[1] Heráclito de Éfeso foi um dos primeiros filósofos gregos, mas suas ideias sobre mudança constante e tensão entre opostos foram descartadas quando Platão escolheu Parmênides como patrono da filosofia. [2] Se tivéssemos escolhido Heráclito, nossas civilizações poderiam ter sido construídas sobre a aceitação das diferenças em vez da exclusão. [3] Redescoberto no século XIX, as ideias de Heráclito sobre tolerância e mudança ainda podem nos inspirar
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Marcio Tavares do Amaral - O que Heráclito poderia ter feito por nós.docx
[1] Heráclito de Éfeso foi um dos primeiros filósofos gregos, mas suas ideias sobre mudança constante e tensão entre opostos foram descartadas quando Platão escolheu Parmênides como patrono da filosofia. [2] Se tivéssemos escolhido Heráclito, nossas civilizações poderiam ter sido construídas sobre a aceitação das diferenças em vez da exclusão. [3] Redescoberto no século XIX, as ideias de Heráclito sobre tolerância e mudança ainda podem nos inspirar
[1] Heráclito de Éfeso foi um dos primeiros filósofos gregos, mas suas ideias sobre mudança constante e tensão entre opostos foram descartadas quando Platão escolheu Parmênides como patrono da filosofia. [2] Se tivéssemos escolhido Heráclito, nossas civilizações poderiam ter sido construídas sobre a aceitação das diferenças em vez da exclusão. [3] Redescoberto no século XIX, as ideias de Heráclito sobre tolerância e mudança ainda podem nos inspirar
Herclito de feso (VI a. C.) foi um dos criadores do que depois
levou o nome de filosofia. Dos primeiros a se inquietar com o ser, o homem, o mundo e a verdade, essncia do que logo depois Scrates, Plato e Aristteles instituram como uma disciplina feita para se ensinar. Mas nesse intervalo dois sculos Herclito veio a ser descartado. Quando Plato, no IV, precisou de um patrono para a filosofia, no olhou para ele, olhou para Parmnides, seu contemporneo, e os entendeu como adversrios. No devem ter sido. Mas foi o que Plato viu e nos ensinou.
Parmnides, o pensador da estabilidade, do ou bem , ou bem no , da
eternidade e imutabilidade do ser servia bem a Plato. Melhor ideia fundadora ele no podia imaginar. E ainda radicalizou ao pr Herclito como o mestre dos sofistas, pensadores malditos do sculo V a. C. que lhe eram perfeitamente estranhos. Herclito perdeu.
A grande filosofia que tivemos, depois da apropriao de Parmnides por
Plato para fins de luta com os sofistas, com que Parmnides nem sonhava, foi centrada sobre os princpios de identidade e no-contradio: uma coisa o que ela , e nunca outra as essncias das coisas se excluem; a nada se pode atribuir uma qualidade e sua contrria ao mesmo tempo. Tudo isso foi por uns 24 sculos, at o nosso, perfeitamente claro. Como poderia algo ser e no ser? Ser igualmente de um modo e do modo oposto? Obviamente, no poderia. Obviamente significa: como escolhemos Parmnides, e no Herclito, bvio que... e segue-se a fileira das certezas decorrentes dessa escolha. Herclito teria outras coisas para nos dizer. E se tivesse sido possvel escut-lo desde o incio, seu dizer teria podido fazer muitas coisas por ns. A comear por nos fazer profundamente diferentes do que somos, viemos a ser.
Herclito ensinou a natureza benfazeja das tenses. No procurou pacificar
as diferenas entre as coisas, os homens e os deuses. As diferenas e suas tenses so boas. Mostram o dinamismo da vida, que no lisa e uniforme. Havia para ele um princpio que nos dava a ver toda a variedade dos modos de ser do mundo. E esse princpio era o de que o que h de mais constante a mudana. Tudo flui. O fluxo a lei do mundo. Nada s o que . Tudo tambm outra coisa. Dessa dinmica de tenses que se fazem o mundo e a vida.
Dizia coisas assim: se quiserem saber o que msica no procurem a
msica. Busquem a tenso entre arco e lira. nela que a msica se faz. Dizia tambm que nas guas de um mesmo rio entramos e no entramos, somos e no somos. Como assim?? Simples: o rio corre, dos rios correrem. E ns mudamos, o sinal da nossa humanidade. Ento, quando entramos num rio, ele passa e, se entramos em um, no samos do mesmo. E ns, que entramos, no somos os mesmos que samos. Entramos e no entramos, somos e no somos. Disse Herclito, e logo foi esquecido.
Dizia tambm que o divergente e o convergente concordam. No porque um
ceda e d razo ao outro. Concordam segundo a guerra, quer dizer, a diferena. Mas tambm pela mais bela harmonia: a unidade dos contrrios na paz. Mudar e ficar igual no se ope: o fogo, sua metfora do ser, s fica igual a si mesmo, s fogo, se permanentemente estiver em mutao. A transmutao o repouso do fogo, o que o fogo .
Se tivssemos podido ouvir Herclito, no teramos construdo civilizaes
de excluso. Cristos, judeus e muulmanos no se guerreariam, porque veneram o mesmo Deus, que igual e diferente para as trs religies. As diferenas seriam nossa riqueza, no nosso pecado. No teria havido cruzadas. O Holocausto no teria sido imaginvel. Os palestinos teriam terra ao lado dos judeus. No haveria o Estado Islmico explodindo as identidades do passado e inventando no horror uma face assustadora. Quem sabe no teramos banalizado as guerras como meio de se resolverem problemas de identidade entre as naes. Talvez a noo hiperexcludente de Estado no teria tanto interesse. E a liberdade das mudanas geradoras de mais vida seria capaz de dar doura aos sonhos de fraternidade e igualdade. Pode ser que a semelhana com os outros fosse mais bela do que a solitria identidade consigo mesmo.
Herclito foi redescoberto no sculo XIX. Est em fase de reconhecimento e
(pouca) valorizao. Podamos nos dar como tarefa limpar um fragmentinho dele por dia, e aprender um modo novo de entender que o diferente e o igual se pertencem. Ele ficou 26 sculos impedido de nos dizer sua sabedoria. Mas por isso tambm no envelheceu. Pode ainda nos incendiar, fazer alguma coisa nova por ns. A comear por nos permitir entender a tolerncia. Todo o resto viria depois.
Com to alta bandeira, pode-se ainda falar no fim das utopias e das esperanas?