naturalmente, desde
sempre todos os viajantes poderiam ter feito algo semelhante,
exceto aqueles que as sereias já de longe seduzissem, mas no
mundo inteiro se sabia que era impossível que isso pudesse aju-
dar. O canto das sereias transpassava tudo e a paixão dos sedu-
zidos teria arrebentado mais que correntes e mastro. Mas Odis-
seu nem pensou nisso, embora talvez tenha ouvido falar disso.
Confiava plenamente no punhado de cera e no emaranhado de
correntes e, em inocente alegria quanto a seus meiozinhos, nave-
gou em direção às sereias.
Ora, as sereias possuem, no entanto, uma arma ainda
mais assustadora do que o canto: seu silêncio. Embora isso
nunca tenha acontecido, talvez se possa pensar que alguém tenha
se salvo de seu canto, certamente não porém de seu silêncio.
À sensação de tê-las vencido com a própria força, à arrasadora
arrogância daí decorrente, não há nada terrestre que se possa
contrapor.
E, de fato, quando Odisseu chegou, as poderosas cantoras
não cantavam, seja porque acreditassem que a esse adversário
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só o silêncio saberia enfrentar, seja porque o olhar de felici-
dade no rosto de Odisseu, que não pensava senão em cera e
correntes, fez com que esquecessem todo canto.
Mas Odisseu não ouviu, por assim dizer, seu silêncio, acre-
ditou que cantavam e que somente a ele seria dado ouvir. Avis-
tou primeiro fugazmente os movimentos de seus pescoços, a
respiração profunda, os olhos replenos de lágrimas, as bocas
semi-abertas, mas acreditava que isso fizesse parte das árias
que inauditas ressoavam ao seu redor. Logo, porém, tudo resva-
lou nos olhares que ele lançava ao longe; formalmente as sereias
desapareceram diante de sua pertinácia e, justamente quando
mais junto a elas estava, já não sabia mais nada delas.
Elas porém — mais lindas do que nunca — se espreguiça- Prometeu
vam e se distendiam, deixavam o horripilante cabelo flutuar
solto ao vento e estiravam as garras livremente sobre os reci-
fes. Elas não queriam mais seduzir, apenas queriam ainda cap- De Prometeu relatam-se quatro sagas: de acordo com a
tar de Odisseu, tanto quanto possível, o rebrilhar de seu imenso primeira, ele, por ter traído os deuses em favor dos homens,
par de olhos. foi preso com cadeias ao Cáucaso, e os deuses enviaram águias,
Tivessem as sereias consciência, teriam sido então aniquila- que comiam do seu fígado sempre a crescer.
das. Mas, assim, permaneceram, só Odisseu delas escapou. De acordo com a segunda, Prometeu, de tanta dor diante
Aliás, quanto a isso a tradição nos acresce um adendo. dos bicos que o atacavam, comprimiu-se cada vez mais fundo
Diz-se que Odisseu era tão astuto, era uma raposa tal, que na rocha, até tornar-se uno com ela.
mesmo a Deusa do Destino não conseguia penetrar em seu De acordo com a terceira, com os milênios foi esquecida
íntimo. Embora isso já não possa mais ser entendido pela razão sua traição, os deuses esqueceram, as águias, ele mesmo.
humana, talvez ele realmente tenha notado que as sereias silen- De acordo com a quarta, acabou se cansando daquilo que
ciavam e só tenha, de certo modo, anteposto a elas e aos deu- se havia tornado sem razão. Os deuses ficaram cansados, as
ses, como um escudo, o procedimento simulador supracitado. águias ficaram cansadas, a ferida fechou-se de cansaço.
Restou a inexplicável montanha rochosa. — A saga busca
explicar o inexplicável. Já que ela se origina de um fundo de
verdade, precisa acabar de novo no inexplicável.

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Agora eu via que ele entendera tudo; alçou vôo, distanciou-se
em curva ao longe para conseguir bastante impulso e, então,
como um arremessador de dardos, lançou o bico através de
minha boca profundamente em mim. Senti, aliviado, ao cair
para trás, como ele se afogava sem salvação em meu sangue,
que ia preenchendo todas as minhas entranhas, transbordando
todas as margens.

O abutre
Havia um abutre que bicava os meus pés. Botas e meias
ele já havia arrebentado, agora já bicava os pés. Atacava sem-
pre, em seguida voava inquieto várias vezes ao meu redor e
depois prosseguia o trabalho. Veio passando um cavalheiro,
ficou a olhar por algum tempo e perguntou então por que eu
tolerava o abutre.
— Ora, estou indefeso — disse eu —, ele veio e começou
a bicar, daí eu naturalmente quis afugentá-lo, tentei até
estrangulá-lo, mas um animal desses tem muita força,, queria
inclusive pular no meu rosto, por isso preferi sacrificar os pés.
Agora eles já estão quase arrebentados.
— Mas que o senhor se deixe torturar desse jeito — disse
o cavalheiro —, um tiro e o abutre está liquidado!
— É mesmo? — perguntei eu. — E o senhor quer providen-
ciar isso?
— Com prazer — disse o cavalheiro —, só preciso ir até
em casa e buscar minha arma. Será que o senhor pode esperar
meia hora ainda?
— Isso eu não sei — disse eu, e fiquei paralisado de dor
por algum tempo, até dizer: — Por favor, tente isso em todo caso.
— Bom — disse o cavalheiro —, vou me apressar.
Durante a conversa, o abutre tinha ficado escutando bem
quieto e deixado correr seus olhares entre mim e o cavalheiro.

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Pequena fábula Das comparações
— Ah — disse o camundongo —, a cada dia o mundo se Muitos se queixam de que as palavras dos sábios seriam
torna mais estreito. No início ele era tão amplo que eu tinha sempre de novo apenas comparações, inúteis porém na vida coti-
medo, continuei correndo e fiquei feliz por finalmente avistar, diana, sendo que só temos esta. Quando o sábio diz: "vá para
à esquerda e à direita, muros ao longe, mas esses longos muros o lado de lá", então ele não quer dizer que se deva ir para o
correm tão rápido um na direção do outro que já estou no último outro lado, o que de qualquer modo ainda se poderia fazer se
quarto e ali, no canto, está parada a armadilha para dentro da o resultado do caminho valesse a pena, mas ele quer indicar
qual vou correndo. algum fabuloso Além, algo que nós não conhecemos, que ele
— Você apenas precisava alterar a direção da corrida — também não sabe definir com maior exatidão e que, portanto,
disse o gato, e devorou-o. em nada nos pode aqui ajudar. Todas essas comparações que-
rem apenas dizer, a rigor, que o inconcebível é inconcebível, e
disso nós já sabíamos. Mas aquilo com que nos esfalfamos a
cada dia são outras coisas.
Em seguida disse alguém:
— Por que vocês reclamam? Se vocês seguissem as compa-
rações, então vocês mesmos se teriam tornado comparações e,
com isso, já estariam livres das preocupações diárias.
Um outro disse:
— Aposto que também isso é uma comparação.
O primeiro disse:
— Você ganhou.
O segundo disse:
— Mas lamentavelmente apenas na comparação.
O primeiro disse:
— Não, na realidade; na comparação você perdeu.

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fundamente mergulhado dentro da terra, ora subindo em uma
escada para examinar as partes de cima. Eram operações que,
a rigor, poderiam ter sido deixadas por conta de um maquinista,
mas o oficial executava-as com grande zelo, seja porque fosse
um especial aficionado desse aparelho, seja porque por outras
razões não podia confiar isso a mais ninguém.
— Agora está tudo pronto! — proclamou ele por fim, des-
cendo a escada.
Estava extremamente cansado, resfolegava com a boca bem
aberta e havia enfiado dois lenços macios de senhora atrás da
gola do uniforme.
— Esses uniformes são, afinal, grossos demais para os tró-
picos — disse o viajante, ao invés de, como o oficial havia espe-
Na colônia penal rado, procurar informar-se sobre o aparelho.
— Certamente — disse o oficial, lavando numa cuba de
— É um aparelho singular — disse o oficial ao pesquisa- água aí colocada as mãos sujas de óleo e graxa —, mas eles sig-
dor em viagem e, com um olhar até certo ponto de admiração, nificam a pátria; nós não queremos perder a pátria. — Mas
deu uma olhada nesse aparelho que lhe era, afinal, bastante fami- agora dê uma olhada nesse aparelho — acrescentou ele em
liar. O viajante parecia ter aceito só por cordialidade o convite seguida, secando as mãos com uma toalha e apontando ao mesmo
do comandante, que insistira para que ele acompanhasse a exe- tempo para o aparelho. — Até agora ainda foi necessário traba-
cução de um soldado que havia sido condenado por desobediên- lho manual, mas de agora em diante o aparelho trabalha total-
cia e ofensa a um superior. O interesse por essa execução tam- mente sozinho.
bém não era muito grande na colônia penal. Ao menos estavam O viajante acenou com a cabeça e acompanhou o oficial.
aqui presentes — nesse pequeno vale profundo, arenoso, circun- Este procurava prevenir todas as eventualidades e disse então:
dado por escarpas desnudas —, além do oficial e do viajante, — Naturalmente ocorrem defeitos; na verdade espero que
apenas o condenado (um homenzinho idiota, de boca larga, hoje não ocorra nenhum, mesmo assim preciso contar com eles.
cabelo e rosto maltratados) e um soldado, que segurava a pesada Afinal, o aparelho deverá ficar em funcionamento por doze
corrente, da qual saíam as pequenas correntes com as quais o horas seguidas. Mas se chegarem a aparecer defeitos, então serão
condenado estava preso pelos pulsos e pelos tornozelos, bem apenas defeitos bem pequenos e logo superados.
como pelo pescoço, e que por sua vez estavam interligados atra- Por fim ele perguntou:
vés de correntes. O condenado se mostrava, aliás, tão canina- — O senhor não quer sentar? — e, de uma pilha de cadei-
mente resignado que até parecia que se poderia deixá-lo correr ras de vime, tirou uma, oferecendo-a ao viajante; este não pôde
pelas escarpas e, à hora da execução, apenas assobiar para que recusar. Ele estava agora sentado à beira de uma fossa, na qual
ele viesse. lançou um rápido olhar. Não era muito funda. De um lado dela
O viajante possuía pouco senso para o aparelho e cami- a terra escavada formava um montículo, do outro estava o apa-
nhava quase visivelmente isento e neutro atrás do condenado, relho.
para cima e para baixo, enquanto o oficial providenciava os — Eu não sei — disse o oficial — se o comandante já lhe
últimos preparativos, ora rastejando debaixo do aparelho pro- explicou o aparelho.

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O viajante fez um movimento indeterminado com a mão; explicações do oficial. Com uma espécie de sonolenta teimosia,
o oficial não queria nada mais que isso, pois agora ele mesmo ele voltava sempre seus olhos lá para onde o oficial estivesse
podia explicar o aparelho. — Este aparelho — disse ele, e segu- apontando no momento e, quando este foi então interrompido
rou uma manivela, na qual se apoiou —, é uma invenção de pelo viajante com uma pergunta, também ele ficou, como o ofi-
nosso antigo comandante. Colaborei já nas primeiras tentativas cial, olhando para o viajante.
e participei também de todos os trabalhos até a conclusão. Mas — Sim, a grade — disse o oficial —, o nome é adequado.
o mérito do invento é todo dele, somente dele. Já ouviu falar As agulhas são ordenadas como em uma grade dentada, a coisa
de nosso antigo comandante? Não? Ora, não estou afirmando toda é inclusive conduzida como uma grade, ainda que em ape-
demais quando digo que a organização de toda a colônia penal nas um lugar e de modo muito mais artístico. O senhor logo
é obra dele. Nós, os amigos dele, sabíamos já por ocasião de vai, aliás, entender isso. O condenado é estendido aqui em cima
sua morte que a organização da colônia era algo tão acabado da cama. — Quero, em suma, primeiro descrever o aparelho e
em si que seu sucessor, e tenha ele milhares de novos planos só depois explicar o próprio processo. Daí o senhor vai poder
na cabeça, ao menos por muitos anos não conseguiria alterar entendê-lo melhor. Também uma engrenagem na grade está pon-
nada do anterior. Nossa previsão também se concretizou; o tuda demais; range muito quando em funcionamento; daí quase
novo comandante teve de reconhecer isso. É pena que o senhor não se consegue mais conversar; lamentavelmente, só com difi-
não tenha conhecido o antigo comandante! Mas — interrompeu- culdades é que se conseguem peças de reposição. — Portanto,
se o oficial —, eu fico falando fiado e o aparelho dele está aqui está a cama, como eu disse. Ela está completamente reco-
aqui parado diante de nós. Consiste, como o senhor percebe, berta com uma camada de algodão; a finalidade o senhor logo
de três partes. Com o correr do tempo, para cada uma dessas vai ficar sabendo. O condenado é deitado de bruços sobre esse
partes andaram se desenvolvendo designações até certo ponto algodão, naturalmente nu; aqui estão as correias para as mãos,
populares. A parte de baixo chama-se cama, a de cima chama- aqui para os pés, aqui para o pescoço, para amarrá-lo bem fir-
se desenhador e aqui, a do meio, a parte móvel, chama-se grade. me. Aqui na cabeceira da cama, onde o homem, como eu disse,
— Grade? — perguntou o viajante. fica primeiro deitado com o rosto, há essa pequena mordaça
Ele não tinha escutado bem atento, o sol envolvia-o com de feltro, que pode ser facilmente regulada, de tal maneira que
força demais nesse vale sem sombras, era difícil ordenar os pró- entre direitinho na boca da pessoa. Serve para evitar que grite
prios pensamentos. Tanto mais digno de admiração parecia-lhe ou morda a língua. A pessoa naturalmente é obrigada a aceitar
o oficial que em jaquetão militar bem justo, de parada, guarne- o feltro, porque senão a nuca lhe é quebrada pela correia do
cido, de ombreiras, cheio de cordões dependurados, explicava pescoço.
com tanto zelo suas coisas e além disso, enquanto falava, punha- — Isso é algodão? — perguntou o viajante, inclinando-se
se ainda a trabalhar aqui e acolá com uma chave em algum para- para a frente.
fuso. Num estado de ânimo semelhante ao do viajante parecia — Sim, é claro — disse o oficial sorrindo —, experimente
estar o soldado. Tinha enrolado em torno do pulso a corrente o senhor mesmo. — Ele tomou a mão do viajante e conduziu-a
do condenado, apoiava-se com uma mão sobre sua arma, dei- por sobre a cama. — É um algodão especialmente preparado,
xava a cabeça pender e não se preocupava com coisa alguma. por isso é que parece tão irreconhecível; ainda vou chegar a falar
O viajante não ficou admirado com isso, pois o oficial falava da finalidade dele.
francês, e é claro que nem o soldado nem o condenado enten- O viajante já estava um pouco interessado pelo aparelho;
diam francês. Tanto mais chamava, portanto, a atenção que, com a mão por cima dos olhos para proteger as vistas, ele ficou
mesmo assim, o condenado se esforçasse em acompanhar as olhando para o alto do aparelho. Era uma grande construção.

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A cama e o desenhador tinham o mesmo tamanho e pareciam disso, não sou culpado disso. Aliás, eu estou em todo caso
dois baús escuros. O desenhador estava colocado dois metros mais bem qualificado para explicar nossos tipos de sentença,
acima da cama; os dois estavam ligados pelos cantos através pois trago aqui comigo — ele bateu em seu bolso da frente
de quatro barras de latão, que expostas ao sol quase lançavam — os correspondentes desenhos à mão do antigo comandante.
raios. Entre os baús pendia a grade num fio de aço. — Desenhos do próprio comandante? — perguntou o via-
O oficial mal tinha reparado na antiga indiferença do via- jante. — Será que ele juntava tudo isso numa só pessoa? Era
jante, mas estava bem cônscio de seu interesse, que ora princi- ele soldado, juiz, construtor, químico, desenhista?
piava; por isso interrompeu suas explicações para dar tempo — Sim senhor — disse o oficial, acenando afirmativamente
ao viajante para que observasse sem ser perturbado. O conde- com a cabeça e com um olhar severo, meditabundo.
nado imitou o viajante; já que não podia colocar a mão por Em seguida ele olhou pensativamente para suas mãos; elas
cima da vista, piscou os olhos desprotegidos ao olhar para o não lhe pareciam suficientemente limpas para tocar nos dese-
alto. nhos; por isso foi até a cuba e lavou-as novamente. Puxou então
— Agora então o homem está deitado — disse o viajante uma carteira de couro e disse:
inclinando-se para trás em sua cadeira e cruzando as pernas. — Nossa sentença não soa severa. Escreve-se no corpo do
— Sim — disse o oficial, empurrando o boné um pouco condenado, com a grade, o regulamento que ele tenha violado.
para trás e passando a mão pelo rosto afogueado —, agora Nesse condenado, por exemplo — o oficial apontou para o
escute! Tanto a cama quanto o desenhador têm sua própria bate- homem —, vai ser inscrito no corpo: respeita teus superiores!
ria elétrica; a cama precisa dela para si mesma, o desenhador O viajante olhou rapidamente para o homem; quando o
para a grade dentada. Assim que a pessoa está amarrada, a oficial havia apontado em sua direção, ele mantivera a cabeça
cama é posta em movimento. Vibra em pequenas oscilações, inclinada, parecendo empregar todas as forças auditivas para
muito rápidas, ao mesmo tempo de lado, bem como para cima perceber alguma coisa. Mas os movimentos de seus lábios gros-
e para baixo. O senhor deve ter visto aparelhos semelhantes seiramente apertados um contra o outro mostravam de modo
em sanatórios; só que em nossa cama todos os movimentos estão evidente que não conseguira entender nada. O viajante teria dese-
calculados com exatidão; ou seja, precisam estar ajustados com jado perguntar diversas coisas, mas vendo o homem perguntou
exatidão aos movimentos da grade dentada. Mas é para essa apenas:
grade que se deixa a execução propriamente dita da sentença. — Conhece ele sua sentença?
— O que diz, então, a sentença? — perguntou o viajante. — Não — disse o oficial novamente, parando então por
— Nem isso o senhor sabe? — disse o oficial espantado, um instante, como se fosse exigir do viajante uma fundamen-
mordendo os lábios. — Desculpe se minhas explicações talvez tação mais detalhada para a pergunta, e disse então: — Seria
sejam desordenadas; peço mil desculpas. O comandante antiga- inútil anunciá-la para ele. Vai ficar sabendo dela no próprio
mente costumava dar ele mesmo as explicações; mas o novo corpo.
comandante esquivou-se dessa honrosa obrigação; que ele nem O viajante já queria calar, mas daí sentiu como o conde-
sequer tenha, no entanto, a um visitante tão ilustre — o viajante nado dirigia o olhar em sua direção; parecia perguntar se ele
procurou rejeitar essa honraria com as duas mãos, mas o ofi- aprovava o processo descrito. Por isso o viajante, que já havia
cial insistiu na formulação —, dado a um visitante tão ilustre se refestelado para trás, curvou-se novamente para a frente e
informações quanto à forma de nosso julgamento é mais uma perguntou ainda:
vez uma inovação que — ele tinha um desaforo pairando nos — Mas que ele tenha de algum modo sido sentenciado,
lábios, mas controlou-se, dizendo apenas: — não fui informado disso ele sabe, não é?

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— Também não — disse o oficial e sorriu para o viajante, Ao bater duas horas, abriu a porta e o encontrou dormindo
como se esperasse agora dele ainda algumas observações inco- lodo encolhido. Pegou o relho e bateu no rosto dele. Ora, ao
muns. invés de levantar e pedir desculpas, o homem pegou seu senhor
— Não? — disse o viajante, e passou a mão pela testa —, pelas pernas, sacudiu-o e gritou: "Joga o chicote fora ou eu te
então ele até agora não sabe, portanto, como sua defesa foi rece- devoro". — Este é o ocorrido. Há uma hora o capitão veio até
bida? mim, anotei suas informações e logo em seguida a sentença.
— Ele nem teve oportunidade de se defender — disse o ofi- Daí mandei colocar as correntes no homem. Isso foi tudo muito
cial, e olhou para o lado, como se falasse para si mesmo e não simples. Se eu primeiro tivesse chamado o homem e interrogado,
quisesse envergonhar o viajante contando coisas tão óbvias para então só teria surgido confusão. Ele teria mentido, teria, caso
ele. eu tivesse conseguido refutar as mentiras, substituído estas por
— Mas ele deve ter tido oportunidade de se defender novas mentiras e assim por diante. Mas agora eu o tenho preso
— disse o viajante, levantando-se da cadeira. e não vou soltá-lo mais. — Está tudo agora esclarecido? Mas
O oficial percebeu que estava correndo o risco de ser inter- 0 tempo está passando, a execução já devia começar e eu ainda
rompido por longo tempo na explicação do aparelho; por isso não terminei a explicação do aparelho.
foi até o viajante, agarrou-se em seu braço, apontou com a mão Ele obrigou o viajante a sentar na cadeira, aproximou-se
para o condenado, que agora se mantinha na posição de sentido novamente do aparelho e recomeçou:
já que a atenção estava tão evidentemente voltada para ele — — Como o senhor pode ver, a grade dentada corresponde
o soldado também puxou na corrente — e disse: — O caso é o ao formato do ser humano; aqui está a grade para a parte supe-
seguinte. Aqui na colônia penal fui incumbido de ser o juiz. rior do corpo, aqui estão as agulhas para as pernas. Para a
Apesar de minha pouca idade. Pois inclusive já com o antigo cabeça está destinado apenas esse pequeno estilete. Está claro
comandante eu acompanhava todas as questões penais e também isso para o senhor? — Ele curvou-se cordialmente para o via-
conheço melhor que todos o aparelho. O princípio básico com jante, pronto para explicações mais abrangentes.
que decido é: a culpa é sempre indubitável. Outros tribunais O viajante ficou olhando com a testa franzida para a grade.
não podem cumprir essa lei fundamental, pois sempre têm diver- Os informes sobre o processo judicial não o haviam satisfeito.
sos membros e também ainda outros tribunais acima deles. Não Mesmo assim, teve de dizer para si mesmo que aqui se tratava
é isso o que ocorre aqui, ou ao menos não era com o antigo de uma colônia penal, que aqui eram necessárias medidas espe-
comandante. O novo já mostrou, no entanto, desejo de se meter ciais e que era preciso agir militarmente até o fim. Mas, além
em meu julgamento, mas até agora consegui mantê-lo longe, e disso, ele depositava alguma confiança no novo comandante, o
isso eu também vou continuar conseguindo. — O senhor queria qual evidentemente pretendia, ainda que de modo lento e gra-
uma explicação desse caso; ele é tão simples como qualquer dual, introduzir um novo tipo de processo, que não conseguia
outro. Um capitão apresentou hoje pela manhã a denúncia de entrar na limitada cabeça desse oficial. A partir dessa linha de
que este homem, que foi designado para ser seu ajudante e que raciocínio, o viajante perguntou:
dorme em frente à sua porta, havia dormido durante o serviço. — O comandante vai assistir à execução?
Ora, ele tem a obrigação de levantar de hora em hora e bater — Não é certo — disse o oficial, penosamente atingido
continência em frente à porta do capitão. Como se vê, não é pela pergunta sem rodeios, e sua expressão facial amistosa des-
uma obrigação difícil, mas sim necessária, pois ele deve estar fez-se —, exatamente por isso é que precisamos nos apressar.
alerta tanto para vigiar quanto para servir. Na noite de ontem Por mais que eu o lastime, terei até de encurtar minhas explica-
o capitão quis verificar se o ajudante cumpria sua obrigação. ções. Mas eu poderia amanhã, quando o aparelho novamente

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estiver limpo — que ele fique tão sujo é seu único defeito —, pouco, mas como ele, à falta das explicações, não conseguia ati-
acrescentar explicações mais detalhadas. Agora, portanto, ape- nar com nada. Ele se curvava aqui e acolá. Sempre de novo per-
nas o mais necessário. — Quando o homem está deitado na corria o vidro com o olhar. O viajante queria fazê-lo recuar,
cama e ela começa a vibrar, a grade dentada desce sobre o cor- pois o que estava fazendo era provavelmente punível. Mas o
po. Ela se regula automaticamente de tal maneira que as agu- oficial reteve o viajante com uma mão, pegou com a outra um
lhas mal tocam o corpo; assim que o ajustamento tenha se com- torrão do montículo de terra e atirou-o na direção do soldado.
pletado, essa tira de aço logo se torna uma barra bem rija. E Este ergueu de súbito os olhos, viu o que o condenado ousara
então começa a brincadeira. Um não-iniciado não nota, exter- fazer, deixou a arma cair, firmou os pés com os saltos no chão,
namente, nenhuma diferença entre as penas. A grade parece tra- arrastou de volta o condenado, de tal modo que este logo caiu,
balhar sempre de modo igual e uniforme. Vibrando, ela finca e daí ficou olhando como ele, em baixo, se revirava e fazia res-
suas agulhas para dentro do corpo, que além disso vibra com soar as correntes.
a cama. Para permitir a qualquer um controlar e examinar a — Ponha-o de pé! — berrou o oficial, pois notou que o
execução da sentença, a grade foi feita de vidro. Causou algu- viajante havia ficado demasiado entretido com o condenado.
mas dificuldades técnicas fixar as agulhas aí dentro, mas após O viajante inclusive se curvou por cima da grade, sem preocu-
muitas tentativas conseguiu-se. Nós simplesmente não recuamos par-se com ela, só querendo verificar o que estava acontecendo
diante de nenhum esforço. E agora qualquer um pode ver, atra- com o condenado.
vés do vidro, como é executada a inscrição no corpo. O senhor — Trate dele com cuidado — berrou novamente o oficial.
não quer chegar mais perto para dar uma olhada nas agulhas? Ele deu a volta no aparelho, pegou pessoalmente o condenado
O viajante levantou-se lentamente e curvou-se por cima por baixo dos braços e, com a ajuda do soldado, colocou-o de
da grade. — O senhor pode ver — disse o oficial — duas espé- pé, embora escorregasse várias vezes.
cies de agulhas em um múltiplo ordenamento. Cada agulha longa — Agora eu já sei tudo — disse o viajante quando o ofi-
tem uma curta de seu lado. Ou seja, a longa escreve, e a pequena cial voltou até ele.
borrifa água para lavar o sangue e manter a escrita sempre clara. Mas não o mais importante — disse este, tomando o via-
A água ensangüentada passa a ser então conduzida aqui por jante pelo braço e apontando para o alto. — Lá no alto está a
pequenas canaletas e finalmente corre nesse canal principal, engrenagem que determina o movimento da grade dentada, e
cujo escoamento leva à fossa. esta engrenagem é programada de acordo com a inscrição que
O oficial mostrou com o dedo exatamente o caminho que corresponde à sentença. Ainda emprego as inscrições do antigo
a água ensangüentada tinha de percorrer. Quando ele, para tor- comandante. Aqui estão elas — puxou algumas folhas da car-
nar isso, na medida do possível, ainda mais plástico, captou-a teira de couro —, mas infelizmente não posso colocá-las em sua
formalmente com as duas mãos na desembocadura do cano de mão, elas são a coisa mais preciosa que tenho. Sente-se, vou
escoamento, o viajante levantou a cabeça e queria, tateando mostrá-las para o senhor a essa distância, então o senhor vai
para trás com a mão, voltar para sua cadeira. Foi quando ele poder ver tudo muito bem.
percebeu, para seu espanto, que também o condenado havia,
Ele mostrou a primeira folha. O viajante teria gostado de
como ele, atendido ao convite do oficial para olhar de perto a
dizer algo que mostrasse reconhecimento, mas viu apenas linhas
disposição da grade. Havia arrastado o sonolento soldado um
em forma labiríntica, cruzando-se entre si de modo múltiplo e
pouco para a frente com a corrente e também se curvado por
cobrindo o papel de modo tão denso que só com esforço é que
cima do vidro. Via-se como ele, com olhos inseguros, procurava
se reconheciam os espaços brancos intermediários.
também aquilo que os dois cavalheiros tinham observado há
— Leia — disse o oficial.
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— Não consigo — disse o viajante. feridas, jogam-no na fossa, e a grade tem de novo serviço. Assim
— Mas está bem claro — disse o oficial. ela trabalha cada vez mais fundo ao longo de doze horas. Nas
— É muito artificioso — disse o viajante evasivamente —, primeiras seis horas o condenado vive quase como antes, ele
mas não consigo decifrá-lo. apenas sofre dores. Depois de duas horas o feltro é afastado,
— Sim — disse o oficial, deu uma risada e guardou nova- pois o homem não tem mais força para gritar. Nessa tigela aque-
mente a carteira —, não é nenhuma caligrafia para crianças de cida eletricamente, aqui na cabeceira, coloca-se papa quente de
escola. É preciso ler por longo tempo. Também o senhor com arroz, da qual o homem pode, se tiver vontade, comer tudo o
certeza acabaria por decifrá-la. Naturalmente não deve ser que conseguir alcançar com a língua. Nenhum perde essa opor-
nenhuma escrita simples; ela não deve matar logo, mas em tunidade. Não sei de nenhum, e a minha experiência é grande.
média apenas num espaço de tempo de doze horas; para a sexta Só por volta da sexta hora é que ele perde o prazer na comida.
hora está previsto o ponto crítico. Muitos ornamentos precisam, Costumo então me ajoelhar aqui e observar esse fenômeno.
portanto, circundar a escrita propriamente dita; a escrita pro- Raramente o homem engole o último bocado, ele só o revolve
priamente dita ocupa o corpo numa estreita faixa; o resto do na boca e cospe-o na fossa. Preciso então me inclinar, porque
corpo está destinado à ornamentação. Será que o senhor já con- senão isso me voa na cara. Mas como o homem fica então
segue agora apreciar o trabalho da grade e de todo o aparelho? quieto por volta da sexta hora! Até o mais idiota começa a
— Pois veja! — Ele saltou em cima da escada, girou uma roda, entender. Isso começa pelos olhos. A partir deles é que tudo se
gritou para baixo: — Atenção, fique de lado! espalha. Um olhar capaz de nos seduzir a deitarmos junto
E tudo começou a se movimentar. Se a roda não rangesse, embaixo da grade. Não acontece nada demais, o homem apenas
teria sido maravilhoso. Como se o oficial estivesse surpreso com começa a decifrar a escrita, ele estica os lábios como se escutasse.
essa roda perturbadora, ele a ameaçou com o punho, abriu em O senhor já pôde notar, não é fácil decifrar a escrita com os
seguida os braços na direção do viajante como a pedir descul- olhos; o nosso homem decifra-a, porém, com suas feridas. Isso
pas e desceu apressadamente a escada para observar de baixo custa, no entanto, muito trabalho; ele precisa de seis horas para
o andamento do aparelho. Ainda alguma coisa, que só ele completá-lo. Mas depois a grade espeta-o completamente e
notava, não estava em ordem; subiu novamente, agarrou com joga-o na fossa, onde ele cai na água ensangüentada e no algo-
as duas mãos para dentro do mostrador e, então, para chegar dão. Daí a sentença está no fim e nós, o soldado e eu, o enter-
mais depressa embaixo, ao invés de usar a escada deslizou por ramos.
uma, das barras e gritou em seguida, para se fazer entender na O viajante estava com o ouvido inclinado na direção do
barulheira, com a máxima intensidade para dentro do ouvido oficial e, com as mãos nos bolsos do casacão, contemplava o
do viajante: trabalho da máquina. Também o condenado olhava para ela,
— O senhor entende o processo? A grade começa a escre- mas sem entender nada. Inclinava-se um pouco e acompanhava
ver; estando pronta com o primeiro rascunho da escrita nas cos- as agulhas em movimento quando o soldado, a um sinal do ofi-
tas do homem, rola a camada de algodão e gira o corpo lenta- cial, cortou-lhe com uma faca a camisa e a calça na parte detrás,
mente para o lado, a fim de oferecer à grade um novo espaço. de tal modo que caíram do condenado; ele quis pegar a roupa
Nesse ínterim, as partes em carne viva por causa da escrita são caída para cobrir sua nudez, mas o soldado ergueu-o e sacudiu-
deitadas sobre o algodão que, devido a um preparado especial, lhe as últimas peças. O oficial ligou a máquina e, no silêncio
logo faz o sangramento parar, e prepara para um novo aprofun- que então se fez, o condenado foi colocado debaixo da grade.
damento da escrita. Aqui as agulhas na borda da grade arran- As correntes foram soltas e, no lugar delas, foram fixadas as
cam então, com o subseqüente revirar do corpo, o algodão das correias; à primeira vista isso pareceu significar quase um alívio

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para o condenado. E em seguida a grade desceu mais um pouco, riam dizer-lhe: "Você é um estrangeiro, fique quieto". A isso
pois ele era um homem magro. Quando as agulhas o tocaram, ele não teria podido responder nada, mas só acrescentar que,
um arrepio percorreu sua pele; enquanto o soldado estava ocu- nesse caso, ele mesmo não conseguia entender-se, pois viajava
pado com sua mão direita, ele estendeu a esquerda, sem saber apenas com o propósito de observar, e não, de modo algum,
para onde; era, porém, na direção em que estava o viajante. O para alterar concepções judiciais alheias. Mas aqui as coisas se
oficial ficou olhando de lado, ininterruptamente, para o viajante, dispunham, no entanto, de um modo muito tentador. Era indu-
como se procurasse decifrar em seu rosto a impressão que lhe bitável a injustiça do processo e a desumanidade da execução.
causava a execução que, ao menos superficialmente, ele havia Ninguém poderia supor qualquer interesse pessoal do viajante,
lhe explicado. pois o condenado lhe era um estranho, não era um compatriota
A correia, que se destinava ao pulso, arrebentou; provavel- e nem sequer um ser humano que estimulasse a compaixão. O
mente o soldado a havia esticado demais. O oficial precisaria próprio viajante viera munido de recomendações de funcioná-
ajudar, pois o soldado mostrava-lhe o pedaço de correia partida. rios graduados, havia sido recebido com grande cortesia, e que
O oficial também foi até ele e disse, voltando o rosto para o via- ele tivesse sido convidado para essa execução pareceu-lhe até
jante: indicar que se solicitava seu julgamento sobre esse processo.
— A máquina é muito compacta, aqui e ali alguma coisa Isso era, contudo, tanto mais provável na medida em que o
tem de acabar mesmo rasgando ou arrebentando; mas nem por comandante, como ele havia agora escutado com extrema niti-
isso o senhor pode deixar-se enganar no julgamento geral. Para dez, não era nenhum entusiasta desse tipo de procedimento e
a correia logo se consegue, aliás, arranjar um substitutivo; vou Se comportava de modo quase hostil em relação ao oficial.
usar uma corrente; em todo caso, com isso a delicadeza das Daí o viajante ouviu um berro irritado do oficial. Não sem
vibrações no braço direito vai ficar afetada. esforço, ele havia acabado de empurrar na boca do condenado
E enquanto colocava as correntes, disse ainda: o feltro, quando o condenado, numa irresistível ânsia de
— Os recursos para a manutenção da máquina são agora vômito, fechou os olhos e vomitou. Depressa o oficial arran-
muito limitados. Sob o antigo comandante, havia uma verba cou-o do cepo para o alto querendo virar-lhe a cabeça na dire-
destinada só para essa finalidade, e eu tinha livre acesso a ela. ção da fossa; mas era tarde demais, a sujeira já escorria
Havia aqui um almoxarifado, no qual se guardava tudo quanto máquina abaixo.
é peça de reposição. Confesso que eu quase andei desperdiçando — Tudo culpa do comandante! — gritou o oficial, sacu-
material, quero dizer antigamente, não agora como o novo dindo freneticamente a barra de bronze à sua frente. — A
comandante afirma; para ele tudo serve apenas de pretexto para máquina vai ficar como um chiqueiro. — Ele apontava com
combater antigas instituições. Agora ele tem a verba destinada mãos trêmulas, para o viajante, o que havia acontecido. — Como
à máquina sob seu próprio controle, e, se lhe mando pedir uma se eu não tivesse tentado durante horas fazer o comandante
correia nova, a arrebentada é exigida como prova, a nova só entender que um dia antes da execução não se deve ministrar
chega em dez dias, mas é então de uma espécie pior e não presta nenhuma alimentação?! Mas a nova orientação, indulgente, tem
para nada. Mas ninguém se preocupa em saber como devo fazer outra opinião. As madames do comandante enchem o homem
a máquina funcionar, nesse meio tempo, sem correia. todo de doces, antes de ele ser levado embora. A vida toda ele
O viajante refletiu: é sempre problemático intervir de andou se alimentando de peixe fedorento e agora precisa comer
modo incisivo em questões alheias. Ele não era nem morador doçuras! Sim, isto seria, afinal, possível, eu nem iria objetar
da colônia penal, nem cidadão do Estado ao qual ela pertencia. nada, mas por que não se arranja um feltro novo, como estou
Caso pretendesse condenar ou até sabotar essa execução, pode- pedindo há meses e meses? Como pode alguém enfiar na boca,

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sem ficar com nojo, esse feltro, que mais de cem homens anda- vinham só para ver; cedo pela manhã aparecia o comandante
ram chupando e mordendo enquanto morriam? com suas damas; fanfarras acordavam todo o acampamento;
O condenado havia reclinado a cabeça e parecia tranqüilo, eu expedia o informe de que tudo estava preparado; a socie-
o soldado estava ocupado em limpar a máquina com a camisa dade — nenhum funcionário graduado podia faltar — se orde-
do condenado. O oficial foi até o viajante, que por algum pres- nava em torno da máquina; esse monte de cadeiras de vime é
sentimento deu um passo para trás, mas o oficial pegou-o pela um pobre restolho daquela época. A máquina resplandecia,
mão e puxou-o para o lado. recém-limpa; quase que para cada execução eu pegava novas
— Quero falar algumas palavras em confiança com o senhor peças de reposição. Diante de centenas de olhos — todos os
— disse ele —, posso fazê-lo, não é? espectadores estavam parados nas pontas dos pés até lá nas
— É claro — disse o viajante, pondo-se a escutar com os cumeeiras — o condenado era posto pelo próprio comandante
olhos baixos. debaixo da grade. O que hoje um reles soldado pode fazer, era
— Esse processo e essa execução, que o senhor agora terá naquela época trabalho meu, o presidente do tribunal, e me hon-
a oportunidade de admirar, já não têm atualmente mais adep- rava. E daí começava a execução! Nenhum som dissonante per-
tos declarados em nossa colônia. Sou seu único defensor, ao turbava o trabalho da máquina. Muitos já nem ficavam mais
mesmo tempo o único representante da herança do antigo então olhando, ficavam deitados de olhos fechados na areia;
comandante. Não posso mais pensar em qualquer ampliação todos sabiam: agora se está fazendo justiça. Naquele silêncio
do processo, gasto todas as minhas energias para manter o que ouviam-se apenas os gemidos do condenado, abafados pelo fel-
já existe. Quando o antigo comandante vivia, a colônia estava tro. Hoje em dia a máquina não consegue mais arrancar do con-
cheia de adeptos dele; tenho em parte a capacidade de convenci- denado um gemido mais forte que o feltro não possa ainda aba-
mento do antigo comandante, mas me falta completamente o far; mas naquela época as agulhas escreventes pingavam um
poder dele; em decorrência disso, os adeptos têm andado se liqüido ácido, que hoje não se deve mais empregar. Bem, e daí
escondendo, ainda há muitos, mas nenhum se declara como tal. chegava então a sexta hora! Era impossível atender a todos os
Se o senhor fôr hoje à casa de chá, portanto num dia de exe- pedidos feitos para poder olhar de perto. O comandante, em
cução, e se puser a escutar, talvez o senhor somente venha a sua sensibilidade, ordenava que sobretudo as crianças deveriam
ouvir manifestações ambíguas. São todos adeptos, mas, sob o ser levadas prioritariamente em consideração; eu, no entanto,
atual comandante e com seus pontos de vista atuais, completa- graças à minha profissão, podia sempre ficar aí juntinho; com
mente inúteis para mim. E agora eu lhe pergunto: será que, por freqüência estava lá acocado, com duas criancinhas, à esquerda
causa desse comandante e dessas mulheres que o influenciam, e à direita, em meus braços. Como absorvíamos nós todos a
a obra de uma vida, uma obra como essa aí — ele apontava expressão de transfiguração do rosto martirizado, como expú-
para a máquina — deve ser aniquilada? Será que se deve permi- nhamos nossas faces ao resplendor dessa justiça finalmente
tir isso? Mesmo quando se está somente como estrangeiro por alcançada e já a desaparecer! Que tempos aqueles, meu camarada!
alguns dias em nossa ilha? Não há, porém, tempo a perder, estão O oficial tinha evidentemente esquecido quem estava diante
aprontando alguma coisa contra a minha jurisdição; já ocorrem dele; ele havia abraçado o viajante e reclinado a cabeça sobre
reuniões na comandatura, para as quais não sou convidado; até seu ombro. O viajante estava em grande embaraço, impaciente
a visita do senhor me parece significativa para a situação toda; ele olhava a distância por cima do oficial. O soldado havia con-
eles são covardes e mandam na frente um estranho, o senhor. cluído o trabalho de limpeza e agora derramava a papa de arroz
— Como a execução era diferente nos tempos antigos! Já um na tigela. Assim que o condenado, que parecia já ter-se recupe-
dia antes da execução o vale inteiro estava cheio de gente; todos rado inteiramente, notou isso, começou a tentar alcançar a

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tudo isso (é assim que pensa o comandante), muito facilmente
papa com a língua. O soldado empurrava-o sempre de novo de
possível que o senhor acabasse não considerando meu processo
volta, pois a papa estava destinada a um momento posterior,
como correto? E se o senhor não o considerasse correto, o
mas também não era correto, em todo caso, que o soldado
senhor não iria calar-se (continuo ainda a falar dentro da pers-
enfiasse aí suas mãos sujas e comesse da papa diante do ávido
pectiva do comandante), pois o senhor certamente confia em
e ansioso condenado.
suas convicções há muito já sedimentadas. O senhor de fato
O oficial controlou-se rapidamente.
observou e estudou com atenção muitas peculiaridades de mui-
— Eu não quis comovê-lo — disse ele —, sei que é impos-
tos povos; por isso o senhor provavelmente não iria manifestar-
sível dar hoje uma idéia daqueles tempos. De resto, a máquina
se com tanta energia contra esse processo, como o senhor talvez
ainda trabalha e impressiona por si mesma. Impressiona por si,
o fizesse em seu país. Mas o comandante nem sequer precisa
ainda que esteja parada sozinha nesse vale. E ao término o cadá-
disso. Basta uma palavrinha rápida, de passagem. Ela não pre-
ver continua caindo num vôo inconcebivelmente suave para den-
cisa nem mesmo corresponder à convicção do senhor, basta que
tro da fossa, mesmo que não se reúnam como antigamente cen-
pareça ir ao encontro do desejo dele. Que ele há de interrogá-lo
tenas de pessoas feito moscas ao redor da fossa. Naquela época
com toda a argúcia, disso eu estou convicto. E as madames dele
tivemos de colocar uma forte cerca em torno da fossa, há muito
estarão sentadas à volta, com as anteninhas ligadas; o senhor
ela já foi arrancada.
vai dizer algo como — "entre nós o processo judicial é diferen-
O viajante queria afastar seu rosto do oficial e olhava sem
te", ou "entre nós o condenado é ouvido antes da sentença",
objetivo ao redor. O oficial acreditava que ele contemplasse a
ou "entre nós o condenado fica sabendo da sentença", ou "en-
solidão do vale; por isso segurou-o pelas mãos, girou ao seu
tre nós há também outras penas que não a pena de morte", ou
redor para captar seus olhares e perguntou:
"entre nós havia torturas somente na Idade Média". Todas essas
— Percebe, que vergonha?
são observações que estão tão corretas quanto elas lhe parecem
Mas o viajante calou. O oficial deixou-o em paz por um
óbvias, são inocentes observações que não atingem meu processo.
momento; com as pernas abertas, as mãos nos quadris, perma-
Mas como há de recebê-las o comandante? Eu até posso vê-lo,
neceu quieto, olhando para o chão. Então ele deu um sorriso
o bom comandante, como ele logo há de empurrar a cadeira
animador para o viajante e disse:
para o lado e como ele há de se apressar até o balcão, vejo as
— Eu estava perto do senhor quando, ontem, o coman-
madames dele, como elas hão de se precipitar atrás dele, escuto
dante o convidou. Escutei o convite. Conheço o comandante.
até a voz dele — as madames a chamam de voz do trovão —, e
Logo entendi o que ele pretendia com o convite. Embora o poder
ele dirá: "Um grande pesquisador ocidental, encarregado de ree-
dele seja suficientemente grande para avançar contra mim, ele
xaminar o sistema judicial em todos os países, acabou de assegu-
ainda não ousa fazê-lo, mas bem que gostaria de me submeter
rar que nosso sistema, feito de acordo com costumes antigos, é
à sua avaliação, à avaliação de um respeitável estranho. O cál-
um processo desumano. Depois dessa avaliação de uma tal perso-
culo dele é cuidadoso: o senhor está em seu segundo dia na ilha,
nalidade, não me é, naturalmente, mais possível tolerar esse tipo
o senhor não conheceu o antigo comandante e seu pensamento,
de processualística. No dia de hoje ordeno, portanto, que — e
o senhor está preso a perspectivas européias, talvez o senhor seja
assim por diante". O senhor ainda quer contestar, dizer ainda
um adversário radical da pena de morte de um modo geral e,
que o senhor não disse o que ele acaba de enunciar, que, ao con-
em especial, desse modo mecânico de execuções, além disso, o
trário, em sua compreensão mais profunda, o senhor considera
senhor percebe como uma execução sem participação do público
esse o processo mais humano e o mais digno do homem, que o
transcorre de um modo triste e lúgubre, com uma máquina já
senhor também admira essa maquinaria — mas daí já é tarde
um tanto escangalhada — será que não seria, levando em conta
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demais: o senhor nem sequer consegue chegar até o balcão, que O viajante não deixou que ele continuasse falando.
estará lotado de madames; o senhor vai querer fazer-se notar; — Como é que eu poderia fazer uma coisa dessas! — excla-
o senhor vai querer gritar; mas a mão de uma dama irá tapar- mou ele. — Isso é completamente impossível. Posso ajudá-lo tão
lhe a boca — e eu e a obra do antigo comandante estaremos pouco quanto posso prejudicá-lo.
perdidos. — O senhor pode — disse o oficial.
O viajante teve de reprimir um sorriso; tão fácil era, por- Com algum temor, o viajante viu que o oficial cerrava os
tanto, a tarefa que ele havia considerado tão difícil. Disse evasi- punhos.
vamente: — G senhor pode — repetiu o oficial com ainda maior insis-
— O senhor exagera minha influência; o comandante leu tência. — Tenho um plano que precisa dar certo. O senhor acre-
minha carta de recomendação, ele sabe que não sou um especia- dita que a sua influência não baste. Eu sei que basta. Mesmo
lista em processos judiciais. Caso eu fosse manifestar uma opi- reconhecendo que o senhor tenha razão, será que não é necessá-
nião, então seria a opinião de uma pessoa privada, em nada rio, para manter esse sistema, tentar de tudo, até mesmo o que
mais importante do que a opinião de qualquer outra pessoa e, talvez seja insuficiente? Por isso, escute meu plano. Para executá-
em todo caso, muito menos importante que a opinião do lo é sobretudo necessário que o senhor hoje se mostre, na colô-
comandante, que tem, como acredito saber, direitos muito nia, reservado ao máximo quanto a seu juízo sobre o sistema.
amplos nessa colônia penal. Se a opinião dele sobre esse tipo Se não lhe perguntarem diretamente, o senhor não deve manifes-
de processo é tão definitiva assim como o senhor crê, então tar-se de maneira nenhuma; suas manifestações devem ser, porém,
temo que, em todo caso, já chegou o término desse sistema, sem breves e indefinidas; é preciso que notem que para o senhor é
que precise de minha modesta colaboração. uma dificuldade falar sobre isso, que o senhor, caso fosse for-
Será que o oficial já conseguia entender isso? Não, ele ainda çado a falar abertamente, teria de rebentar em imprecações. Não
não entendia. Ele sacudiu vivamente a cabeça, olhou rapida- estou pedindo que o senhor minta; de jeito nenhum; o senhor
mente de novo na direção do condenado e do soldado, que se só deve responder bem curto, como "sim, eu vi a execução",
encolheram e se afastaram do arroz, chegou bem perto do via- ou "sim, eu escutei todas as explicações". Só isso, nada mais.
jante, olhou-o não no rosto, mas nalgum lugar de seu casaco, Para a amargura que deverá ser notada no senhor, há motivos
e disse ainda mais baixo do que antes: suficientes, ainda que não no sentido do comandante. Ele natu-
— O senhor não conhece o comandante; está diante dele e ralmente irá entender tudo isso de um modo completamente
diante de nós, o senhor é até certo ponto — desculpe a expressão errado e interpretá-lo no sentido dele. Nisso é que se baseia o
— inofensivo; mas sua influência, pode crer-me, não pode nem meu plano. Amanhã haverá na comandatura, sob a direção do
deve ser subestimada. Sim, fiquei bem feliz quando ouvi que só comandante, uma grande reunião de todos os altos funcionários
o senhor iria assistir à execução. Essa ordem do coman- administrativos. O comandante soube naturalmente transformar
dante era para me atingir, mas agora eu a torço em meu proveito. essas reuniões em espetáculos. Foi construída uma galeria, que
Sem ser distraído por insinuações falsas e olhares desdenhosos sempre está lotada de espectadores. Sou obrigado a participar
— que não teriam sido evitáveis no caso de uma participação das reuniões do conselho, mas elas me enchem de nojo. Ora,
maior do público — o senhor escutou as minhas explicações, viu em todo caso, o senhor certamente será convidado para a reu-
a máquina e está a ponto de contemplar a execução. Seu juízo nião; se o senhor comportar-se hoje de acordo com meu plano,
já deve estar certamente formado; caso ainda persistam peque- o convite será um pedido insistente. Se o senhor, porém, por
nas dúvidas, a visão da execução há de dissipá-las. E agora eu alguma razão inconcebível, não chegar a ser convidado, então o
lhe coloco o pedido: ajude-me em relação ao comandante! senhor teria de, em todo o caso, solicitar o convite; que o senhor

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iria então recebê-lo, não há dúvida. Então o senhor estará, por- entre si, isso basta, o senhor nem sequer precisa falar pessoal-
tanto, sentado amanhã com as madames no camarote do coman- mente da pouca participação de público nas execuções, da roda
dante. Olhando para cima com freqüência, ele há de certificar- que range, da correia arrebentada, do feltro nojento, não, todo
se de que o senhor está aí. Depois de diversos tópicos de conver- o resto eu mesmo assumo, e pode crer que, se meu discurso não
sação indiferentes, ridículos, somente destinados aos ouvintes puser o comandante para fora do salão, então vai obrigá-lo a
— em geral se fala de construções portuárias, sempre de novo cair de joelhos, de tal modo que ele terá de reconhecer: antigo
construções portuárias! —, também o processo judicial entrará comandante, diante de ti eu me curvo. — Este é meu plano; o
em pauta. Se isso não ocorrer da parte do comandante, ou se senhor quer auxiliar-me a executá-lo? Mas naturalmente o senhor
não ocorrer logo, então vou providenciar para que isso aconteça. quer; mais que isso, o senhor precisa fazê-lo.
Vou me levantar e apresentar o informe quanto à execução de E o oficial agarrou o viajante pelos dois braços e olhou-o
hoje. É verdade que um informe desses não é costumeiro lá, mas no rosto, respirando com dificuldade. Ele havia berrado as últi-
vou fazê-lo apesar de tudo. O comandante, como sempre, vai mas frases de tal modo que mesmo o soldado e o condenado
agradecer-me com um sorriso cordial e então, ele não pode dei- haviam ficado atentos; apesar de não poderem entender nada,
xar de fazê-lo, aproveite a bela oportunidade. "Há pouco foi", continuavam no entanto a comer e, mastigando, olhavam na dire-
assim ou de modo parecido ele vai falar, "apresentado o informe ção do viajante.
sobre a execução. A esse informe eu gostaria de acrescentar que A resposta, que ele precisava dar, era, para o viajante, indu-
justamente esteve presente a essa execução o grande pesquisador, bitável desde o início; em sua vida ele havia experimentado coi-
de cuja visita, que nos honra de modo tão extraordinário, os sas demais para poder vacilar aqui; no fundo ele era honesto e
senhores todos estão informados. Também nossa reunião conta não tinha medo. Apesar disso, vacilou por um momento à vista
hoje com sua presença e, desse modo, vê elevada a sua importân- do soldado e do condenado. Mas, por fim, disse, conforme preci-
cia. Assim sendo, será que não deveríamos dirigir ao grande pes- sava:
quisador a questão de saber como ele avalia a execução feita — Não.
segundo um antigo costume, e o processo que a precede?" Natu- O oficial piscou várias vezes os olhos, mas não desviou o olhar.
ralmente, por toda parte aplausos, concordância generalizada, — O senhor quer uma explicação? — perguntou o viajante.
eu mais que todos me manifestando. O comandante se inclina O oficial meneou a cabeça calado.
diante do senhor e diz: "Então eu coloco a questão em nome — Sou contra esse sistema processual — disse então o via-
de todos". E daí o senhor se achega à amurada. Ponha as mãos jante —, ainda antes de o senhor ter-me feito suas confidências
de um modo visível a todos, se não as damas as agarram e ficam — naturalmente não vou, sob qualquer circunstância, trair essa
brincando com os dedos. — E agora chega finalmente sua vez confiança —, já andei pensando se eu teria o direito de intervir
de falar. Não sei como vou conseguir suportar a tensão das horas contra esse sistema e se minha intervenção poderia ter alguma
até esse momento. Em seu discurso, o senhor não deve colocar- perspectiva de êxito, ainda que pequena. A quem eu primeiro
se limites, faça barulho com a verdade, incline-se por cima da teria de me dirigir nesse caso estava claro para mim: natural-
amurada, berre, mas, claro, berre a sua opinião para o coman- mente ao comandante. O senhor tornou isso ainda mais claro
dante, a sua inabalável opinião. Mas talvez o senhor não queira para mim, sem ter, no entanto, digamos, primeiro firmado
isso, pois talvez não corresponda a seu caráter, talvez em sua minha decisão; ao contrário, sua honesta convicção me toca,
pátria as pessoas se comportem de modo diferente em tais situa- ainda que não faça eu me enganar.
ções, então nem sequer se levante, diga apenas algumas palavras, O oficial ficou calado, voltou-se para a máquina, agarrou-
sussurre-as de tal modo que apenas os funcionários as escutem se a uma das barras de bronze e olhou então, um pouco incli-

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nado para trás, para cima na direção do desenhador, como se laudo o rosto à esquerda para o oficial, ora à direita para o sol-
examinasse se tudo estava em ordem. O soldado e o condenado dado, inclusive do viajante ele não esqueceu.
pareciam ter feito amizade um com o outro; por mais difícil — Puxe-o para fora — ordenou o oficial ao soldado. Por
que fosse devido à firme amarração, o condenado fazia sinais causa da grade dentada, era preciso tomar um certo cuidado
para o soldado; o soldado inclinou-se até ele; o condenado sus- nisso. O condenado já estava, devido à sua impaciência, com
surrou-lhe algo e o soldado meneou a cabeça. alguns pequenos cortes nas costas.
O viajante foi atrás do oficial e disse: Daí por diante, porém, o oficial pouco se preocupou ainda
— O senhor ainda não sabe o que quero fazer. Vou de com ele. Dirigiu-se ao viajante, puxou de novo a carteira de
fato apresentar ao comandante a minha visão do processo, mas couro, folheou dentro dela, encontrou finalmente a folha que
não numa reunião formal e sim numa conversa confidencial; procurava e mostrou-a para o viajante.
também não vou ficar por tanto tempo aqui que possa ser levado — Leia — disse ele.
a qualquer reunião; amanhã cedo eu já vou viajar para longe — Não consigo — disse o viajante —, eu já disse que não
ou ao menos vou embarcar no navio. consigo ler essas páginas.
Não parecia que o oficial tivesse escutado. — Mas olhe com cuidado a página — disse o oficial, colo-
— Quer dizer que o processo não convenceu o senhor — cando-se ao lado do viajante para ler com ele.
disse ele para si mesmo e deu um sorrizinho, como um ancião Ao notar que também isso não adiantava, ele percorreu,
sorri da insensatez de uma criança, guardando atrás do sorriso a grande altura, como se de modo algum a folha devesse ser
o que realmente está pensando. tocada, com o dedo mínimo por cima do papel, para desse
— Então já chegou a hora — disse ele por fim, e olhou modo facilitar a leitura ao viajante. O viajante também se esfor-
de repente para o viajante, com olhos iluminados, que conti- çou para, ao menos nisso, poder ser agradável ao oficial, mas
nham algum desafio, algum apelo à participação. não lhe foi possível ler. Então o oficial começou a soletrar a ins-
— Já é hora de quê? — perguntou inquieto o viajante, crição e depois leu-a ainda uma vez no conjunto.
mas não recebeu nenhuma resposta. — SÊ JUSTO! é o que está escrito — disse ele —, mas
— Ora, você está livre — disse o oficial para o condenado, agora o senhor deve conseguir ler.
no idioma deste. O viajante curvou-se tão profundamente sobre o papel que,
Ele primeiro não acreditou. de medo de um contato, o oficial afastou-o ainda mais; agora
— Ora, livre você está — disse o oficial. Pela primeira vez o viajante não dizia na verdade mais nada, era no entanto claro
o rosto do condenado ficou realmente animado. Será que era que ele ainda não havia conseguido lê-lo.
verdade? Ou será que era apenas um capricho do oficial e que — "Sê justo!", é o que está escrito — disse o oficial ainda
podia passar? Será que o viajante estrangeiro havia conseguido uma vez.
seu perdão? O que era isso? Assim seu rosto parecia perguntar. — Talvez sim — disse o viajante —, acredito que esteja aí.
Mas não por muito tempo. Fosse o que fosse, ele queria, — Pois bem — disse o oficial, ao menos em parte satisfeito,
podendo, estar realmente livre, e começou a debater-se, até e subiu com a folha pela escada; ajeitou a folha com grande
onde a grade o permitia. cuidado no desenhador e aparentemente reordenou as engrena-
— Você vai arrebentar as correias — berrou o oficial —, gens de modo total; era um trabalho penoso, deviam tratar-se
fique quieto! Nós já vamos abri-las. inclusive de rodas bem pequenas, às vezes a cabeça do oficial
E, junto com soldado, a quem ele fez um sinal, pôs mãos desaparecia completamente no desenhador, de tal maneira preci-
à obra. O condenado ria baixinho sem dizer palavra, ora vol- sava ele examinar as engrenagens.

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O viajante acompanhou lá de baixo, ininterruptamente, esse com o cinturão. Puxou a espada para fora da bainha, quebrou-a
trabalho, o pescoço dele ficou duro e os olhos lhe doíam sob esse e, então, pegando tudo junto, os pedaços da espada, a bainha
céu repleno de luz do sol. O soldado e o condenado só estavam e o cinturão, jogou-os todos fora com tanta força que eles resso-
entretidos um com o outro. A camisa e a calça do condenado, aram lá embaixo na fossa.
já jogadas na fossa, foram puxadas para fora pelo soldado com Agora ele estava aí parado, nu. O viajante mordeu-se nos
a ponta da baioneta. A camisa estava horrivelmente suja, e o con- lábios, e não disse nada. Na verdade ele sabia o que iria acontecer,
denado lavou-a na cuba d'água. Quando ele vestiu então a camisa mas não tinha nenhum direito de perturbar o oficial em qualquer
e a calça, tanto o soldado quanto o condenado tiveram de rir alto, coisa. Se o processo judicial, do qual o oficial era tão afeiçoado,
pois essas peças de roupa estavam cortadas atrás em duas. Talvez estava realmente tão perto de ser reformado — possivelmente
o condenado acreditasse estar obrigado a entreter o soldado, pois devido à intervenção do viajante, para o que este sentia-se de sua
rodava na roupa cortada em frente ao soldado, que estava sen- parte comprometido —, então o oficial agia agora de modo plena-
tado no chão e, rindo, batia sobre seu joelho. Mesmo assim, con- mente correto; em seu lugar, o viajante não teria agido diferente.
trolavam-se ainda em função da presença dos cavalheiros. O soldado e o condenado primeiro não entenderam nada,
Quando o oficial finalmente ficou pronto lá em cima, deu de início nem sequer ficaram olhando. O condenado estava
mais uma olhada, sorrindo, em todas as partes daquele conjunto, muito contente por ter conseguido de volta os lencinhos, mas
bateu cerrando dessa vez a tampa do desenhador, que até agora não pôde alegrar-se com eles por muito tempo, pois o soldado
havia permanecido aberta, desceu a escada, olhou para dentro tomou-os com um movimento brusco, inesperado. Agora o con-
da fossa e daí para o condenado, notou aliviado que este havia denado procurava puxar novamente de volta os lenços detrás
tirado para fora suas roupas, foi então até a cuba d'água para do cinturão do soldado, mas este estava atento. Assim eles fica-
lavar as mãos, reconheceu tarde demais a nojenta sujeira, entris- ram brigando meio que de brincadeira. Só quando o oficial ficou
teceu-se com o fato de não poder agora lavar as mãos, mergu- completamente nu é que eles prestaram atenção. Especialmente
lhou-as por fim — este substitutivo não o satisfez, mas teve de o condenado parecia sentir-se atingido pela noção de alguma
sujeitar-se — na areia, levantou-se em seguida e começou a desa- grande mudança. O que lhe havia acontecido, acontecia agora
botoar a casaca de seu uniforme. Com isso caíram-lhe de início ao oficial. Talvez isso avançasse assim até seu extremo. Prova-
nas mãos os dois lencinhos femininos, que ele havia enfiado velmente o viajante estrangeiro tinha dado ordens nesse sentido.
atrás da nuca. Isso era, portanto, vingança. Sem ter ele mesmo sofrido até o
— Aqui você tem os seus lencinhos — disse ele, e jogou- fim, seria porém vingado até o fim. Uma risada larga, silenciosa,
os na direção do condenado. espraiou-se então em seu rosto e não mais desapareceu.
E ao viajante disse ele explicando: Mas o oficial havia se dirigido para a máquina. Se antes já
— Presentes das madames. ficara bem claro que ele entendia bem da máquina, agora era de
Apesar da evidente pressa com que tirava a casaca do uni- deixar alguém quase atônito como ele a tratava e como ela obede-
forme e depois se desnudava completamente, ele manuseava com cia. Ele havia apenas aproximado a mão da grade dentada, e ela
muito cuidado cada peça de roupa, até passava de propósito subiu e desceu várias vezes, até ter alcançado a posição correta
com os dedos por cima dos cordões dourados de sua casaca mili- para recebê-lo; ele tocou a cama apenas na beirada, e ela já come-
tar, sacudindo uma borla até ela ficar certa. Pouco se adequava, çou a vibrar; a mordaça de feltro veio na direção de sua boca, viu-
no entanto, a esse cuidado o fato de ele, logo após ficar pronto se como o oficial não queria propriamente recebê-la, mas a vacila-
com uma peça, jogá-la em seguida na fossa com um involuntá- ção perdurou apenas por um instante, logo ele se submeteu e acei-
rio estremecimento. A última coisa que lhe restou foi a espada tou-a. Tudo estava pronto, só as correias pendiam ainda pelas

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bordas abaixo, mas elas eram aparentemente desnecessárias, o ofi- beira do desenhador, caiu, rolou de pé por um trecho na areia e
ficou deitada. Mas já uma outra ia subindo lá no alto, muitas
cial não precisava ser amarrado. Daí o condenado notou as cor-
outras a seguiram, grandes, pequenas e mal distinguíveis, com
reias soltas, em sua opinião a execução não seria completa se as
todas elas acontecendo a mesma coisa: sempre se acreditava que
correias não estivessem firmemente amarradas, ele acenou ansiosa-
agora o desenhador devia estar, em cada caso, já vazio, mas daí
mente para o soldado e os dois acorreram para amarrar o oficial.
aparecia um novo grupo, especialmente numeroso, que subia,
Este já havia esticado um pé para empurrar a manivela que punha caía, corria pela areia e ficava deitado. Com esses acontecimen-
em movimento o desenhador; então ele viu que os dois tinham tos, o condenado esqueceu completamente a ordem do viajante,
chegado; por isso puxou o pé de volta e deixou-se amarrar. Agora as engrenagens o fascinavam totalmente, sempre ele queria pegar
não podia mais, no entanto, alcançar a manivela; nem o soldado uma, incitava ao mesmo tempo o soldado a ajudá-lo, puxava
nem o condenado iriam encontrá-la, e o viajante estava decidido porém assustado a mão de volta, pois logo se seguia uma outra
a não se mover. Não foi necessário; mal as correias estavam colo- roda, que o assustava, ao menos quando aflorava.
cadas, a máquina também já começou a trabalhar: a cama vibrava, O viajante, ao contrário, estava muito inquieto; a máquina
as agulhas dançavam por cima da pele, a grade oscilava para cima caía obviamente aos pedaços; seu funcionamento silencioso era
e para baixo. O viajante já havia ficado olhando por algum tempo uma ilusão; ele tinha a sensação de que agora precisaria ocupar-
até lembrar-se de que uma roda do desenhador deveria ter rangido; se do oficial, já que este não podia mais tomar conta de si
mas tudo estava silencioso, não se ouvia o menor zumbido. mesmo. Mas enquanto a queda das engrenagens absorvia toda
Através desse silencioso trabalho, a máquina escapava for- a sua atenção, ele havia esquecido de observar o resto da
malmente à atenção. O viajante olhou para o soldado e o conde- máquina; quando ele, no entanto, depois de a última engrena-
nado do outro lado. O condenado era o mais animado, tudo gem ter abandonado o desenhador, inclinou-se então por cima
na máquina o interessava, ora ele se inclinava, ora se esticava, da grade, teve uma nova surpresa, ainda mais aborrecida. A
a todo momento apontava o dedo indicador para mostrar alguma grade dentada não escrevia, ela apenas fincava, e a cama não
coisa ao soldado. Para o viajante isso era penoso. Estava deci- rodava o corpo, mas apenas o elevava tremendo para dentro
dido a ficar aí até o fim, mas não teria suportado por muito das agulhas. O viajante queria fazer alguma coisa, se possível
tempo a visão dos dois. fazer tudo parar, isso não era afinal nenhuma tortura como o
— Vão para casa — disse ele. oficial queria alcançar, isso era um assassinato direto. Ele esten-
O soldado talvez estivesse disposto a isso, mas o condenado deu as mãos. Mas daí a grade já se erguia oblíqua com o corpo
sentiu a ordem diretamente como uma punição. Pediu, suplicando espetado, como ela normalmente o faria apenas na duodécima
com as mãos postas, para que pudesse ficar aí, e quando o via- hora. O sangue escorria em uma centena de filetes, mas não
jante, sacudindo a cabeça, não quis ceder, ele até se ajoelhou. misturado com água, dessa vez inclusive as canaletas de água
O viajante viu que ordens aqui não ajudavam, quis ir até o outro haviam falhado. E então falhou também a última coisa: o corpo
não se soltou das longas agulhas, seu sangue escorria, ele porém
lado e forçar os dois a irem embora. Nesse momento ouviu lá
pendia por cima da fossa sem cair. A grade já queria voltar à
em cima, no desenhador, um ruído. Olhou para o alto. Será
sua antiga posição, mas, como se notasse que não estava ainda
que, afinal, aquela roda da engrenagem iria perturbar? Mas era
livre de sua carga, permaneceu contudo por cima da fossa.
outra coisa. Lentamente levantou-se a tampa do desenhador e,
— Mas me ajudem! — gritou o viajante para o soldado e
então, ela abriu completamente. Os dentes de uma roda se mos-
o condenado que estavam do outro lado, ele mesmo pegando
traram e se ergueram, logo a roda toda apareceu, era como se
os pés do oficial. Ele queria deste lado empurrar os pés, os dois
uma força qualquer pressionasse todo o desenhador de tal modo
outros deveriam, do outro lado, pegar a cabeça do oficial e,
que não restava mais lugar para essa roda: a roda girou até a

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assim, este poderia ser lentamente retirado das agulhas. Mas parede detrás, onde fregueses estavam sentados em algumas
agora os dois não conseguiam decidir-se a vir; o condenado mesas. Eram provavelmente trabalhadores das docas, homens
virou-lhe descaradamente as costas; o viajante teve de ir até eles fortes com barbas curtas, negras retintas. Todos estavam sem
e empurrá-los à força até a cabeça do oficial. Com isso ele viu, casacão, suas camisas estavam rasgadas, eram um povo pobre,
quase contra sua vontade, o rosto do cadáver. Estava como humilde. Quando o viajante se aproximou, alguns levantaram-
havia estado em vida, nenhum sinal da prometida redenção nele se, comprimiram-se junto à parede e olharam na direção dele.
se descobria; o que todos os outros haviam encontrado na — É um estrangeiro — sussurrou-se ao seu redor —, ele
máquina, o oficial não encontrara: os lábios estavam bem aper- quer ver a sepultura.
tados, os olhos bem abertos, eles tinham a expressão que tinham Eles empurraram uma das mesas para o lado, debaixo da
tido em vida, o olhar estava tranqüilo e convicto, pela testa pas- qual realmente se encontrava uma lápide. Era uma pedra sim-
sava a ponta do grande aguilhão de ferro. ples, suficientemente baixa para poder ser escondida debaixo
de uma mesa. Tinha uma inscrição com letras muito pequenas;
Quando o viajante, com o soldado e o condenado atrás para lê-las o viajante teve de ajoelhar-se. Rezava:
de si, chegou às primeiras casas da colônia, o soldado apontou "Aqui jaz o antigo comandante. Seus adeptos, que agora
para uma delas e disse: não podem usar nome nenhum, cavaram-lhe esta sepultura e
— Aqui é a casa de chá. puseram esta lápide. Existe uma profecia de que o comandante,
No andar térreo de uma casa havia um recinto profundo, após um determinado número de anos, há de ressuscitar e,
baixo, parecendo uma caverna, escuro de fumaça nas paredes saindo desta casa, há de conduzir seus adeptos à reconquista
e no teto. Na direção da rua, ele estava aberto em toda a sua da colônia. Crê e espera!"
extensão. Apesar de a casa de chá diferenciar-se pouco das Após ter lido isso e se levantado, o viajante viu ao seu
demais casas da colônia, que estavam todas muito estragadas redor os homens parados e sorrindo, como se tivessem lido com
(com exceção das construções palacianas do comando), ela exer- ele a inscrição, considerando-a ridícula e o incentivassem a par-
ceu sobre o viajante a impressão de uma recordação histórica e tilhar sua opinião. O viajante fez de conta que não tinha notado
ele sentiu o poder dos tempos antigos. Aproximou-se mais e, isso, distribuiu algumas moedas entre eles, esperou ainda até
seguido por seus acompanhantes, caminhou por entre as mesas que a mesa tivesse sido empurrada em cima da sepultura, aban-
vazias, que estavam colocadas na rua em frente à casa de chá, donou a casa de chá e foi para o porto.
e inspirou o ar frio, úmido e abafado, que vinha lá do interior. O soldado e o condenado haviam encontrado na casa de
— O Velho está enterrado aqui — disse o soldado —, um chá conhecidos que os retiveram. Deviam ter-se livrado logo
lugar no cemitério foi-lhe negado pelo sacerdote. Durante algum deles, pois o viajante ainda se encontrava na metade da longa
tempo houve indecisão sobre onde se deveria enterrá-lo, por fim escada que levava até os botes, quando já vinham correndo atrás
enterrou-se ele aqui. Disso o oficial certamente não lhe contou dele. Provavelmente queriam no último instante obrigar o via-
nada, pois era o que naturalmente mais o envergonhava. Ele jante a levá-los junto. Enquanto o viajante negociava lá embaixo
até tentou algumas vezes durante a noite desenterrar o Velho, com um barqueiro o transporte até o vapor, os dois se precipita-
mas sempre o afugentaram. ram escada abaixo, em silêncio, pois não ousavam gritar. Mas
— Onde é a sepultura? — perguntou o viajante, que não quando chegaram lá embaixo, o viajante já estava no bote, e o
conseguia acreditar no soldado. barqueiro justamente o soltava da margem. Eles ainda teriam
Logo os dois correram à sua frente, tanto o soldado quanto podido saltar dentro da embarcação, mas o viajante levantou
o condenado, apontando com as mãos estendidas para ali onde do bote uma pesada amarra cheia de nós, ameaçou-os com ela,
a sepultura devia encontrar-se. Conduziram o viajante até a evitando assim que pulassem.

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eles se entendem como se entendem as gralhas. Sempre de novo
se escuta esse grasnido de gralhas. Nosso modo de vida, nossas
instituições são-lhes tão incompreensíveis quanto indiferentes.
Por causa disso, mostram-se também arredios a qualquer lingua-
gem gestual. Você pode destroncar os queixais e tirar as mãos
fora dos encaixes, de qualquer modo eles ainda não o entende-
ram nem irão entendê-lo jamais. Com freqüência fazem caretas;
reviram então o branco de seus olhos e espuma brota de suas
bocas, mas não querem com isso dizer alguma coisa nem tam-
pouco ainda atemorizar; eles o fazem porque esse é o jeito deles.
Do que precisam, tomam. Não se pode dizer que empreguem a
força. Ante seu avanço, a gente se põe de lado e deixa tudo
para eles.
Uma página antiga Também de minhas provisões andaram levando algumas
boas peças. Mas não posso me queixar disso se, por exemplo,
É como se muita coisa tivesse sido descurada na defesa de contemplo o que está ocorrendo com o açougueiro do outro
nossa pátria. Até agora não nos preocupamos com isso e nos lado. Mal chegam suas mercadorias, tudo já é arrancado dele
entregamos ao nosso trabalho; mas os acontecimentos dos últi- e devorado pelos nômades. Inclusive os cavalos deles comem
mos tempos nos deixam preocupados. carne; com freqüência pode-se ver um cavaleiro ao lado de seu
Tenho uma sapataria em frente ao palácio imperial. Mal cavalo, ambos a se alimentarem do mesmo pedaço de carne,
abro minha pequena loja, ao alvorecer, já vejo tomadas por cada qual em uma ponta. O açougueiro está com medo e não
homens armados todas as ruazinhas que aqui afluem. Eles não tem coragem de cortar o fornecimento de carne. Mas nós enten-
são, no entanto, os nossos soldados, mas, ao que parece, nôma- demos isso, juntamos dinheiro e o sustentamos. Se os nômades
des vindos do norte. De um modo para mim incompreensível, não recebessem carne alguma, quem sabe o que seriam capazes
eles penetraram até a capital, que se localiza, afinal, muito dis- de fazer, quem sabe o que eles serão, em todo caso, capazes
tante da fronteira. Em todo caso, estão aí; parece que a cada de fazer, mesmo que recebam carne diariamente.
manhã eles se tornam mais numerosos. Há pouco tempo, o açougueiro pensou que ao menos pode-
De acordo com sua natureza, acampam sob céu aberto, ria poupar-se o trabalho de carnear, e trouxe pela manhã um
pois abominam casas. Eles se entretêm afiando as espadas, boi vivo. Isso ele não pode fazer de novo. Passei mais de hora
fazendo ponta nas flechas, praticando exercícios eqüestres. Dessa deitado bem lá nos fundos de minha loja, estendido no chão,
tranqüila praça, mantida sempre escrupulosamente limpa, fize- tendo amontoado sobre mim todas as minhas roupas, cobertas
ram uma verdadeira pocilga. É claro que às vezes tentamos acor- e almofadas, só para não escutar os berros do boi, que os nôma-
rer até a frente de nossas lojas e eliminar ao menos a pior sujeira, des atacavam de todos os lados, para arrancar com os dentes
mas isso acontece cada vez mais raramente, pois o esforço é inú- pedaços de sua carne quente. Tudo já estava quieto há um bom
til e, além disso, acarreta-nos o perigo de ficarmos sob os cava- tempo quando me atrevi a sair: como bêbados em redor de um
los selvagens ou sermos feridos pelos chicotes. tonei de vinho, eles jaziam cansados em torno dos restos do boi.
Falar com os nômades não se consegue. Nossa língua eles Eu acreditava ter visto justamente naquela ocasião o impe-
não conhecem, sim, eles mal têm uma língua própria. Entre si rador em uma janela do palácio; jamais ele chega em outras

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ocasiões até esses aposentos exteriores; vive sempre apenas no
jardim mais íntimo; mas dessa vez ele estava parado, ao menos
assim me pareceu, junto a uma das janelas e, com a cabeça incli-
nada, olhava para a agitação em frente a seu castelo.
— Como é que vai acabar isso? — perguntamo-nos todos
nós. — Até quando iremos suportar essa carga e esse tormento?
O palácio imperial é que atraiu os nômades, mas agora não
sabe como se livrar deles. O portão continua trancado; a guarda,
que antes sempre entrava e saía marchando em pompa, mantém-
se atrás de janelas com grades. A nós, artesãos, e comerciantes,
está confiada a salvação da pátria; mas nós não estamos à altura
de tal tarefa; também nunca nos vangloriamos de sermos capa-
zes de cumpri-la. Trata-se de um mal-entendido, e ele é a nossa
perdição. Ante(s) (d)a lei

Diante da lei está parado um guardião. Desse guardião se


aproxima um homem do campo e pede entrada na lei. Mas o
guardião diz que não pode agora permitir-lhe a entrada. O homem
reflete e pergunta então se, portanto, poderá entrar mais tarde.
— É possível — diz o guardião —, mas não agora.
Já que o portão para a lei está como sempre aberto e o
guardião se posta ao lado, o homem inclina-se para, através
do portão, olhar lá para dentro. Ao notar isso, o guardião dá
uma risada e diz:
— Se isso o atrai tanto, tente então entrar apesar de minha
proibição. Note porém: eu sou poderoso. E sou apenas o último
dos guardiães. De salão em salão estão, porém, postados guar-
diães, um mais poderoso que o outro. Tão só a visão do terceiro,
nem sequer eu consigo mais suportar.
Tamanhas dificuldades o homem do campo não havia espe-
rado; a lei deve ser, afinal, acessível a todos, e sempre, pensa
ele; mas ao olhar agora com cuidado para o guardião em seu
casacão de couro, com seu narigão pontudo, a barba longa,
rala, negra, tártara, ele decide que era preferível, em suma, espe-
rar até obter permissão para entrar. O guardião dá-lhe um ban-
quinho e permite que ele se assente ao lado da porta. Ali fica
ele sentado por dias e anos. Faz muitas tentativas para que lhe
seja permitido entrar e cansa o guardião com seus pedidos. Com

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freqüência o guardião organiza pequenas audiências com ele,
questiona-o sobre sua terra e muitas outras coisas, mas são per-
guntas neutras, como as formulam grandes senhores, dizendo-
lhe por fim sempre de novo que ainda não poderia deixá-lo
entrar. O homem, que se provera de muita coisa para sua via-
gem, usa de tudo, por mais valioso que seja, para subornar o
guardião. Este efetivamente tudo aceita, dizendo porém:
— Eu só aceito isso para que você não creia ter deixado
de tentar alguma coisa.
Durante todos esses anos, o homem fica observando quase
ininterruptamente o guardião. Ele esquece os outros guardiães
e este primeiro parece-lhe o único obstáculo para a entrada na
lei. Nos anos iniciais amaldiçoa sem peias e em alta voz o infe-
liz acaso; mais tarde, ao ficar velho, apenas resmunga ainda Sobre a questão das leis
para si. Torna-se infantil e, como nos anos de estudo e contem-
plação do guardião chegou a conhecer até as pulgas em sua
gola de peles, suplica inclusive às pulgas que o ajudem a conven- Nossas leis não são conhecidas por todos, elas são um
cer o guardião. Por fim, sua vista se torna fraca e ele já não segredo do pequeno grupo de aristocratas que nos domina.
sabe se realmente está ficando mais escuro ao seu redor ou se Estamos convencidos de que essas velhas leis são observadas
apenas seus olhos é que o enganam. Mas bem que ele reconhece com exatidão, mas é algo extremamente torturante ser domi-
agora, na escuridão, um brilho a brotar inextinguível lá das por- nado por leis que não se conhecem. Não estou aqui pensando
tas da lei. Pouco tempo de vida lhe resta. Antes de morrer, reú- nas diversas possibilidades de interpretação e nos prejuízos daí
nem-se em sua cabeça as experiências todas daqueles longos decorrentes, quando só alguns, e não o povo todo, podem parti-
anos em uma pergunta que até agora ele não havia colocado cipar da interpretação. Talvez esses prejuízos nem sejam tão
ao guardião. Acena-lhe para que ele se aproxime, pois já não grandes. Afinal, as leis são tão antigas, séculos trabalharam
consegue mais pôr de pé seu corpo cada vez mais hirto. O guar- em sua interpretação, inclusive essa interpretação já deve ter-se
dião precisa inclinar-se profundamente até ele, pois a diferença tornado lei, e, embora possíveis liberdades exegéticas ainda per-
de tamanho entre eles alterou-se em detrimento do homem. sistam, elas devem ser, no entanto, muito limitadas. Além disso,
— O que é que você ainda quer saber agora? — perguntou a aristocracia não tem, evidentemente, nenhuma razão para se
o guardião. — Você é insaciável. deixar influenciar na interpretação em nosso desfavor por seu
— Todos almejam afinal a lei — diz o homem —, mas interesse pessoal, pois, afinal, as leis foram fixadas desde o iní-
como é que em todos esses anos ninguém, exceto eu, pediu para cio a favor da aristocracia, a aristocracia está acima da lei e,
entrar? justamente por isso, a lei parece ter-se colocado exclusivamente
O guardião reconhece que o homem já está no fim e, para nas mãos da aristocracia. Nisso reside naturalmente sabedoria
ainda atingir sua audição cada vez mais debilitada, precisa gritar-lhe: — quem duvida da sabedoria das antigas leis? —, mas igual-
— Aqui ninguém mais podia obter permissão para entrar, mente também tormento para nós; é provável que isso seja ine-
pois esta entrada estava destinada somente a você. Agora eu vitável.
vou embora e vou fechá-la. Aliás, a rigor essas leis aparentes só podem ser também
supostas. Há uma tradição de que elas cxistiriam e que seriam

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confiadas à aristocracia como um segredo, mas mais do que
manece tão reduzido, pois também ele reconhece plenamente a
uma antiga tradição — uma tradição em que se acredita por ser
aristocracia e seu direito à existência.
antiga — isso não é e nem consegue ser, pois o caráter dessas
Só se pode exprimir isso através de uma espécie de contra-
leis exige também a manutenção do segredo de sua existência.
dição: um partido que, além da crença nas leis, também conde-
Mas se nós, o povo, acompanhamos atentamente desde os tem-
nasse a aristocracia, teria logo de seu lado todo o povo, mas
pos mais remotos as ações da aristocracia (possuímos anotações
um partido desses não consegue constituir-se, pois ninguém
de nossos antepassados sobre isso, demos conscienciosamente
ousa condenar a aristocracia. Sobre o fio dessa navalha nós
continuidade a elas e acreditamos reconhecer nos inúmeros fatos
vivemos. Uma vez um escritor sintetizou isso do seguinte modo:
certas linhas-mestras que permitem concluir por essa ou aquela
a única lei indubitável, visível, que nos é imposta, é a aristocra-
definição histórica) e se nós procuramos nos prevenir e organi-
cia, mas será que nós mesmos deveríamos nos deixar levar por
zar, para o presente e para o futuro, um pouco de acordo com
essa única lei?
essas conclusões cuidadosamente filtradas e ordenadas — tudo
isso é, contudo, incerto, e talvez seja apenas uma brincadeira
do intelecto, pois talvez nem sequer existam essas leis que aqui
tentamos adivinhar. Há um pequeno partido que realmente
defende essa opinião e procura demonstrar que, se existe uma
lei, ela só pode rezar: o que a aristocracia faz, é lei. Esse par-
tido enxerga em tudo isso tão-somente atos arbitrários da aristo-
cracia e rejeita a tradição popular, que, em sua opinião, acar-
reta apenas limitados proveitos ocasionais e que, ao contrário,
na maioria dos casos provoca pesados prejuízos, já que dá ao
povo, em relação aos eventos futuros, uma segurança falsa,
enganosa, que conduz à leviandade. Esse prejuízo é inegável,
mas a grande maioria de nosso povo vê a origem disso no fato
de a tradição não ser nem de longe bastante, e que, portanto,
seria preciso pesquisar muito mais nela e que, no entanto, todo
o seu material, por mais imenso que pareça, ainda é demasiado
reduzido e que séculos ainda precisariam transcorrer antes de
isso ser suficiente. Para o presente, o sombrio dessa perspectiva
ilumina tão-só a crença de que virá uma época em que a tradi-
ção e sua pesquisa, até certo ponto respirando aliviadas, hão
de chegar à conclusão de que tudo se tornou claro, que a lei
pertence apenas ao povo e que a aristocracia desaparecerá. Isso
não é dito com algo como ódio contra a aristocracia, de modo
algum, nem por ninguém. Antes odiamos a nós mesmos por
não podermos estar à altura da lei. E por isso é que, a rigor,
aquele partido (em certo sentido, pois, um partido muito atra-
ente, que não acredita em nenhuma lei propriamente dita) per-

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um pequeno defeito, que torna seu rosto ainda mais ousado
' do que ele normalmente teria sido, e, considerando a incompará-
vel perfeição de seu ser, ninguém há de fazer críticas quanto
ao fato de o olho menor piscar. Mas eu, o pai, eu faço isso.
Naturalmente não é esse defeito corpóreo que me dói e machuca,
mas uma, de algum modo equivalente, pequena irregularidade
em seu espírito, algum veneno errante em seu sangue, alguma
incapacidade — só por mim perceptível — de aperfeiçoar plena-
mente os potenciais de sua vida. Por outro lado, justamente
isso é que, no entanto, faz dele um verdadeiro filho meu, pois
este seu defeito é, ao mesmo tempo, o defeito de toda a nossa
família e que só nesse filho se torna extremamente nítido.
O terceiro filho também é bonito, mas não é do tipo de
Onze filhos beleza que me agrade. É a beleza de um cantor: lábios alados;
olhar sonhador; cabeça a exigir um pano de fundo para impres-
Tenho onze filhos. sionar; o peito desproporcionalmente abaulado; as mãos a subir
O primeiro tem uma aparência pouco agradável, mas é e descer com facilidade demais; as pernas que requebram por-
sério e inteligente; apesar disso, por mais que eu o ame, como que nada sustentam. E além disso: a tonalidade de sua voz não
amo a todos os outros, não o tenho em alta conta. Seu modo é cheia; engana por um momento; faz o conhecedor dispor-se
de pensar me parece simples demais. Não enxerga nem à direita a ouvir; mas o desanima logo em seguida. Apesar de em geral
nem à esquerda e tampouco a distância; em seu restrito círculo tudo induzir à exibição desse filho, prefiro mantê-lo oculto; ele
mental, ele só fica sempre dando voltas, ou melhor, rodopiando. mesmo não procura se impor, não porque talvez conheça e reco-
O segundo é bonito, esbelto, bem proporcionado; é um nheça suas falhas, mas sim por inocência. Ele inclusive se sente
encanto vê-lo na postura de esgrimista. Também é inteligente, um estranho em nossa época: como se pertencesse à minha famí-
mas além disso tem experiência de mundo; viu muita coisa e, lia, mas além disso a uma outra, para sempre perdida; com fre-
por isso mesmo, a natureza da pátria parece falar-lhe com maior qüência ele está deprimido e nada consegue animá-lo.
intimidade do que para aqueles que jamais saíram. É claro que O meu quarto filho talvez seja o mais sociável de todos.
essa vantagem não se deve apenas nem essencialmente às via- Verdadeiro filho de sua época, todos o compreendem, ele pisa
gens, mas pertence muito mais ao incomparável desse filho, em solo comum a todo mundo e cada um se sente inclinado a
algo reconhecido por exemplo por todo aquele que queira, diga- aprová-lo. Talvez seu ser ganhe, através desse reconhecimento,
mos, imitar seu salto ornamental na água, salto de vários giros uma certa leveza, seus movimentos uma certa liberdade, seus
sobre si mesmo e, apesar disso, sob absoluto controle. O ânimo julgamentos uma certa despreocupação. Com freqüência gosta-
e a coragem do imitador vão até a ponta do trampolim, mas mos de repetir algumas de suas assertivas, mas só algumas, pois
ali, ao invés de pular, ele senta-se de repente e., erguendo os bra- no conjunto ele, porém, padece por sua vez de demasiada super-
ços, pede desculpas. — E apesar de tudo isso (eu deveria, afi- ficialidade. É como alguém que salte maravilhosamente bem,
nal, estar realmente feliz por ter um filho assim), meu relaciona- fenda o ar qual uma andorinha, mas acabe aterrissando desola-
mento com ele não é despido de perturbações. Seu olho esquerdo doramente em mísera poeira: um nada. Tais pensamentos me
é um pouco menor que o direito e pisca muito; apenas, é claro, amarguram à visão desse filho.

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O quinto filho é amável e bom; prometia bem menos do ele não há de fazer girar a roda do futuro; essa sua predisposi-
que acabou concretizando; ele era tão insignificante que em sua ção é, porém, tão animadora, tão cheia de esperanças; eu gosta-
presença a gente se sentia formalmente só; mas acabou conse- ria que ele tivesse filhos, e estes por sua vez outros filhos.
guindo conquistar um certo renome. Caso se pergunte como Lamentavelmente esse desejo parece não querer vingar. Com
isso aconteceu, dificilmente eu saberia responder. Talvez a ino- uma arrogância que me é, de fato, compreensível, mas igual-
cência consiga mais facilmente abrir caminho através do movi- mente indesejável, arrogância que, no entanto, está em gran-
mento caótico dos elementos nesse mundo, e inocente ele é. Tal- diosa antítese em relação aos juízos de seu meio, ele anda por
vez inocente demais. Amistoso com todos. Talvez amistoso aí sozinho, não se preocupa com garotas e, apesar disso, jamais
demais. Reconheço: não me sinto bem quando ele é elogiado chega a perder o seu bom humor.
em minha frente. Pois quando se elogia alguém tão merecedor O meu oitavo filho é quem me causa maior mágoa e, a
de elogios quanto esse filho meu, isso significa permitir que o rigor, não sei de nenhuma razão para isso. Ele me olha com
elogio se torne demasiado fácil. estranheza e, no entanto, eu me sinto estreitamente ligado a ele
enquanto pai. O tempo remediou muita coisa; mas antigamente
O meu sexto filho parece, pelo menos à primeira vista, o
até me dava uma tremedeira só de pensar nele. Ele segue seu
mais profundo de todos. Cabeça pensativa e, mesmo assim,
próprio caminho; rompeu totalmente relações comigo; e, com
um grande dispersivo. Por isso ele não é muito acessível. Quando
sua cabeça dura, com seu corpo pequeno e atlético — só as per-
está por baixo, cai numa invencível melancolia; quando alcança
nas é que, quando jovem, ele as tinha um tanto fracas, mas isso
a supremacia, ele a preserva mediante dispersiva conversa. Não talvez já tenha entrementes se equilibrado —, ele certamente
nego que possua, no entanto, uma certa paixão altruísta; em há de conseguir vencer onde quiser. Com freqüência tive desejo
plena luz do dia, debate-se com freqüência em pensamentos de chamá-lo de volta, de perguntar-lhe às quantas de fato
como num sonho. Sem estar doente — tem, ao contrário, saúde andava, por que se distanciava assim do pai e o que, no fundo,
muito boa —, cambaleia às vezes, especialmente ao entardecer, pretendia, mas agora ele está tão longe e já se passou tanto
mas não precisa de ajuda, não cai. Talvez a culpa desse fenô- tempo que isso pode então ficar como está. Tenho ouvido dizer
meno esteja em seu desenvolvimento físico, pois ele é grande que ele é o único dos meus filhos a usar barba; num homem tão
demais para sua idade. Isso faz com que, no todo, ele seja feio baixinho como ele, isso não fica bem.
e desengonçado, apesar de detalhes acentuadamente bonitos, O meu nono filho é muito elegante e, para as mulheres, tem
como por exemplo as mãos e os pés. Desagradável também é, aquele tipo de olhar bem doce. Tão doce que, em certas ocasiões,
aliás, sua testa: tanto na pele quanto na conformação dos ossos, consegue seduzir até a mim, eu que bem sei que basta uma proto-
de certo modo ele é encarquilhado. colar esponja molhada para apagar todo esse brilho sobrenatural.
O sétimo filho talvez me pertença mais do que todos os Mas o singular nesse moço é que ele nem sequer pretende seduzir:
outros. O mundo não o entende, não sabe reconhecer-lhe os para ele bastaria permanecer a vida toda deitado em cima do
méritos, não compreende seu peculiar tipo de humor. Não exa- sofá e desperdiçar seus olhares pelo teto, ou, melhor ainda, deixá-
gero seu valor; sei que ele é bastante insignificante; se o mundo los repousando atrás das pálpebras. Quando está nessa dileta posi-
não tivesse outro defeito senão esse, ainda continuaria sendo ção, ele conversa animadamente e nada mal; de um modo con-
imaculado. Mas eu não gostaria de sentir a ausência desse filho ciso e plástico; mas só dentro de limites bastante estreitos; ao ir
dentro da família. Ele acarreta tanto inquietação quanto inclu- além disso, o que com suas limitações acaba sendo inevitável, sua
sive temor diante da tradição, sintetizando isso numa totalidade conversa se torna oca e vazia. Até que seria possível fazer sinais
incontestável (ao menos dentro de minha perspectiva). Mas com para ele parar, caso se pudesse ter a esperança de que seu olhar
essa totalidade ele próprio é quem menos sabe empreender algo; cheio de sono chegaria a notar qualquer coisa.

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O meu décimo filho é considerado um caráter não confiá-
vel. Não pretendo negar totalmente esse defeito nem tampouco
confirmá-lo plenamente. Certo é que quem o vê se achegando
com uma pompa bem acima de sua idade, numa sobrecasaca
sempre toda abotoada, com um chapéu velho mas cuidadosa-
mente limpo, com o rosto impassível, o queixo um tanto proe-
minente, as sobrancelhas pesadamente abauladas sobre os olhos,
dois dedos andarilhando às vezes pela boca — quem assim o
vê, pensa: este é um ilimitado hipócrita. Escute-se, porém, uma
vez a conversa dele! Compreensivo; cauteloso; abrupto e áspero;
terçando respostas com maldosa vivacidade; em espantosa con-
cordância, natural e alegre, com o mundo inteiro, acordo que
necessariamente enrijece o pescoço e empina o corpo. Diversas
pessoas, que se consideram muito espertas e que, por isso, pen- Uma pequena mulher
savam sentir-se repelidas por seu aspecto externo, ele conseguiu
atraí-las fortemente mediante sua palavra. Eu, como pai, não É uma mulher pequena; de natureza bastante esbelta, anda,
quero aqui decidir, tenho de reconhecer, no entanto, que esses contudo, fortemente espartilhada; vejo-a sempre com o mesmo
últimos juizes são, em todo caso, mais dignos de consideração vestido, de um tecido cinza-amarelado, até certo ponto de uma
do que os primeiros. cor de madeira, ornado minimamente com borlas ou pingentes
O meu décimo primeiro filho é franzino, certamente o em forma de botões da mesma cor; está sempre sem chapéu,
mais fraco dos meus filhos; mas sua fragilidade é enganadora, seu cabelo loiro desbotado é liso e nada desordenado, mas man-
pois em certas épocas consegue ser forte e resoluto; mesmo então, tido bem solto. Ela, apesar de espartilhada, move-se no entanto
no entanto, sua fragilidade é de algum modo fundamental. Não com agilidade, exagerando, é claro, essa agilidade: gosta de colo-
é, porém, uma fraqueza vergonhosa, mas algo que só nesse car as mãos nos quadris e, com surpreendente rapidez, move o
nosso território aparece como fraqueza. Será que, por exemplo, torso para o lado com um meneio. Só posso reproduzir a impres-
a capacidade de voar não é também fraqueza, já que ela é osci- são que sua mão me causou dizendo que jamais vi mão em que
lação e indeterminação e volubilidade? Algo semelhante se mos- todos os dedos estivessem tão acentuadamente separados entre
tra em meu filho. A um pai naturalmente não alegram tais carac- si quanto nela; mesmo assim, sua mão não tem nenhuma peculia-
terísticas; elas conduzem, obviamente, à destruição da família. ridade anatômica, é completamente normal.
Às vezes ele me olha como se quisesse dizer: "eu vou te passar Ora, essa mulherzinha está muito chateada comigo, sempre
na conversa, pai". Então eu penso: "tu serias o último em quem tem algo a censurar em mim, para ela estou sempre fazendo
eu confiaria". E seu olhar parece replicar: "ao menos deixa, alguma coisa errada, eu a irrito a cada passo; caso se pudesse
portanto, eu ser o último". dividir a vida em partes mínimas e julgar cada partícula em sepa-
Esses são os onze filhos. rado, com certeza cada partezinha de minha vida seria para ela
uma irritação. Já me perguntei com freqüência por que, afinal,
eu a irrito tanto; pode ser que tudo em mim contrarie seu senso
de beleza, seu sentimento de justiça, seus hábitos, suas tradi-
ções, suas esperanças; afinal, existem naturezas a tal ponto

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incompatíveis entre si, mas por que ela sofre tanto com isso? consegue superar as seqüelas da irritação; tenho até a suspeita
Não há nenhuma relação entre nós que a force a sofrer por de que ela — ao menos em parte — só se apresenta doente para,
minha causa. Ela só precisaria decidir-se a encarar-me como assim, voltar contra mim as suspeitas do mundo. É orgulhosa
um perfeito estranho (o que, aliás, eu também sou): eu nem demais para confessar francamente o quanto eu a atormento
me oporia a uma tal decisão; ao contrário, eu a receberia de com minha existência; apelar a outros por minha causa, isso ela
bom grado. Ela só precisaria decidir-se a esquecer minha existên- sentiria como uma degradação de si mesma; só se ocupa comigo
cia, existência que eu jamais lhe impus ou sequer imporia — e por aversão, uma aversão que não cessa, que a instiga eterna-
todo esse tormento evidentemente acabaria. Faço aqui inteira mente; comentar de público também essa impura questão, isto
abstração de mim mesmo e também do fato de que o comporta- seria demais para seu pudor. Mas também acaba sendo demais
mento dela também me é, naturalmente, penoso; faço disso abs- silenciar por completo uma coisa que sem cessar a oprime. E,
tração, pois reconheço claramente que todo esse sofrimento é assim, em sua astúcia de mulher, ela procura um meio-termo:
nada, em comparação com sua dor. Estou, contudo, plenamente calada, procura, tão-só através dos signos externos de um secreto
consciente de que não se trata de dor de amor; a ela realmente sofrimento, levar a questão ao tribunal da esfera pública. Tal-
pouco importa aprimorar-me, uma vez também que tudo o que vez alimente inclusive a esperança de que, se a esfera pública
ela reprova em mim não é de tal natureza que seja capaz de atra- vier um dia a dirigir até mim a plenitude de seu olhar, há de
palhar minha carreira. Mas ela também não está preocupada brotar contra mim um rancor coletivo e, com seus grandes pode-
com minha carreira, não se preocupa senão com seu interesse res, este há de me condenar, de modo total e absoluto, com
pessoal, ou seja, vingar-se do tormento que nela provoco e impe- maior vigor e rapidez do que o é capaz sua irritação privada,
dir o tormento que, de mim provindo, venha a ameaçá-la. Já comparativamente mais fraca; mas depois ela se retiraria, respi-
tentei uma vez indicar a ela qual seria o melhor modo de acabar raria aliviada e me voltaria as costas. Ora, caso realmente sejam
com essa irritação constante, mas justamente com isso consegui estas suas esperanças, então ela se engana. A opinião pública
arrastá-la a uma tal comoção que jamais repetirei a tentativa. não há de assumir o papel dela; a esfera pública jamais terá
Cabe a mim também, por assim dizer, uma certa responsa- tanto, tanto a censurar em mim, mesmo que me coloque sob a
bilidade, pois por mais estranha que me seja a mulherzinha e maior lente de aumento. Não sou pessoa tão inútil quanto essa
por mais que a única relação existente entre nós seja a irritação mulherzinha acredita; não quero vangloriar-me, e especialmente
que lhe causo, ou melhor, a irritação que ela permite que eu lhe não nesse contexto; mas mesmo que eu inclusive não chegue a
cause, não me deveria ser, porém, indiferente o quanto ela acaba, me destacar por alguma peculiar utilidade, por certo também
de modo visível, sofrendo com essa irritação, inclusive fisica- não devo chamar a atenção pelo inverso; só para ela, para seus
mente. De quando em quando chegam-me notícias — que vêm olhos, que quase disparam brancura, é que eu sou assim, e a
aumentando nos últimos tempos — de que mais de uma vez ela mais ninguém ela há de conseguir convencer disso. Será que eu
teria, pela manhã, estado pálida, tresnoitada, torturada por poderia, pois, ficar completamente tranqüilo quanto a isso?
dores de cabeça e quase incapaz de trabalhar; com isso ela causa Não, de modo algum; pois se de fato for divulgado que, com
preocupações a seus familiares — pergunta-se para lá e para cá meu comportamento, eu realmente a deixo doente, e alguns
quanto às causas desse seu estado e, até agora, elas não foram observadores bem atentos — justamente os mais denodados
ainda encontradas. Só eu as conheço — é aquela antiga e sem- espalhadores de notícias — já estão a ponto de perceber isso
pre renovada irritação comigo. Ora, é claro que não partilho (ou ao menos se comportam como se o percebessem), e todo o
das preocupações de seus familiares; ela é forte e resistente; mundo virá fazer perguntas sobre por que é que eu, afinal, tor-
quem consegue ficar tão irritada assim, provavelmente também turo a pobre mulherzinha com essa minha incorrigibilidade e

102 103
se eu pretendo, porventura, levá-la à morte, e quando é que vou não seria, então, possível efetuar certas modificações em mim,
ter, por fim, o bom senso e a simples compaixão humana para mesmo que eu não as fizesse por estar convencido de sua neces-
acabar com isso — se todo o mundo vier me interpelar assim, sidade, mas só para acalmar a mulher. E, sinceramente, tentei
vai ser difícil responder. Deveria eu então confessar que não isso, não sem esforço e cuidados; isso correspondia inclusive a
acredito muito nesses sintomas, provocando com isso a desagra- uma necessidade minha, até quase me divertia; certas mudanças
dável impressão de que, para me livrar de uma culpa, fico cul- resultaram disso, eram perceptíveis de longe, eu nem precisava
pando a outros de modo tão deselegante? E será que por acaso chamar a atenção da mulher para elas, ela nota coisas assim
poderia dizer com toda a franqueza que, mesmo acreditando bem mais cedo que eu, ela já percebe a expressão da intenção
numa enfermidade real, não tenho a menor compaixão, pois a em meu ser; mas um êxito eu não consegui alcançar. E como
mulher me é completamente estranha e que a relação existente teria sido possível? A insatisfação dela para comigo é, como
entre nós só foi estabelecida por ela e só existe por parte dela? agora percebo, uma insatisfação radical: nada consegue eliminá-
Não quero afirmar que não iriam acreditar em mim; ao contrá- la, nem mesmo a eliminação de mim mesmo; seus acessos de
rio, não acreditariam nem deixariam de acreditar; nem chega- fúria, por exemplo, com a notícia de meu suicídio, seriam incon-
riam ao ponto de falar sobre isso; simplesmente registrariam a troláveis. Só que não consigo imaginar que ela, essa mulher pers-
resposta que dei em relação a uma mulher fraca, doente, e isso picaz, não perceba isso tão bem quanto eu, ou seja, tanto a falta
seria bem pouco favorável a mim. Com essa e com qualquer de futuro dos seus esforços quanto também a minha inocência,
outra resposta me ficaria permanentemente atravessada no cami- a minha incapacidade de mesmo com a maior das boas vontades,
nho a incapacidade do mundo em, num caso como esse, não corresponder às suas exigências. Certamente ela entende isso,
deixar que emergisse a suspeita de uma ligação amorosa, embora mas, por sua natureza combativa, ela o esquece na paixão da
seja extremamente claro e evidente que não existe tal ligação luta, e meu infeliz modo de ser — mas que não consigo mudar,
amorosa e que, se ela existisse, partiria antes de mim, já que pois ele me é, afinal, inerente e até inato — consiste em preten-
eu seria capaz de admirar, de algum modo, a pequena mulher der sussurrar uma suave admoestação a quem tenha perdido as
pelo caráter resoluto de seu juízo e pela natureza inquebrantá- estribeiras. Dessa maneira nós, naturalmente, jamais chegare-
vel de suas deduções, se eu não fosse sempre de novo punido mos a nos entender. Sempre de novo sairei de casa, digamos,
justamente por sua predileção por mim. Em todo caso, nela não na felicidade das primeiras horas matutinas e verei esse rosto,
há, contudo, nenhum rastro de um relacionamento mais amis- azedo por minha causa, com os lábios carrancudamente franzi-
toso para comigo; nisso ela é honesta e verdadeira; nisso repousa dos, o olhar inquisidor (a conhecer já o resultado antes do exa-
minha última esperança; nem sequer se servisse para seus pla- me) que me percorre e ao qual nada consegue escapar, por mais
nos bélicos fazer acreditar em tal relação comigo, ela chegaria ligeiro que seja, um sorriso amargo encravado nas maçãs juve-
a olvidar e fazer coisa semelhante. Mas o público, completa- nis, um lamuriento olhar erguido para os céus, um colocar as
mente obtuso e insciente quanto a isso, manteria sua opinião e mãos nos quadris para se firmar e afirmar, e depois, de indigna-
decidiria sempre contra mim. ção, palidez e tremor.
Assim, a rigor só me restaria ainda, antes que o mundo Ultimamente, e isso pela primeira vez (como na ocasião
intervenha, eu me modificar em tempo o suficiente para, não eu mesmo o reconheci, espantado), fiz algumas referências a
digo eliminar a irritação da mulherzinha (pois isso é impensá- essa questão para um amigo íntimo, só de passagem, bem de
vel), mas conseguir abrandá-la um pouco. E, de fato, já andei leve, algumas poucas palavras: por menor que externamente
com freqüência me perguntando se, afinal, meu atual estado seja em última instância o significado disso tudo para mim,
me satisfaz tanto que eu nem sequer pretenda modificá-lo, e se reduzi sua importância ainda um pouco abaixo da verdade. É

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estranho que, no entanto, o amigo não tenha deixado de escu- tomada e que eu logo seria convocado para assumir responsabi-
tar, mas inclusive chegasse a, por conta própria, emprestar-lhe lidades. Mas nada de decisão, nada de responsabilização, mulhe-
a maior relevância, não se deixando desviar do assunto e insis- res sentem-se mal com facilidade, o mundo não tem tempo para
tindo nele. Mais curioso ainda é que, apesar disso, ele subava- cuidar de todos os casos. E o quê, afinal, andou acontecendo
liasse a questão num ponto decisivo, pois seriamente me aconse- durante todos esses anos? Nada além de tais eventos se repeti-
lhou a viajar um pouco. Nenhum conselho poderia ser mais rem, ora mais fortes, ora mais fracos, e, portanto, sua soma
idiota; as coisas são de fato simples, qualquer um pode, ao se global acabar sendo bem maior. E que pessoas fiquem a circu-
aprofundar um pouco, percebê-las, mas tão simples elas também lar pelas vizinhanças, com vontade de interferir caso encontrem
não são que, com a minha partida, tudo — ou ao menos o uma oportunidade para isso; mas não encontram nenhuma, até
mais importante — ficaria em ordem. Ao contrário, devo preca- agora confiam apenas em seu faro, e o faro sozinho serve, na
ver-me contra viagens; se algum plano eu devo seguir, então verdade, para ocupar bastante seu detentor, só que não serve
para outra coisa. No fundo, porém, sempre foi assim, sempre
que seja, em qualquer caso, o de manter a questão dentro de
houve desses inúteis acomodados e paradões, que tratam de jus-
seus limites anteriores, estritos, ficando portanto quieto onde
tificar sua proximidade de algum modo superastucioso, de prefe-
estou, não permitindo grandes alterações, mudanças marcantes
rência por parentesco, e sempre tiveram o nariz todo cheio de
provocadas por essa questão, o que implica inclusive não falar faro, mas o resultado de tudo é que continuam a estar aí. Toda
com ninguém sobre isso — e não porque seja um segredo peri- a diferença é que aos poucos eu os reconheci, sei distinguir seus
goso, mas porque se trata de uma questiúncula puramente pes- focinhos; antes eu acreditava que eles aqui se reuniam vindos
soal e, enquanto tal, facilmente suportável, devendo assim tam- pouco a pouco de todos os lados, que as dimensões do caso iriam
bém manter-se. Quanto a isso, as observações do amigo não aumentar, forçando, por si mesmas, uma decisão; hoje acredito
foram completamente inúteis: não me acrescentaram nada de saber que tudo isso já estava aí desde antigamente, pouco ou
novo, mas reforçaram minha resolução. nada tendo a ver com uma tomada de decisão. E a própria deci-
Como acaba se mostrando após considerações mais apro- são, por que a denomino eu com uma palavra tão grandilo-
fundadas, as mudanças que a situação parece ter sofrido no qüente? Se um dia — e certamente não será amanhã, nem
decorrer do tempo não são mudanças na própria questão, mas depois de amanhã, provavelmente não será nunca — vier a acon-
apenas o desenvolvimento de minha visão dela, à medida que tecer que a esfera pública chegue a se ocupar com essa questão
essa visão se torna em parte mais serena, mais máscula, ficando (para a qual, como repetirei sempre, ela não é competente), não
mais próxima do cerne e acabando por ter, no entanto, em parte sairei ileso do processo, mas por certo há de se levar em conta
um certo nervosismo, devido à insuperável influência dos cons- o fato de que não sou um total desconhecido na esfera pública,
tantes sobressaltos, por mais leves que sejam. que desde sempre vivo à sua luz, todo confiante e merecedor
Fico mais calmo diante da questão quando acredito reco- de confiança; por isso é que essa mulherzinha doente, surgida
nhecer que uma decisão, por mais próxima que às vezes pareça tardiamente — mulherzinha que, diga-se de passagem, um outro
estar, ainda não haverá, porém, de chegar; especialmente quando que não eu talvez há muito já tivesse comparado a um pega-
se é jovem, tem-se a tendência de superestimar muito a veloci- pega e, sem fazer alarde disso diante da esfera pública, teria
dade com que decisões aparecem; cada vez que minha pequena esmigalhado debaixo do seu tacão —, ela, na pior das hipóte-
ses, apenas poderia acrescentar um pequeno e horrível garran-
juíza, debilitada por minha visão, afundava de lado na poltrona,
cho ao diploma no qual a esfera pública há tempos já me declara
segurando-se com uma mão no encosto e com a outra enrolando
seu respeitável membro. Este é o estágio atual das coisas
os dedos no colete, enquanto lágrimas de desespero despenca-
— pouco tendendo, portanto, a me intranqüilizar.
vam por suas faces, sempre pensei que a decisão já tivesse sido

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Que com os anos eu tenha ficado um pouco inquieto não
tem nada a ver com o significado propriamente dito da questão;
simplesmente a gente não consegue se agüentar, começa-se a
ficar — de certo modo apenas fisicamente — à espera de deci-
sões, mesmo que racionalmente não se acredite muito nelas.
Em parte se trata, porém, apenas de um sintoma de velhice; a
juventude reveste tudo agradavelmente; detalhes menos belos
perdem-se na incessante fonte da juventude; mesmo que alguém,
quando jovem, tenha tido um olhar bastante espreitador, isso
não foi levado a mal, não foi sequer notado, nem mesmo por
ele próprio; mas o que sobra na velhice são resíduos: cada um
deles é necessário, nenhum é renovado, todos ficam sob observa-
ção — e o olhar espreitador de um homem que esteja envelhe-
cendo é um olhar claramente de voyeur: e não é difícil percebê- Nas galerias
lo. Apenas que aqui também não se trata, no entanto, de uma
piora real e efetiva. Se uma decadente e tuberculosa amazona qualquer se
Portanto, de onde quer que eu observe isso, sempre de pusesse durante meses, sem interrupção, no picadeiro de um
novo se mostra — e a isso é que me atenho — que, se eu conse- circo, a dar voltas em círculo sobre um cavalo ondulante, diante
guir manter essa pequena questão apenas um pouco encoberta de um público incansável, tangida por um chefe a vibrar impla-
com a mão, também poderei continuar por muito tempo sem cável seu chicote, com ela em cima do cavalo a soltar silvos,
ser perturbado pelo mundo, continuar tranqüilamente essa vida jogar beijos, rebolar as cadeiras, e se essa brincadeira fosse con-
que tenho levado até agora, apesar de toda a agitação dessa tinuada sob o ininterrupto fragor da orquestra e dos ventilado-
mulherzinha. res, na direção de um futuro a se inaugurar cada vez mais cin-
zento, acompanhada por ondas de aplausos a decrescer e nova-
mente crescer como autênticos martelos a vapor — talvez um
jovem espectador descesse então correndo todos os degraus da
longa escadaria, talvez ele se precipitasse para dentro do pica-
deiro e gritasse um "parem!" por entre as fanfarras da sempre
adequada orquestra.
Já que, no entanto, não é assim — uma bela dama, branca
e vermelha, entra voando por entre os cortinados que orgulho-
sos lacaios abrem diante dela; o diretor, buscando sequioso
seus olhos, resfolega em sua direção como um cãozinho, ergue-a
orgulhoso sobre o cavalo malhado, como se ela fosse sua neta
predileta prestes a iniciar perigosa viagem: ele não consegue deci-
dir-se a dar o sinal com o chicote; por fim, dominando-se, dá o
sinal com um estalo; boquiaberto corre ao lado do cavalo; segue
com olhar penetrante os saltos da amazona; mal consegue con-

108 109
ceber sua habilidade; procura aconselhá-la com exclamações
inglesas; adverte furibundo aos palafreneiros que seguram os
arcos para que prestem a máxima atenção; com as mãos ergui-
das conclama, antes do grande salto mortal, que a orquestra
faça silêncio; e finalmente soergue a pequena do trêmulo corcel,
beija-a em ambas as faces e não lhe parece jamais suficiente
qualquer ovação do público, enquanto ela mesma, nele apoiada,
erguida na ponta dos pés e envolta em pó, com os braços esten-
didos, a cabecinha inclinada para trás, procura partilhar sua feli-
cidade com o circo inteiro — já que isso é assim, o espectador
das galerias reclina o rosto no parapeito e, imerso na marcha
triunfal como num sonho sombrio, chora sem saber.
Um artista da fome

O interesse por faquires decaiu muito nos últimos decênios.


Enquanto antigamente era bastante compensador organizar por
conta própria grandes apresentações desse tipo, hoje isso é com-
pletamente impossível. Os tempos eram outros. Naquela época
toda a cidade se ocupava com o artista da fome: dia após dia
do jejum, crescia a participação popular; cada um queria ver o
artista ao menos uma vez por dia; nos últimos dias havia assi-
nantes de permanentes que ficavam dias seguidos sentados em
frente à pequena jaula; mesmo à noite eram feitas visitas, com
a luz de archotes ampliando os efeitos; nos dias de tempo bom
a jaula era levada para o ar livre, sendo então o jejuador exi-
bido especialmente às crianças; enquanto para os adultos ele fre-
qüentemente era apenas uma diversão, da qual participavam
em parte só porque estava na moda, as crianças olhavam assom-
bradas, de boca aberta, uma segurando por garantia a mão da
outra, vendo como ele, pálido, em malha preta, com as costelas
fortemente marcadas, desdenhando até mesmo um recosto,
assentava-se sobre palha esparsa, acenando às vezes polidamente
e sorrindo com esforço, e respondia a perguntas, chegando a
estender o braço através das grades para que sua magreza fosse
apalpada, mas depois mergulhava de novo totalmente em si
mesmo, não se preocupando com ninguém, nem sequer com as
batidas do relógio, relógio tão importante para ele e acessório

110 III
único da jaula, e ele só ficava fitando fixamente com os olhos mais feliz quando afinal chegava a manhã, e era trazido para
quase cerrados, bebericando de quando em vez de um minús- os vigias, por sua conta, um desjejum bem farto e variado,
culo copo para umedecer os lábios. sobre o qual eles se lançavam com o apetite de homens sadios
Além dos espectadores ocasionais, havia também vigias após uma noite de laboriosa vigília. É verdade que havia pes-
permanentes, escolhidos pelo público e que, curiosamente, em soas que inclusive queriam ver nesse desjejum uma indevida ten-
geral eram açougueiros: sempre três ao mesmo tempo, tinham tativa de corrupção dos guardas, mas isso era ir longe demais,
por tarefa observar dia e noite o jejuador, para verificar se ele, c quando se perguntava a elas se porventura queriam assumir
de algum modo oculto e secreto, chegava a se alimentar. Isso a vigia noturna em nome da causa e sem o café da manhã, tor-
era, porém, apenas mera formalidade, introduzida para acal- ciam a cara e tiravam o corpo fora, mas mesmo assim manti-
mar as massas, pois os iniciados sabiam que, durante o período nham suas suspeitas.
de jejum, o artista da fome jamais, sob circunstância nenhuma, Isso já fazia, porém, parte das suspeitas não mais separá-
mesmo sob coação, teria comido a mínima coisa — a honra de veis da profissão de jejuador. Ninguém estava em condições de
sua arte o proibia. É claro que nem todo vigia era capaz de passar ininterruptamente todos os dias e noites junto ao artista
entender isso: às vezes havia grupos de vigilância noturna que da fome; portanto, ninguém podia saber, por observação pes-
exerciam a vigília com muita displicência, sentando-se proposita- soal, se realmente havia sido jejuado ininterruptamente, sem
damente num cantinho distante e lá mergulhando num jogo de falha alguma; só o próprio jejuador podia saber isso, somente
cartas, com o evidente propósito de permitir ao jejuador fazer ele podia ser, por conseguinte, considerado ao mesmo tempo o
uma boquinha, coisa que, na opinião deles, ele podia levar a espectador plenamente satisfeito com seu jejum. Mas ele, de
cabo lançando mão de secretas provisões. Nada atormentava novo por um outro motivo, jamais estava satisfeito: talvez nem
tanto o artista da fome quanto tais guardas; eles o deixavam sequer estivesse tão emagrecido por causa do jejuar (a ponto
deprimido; faziam com que o jejuar se tornasse terrivelmente de muitos, para sua lástima, terem de se manter longe das exibi-
pesado e penoso; às vezes ele superava sua fraqueza e, enquanto ções, pois não suportavam olhar para ele), talvez ele só estivesse
podia, cantava durante a vigília para demonstrar às pessoas tão magro por insatisfação consigo mesmo. É que só ele sabia
como era injusto suspeitarem dele. Mas isso de pouco adianta- — só ele e mais nenhum iniciado sabia disso — como era fácil
va: eles então apenas se admiravam de sua habilidade de ao jejuar. Era a coisa mais fácil do mundo. Ele inclusive não ocul-
mesmo tempo comer e cantar. Eram-lhe preferíveis os vigias tava isso, mas não acreditavam nele: na melhor das hipóteses,
que se sentavam bem junto à grade e, não se contentando com era considerado modesto, mas em geral era considerado um con-
a lúgubre iluminação noturna do recinto, focavam-no com lan- tador de lorotas ou até mesmo um farsante, para o qual passar
ternas portáteis que o empresário colocava à disposição. A luz fome era, no entanto, fácil, pois sabia como torná-lo fácil, tendo
intensa não o perturbava nem um pouco; embora ele não pudesse ainda por cima tinha o topete de quase confessá-lo. Tudo isso
dormir nada, sempre conseguia cochilar um pouco sob qual- tinha ele de engolir e, com o correr dos anos, até havia se acos-
quer luminosidade e a qualquer hora, mesmo no salão superlo- tumado, mas essa insatisfação sempre o roía por dentro e nun-
tado e barulhento. Estava muito disposto a passar sem dormir ca, após qualquer período de jejum — tal crédito era preciso
a noite toda com esses vigias; estava disposto a gracejar com conceder-lhe —, chegara a deixar espontaneamente a jaula. O
eles, contar-lhes histórias de sua vida errante, depois escutar his- empresário havia fixado em quarenta dias o prazo máximo do
tórias deles, tudo só para mantê-los acordados, para poder mos- jejum, mais que isso ele jamais permitia jejuar, mesmo nas gran-
trar-lhes sempre de novo que nada de comestível havia na jaula des metrópoles, e por uma boa razão. De acordo com a experi
e que ele jejuava como nenhum deles seria capaz. Mas ele ficava ência, por cerca de quarenta dias podia-se espicaçar cada vez

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mais o interesse de uma cidade por meio de uma propaganda por cima do artista da fome, como se convidasse os céus a con-
gradativamente ativada, mas depois o público fraquejava, podia- templarem mais uma vez sua obra aí em cima da palha, esse
se constatar uma substancial redução no comparecimento; natu- mártir digno de comiseração — mártir que o artista da fome efe-
ralmente existiam, nesse aspecto, pequenas diferenças entre as tivamente era, só que num sentido bem diverso —: agarrava o
cidades e entre os países, mas em regra quarenta dias era o artista da fome em torno da cintura delgada, com um cuidado
limite máximo. Por isso, no quadragésimo dia, o portão da jaula hiperbólico, com o qual procurava fazer acreditar que estava
enfeitado de flores era, então, aberto, uma platéia entusiasmada lendo de lidar com algo muito frágil; e — não sem sacudi-lo
enchia o anfiteatro, uma banda militar tocava, dois médicos um pouco às escondidas, de tal modo que o artista da fome
entravam na jaula para efetuar as necessárias mensurações no balançasse descontrolado de um lado para o outro com as per-
artista da fome, os resultados eram anunciados ao público atra- nas e o tronco — tornava a entregá-lo para as jovens damas
vés de um megafone e, por fim, duas jovens damas, felizes por que, entrementes, tinham ficado mortalmente pálidas. Agora o
terem sido justamente elas as sorteadas, pretendiam ajudar o artista da fome tolerava tudo: com a cabeça caída sobre o pei-
faquir a descer alguns degraus até onde, sobre uma pequena to, era como se tivesse rolado e ali inexplicavelmente permane-
mesinha, estava servida uma refeição de doente cuidadosamente cesse; o corpo estava como que esvaziado; as pernas, no instinto
preparada. E, nesse momento, o artista da fome sempre resistia. de autoconservação, comprimiam-se uma contra a outra à altura
É verdade que ele ainda colocava voluntariamente seus braços dos joelhos, mas raspavam no entanto o chão como se ele não
ossudos nas mãos estendidas, prontas para ajudar, das damas fosse de verdade, como se ainda procurassem o verdadeiro; e o
sobre ele inclinadas, mas levantar-se ele não queria. Por que peso todo do corpo, embora bastante reduzido, recaía sobre
parar exatamente agora, após quarenta dias? Ele teria ainda uma das damas que, buscando ajuda e com a respiração ofe-
agüentado por muito tempo, por um período ilimitado; por que gante — assim ela não havia se imaginado esse cargo honorífi-
parar justamente agora, quando estava no melhor do jejum, co! —, primeiro esticava ao máximo o pescoço para ao menos
quando ainda nem sequer estava no melhor do jejum? Por que proteger e preservar o rosto do contato com o artista da fome,
pretendiam privá-lo da glória de continuar passando fome, de mas depois, já que não conseguia isso e a sua colega, mais feliz
se tornar não só o maior jejuador de todos os tempos — o que que ela, não a socorria (contentando-se com transportar trêmula
ele provavelmente já era —, mas ser inclusive ainda capaz de a mão do jejuador, esse diminuto feixe de ossos, sob o riso deli-
superar a si mesmo até o inconcebível, pois não sentia limites ciado da sala), rompia em prantos, tendo de ser substituída por
para sua capacidade de jejuar? Por que será que essa multidão, um criado adrede já disposto para isso. Em seguida vinha a refei-
que fingia admirá-lo tanto, tinha tão pouca paciência com ele? ção, da qual o empresário fazia o artista da fome ingerir um
Se ele agüentava continuar jejuando, por que ela não suporta- pouco durante uma semidormência parecida com um desmaio,
va? Além disso, ele estava cansado, muito bem acomodado na em meio a uma divertida patacoada, que servia para desviar a
palha, e agora queriam que endireitasse o corpo todo, ficasse atenção quanto ao estado do artista da fome; em seguida erguia-
de pé, e andasse até a comida, comida que, só de pensar, cau- se ainda um brinde ao público, um brinde supostamente suge-
sava-lhe engulhos, cuja exteriorização ele só a custo reprimia rido pelo artista da fome ao empresário; a orquestra reforçava
em consideração às damas! E ele olhava nos olhos dessas moças tudo isso com uma grande fanfarra e todos se dispersavam, sem
tão amáveis na aparência, na verdade tão cruéis, e balançava a que ninguém tivesse o direito de ficar insatisfeito com o que
cabeça, demasiado pesada para o débil pescoço. Mas daí aconte- havia visto: ninguém, exceto o artista da fome, sempre apenas ele.
cia o que sempre acontecia. O empresário chegava e, calado (a Assim ele viveu por muitos e muitos anos, com pequenas
música tornava impossível qualquer discurso), erguia os braços pausas regulares de descanso, num resplendor aparente, respei-

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tado pelo mundo, mas, apesar de tudo, geralmente num estado fome viu-se abandonado pelas multidões ávidas de diversão
de ânimo sombrio, que se tornava cada vez mais sombrio por que preferiam afluir para outros espetáculos. Ainda uma vez c
ninguém levá-lo a sério. Aliás, como é que se poderia consolar empresário percorreu com ele metade da Europa, para ver se
o artista? O que lhe restava almejar? E se uma vez algum bem- aqui e acolá não se reencontrava o antigo interesse; tudo em
intencionado se compadecesse dele querendo explicar-lhe que vão; como que por um tácito acordo, por toda parte havia se
sua tristeza provavelmente provinha do jejuar, podia ocorrer cristalizado uma direta repulsa contra a exibição da fome. Natu-
— especialmente no estágio avançado do jejum — que o artista ralmente isso não podia, na realidade, ter ocorrido de modo tão
reagisse com um acesso de fúria, passando a sacudir as grades súbito e, agora, a posteriori, relembravam-se muitos presságios
como um animal, para susto de todos. O empresário tinha, no que, à época da embriaguez do triunfo, não haviam sido suficien-
entanto, para tais situações um castigo que gostava de aplicar. temente respeitados nem suficientemente reprimidos; mas agora
Desculpava o artista perante o público aí reunido, reconhecia já era tarde demais para fazer qualquer coisa quanto a isso. É
que só a irritabilidade provocada pelo jejum — algo não muito claro que, com toda a certeza, os tempos de passar fome ainda
compreensível para pessoas bem-alimentadas — poderia tornar voltariam um dia, mas isso não era consolo nenhum para aque-
perdoável o comportamento do artista da fome; nesse contexto, les que agora viviam. Mas o que tinha de fazer agora um artista
acabava referindo-se inclusive à assertiva do artista, assertiva a da fome? Quem fora aclamado por milhares não podia exibir-
ser igualmente esclarecida, de que ele seria capaz de jejuar por se em barracas nas pequenas feiras anuais e, para adotar uma
ainda mais tempo do que estava jejuando; louvava tão elevada outra profissão, o artista não só estava velho demais, mas sobre-
aspiração, a boa vontade, a grande negação de si mesmo que, tudo demasiado fanaticamente entregue ao jejuar. Assim sen-
por certo, também estavam contidas nessa assertiva, procurava, do, ele dispensou então o empresário, o companheiro de uma
no entanto, refutá-la em seguida, simplesmente exibindo foto- incomparável carreira, e aceitou empregar-se num grande circo;
grafias — que nesse ínterim estavam sendo vendidas —, pois para poupar sua suscetibilidade, nem sequer olhou as condições
nas fotos via-se o artista da fome no leito, no quadragésimo dia contratuais.
do jejum, quase morto de inanição. Essa distorção da verdade, Um grande circo, com seus inúmeros homens, animais e
ainda que já bem conhecida pelo artista da fome, mas sempre aparelhos sempre a se compensarem e complementarem, pode
de novo enervante, era demais para ele. O que decorria do encer- utilizar qualquer sujeito a qualquer momento, até mesmo um
ramento prematuro do jejum era apresentado como sua causa! artista da fome (se, naturalmente, as pretensões dele forem
Contra tamanha falta de compreensão, contra tal mundo de modestas); e, além disso, nesse caso em especial, não era contra-
incompreensão era impossível lutar. Ainda que reiteradamente tado apenas o artista, mas também seu antigo e renomado
ele tivesse, junto às grades, escutado de boa-fé o empresário, nome; de fato, dada a peculiaridade de sua arte — que não
quando apareciam as fotografias ele, no entanto, largava toda diminuía com o correr da idade —, não se podia afirmar que
vez as grades, tornava a mergulhar soluçando na palha, e o o veterano artista pretendia refugiar-se num posto tranqüilo de
público acalmado podia aproximar-se novamente e examiná-lo. circo por não estar mais no auge de suas habilidades; ao contrá-
Quando as testemunhas de tais cenas voltavam a lembrar- rio, o artista da fome garantia que — e isso era plenamente
se disso alguns anos mais tarde, muitas vezes não conseguiam digno de fé — continuava jejuando tão bem quanto antes; decla-
mais entender a si mesmas. Pois entrementes já havia ocorrido rava inclusive que, caso o deixassem fazer sua vontade — e isso
a referida mudança; ela havia ocorrido quase de repente; talvez logo lhe foi prometido —, agora sim é que iria deixar o mundo
houvesse motivos mais profundos, mas quem iria tratar de des- em justo espanto, declaração que, em vista da mentalidade da
cobri-los? Em todo caso, um dia o mimadíssimo artista da época (que, em seu zelo, o artista da fome esquecia com facili-

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dade), apenas provocou, no entanto, um leve sorriso entre os semelhantes, mas incomparavelmente mais grandiosas e, então,
especialistas. as crianças, por causa de seu preparo insuficiente na escola e
Mas, no fundo, o jejuador também não chegava a perder na vida, continuavam sem entender — o que era, para elas, pas-
de vista as condições reais e encarou com naturalidade não ter sar fome? —, mas traíam no brilho de seus olhos perscrutado-
sido colocado com sua jaula, como número apoteótico, no cen- res algo dos novos tempos, dos tempos vindouros, tempos mais
tro do picadeiro, mas sim fora, num lugar aliás bastante acessí- clementes. Talvez — assim dizia às vezes para si mesmo o artista
vel, situado perto dos estábulos. Grandes cartazes coloridos — tudo efetivamente ficasse um pouco melhor se seu local de
emolduravam a jaula e anunciavam o que nela havia para ser exibição não fosse tão perto das estrebarias. Assim como estava,
visto. Quando o público, nos intervalos do espetáculo, acorria a escolha tornava-se demasiado fácil para as pessoas, sem falar
às estrebarias para dar uma olhada nos animais, era quase inevi- que as emanações dos estábulos, a inquietação dos animais à
tável que passasse em frente ao artista da fome e parasse um noite, o transporte dos pedaços de carne crua para os felinos,
pouco; talvez as pessoas permanecessem ali por mais tempo, se os rugidos durante a alimentação, deixavam-no muito pertur-
aquelas que vinham atrás, sem entender essa parada a caminho bado e permanentemente deprimido. Mas ele não ousava reivin-
das almejadas estrebarias, não tornassem impossível uma obser- dicar algo junto à direção; mesmo assim, agradecia aos animais
vação mais detida e tranqüila. Essa também era a razão pela a multidão de visitantes, entre os quais se podia encontrar,
qual, por sua vez, o artista da fome tremia ante esses momen- aqui e acolá, algum destinado a ele; e como conseguir saber
tos de visitação, que ele naturalmente desejava enquanto meta onde seria enfiado, caso quisesse fazer lembrar sua existência e,
de vida. Nos primeiros tempos ele mal podia esperar as pausas com isso, pensando bem, lembrar que era apenas um obstáculo
entre as apresentações; dirigia, encantado, o olhar para a multi- no caminho para as estrebarias.
dão que se aproximava, até que logo — nem mesmo o mais per- De qualquer modo um pequeno obstáculo, um obstáculo
tinaz e quase inconsciente auto-engodo resistia à experiência cada vez menor. As pessoas se acostumavam à estranheza de se
— se convenceu de que, quanto à meta, eram todos sempre de querer, nos tempos atuais, chamar a atenção para um artista da
novo, sem exceção, apenas visitantes das estrebarias. E esse fome e, com isso, já estava lavrada a sentença contra ele. Podia
olhar a distância continuava sendo sempre ainda o mais bonito. jejuar tão bem quanto quisesse — e ele o fazia —, mas nada
Pois assim que os visitantes se aproximavam dele. logo o envolviam mais poderia salvá-lo: passava-se direto por ele. Tente explicar a
a gritaria e a xingação dos partidos que ininterruptamente sem- alguém a arte de passar fome! Para quem não sente isso, para
pre de novo se formavam: o partido daqueles que — em pouco esse não se pode explicar. Os belos cartazes ficaram sujos e ilegí-
tempo este se tornou o mais penoso para o artista da fome — veis, foram arrancados, a ninguém ocorreu substituí-los; a pequena
queriam contemplá-lo comodamente, não por compreensão, tabela com o número dos dias de jejum completados, que nos
mas por capricho e teimosia, e o partido daqueles que primeiro primeiros tempos era cuidadosamente renovada a cada dia, conti-
só queriam ir até as estrebarias. Tendo passado a turba maior, nuava há muito já sempre a mesma, pois após as primeiras sema-
chegavam então os retardatários, mas mesmo estes, aos quais nas inclusive esse pequeno trabalho havia se tornado uma cha-
nada mais impedia de ficarem parados tanto quanto quisessem, tura; e, assim, o artista continuou de fato a jejuar, como antiga-
apressavam-se em passar a passos largos, quase sem olhar para mente ele uma vez sonhara, e isso lhe era possível exatamente
o lado, para chegarem em tempo até os animais. E não era um assim, sem esforço, como ele outrora o previra; mas ninguém
feliz acaso muito freqüente que um pai de família viesse com contava os dias, ninguém, nem sequer o próprio artista da fome
sua prole, apontasse com o dedo para o artista da fome e falasse sabia qual já era a dimensão de seu feito, e seu coração tornou-
dos tempos pretéritos, quando ele presenciara apresentações se pesaroso. E se, nessa época, um folgadão qualquer se detinha,

118 I [9
fazendo gozações sobre o velho número e pondo-se a falar de Estas foram suas últimas palavras, mas em seus olhos
embuste, esta seria, nesse sentido, a mais estúpida mentira que alquebrados persistia ainda a firme convicção, só que não mais
a indiferença e a maldade inata poderiam inventar, pois não era orgulhosa, de que teria continuado jejuando.
o artista da fome quem fraudava — ele trabalhava com honesti- — Mas agora ponham isso em ordem! — comandou o ins-
dade —, mas o mundo é que o enganava quanto a seus méritos. petor, e o artista da fome foi enterrado junto com a palha.
Na jaula foi, porém, colocado um jovem macho de pante-
Passaram-se ainda muitos dias, e também isso chegou ao ra. Até mesmo para o senso mais embotado era um sensível alí-
fim. Certa vez um inspetor notou a jaula e perguntou aos ser- vio ver esse animal selvagem a dar voltas na jaula por tanto
ventes por que se deixava aí parada, sem uso, essa jaula perfei- tempo deserta. Nada lhe faltava. Sem muito pestanejar, os trata-
tamente aproveitável, com palha podre dentro; ninguém sabia, dores traziam o alimento que lhe apetecesse; nem mesmo da
até que um deles, com a ajuda da tabuleta, lembrou-se do artista liberdade parecia sentir falta esse nobre corpo, provido de todo
da fome. A palha foi levantada com pedaços de pau e, dentro o necessário até quase estourar, dando a impressão de carregar
dela, encontrou-se o artista. consigo inclusive a liberdade: ela parecia estar escondida em
— Você continua jejuando? — perguntou o inspetor. algum lugar de suas mandíbulas; e a alegria de viver brotava
Quando é que você finalmente vai parar? com tal intensidade de sua garganta que para os espectadores
— Desculpem-me todos — sussurrou o artista da fome; não era fácil não recuar diante disso. Mas eles se controlavam,
só o inspetor, que estava com o ouvido colado às grades, conse- apinhavam-se ao redor da jaula e de jeito nenhum queriam sair
guia entendê-lo. dali.
— É claro — disse o inspetor, e colocou o dedo junto à
testa para indicar, com isso, o estado mental do artista — nós
perdoamos você.
— Eu sempre quis que vocês admirassem meu jejum
— disse o artista da fome.
— E nós também admiramos — disse o inspetor com sim-
patia.
— Mas vocês não deviam admirar — disse o artista.
— Ora, então nós também não admiramos — disse o inspe-
tor —, mas por que, afinal de contas, não devíamos admirar?
— Porque eu tenho de jejuar, não posso fazer diferente
— disse o artista da fome.
— Mas veja só isso — disse o inspetor. — Por que é que
você não pode fazer diferente?
— Porque eu — disse o artista da fome, levantando a
minúscula cabeça e falando com os lábios em bico, como se
fosse beijar, diretamente no ouvido do inspetor, para que nada
se perdesse —, porque eu não pude achar comida que me agra-
dasse. Se tivesse encontrado, acredite, eu não teria feito cerimô-
nia e teria enchido a barriga, como você e todo o mundo.

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de resistir a ele, mas essa resposta não é satisfatória. Se real-
mente assim fosse, seria preciso ter diante desse canto, de uma
vez por todas, a sensação do extraordinário, a sensação de que
dessa garganta ressoa algo jamais ouvido antes, algo que nós
inclusive nem sequer temos a capacidade de ouvir, algo para o
qual só essa Josefina e ninguém mais nos capacita. Mas, na
minha opinião, é exatamente isso o que não ocorre; eu não o
sinto, e também não notei nada semelhante nos outros. Em cír-
culos íntimos, admitimos entre nós que o canto de Josefina não
representa nada de extraordinário enquanto canto.
Será que é, afinal, realmente um canto? Apesar de toda a
nossa não-musicalidade, temos tradição de canto; nos tempos
idos de nosso povo, havia canto; sagas falam disso, e até certas
Josefina, a cantora, ou O povo dos ratos cantigas foram conservadas, cantigas que, é claro, ninguém
mais sabe cantar. Temos, portanto, uma certa noção daquilo
que seja canto e, a rigor, a arte de Josefina não corresponde a
Nossa cantora se chama Josefina. Quem não a ouviu não
tal noção. Será que é, afinal, realmente um canto? Será que não
conhece o poder do canto. Não há ninguém a quem seu canto
é, talvez, tão-somente um assobio? E, no entanto, assobiar todos
não arrebate, e isso deve ser ainda mais valorizado na medida
nós sabemos, esse é um autêntico talento de nosso povo, ou
em que em geral nossa raça não ama a música. Silenciosa paz
melhor, nem sequer um talento, mas uma expressão caracterís-
é nossa música predileta; para nós a vida é dura, e mesmo
tica da vida. Todos nós assobiamos, mas certamente ninguém
quando procuramos nos livrar de vez de todas as preocupações
pretende passar isso por arte; damos nossas assobiadas sem
cotidianas, já não sabemos mais elevar-nos a coisas tão distan-
sequer prestar atenção nelas, sim, sem sequer notar, e entre nós
tes de nossa vida diária como a música. Mas não lamentamos
inclusive há muitos que nem sequer sabem que assobiar pertence
muito isso; nem sequer chegamos a tanto; uma certa astúcia prá-
às nossas peculiaridades. Se, portanto, fosse verdade que Jose-
tica — da qual evidentemente precisamos com a maior premên-
fina nem sequer canta mas apenas assobia, e que, como ao
cia —, é isso que consideramos ser nossa maior vantagem; e é
menos me parece, talvez mal vá além das fronteiras do assobiar
com o suave sorriso dessa astúcia que costumamos nos consolar
costumeiro — sim, talvez suas forças nem sequer bastem plena-
de tudo, mesmo que alguma vez (o que, no entanto, não ocor-
mente para essa assobiação habitual, enquanto um comum tra-
re) aspirássemos à felicidade que talvez emane da música.
balhador da terra efetua isso sem esforço o dia todo ao longo
Somente Josefina constitui uma exceção; ela ama a música e
de seu labor —, se tudo isso fosse verdadeiro, então o suposto
também sabe transmiti-la; é a única; quando falecer, a música
talento artístico de Josefina estaria de fato refutado, mas daí
desaparecerá — quem sabe por quanto tempo — de nossas vidas.
sim é que ainda mais restaria por resolver o enigma de seu
Já andei meditando com freqüência sobre o que de fato
grande sucesso. .
ocorre com essa música. Pois somos completamente amusicais;
como é que entendemos o canto de Josefina ou, já que Josefina Mas não é exatamente apenas assobio aquilo que ela pro-
nega que entendamos, como é que ao menos acreditamos enten- duz. Quando nos colocamos a uma boa distância dela e a escu-
der? A resposta mais simples seria que o encanto desse canto é tamos ou, melhor ainda, quando fazemos um teste nesse sentido
tão imenso que nem mesmo o sentido mais embotado é capaz (se, portanto, Josefina canta, digamos, em meio a outras vozes

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e nos propomos a tarefa de identificar sua voz), então inegavel- não lhe diz nada. E, quando se está sentado no público diante
mente não se escuta outra coisa senão um trinado comum, no dela, consegue-se entendê-la; oposição só se faz a distância;
máximo a se destacar um pouco por sua delicadeza ou debili- quando se está sentado diante dela, sabe-se: o que ela está asso-
dade. Mas caso estejamos em frente a ela, então não é apenas biando não é um assobiar.
um assobio: para entender sua arte é necessário não só ouvi-la, Já que assobiar pertence a nossos hábitos espontâneos,
mas também vê-la. Mesmo que fosse apenas nosso assobio coti- poder-se-ia supor que o público de Josefina também assobia;
diano, mesmo assim já existe nele, desde o início, a singulari- com sua arte nos sentimos bem e, quando nos sentimos bem,
dade de alguém pôr-se de modo solene a não fazer outra coisa nós assobiamos; mas o público dela não assobia, nem um rato
que não o trivial. Quebrar nozes não é, realmente, nenhuma bole, como se partilhássemos de almejada paz, paz da qual
arte; por isso ninguém há de ousar reunir um público e, para nosso próprio assobio no mínimo nos apartaria e, portanto,
entretê-lo, dispôr-se a quebrar nozes diante dele. Se, mesmo calamos. Será que é seu canto o que nos encanta ou, ao contrá-
assim, ele o fizer e alcançar êxito em seu propósito, então não rio, a solene calma a envolver sua débil e frágil voz? Aconteceu
pode tratar-se tão-somente de um quebrar nozes. Ou então se uma vez que, durante a cantoria de Josefina, um tipinho idiota
trata de um quebrar nozes e acaba se revelando que não havía- qualquer também começou a assobiar, na maior inocência.
mos percebido essa arte porque a dominávamos completamente, Ora, era exatamente o mesmo que também ouvíamos de Jose-
arte que esse novo quebrador de nozes é o primeiro a nos mos- fina: lá na frente, o assobio ainda tímido, apesar de toda a prá-
trar em sua autêntica essência, quando até poderia ser útil à tica, e cá no auditório, a assobiação infantil e inconsciente; teria
impressão causada se ele fosse um pouco menos hábil em que- sido impossível apontar diferenças; mas, com sibilos e assobios,
brar nozes do que a maioria de nós. nós logo liqüidamos o perturbador, mesmo que isso nem sequer
Talvez algo semelhante ocorra com o canto de Josefina; fosse necessário, pois de qualquer modo ele certamente se teria
nela admiramos algo que não admiramos nem um pouco em escondido de medo e vergonha, enquanto Josefina ensaiava sua
nós; aliás, quanto a isso, ela está de pleno acordo conosco. Eu assobiação triunfal e, completamente fora de si, estendia os bra-
estava uma vez presente quando alguém — isso ocorre, natural- ços e esticava o pescoço até não mais poder.
mente, com freqüência — chamou a atenção dela para a genera- Aliás, ela é sempre assim: qualquer ninharia, qualquer inci-
lizada assobiação do povo, e o fez de modo bem discreto, mas dente, qualquer bulha, um estalido no assoalho, um ranger de
para Josefina isso já foi demais. Jamais vi uma risada tão debo- dentes, uma falha na iluminação, ela os considera até convenien-
chada, tão arrogante quanto a dela; ela, que externamente é a tes para aumentar a eficácia de seu canto; em sua opinião, ela
própria delicadeza em pessoa, acentuadamente delicada mesmo canta para ouvidos moucos; entusiasmo e aplausos não lhe fal-
num povo tão rico quanto o nosso em semelhantes figuras femi- tam, mas há muito ela já aprendeu a desistir do verdadeiro
ninas, pareceu claramente mesquinha naquela ocasião; com sua entendimento, tal como ela o entende. Por isso é que todas as
imensa sensibilidade, ela logo pôde, aliás, sentir isso e controlar- perturbações lhe vêm muito a propósito: tudo o que, de fora,
se. Em todo caso, ela nega, em suma, qualquer relação entre a se contrapõe à pureza de seu canto acaba sendo, em rápida dis-
sua arte e o assobiar. Para os que forem de opinião contrária puta, até mesmo sem disputa, derrotado tão-somente através
ela tem apenas desprezo e, provavelmente, inconfesso ódio. Isso da contraposição, podendo servir para acordar a multidão, para
não é vaidade comum, pois tal oposição, a que eu também per- ensinar-lhe, talvez, não compreensão, porém instintivo respeito.
tenço, com certeza, não a admira menos do que a multidão; Mas se o pequeno já assim lhe serve, ainda mais o grande
mas Josefina não quer ser apenas admirada, ela quer ser admi- Nossa vida é muito intranqüila, cada dia traz surpresas, temo-
rada exatamente do modo por ela definido: mera admiração res, esperanças e sustos, de tal modo que o sujeito não seria

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capaz de suportar tudo isso se não tivesse a todo momento, dia um número suficiente de ouvintes — então ela fica, é claro, furi-
e noite, o apoio dos companheiros; mas, mesmo assim, a vida bunda, bate com o pezinho no chão, xinga de um modo bas-
com freqüência se torna bastante difícil; às vezes inclusive mil tante impróprio a moças, chega até a morder. Mas mesmo um
ombros tremem sob a carga que, a rigor, se destinava a apenas comportamento desses não prejudica sua fama; ao invés de redu-
um. Josefina considera então chegada a sua hora. Ela está logo zir um pouco suas exigências, há um esforço no sentido de
aí, delicado ser vibrando assustadoramente, sobretudo na parte atendê-las; mensageiros são enviados para convocar ouvintes;
debaixo do peito; é como se ela tivesse reunido toda a sua força mantém-se diante dela segredo de que isso esteja acontecendo;
no canto, como se tudo o que nela não sirva de modo imediato nos caminhos ao redor vêem-se, por toda parte, colocadas senti-
ao canto fosse privado de toda energia, de quase toda e qual- nelas que fazem gestos para os que estão chegando, a fim de
quer possibilidade de vida; como se ela estivesse despojada, que se apressem; isso durante um tempo suficiente para, por fim,
abandonada, entregue apenas à proteção dos bons espíritos; estar então reunido um número razoável de ouvintes.
como se ela pudesse — enquanto, despojada de si mesma, habita O que impele o povo a se esforçar tanto por Josefina? Per-
seu canto — ser morta por um hálito frio que por aí perpassasse. gunta não menos difícil de responder do que aquela relativa ao
Mas é justamente diante dessa visão que nós, seus supostos opo- canto de Josefina, com a qual também está, afinal, relacionada.
sitores, costumamos dizer uns aos outros: "Ela nem sequer Seria possível riscá-la e fundi-la com a segunda questão, caso
sabe assobiar; ela precisa esforçar-se tremendamente para conse- fosse possível, por exemplo, afirmar que, por causa do canto,
guir extrair de si não um canto — não falemos de canto —, o povo está incondicionalmente entregue a Josefina. Mas certa-
mas, até certo ponto, o usual assobio da terra". Assim nos mente não é esse o caso; devoção incondicional o nosso povo
parece; essa é, no entanto, como já foi aventado, uma impres- mal conhece; esse povo que, acima de tudo, ama a astúcia ainda
são talvez inevitável, mas superficial e muito fugaz. Em breve que sem maldade, o mexerico infantil, o fofocar embora ino-
também nós mergulhamos no sentimento da massa que, cálida, cente e que acaba só movimentando lábios — um povo desses
corpo a corpo, calada escuta, com medo até de respirar. não pode, de jeito nenhum, entregar-se incondicionalmente: até
E para reunir em torno de si tal multidão, desse nosso Josefina sente isso, e é o que ela combate com todo o vigor de
povo quase sempre em movimento, a zunir para lá e para cá sua frágil garganta.
por motivos nem sempre muito claros, Josefina em geral não É claro que não se deve, nesses julgamentos genéricos, ir
precisa fazer outra coisa senão, com a cabecinha jogada para longe demais: o povo é bastante devotado a Josefina, só que
trás, a boca semi-aberta, os olhos voltados para o alto, assumir não incondicionalmente. Ele não seria, por exemplo, capaz de
a postura que indica que pretende cantar. Ela pode fazer isso rir de Josefina. Pode-se admitir: em Josefina há muita coisa
onde quiser, não precisa ser um lugar visível de longe; um recanto que convida ao riso; e, em si, ele sempre está bem próximo a
escondido qualquer, escolhido ao acaso do capricho momentâ- nós; apesar de toda a miséria de nossa vida, um discreto riso
neo, é igualmente aproveitável. A notícia de que ela quer cantar mora sempre conosco (até certo ponto); mas de Josefina nós
logo se espalha e bem depressa procissões para ali se dirigem. não rimos. Às vezes tenho a impressão de que o povo concebe
Ora, por vezes surgem obstáculos, pois Josefina prefere cantar seu relacionamento com Josefina de modo tal que ela, ente frá-
justamente em épocas agitadas, quando múltiplos deveres nos gil e carente de proteção, ente de algum modo notável — na
obrigam a diversificados caminhos, não sendo então possível opinião dela, notável pelo canto —, está confiada a ele, e ele
nos reunirmos, ainda que tenhamos a maior das boas vontades, deve cuidar dela; a razão disso não é bem clara para ninguém,
tão depressa quanto o deseja Josefina, e talvez ela permaneça só o fato parece institucionalizado. Mas não se costuma rir
alguma vez, por um tempo, em sua grandiosa postura e sem daquilo que nos é confiado; rir disso seria violação do dever; o

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máximo de maldade que os mais maldosos dentre nós cometem das, É claro que ela não nos salva e não nos dá forças, é fácil
é às vezes dizer: "Em nós se desvanesce o riso quando vemos fazer-se passar por salvador desse povo acostumado ao sofri-
Josefina". mento, povo que não se poupa, que é rápido nas decisões, que
Assim, o povo cuida de Josefina à maneira de um pai que conhece a morte, que só aparentemente é medroso em meio à
toma conta de um filho que lhe estende a mãozinha — não se atmosfera de perigos onde constantemente vive, povo que, além
sabe ao certo se em súplica ou exigência. Talvez se deva pensar disso, é tão fecundo quanto astucioso — é fácil, digo eu, fazer-
que nosso povo não serve para desempenhar tais deveres pater- se passar a posteriori por salvador de tal povo, povo que de
nos, mas na realidade ele os cumpre de um modo exemplar (ao algum modo sempre ainda conseguiu salvar-se a si mesmo, ainda
menos nesse caso); nenhum indivíduo sozinho seria capaz de que com vítimas, em relação às quais o pesquisador de história
fazer aquilo que, nesse sentido, o povo como um todo conse- — em geral negligenciamos completamente a pesquisa histórica
gue. Evidentemente é tão gigantesca a diferença de forças entre - fica gélido de pavor. E mesmo assim é verdade que justa-
o indivíduo e o povo que basta atrair o protegido para o calor mente em situações de emergência escutamos melhor que nunca
de sua proximidade para ele já estar sob proteção suficiente. a voz de Josefina. As ameaças, que pairam sobre nós, tornam
Para Josefina não se ousa, no entanto, falar semelhantes coisas. nos mais quietos, mais comedidos, mais submissos ao mando-
"Fico é tocando flauta em cima da proteção de vocês", diz ela nismo de Josefina; de bom grado nos reunimos, de bom grado
então. "Sim, sim, você toca flauta", pensamos nós. E, além. nos apinhamos, especialmente porque ocorre por um motivo
disso, não há nenhuma contestação efetiva quando ela estrila; completamente distante da torturante questão central; é como
ao contrário, tudo é antes encarado como criancice e ingratidão se juntos ainda bebêssemos rapidamente — sim, a pressa é neces-
infantil, e papel de pai é não fazer caso de coisas assim. sária, disso Josefina se esquece com demasiada freqüência
Mas nisso tudo existe ainda uma outra coisa, que é mais — uma taça de paz antes da luta, ante a luta. Não é tanto um
difícil de explicar nessa relação entre povo e Josefina. Ou seja, recital de canto quanto uma assembléia do povo e, na verdade,
Josefina é de opinião contrária: acredita ser ela quem protege uma assembléia em que, exceto o pequeno pipilar lá da frente,
o povo. Supostamente seu canto nos salvaria de uma situação tudo está quieto: grave demais é a hora para que se queira des-
política ou econômica difícil — nada menos do que isso o canto perdiçá-la.
mobilizaria - e, mesmo que não chegasse a expulsar a desgra Ora, é claro que uma relação dessas, nem sequer poderia
ça, ao menos nos daria então forças para suportá-la. Isso ela agradar a Josefina. Apesar de todo o nervoso mal-estar que
não afirma desse modo nem de um outro modo qualquer; ela acomete Josefina devido à sua posição jamais bem esclarecida,
costuma falar pouco, mantém-se calada em meio aos tagarelas; ela, ofuscada por sua presunção, não enxerga muita coisa e, sem
mas é o que fulgura em seus olhos, pode ser lido em sua boca grande esforço, pode ser levada a deixar de ver ainda mais coi-
cerrada — entre nós, raros conseguem manter a boca fechada, sas; neste sentido, portanto num sentido a rigor geralmente útil,
e ela consegue. A cada má notícia — e em certos dias elas se um bando de aduladores está sempre a postos — mas cantar
acumulam, entre elas notícias falsas e outras apenas em parte de passagem, sem atenção, num cantinho com um aglomerado
corretas — logo ela se levanta, enquanto normalmente fica se de gente, não, para isso ela certamente não iria sacrificar seu
arrastando cansada pelo chão: levanta-se e estica o pescoço e canto, ainda que em si seja não seja pouco.
procura abranger com o olhar o seu rebanho como o pastor Mas ela também não precisa fazê-lo, pois sua arte não
frente a uma tempestade. É claro que as crianças, à sua maneira passa inadvertida. Embora no fundo estejamos ocupados e pre-
selvática e descontrolada, também colocam exigências semelhan ocupados, com coisas completamente distintas e o silêncio pre
tes, mas no caso de Josefina as exigências não são tão infunda- pondere não só por amor ao canto e vários nem sequer ergam

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o olhar, mas comprimam o rosto no casaco de pele do vizinho
vida é tal que uma criança, assim que consegue andar um pouco
e, portanto, Josefina pareça esforçar-se inutilmente ali em cima, e alcança discernir um pouco o mundo que a cerca, precisa cui-
mesmo assim — e isso é inegável — algo de seu assobio inega- dar tanto de si mesma quanto um adulto; as regiões, nas quais
velmente abre caminho em nós. Esse assobiar, que se eleva temos de viver espalhados por precauções econômicas, são tão
onde o silêncio se impõe a todos os demais, chega ao indivíduo imensas, são tantos os nossos inimigos, tão imprevisíveis e incalcu-
quase como uma mensagem do povo; em meio a difíceis deci- láveis os perigos que nos esperam por toda parte — que não
sões, o fino assobiar de Josefina é quase como a própria mísera podemos manter as crianças distanciadas da luta pela sobrevivên-
existência de nosso povo em meio ao tumulto do mundo hostil. cia: se o fizéssemos, seria seu prematuro fim. A essas tristes razões
Josefina se afirma, esse nadinha de voz, esse zero em realiza- acrescenta-se indubitavelmente ainda uma outra, mais elevada: a
ções se afirma e constrói seu caminho até nós: faz bem pensar fertilidade de nossa descendência. Uma geração — e todas são
nisso. Numa época assim, não suportaríamos um verdadeiro numerosas — empurra a outra, as crianças não têm tempo de
artista do canto, caso uma vez houvesse um entre nós, e por serem crianças. Talvez em outros povos as crianças possam ser
unanimidade recusaríamos a insensatez de sua apresentação. cuidadas com desvelo, talvez lá possam ser construídas escolas
Oxalá Josefina seja poupada de saber que o fato de nós a escu- para os pequeninos, talvez lá as crianças possam correr todo dia
tarmos é uma prova contra seu canto. Uma premonição disso para fora dessas escolas, as crianças, futuro do povo: por longo
ela certamente já tem, pois se assim não fosse por que negaria tempo, dia após dia, são sempre as mesmas crianças que lá apare-
ela com tanta paixão que nós a escutamos? Mas sempre de cem. Nós não temos escolas, mas de nosso povo jorram, em inter-
novo ela canta, assobia para além dessa premonição, desse pres- valos mínimos, os infindáveis bandos de nossas crianças, chiando
sentimento. ou chilreando alegremente, enquanto ainda não conseguem asso-
Mas seja lá como for, sempre haveria ainda um consolo biar, rolando ou rodando em frente por força de impulsos,
para ela: até certo ponto nós realmente a escutamos, talvez até enquanto ainda não conseguem andar, arrastando atabalhoada-
de um modo parecido como se escuta um artista do canto; ela mente consigo tudo por força de sua massa, enquanto ainda não
desperta reações que um artista do canto em vão procuraria conseguem enxergar — nossos filhos! E não, como naquelas esco-
las, as mesmas crianças, não, sempre, sempre de novo outras, sem
alcançar entre nós e que justamente só se devem a seus recursos
fim, sem interrupção; mal aparece uma criança, e já não é mais
insuficientes. Isso está, é claro, relacionado principalmente com
criança, já a empurram novas feições de crianças, indiscerníveis
nosso modo de vida.
em sua quantidade e pressa, róseas de felicidade. É claro que por
Em nosso povo não se conhece juventude, e mal uma dimi- mais bonito que isso possa parecer e por mais que outros, com
nuta infância. Verdade é que regularmente aparecem reivindica- toda razão, possam nos invejar, nós efetivamente não podemos
ções de que se deveriam garantir para as crianças uma especial permitir uma verdadeira infância a nossos filhos. E isso tem suas
liberdade, uma especial proteção, garantir a elas o direito a conseqüências. Uma certa infantilidade inextinguível, inerradicá-
um pouco de despreocupação, a um pouco de correria desvai- vel, perpassa nosso povo: em contradição direta com o que temos
rada por aí, a um pouco de jogos e brincadeiras, direito que de melhor — o infalível senso prático —, muitas vezes agimos
deveria ser reconhecido e apoiado em sua concretização; reivin- de modo completamente insensato, e isso exatamente do modo
dicações dessa ordem aparecem e quase todo o mundo as aprova, como crianças agem de modo insensato, absurdo, dispersivo, gene-
não há nada que mais precisaria ser aprovado, mas também não roso, leviano, e tudo em nome de uma pequena brincadeira. E
há nada que na realidade de nossas vidas menos possa ser apro- mesmo que nossa alegria não possa ter toda a vibração da alegria
vado: aprovamos as reivindicações, fazemos tentativas no sen- infantil, certamente algo desta ainda aí sobrevive. Dessa infantili-
tido de atendê-las, mas logo tudo volta à estaca zero. Ora, nossa dade de nosso povo é que desde sempre Josefina se aproveita.

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Mas nosso povo não é apenas criançola; ele também é, até vida ativa de hoje, de sua diminuta, incompreensível vivacidade
certo ponto, prematuramente envelhecido: infância e velhice e que, mesmo assim, existe e não pode ser extinta. E, na ver-
mostram-se em nós diferentes do que em outros povos. Não dade, tudo isso não é dito num tom grandiloqüente, mas leve,
temos juventude, nós logo somos adultos, e adultos somos então sussurrado, confidencial, às vezes até um pouco rouco. Natural-
por tempo demais: por isso um certo cansaço e desespero amplo mente é um assobio. Como não? Assobiar é a língua de nosso
pervade a essência, tão tenaz e cheia de esperança, de nosso povo, só que uns assobiam a vida inteira e não sabem disso;
povo. Com isso decerto também se relaciona a nossa falta de aqui, porém, o assobio está livre das cadeias da vida cotidiana
musicalidade: somos velhos demais para a música: sua vibração, e também nos libera por um breve período. É claro que não
seu enlevo não se ajustam a nosso pesadume, é com cansaço iríamos perder tais apresentações.
que a colocamos de lado; recolhemo-nos ao assobio; de quando Mas daí até Josefina poder afirmar que ela, nesses momen-
em vez assobiar um pouco, isso é que é o correto para nós. Tal- tos, nos dá novas forças etc. e t c , há uma enorme distância.
vez não haja talentos musicais entre nós; mas se os houvesse, Isso, no entanto, para pessoas comuns, não para os aduladores
o caráter dos contemporâneos teria de reprimi-los e suprimi-los de Josefina. "Como é que poderia ser diferente" — dizem eles
antes que se desenvolvessem. Josefina, ao contrário, pode can- com uma boa dose de descaramento — "como é que se poderia
tar ou assobiar à vontade — seja lá como ela queira chamar explicar de outro modo a enorme afluência de público, especial-
isso —, isso é adequado para nós, isso nós podemos suportar mente se há perigo iminente, afluência que algumas vezes inclu-
bem; se aí estiver contido algo de música, então estará reduzido sive já impediu a defesa eficiente e rápida justamente contra
à mais completa insignificância; preserva-se uma certa tradição esse perigo?" Ora, lamentavelmente este último registro é cor-
musical, mas sem que isso nos cause o menor problema. reto, mas ele não pertence aos títulos honoríficos de Josefina,
Mas para um povo com tal estado de ânimo, Josefina traz especialmente, caso se acrescente que, quando tais reuniões foram
ainda mais. Em seus concertos, especialmente nos tempos difí- inesperadamente dissolvidas pelo inimigo e vários de nós acaba-
ceis, só os bem jovens têm ainda interesse na cantora enquanto ram perdendo a vida, Josefina, de tudo culpada, ela que com
tal, só eles olham com espanto como ela franze os lábios, expe- seu assobio talvez até tenha atraído o inimigo, estava sempre
leo o ar por entre os graciosos dentes da frente, quase desfalece no mais seguro dos refúgios e, sob a proteção de seus adeptos,
de emoção devido aos sons que ela mesma produz, aproveitando sempre foi a primeira a desaparecer, bem quietinha e na maior
sua languidez para enfogueirar apresentações cada vez mais das correrias. Mas, no fundo, todos sabem disso e, mesmo assim,
incompreensíveis, mas a multidão propriamente dita — isso é apressam-se em comparecer quando Josefina, noutra ocasião e
nitidamente perceptível — recolhe-se em si mesma. Aqui, nas a seu próprio critério, levanta-se para cantar num lugar qual-
escassas pausas entre as batalhas, o povo sonha, é como se os quer, num momento qualquer. Daí se poderia concluir que Jose-
membros de um indivíduo se relaxassem, como se aquele que fina está quase acima da lei, que ela pode fazer o que quiser,
não tem paz nem descanso pudesse uma vez estender-se e esti- mesmo quando puser em perigo a coletividade, sendo-lhe tudo
car-se na grande e tépida cama do povo. E nesses sonhos ressoa perdoado. Se assim fosse, as pretensões de Josefina também
aqui e ali o assobio de Josefina: ela o chama de rutilante, nós seriam plenamente compreensíveis, sim, até certo ponto seria
o chamamos de chocante; mas, em todo caso, está aqui em seu possível ver nessa liberdade que o povo lhe dá, essa extraordiná-
lugar como em nenhum outro, como a música dificilmente ria dádiva a ninguém mais concedida, liberdade a rigor contrá-
encontra alguma vez um instante que espere por ela. Nele reside ria à lei, uma confissão de que o povo — como ela o afirma
algo de nossa infância pobre e parca, algo da felicidade perdida — não entende Josefina, admira impotente sua arte, não se
e jamais reencontrável, mas nele também se encontra algo da sente digno dela, procura compensar a dor que causa a ela com

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uma atuação francamente desesperada e, assim como a arte sua arte, um reconhecimento público, claro e inequívoco, a atra-
dela está além de sua capacidade de percepção e compreensão, vessar os tempos, a se elevar acima de tudo o que até agora se
também coloca a pessoa dela e seus desejos fora de seu poder conhece. Mas enquanto quase todo o resto lhe parece alcançá-
de mando e comando. Ora, isso não é nem um pouco verdadeiro, vel, isto lhe é obstinadamente negado. Talvez o ataque dela
talvez alguns indivíduos do povo capitulem depressa demais devesse ter-se dirigido logo de início noutra direção, talvez agora
diante de Josefina, mas, como o povo não capitula incondicio- ela mesma reconheça o erro, mas já não pode mais recuar, um
nalmente diante de ninguém, também não o faz diante dela. recuo significaria tornar-se infiel a si mesma: agora ela já pre-
Há muito tempo, talvez já desde o início de sua carreira cisa fincar pé nessa reivindicação ou cair com ela.
artística, Josefina luta, em função de seu canto, para ser libe- Se ela realmente tivesse inimigos como afirma, então eles
rada de qualquer trabalho: pretende, em suma, que se deveria poderiam, sem moverem eles mesmos um dedo, ficar olhando
aliviá-la da preocupação em torno do pão de cada dia e tudo o essa luta e se divertindo. Mas ela não tem inimigos, e mesmo
que esteja ligado à nossa luta pela existência e — provavelmente— que aqui e ali alguns tenham objeções contra ela, essa luta não
isso fosse repassado para o povo como um todo. Um fã apres- diverte ninguém. Já porque nesta o povo se apresenta em sua
sado — desses também havia — poderia deduzir, já a partir da fria postura de juiz, como fora daí dificilmente se consegue vê-
peculiaridade dessa reivindicação, da estrutura mental capaz de lo entre nós. E mesmo que, nesse caso, alguém aprove tal pos-
imaginar tal reivindicação, sua legitimidade interna. Nosso povo tura, imaginar simplesmente que o povo possa comportar-se
tira, no entanto, outras conclusões e simplesmente rejeita tal rei- alguma vez contra si mesmo de semelhante modo já elimina
vindicação. Também não se empenha muito em refutar os fun- toda e qualquer alegria. Pois tanto na recusa quanto na reivin-
damentos do pedido. Josefina afirma, por exemplo, que o esforço dicação, não se trata da coisa em si mesma, mas do fato de que
no trabalho prejudica sua voz, que o esforço no trabalho é de o povo possa fechar-se de um modo tão impenetrável contra
fato pequeno se comparado com o realizado no canto, mas que, um compatriota, e tanto mais impenetravelmente quanto mais,
no entanto, ele lhe tiraria a possibilidade de espairecer o sufi- do resto, ele cuida desta compatriota de um modo paternal e,
ciente depois do canto e renovar as energias para uma nova apre- mais que paternal, até serviçal.
sentação: com isso, ela acabaria se esgotando por completo e, Caso aqui estivesse, em vez do povo, um indivíduo: seria
nessas circunstâncias, jamais poderia alcançar sua performance possível acreditar que o tempo todo esse homem andou cedendo
máxima. O povo escuta isso e nem liga. Esse povo tão fácil de diante de Josefina, com o constante e ardente desejo de, por
comover é, às vezes, impossível de ser comovido. A recusa é, fim, acabar com sua própria condescendência; que ele cedeu
por vezes, tão dura que até mesmo Josefina fica estupefata; apa- demais, cedeu mais do que seria de esperar de um ser humano,
renta submeter-se, trabalha conforme deve, canta o melhor que com a firme crença de que a condescendência acabaria, apesar
pode, mas tudo só por algum tempo; depois, retoma a luta com de tudo, encontrando seu exato limite; que ele, sim, andou
novas forças — e para isso ela parece ter forças ilimitadas. cedendo mais do que seria necessário, só para acelerar o pro-
Ora, é claro que Josefina não deseja propriamente aquilo cesso, só para deixar Josefina mal-acostumada e levá-la sempre
que ela literalmente reivindica. Ela é sensata, não teme o traba- a novos desejos, até que, por fim, ela formulasse essa última
lho (aliás, medo do trabalho ninguém tem entre nós): mesmo reivindicação; daí então ele teria, por certo, levado a cabo a
depois de atendida sua solicitação, ela certamente não viveria recusa definitiva, sumária, há muito já preparada. Ora, é claro
de modo diverso do que até agora, o trabalho nem sequer atra- que não é bem assim, o povo não precisa dessas artimanhas;
palharia seu canto, e o canto também não ficaria mais bonito além disso, sua veneração por Josefina é autêntica e compro-
— o que ela almeja é, portanto, apenas o reconhecimento de vada, enquanto a reivindicação de Josefina é, no entanto, tão

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forte que qualquer inocente criancinha poderia ter previsto seu uma luta em torno de seu canto, mas nisso ela não luta de
desfecho; pode ser que, apesar disso, tais suposições também modo imediato com a preciosa arma do canto; para tanto, todo
desempenhem um papel na visão que Josefina tem da questão, recurso que ela empregue é bom demais.
acrescendo amargura à dor da rejeição. Assim, por exemplo, espalhou-se o boato de que, caso não
Mas ainda que inclusive tenha feito tais suposições, ela não se atendam às suas solicitações, ela pretenderia encurtar os flo-
se deixa intimidar por causa disso ante a luta. Nos últimos tem- reios. Não sei nada de floreios, nunca notei nada de floreios
pos a luta tem inclusive se tornado mais aguda; se até há pouco no canto dela. Mas Josefina quer encurtar os floreios; por
ela a conduzia apenas por palavras, agora começa a se utilizar enquanto não quer suprimi-los, mas apenas encurtá-los. Pre-
de outros meios, meios que, na opinião dela, são mais eficazes sume-se que tenha concretizado sua ameaça; não me pareceu,
e, na nossa, são mais perigosos para ela mesma. no entanto, haver diferença em relação às suas apresentações
Alguns acreditam que Josefina tem se tornado tão incisiva anteriores. O povo todo escutou como sempre, sem se manifes-
por estar se sentindo envelhecer, por sua voz estar dando sinais tar quanto aos floreios, mas também sem alterar o tratamento
de fraqueza e que, por isso, já lhe parece mais que chegada a dado às reivindicações de Josefina. Aliás, Josefina tem, inega-
hora de travar a última batalha por seu reconhecimento público. velmente, tanto em sua figura quanto em seu pensamento, algo
Não acredito nisso. Se fosse verdade, Josefina não seria Jose- muito gracioso. Assim, por exemplo, depois daquela apresenta-
fina. Para ela não há envelhecimento nem debilitação da voz. ção, esclareceu que, numa próxima ocasião, voltaria a cantar
Se reivindica algo, não é levada a isso por causas externas, mas novamente os floreios por inteiro, como se a sua decisão quanto
por uma lógica interna. Ela busca alcançar o laurel máximo não aos floreios tivesse sido demasiado dura ou abrupta para o
porque no momento ele se encontre num ponto um pouco mais povo. Mas depois do concerto seguinte ela mudou de idéia mais
baixo, mas porque é o mais elevado; se estivesse em seu poder uma vez: agora teriam terminado definitivamente os grandes flo-
decidir, ela o colocaria ainda mais alto. reios e eles não voltariam antes de uma decisão favorável a Jose-
Tal desprezo pelas dificuldades externas não a impede, con- fina. Ora, o povo faz de conta que nem sequer escuta todas
tudo, de empregar recursos menos dignos. Para ela, seu direito essas explicações, decisões e mudanças de decisão, como um
paira acima de qualquer dúvida, pouco importando, portanto, adulto pensativo e meditabundo deixa de escutar a tagarelice
como alcançá-lo; especialmente já que neste mundo, tal como de uma criança: fundamentalmente benévolo, mas inacessível.
ela o concebe, os meios dignos é que acabam tendo de fracassar. Josefina, no entanto, não cede. Assim, por exemplo, afir-
Talvez até por causa disso ela tenha deslocado a luta por seus mou recentemente que durante o trabalho sofrera um ferimento
direitos do âmbito do canto para um outro, que lhe é menos no pé, que este lhe tornava penoso ficar de pé durante o canto;
caro. Sua corte fez circular declarações, segundo as quais ela mas, já que só podia cantar parada ereta, teria agora inclusive
se sentia em condições plenas de cantar de um modo tal que de encurtar as canções. Embora manque e se faça apoiar por
seria um verdadeiro prazer para o povo, em todas as suas cama- seu séquito, ninguém acredita num verdadeiro ferimento. Mesmo
das, até na mais recôndita oposição, um verdadeiro prazer não que se admita uma especial sensibilidade de seu pequeno corpo,
no sentido do povo, pois este assegura sentir desde sempre tal somos um povo de trabalhadores, e inclusive Josefina faz parte
prazer com o canto de Josefina, mas um prazer no sentido dele; mas se fôssemos mancar por causa de qualquer arranhão-
daquilo que Josefina almeja. Ela acrescenta, contudo, que não zinho na pele, então o povo todo não poderia parar de mancar.
poderia falsificar o elevado nem bajular o ordinário e que, por- No entanto, por mais que ela se deixe carregar como uma alei-
tanto, tudo teria de ficar como está. Outra coisa é, porém, sua jada, por mais que se mostre nesse deplorável estado com maior
luta em torno da liberação do trabalho: na verdade também é freqüência do que antes, o povo a escuta grato e encantado

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os corações? Ela se esconde e não canta, mas o povo, quieto,
como anteriormente, mas não faz muita bulha por causa da
sem decepção perceptível, sobranceiro, massa que em si mesma
redução.
repousa, povo que, embora as aparências digam o contrário,
Já que não pode continuar mancando sempre, ela inventa
formalmente só pode dar presentes, jamais recebê-los, inclusive
outras coisas: alega cansaço, mal-estar, fraqueza. Ora, além
não de Josefina, esse povo continua seguindo seu destino.
do concerto, temos todo um teatro. Atrás de Josefina vemos
Mas o caminho de Josefina precisa continuar morro abaixo.
seu séquito, a pedir e implorar que ela cante. Ela diz que gosta-
Logo há de chegar o tempo em que seu último assobio há de
ria, mas que não pode. É consolada, bajulada, quase carregada
soar e emudecer. Ela será um pequeno episódio na eterna histó-
para o lugar adrede escolhido para ela cantar. Por fim ela cede,
ria de nosso povo, e o povo há de superar essa perda. Fácil isso
com enigmáticas lágrimas, mas assim que quer começar a can-
não será para nós; como serão possíveis as assembléias em total
tar, evidentemente com o último resquício de vontade, exausta,
mudez? Será que seu assobio real era significativamente mais
os braços estendidos não como de costume, mas pendendo sem
sonoro e mais vivo do que há de ser a sua recordação? Será
vida ao longo do corpo, quando até se fica com a impressão
que, afinal, enquanto ela vivia, ele era mais do que mera recor-
de que eles talvez sejam um pouco curtos demais — assim que
dação? Será que o povo, em sua sabedoria, não andou, ao con-
quer fazer a afinação já não lhe é mais, então, possível cantar,
trário, colocando seu canto tão alto justamente por isso, justa-
um involuntário meneio da cabeça demonstra isso, e ela desaba
mente porque desse modo era impossível perdê-lo?
diante de nossos olhos. Depois, no entanto, consegue se recom-
Talvez nós, portanto, nem sequer venhamos a sentir muita
por e, creio, canta não muito diferente do que de costume; caso
falta, mas Josefina, redimida da miséria terrestre — que, em
se tenha bom ouvido para as mais sutis nuances, talvez se ouça
sua opinião, é, porém, preparada para os eleitos —, há de se
um pouco de uma excitação acima do habitual, mas isso acaba
perder na incontável multidão dos heróis de nosso povo e, já
apenas beneficiando o canto. E, no fim, está inclusive menos
que não cultivamos a história, será esquecida, como todos os
cansada do que antes, com o andar firme — na medida em que
seus irmãos, na escalada da redenção.
assim se podem chamar seus passinhos apressados — ela se
afasta, recusando qualquer ajuda do séquito e encarando com
olhares gélidos a multidão que respeitosamente vai lhe abrindo
caminho.
Assim tem sido ultimamente; mas a última novidade é que,
na hora em que seu canto era esperado, ela havia desaparecido.
Não só o séquito a procura, muitos se colocam a serviço da
busca, inutilmente; Josefina desapareceu, não quer cantar, não
quer nem mesmo ser solicitada; desta vez, ela nos abandonou
totalmente.
Extraordinário quão falso ela calcula, a esperta, de um
modo tão falso que quase se precisa acreditar que ela nem
sequer calcula, mas apenas continua sendo arrastada por seu
destino, destino que esse nosso mundo apenas consegue tornar
ainda mais triste. Ela mesma se esquiva ao canto, ela mesma
destrói o poder que conquistou sobre os corações. Mas como
conseguiu ela conquistar esse poder já que conhece tão pouco
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O Autor
Franz Kafka (1883-1924) descendia de uma família judaica
assimilada, tendo tido uma formação alemã-austríaca em Praga,
numa época em que a atual Tchecoslováquia pertencia ao Império
Austro-Húngaro. Seu pai tinha conseguido pelo comércio alcançar
certa prosperidade, possibilitando ao filho estudar no colégio da
A verdade sobre Sancho Pança elite local e depois formar-se em Direito na Universidade de Praga.
Durante séculos os judeus tinham vivido aí como uma minoria
Sancho Pança (que, aliás, jamais andou se vangloriando discriminada, mas o liberalismo burguês permitiu ascensões sociais
disso) conseguiu, no decorrer dos anos, colecionando uma por- e fomentou na família Kafka uma formação que os aproximava dos
ção de romances de cavalaria e de bandoleiros, desviar, nas quadros dos senhores austríacos e da cultura alemã local.
horas noturnas e soturnas, de tal modo de si o seu demônio (ao Franz Kafka trabalhou numa companhia de seguros, preo-
qual ele mais tarde deu o nome de Dom Quixote), que este pas- cupando-se em aumentar a assistência social e diminuir os acidentes
sou então a executar desenfreadamente os feitos mais malucos, de trabalho. Viveu a derrocada do Império Austro-Húngaro e a im-
mas que, por falta de um objeto predeterminado (que era para posição do tcheco como língua obrigatória. Vivenciou a reativação
ser justamente Sancho Pança), não prejudicavam ninguém. San- do anti-semitismo e o potencial do autoritarismo de direita. Uma
cho Pança, um homem livre, seguia sereno (talvez por uma certa penosa tuberculose acabou por levá-lo à morte.
sensação de irresponsabilidade), ao seu Dom Quixote em suas A literatura foi o espaço em que procurou alguma salvação. Sua
andanças, mantendo assim uma grande e proveitosa conversa- arte transcende a sua origem, já porque noutros países também têm
ção até o fim de seus dias.
ocorrido genocídios físicos ou espirituais, a imposição à força dos
privilégios de minorias, a morte de qualquer esperança imediata, o
paulatino sufoco existencial. Ela é terrível e triste, mas provoca o
riso à beira do desespero.

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A parede e o sangue dela
http://aparedeeosanguedela.blogspot.com

Cronologia dos textos


redação 1 edição
A sentença 22-23/9/1912 1913
Um relato a uma academia abril 1917 1917
Um cruzamento abril 1917 27/3/1931
A ponte dezembro 1916 1931
O silêncio das sereias 23/10/1917 1931
Prometeu 17/1/1918 1931
O abutre novembro 1920 1936
Pequena fábula nov./dez. 1920 1931
Das comparações inverno 1922/23 1931
Na colônia penal outubro 1914 1919
Uma página antiga março 1917 juL/ago.1917
Ante(s) (d)a lei dezembro 1914 7/9/1915
Sobre a questão das leis outubro 1920 27/3/1931
Onze filhos março 1917 1919
Uma pequena mulher out./nov.l923 20/4/1924
Nas galerias jan./fev.l917 1919
Um artista da fome primavera 1922 1922
Josefina, a cantora, ou
O povo dos ratos março 1924 24/4/1924
A verdade sobre Sancho Pança 21/10/1917 1931

®
impressão e acabamento por
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W. Roth & Cia. Ltda.


com filmes fornecidos
pela editora

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