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INTRODUCAO, Inicialmente, € importante alertar 0 leitor de que a tecnologia aqui apre- sentada de elaboracao de instrumentos psicolégicos exige o conhecimento de al- gumas disciplinas ensinadas nas universi- dades, bagagem sem a qual dificilmente © pesquisador poder se considerar apto a construir instrumentos psicoldgicos. En- tte essas disciplinas salientam-se particu- larmente as seguintes, as quais este livro remete sem poder substitui-las, apenas indicando 0 momento no processo de ela. boracdo do instrumento em que elas tém seu espaco de aplicacao: psicometria: fundamental para a teo. ria da medida em psicologia, particu- larmente o conhecimento da teoria da resposta ao item (TRD; disciplinas de teoria psicolégica, tais como histéria e sistemas, teorias da personalidade, psicopatologia, psicolo- gia social, etc.; essas disciplinas sao ba sicas para os procedimentos tedricos; disciplinas de delineamento de pes- quisa cientifiea; esse conhecimento é fundamental para os procedimentos experimentais; disciplinas de estatistica — estatistica - bésica, andlise de hipotese, andlise fa- TESTES REFERENTES A CONSTRUTO, TEORIA E MODELO DE CONSTRUCAO Luiz Pasquali torial; esses conhecimentos sao decis: Vos nos procedimentos analiticos A teoria e 0 modelo de elaboragdo de instrumental psicolégico apresentados neste capitulo sao aplicaveis 4 constru Go de testes psicolégicos de aptidio, de inventarios de personalidade, de escalas psicométricas de atitude e do diferencial seméntico. O modelo, que é detalhado na Figura 8.1, se baseia em trés grandes polos, que chamaremos de procedimentos te6ricos, procedimentos empiricos (expe rimentais) e procedimentos analiticos (es tatisticos), © polo tedrico enfoca a questao da teoria que deve fundamentar qualquer empreendimento cientifico, no caso explicitacao da teoria sobre o construto ou objeto psicolégico para o qual se que desenvolver um instrumento de medida bem como a operacionalizagio do cons truto em itens. Este polo expoe do traco latente, bem como a explicitagac dos tipos e categorias de comportamentos que constituem uma representacio ade quada desse traco. 0 polo empirico ou experimental de- fine as etapas e técnicas da aplicacao do instrumento piloto e da coleta valida da informacdo para proceder i avaliagao da qualidade psicométrica do instrumento, 166 Luiz Pasquali & cols. 0 polo analitico estabelece os proce- dimentos de andlises estatisticas a serem efetuadas sobre os dados para levar a um instrumento vilido, preciso e, se for 0 caso, normatizado. A Figura 8.1 apresenta e detalha, para cada um desses trés procedimentos, as etapas ou passos pelos quais se deve passar para se poder progredir sistema- tieamente na elaboragao de um instru- mento de medida psicolégica_ baseado em construtos. Além disso, define, para cada passo, o método ou métodos a serem utilizados para superar 0 problema espe- cifico que constitui a tarefa a ser resolvi da em cada passo, bem como o produto que decorre como resultado da solucao do problema de cada passo. Além desses detalhes técnicos, a figura apresenta, para 0s trés procedimentos, uma metandlise na qual se procura enquadrar e delimitar 0 evento ou eventos psicométricos que es- to ocorrendo; tal fendmeno vem identifi- cado sob a égide do rétulo “fase”. PROCEDIMENTOS TEORICOS Os procedimentos tedricos devem ser elaborados para cada instrumento, dependendo, portanto, da literatura exis- tente sobre 0 construto psicolégico que o instrumento pretende medit. A teoria ain- da ¢, infelizmente, a parte mais fraca da pesquisa e do conhecimento psicolégicos, © que tem como consequéncia a precarie- dade dos atuais instrumentos psicométri- cos de medida nesta drea. Na verdade, os instrumentos baseados em uma teoria psi- colégica prévia mais elaborada (por exem- plo, “Edwards personal preference sche- dule”) nao sao dos melhores no mercado. Tal ocorréncia explica, em parte, por que 0s psicometristas sistematicamente fogem al TEORCOS 1 ese (saa ia] [__COnsTRUGRO DO NSTRUMENTO_—] Wwénodo [Stes /namee i Ee] ES c,, ee a + + ¥ ¥ + ce) ay {= = | sffomes ai cox bl oe Ee ef el ie Proedh Bs a ree Bremen TANALMTICOS 1 ae —WARIOACRO DO INSTRUMENT [marc matodo Pesce] — [rasan ‘ameco oe ea + ae iv + Produto — manies were) "Cap txt Secor chee rn Figura 8.1 Organograma para elaboracao de medida psicoldgica da explicitacao de uma teoria preliminar e iniciam a construcao do instrumento pela coleta intuitiva e mais ou menos aleatéria de uma amostra de itens, que dizem pos- suir face validity, isto é, parece cobrir 0 traco para o qual eles querem elaborar 0 instrumento de medida. Embora isso nao pareca muito cientifico, infelizmente ¢ que ocorre mais frequentemente na cons- trucdo de instrumental psicolégico. A inexisténcia de teorias sélidas so- bre um construto ndo deve ser desculpa para o psicometrista fugir de toda a es- peculacao tedrica sobre ele. E obrigacaio dele levantar, pelo menos, toda a evidén- cia empirica sobre o construto e procurar sistematizé-la e, assim, chegar a uma mi- niteoria sobre ele, que possa guid-lo na ;A EXPLICATIVA do discurso. ~ velem um continuo de pontos de magnitude. 167 Instrumentacao psicolégica elaboracdo de um instrumento de medida para o tal construto. Apesar do avanco ¢ da sofisticagao estatisticos na psicometria parece ser essa fraqueza da base tedrica que vem maculando a imagem dos pro- cedimentos psicométricos na observaciio dos fenémenos psicolégicos. Na verdade ‘com uma base teérica coerente e, quando possivel, completa, torna-se vidvel uma definicao dos tipos ¢ caracteristicas dos comportamentos que irdo constituir a re presentacao empirica dos tracos latentes ¢, assim, facilitar a tarefa do psicometris ta em operacionaliza-los adequadamente (isto é, a construgao dos itens se torn coerente e adequada) De qualquer forma, a Figura 8 talha esses procedimentos tedricos. em ciéncia e, diria, particularmente em psicologia nao é uniforme infelizmente. Por isso, & iconceituar preliminarmente certas express6es aqui utlizadas, como seque: ‘Sistema: sindnimo de objeto, coisa ser, entidade que possul propriedades ou atributos,O sistema é definido nao necessariamente pela natureza, mas pelo interesse do discurso, e existente neste mundo ‘Atributo: propriedade, qualidade, aspecto, componente do objeto. Ele é caracterizado por ser mensuré- Magnitude: qualidade de um sistema que pode assumir diferentes valores de quantidade, ito & ela “ode ser mais ou major que (>) ou menos ou menor que (<). * _somorfismo: airmagao de correspondéncia entre propriedades do niimero (matematica) e quantidades "das propriedades dos sistemas da natureza (fsica ou nao). Defnicto: delimitagao de um concelto em temos de suas propriedades especiicas Ela ¢ consitutiva ou for ‘mal seo conceito ou constrto for defnido em termos de outros construtos. Fla € operacional ou epistémica “s2 0conceito ou construto for definido em termos de fats empircos, da experiéncia ou observacio. pa TORE fae [eonarUeR BO nSTRINE ie = LIF onsen |_ale] nate os Produto Figura 8.2 Procedimentos tedricos na elaboracao da medida psicol6gica 168 Luiz Pasquali & cols. O sistema psicolégico Qualquer sistema ou objeto que pos- sa eventualmente ser expresso em termos observaveis é suscetivel de se tornar um objeto para fins de mensuracao. Aconte- ce, porém, que um objeto em si no pode ser medido. Os objetos podem apenas ser enumerados. O que pode ser medido sao as propriedades ou atributos de um ob- jeto, desde que apresentem magnitudes, isto 6, diferengas individuais, tais como intensidade, peso, altura, distancia, etc. Por isso esses atributos sio_geralmen- te chamados de varidveis, dado que nao sio invariantes entre sistemas individuais diferentes ou eles mesmos em diferentes ocasides ou situacées. Se o sistema ou objeto representa © universo de interesse, 0 atributo dele constitui uma delimitagao desse univer- so, O sistema realmente é definido pelo interesse do investigador. Como a ciéncia procura 0 conhecimento e nao o poder ou a afirmagéo pessoal ou a politica, entao para o cientista nao existe sistema privi- legiado; todo e qualquer sistema é digno € valido para ser conhecido. Obviamente, interesses politicos, sociais, pedagdgicos, financeiros podem ditar a escolha de um objeto de estudo. Assim, a relevancia de um sistema de estudo nao é ditada pelo saber em si, mas por fatores extrinsecos a ele; nem por isso esses fatores extrinse- cos so negligencidveis no contexto geral do universo da natureza e do ser huma- no, dado que o ser humano (pesquisador) esta situado em um contexto e tem suas prioridades em parte ditadas por esse contexto. Assim, nao ha maior sabedoria em se estudar um grao de areia do que a sobrevivéneia do ser humano, embora para nés, seres humanos, esta tiltima pa- reca bem mais relevante. Enfim, o sistema representa o objeto de interesse, chamado também de objeto psicoldgico. A psicometria enfoca como seu objeto especifico as estruturas laten- tes, 0s tracos psiquicos ou processos men- tais, se quiser, que assim se constituem no seu objeto ou sistema direto de interesse. O sistema pode ser considerado de vi rios niveis, dependendo do interesse do pesquisador. Pode-se falar de um sistema universal e de sistemas locais, o universal sendo a estrutura psicolégica total do ser humano e os locais, os varios subsistemas de interesse. Assim, a inteligéncia pode ser considerada um subsistema dos processos cognitivos e estes da estrutura latente ge- ral, ou mesmo a inteligéncia, digamos, verbal pode ser considerada um sistema quando ela for o interesse imediato e na qual varios aspectos podem ser considera- dos, como a compreensao verbal e a fluén- cia verbal. Sistema, portanto, constitui-se em sistema como 0 objeto imediato de interesse dentro de um delineamento de estudo, € nao é uma entidade ontolégica monolitica e univoca. Esses varios niveis de sistemas ocor- rem mesmo nas coisas fisicas. Assim, por exemplo, para 0 bidlogo podem ser sis- temas 0 organismo em sua totalidade ou parte dele, como ¢ 0 sistema neurol6gico para o neurdlogo, o sistema vascular para 0 cardidlogo, etc. O quimico se interessa pelos elementos da tabela periédica, em que os seus sistemas naturais (Agua, ar, etc.) se reduzem a esses elementos de imteresse desse profissional. O fisico nu- clear estuda seus sistemas reduzindo-os finalmente as particulas quark (top, bot- tom, strange, etc.), as forcas gliions (forca forte, fraca, gravitacional) e aos processos léptons (elétrons, pésitrons). Em psico- logia, também encontramos tais niveis de sistemas. Considere, por exemplo, os processos cognitivos: Piaget e Spearman consideram a inteligéncia como uma grande estrutura (um sistema) que evolu geneticamente; os fatoristas consideram a inteligéncia no nivel de estruturas me- nores, quando falam de raciocinio verbal, numérico, abstrato, etc.; Sternberg vai ainda mais longe nessa elementarizacao dos sistemas (processos) cognitivos, bus- ndo seus elementos no que ele chama de componentes cognitivos; e, finalmen- te, Newell e Simon levam ao extremo esse elementarismo quando defendem os pro- cessos elementares de informacao (ele- mentary information process ~ EIP) como 0s elementos tiltimos dos processos cogni- tivos. A qualquer desses niveis, 0 pesqui- sador pode se colocar e definir este nivel como 0 nivel do sistema de seu interesse. Nao é preciso ver oposigées tedricas anta- gOnicas nesses varios autores quanto aos processos cognitivos. Eles simplesmente se poem em horizontes diferentes e, por isso, ‘yeem niveis diferentes de realidade, alias, da mesma realidade. E apenas 0 exclusi- vismo, na verdade desnecessdrio, desses autores em afirmar que seu horizonte é oiinico ou o melhor para ver a realidade dos processos cognitivos. Isso vale, alias, para qualquer outro processo psicolégico, como a personalidade, por exemplo. Enfim, o problema a ser resolvido neste passo praticamente se reduz a que o pesquisador, que pretende construir um instrumento, deve ter uma ideia, por mais vaga que seja, sobre o que é que ele quer trabalhar, para que tema da psicologia ele esta interessado em construir um instru- mento de medida e pesquisa. Este proble- ma é, evidentemente, mais aparente em aluno de pés-graduagao, ao qual se apre- senta a necessidade de apresentar uma dissertacao no final do curso e ainda néo tem ideia sobre que assunto em psicolo- gia ele quer desenvolver sua tese. Na falta de qualquer outra indicacdo ou interesse especifico, tal individuo pode se dirigir aos livros indices onde estao elencados os principais trabalhos que se vém fazendo em psicologia. Para 0 psicdlogo ha uma série de tais livros, sendo o mais util o Prychological Abstracts, que & publicado mensalmente € onde aparece a quase to- insuumenayay pLoWyRa ewe talidade dos artigos e trabalhos feitos em psicologia em nivel mundial. Além deste, ha o Educational Index, para os interessa- dos na psicologia aplicada educacao, 0 Index Medicus, para os interessados em psicologia clinica, e 0 Sociological Index. onde aparecem temas referentes a psico logia social, Na falta de tais fontes ou se ainda assim, 0 tema nao surgiu na per cepcao do pesquisador (aluno), ele pode recorrer a peritos, que, no caso do aluno, & normalmente seu orientador, Enfim, © problema a ser resolvido nesse passo consiste em se ter uma ideia, um tema, um assunto para pesquisar. A esse tema chamamos de objeto psicolégico, que re presenta 0 produto esperado desse passo na elaboracio do instrumento. Agora, 0 stema escolhido pode ser mais amplo ou mais restrito, como vimos anteriormente ao falarmos dos diferentes niveis de sis temas. Obviamente, quanto mais restrito ‘ou elementar for o sistema, mais facil se torna a construcao de um instrumento de medida. Por isso, é relevante definir como sistema psicolégico um processo ou traco Tatente 0 mais préximo do interesse direto do pesquisador. Tipicamente isso significa definir um sistema 0 mais elementar pos sivel, dentro do interesse. Sistemas vagos e gerais dificultam depois sua operacio- nalizagio para fins de pesquisa empirica como é a construcdo de um instrumento de medida. A propriedade do sistema psicolégico O sistema, j4 dissemos, nao consti tui objeto direto de mensuragaio, mas sim suas propriedades ou atributos, que sao os varios aspectos que 0 caracterizam Por exemplo, o sistema fisico se apresenta com 0 atributos de massa, compriment« etc. Similarmente, a psicometria conce be os seus sistemas como possuidores de propriedades/atributos que os definem 170 Luiz Pasquali & cols. sendo esses atributos o foco imediato de observacio/medida. Assim, a estrutura psicoldgica apresenta atributos do tipo processos cognitivos, processos emotivos, processos motores, etc. A inteligéncia, como subsistema, pode apresentar atri- butos de tipo raciocinio verbal, racioci- nio numérico, ete. O sistema se constitui como objeto hipotético que ¢ abordado (conhecido) por meio da pesquisa de seus atributos. © problema especifico deste passo consiste em passar de um objeto psico- logico, normalmente amplo demais para pesquisar, para a delimitagao dos aspec- tos especificos dele que se deseja estudar € para os quais se quer construir um ins- trumento de medida. De fato, qualquer sistema apresenta ilimitado nimero de propriedades. A rosa, por exemplo, tem perfume, cor, peso, tamanho, beleza, rit- mo de crescimento, etc. E relevante, para se poder escolher ou construir um instru- mento de medida, definir qual ou quais propriedades do sistema serao objeto de estudo, Por exemplo, se meu interesse se focaliza sobre a crianga, nao é possivel es- tudar, de uma s6 vez, tudo sobre a crian- ca. Entio, tenho que me decidir por um aspecto mais restrito referente a crianga, que enfim vou pesquisar. Assim, da crian- ca posso estudar 0 seu desenvolvimento psicomotor, 0 desenvolvimento cognitivo, © desenvolvimento da linguagem, a enu- rese, a timidez, a agressividade, etc. Em qual desses ou outros aspectos estou pre- sentemente ¢ diretamente mais interessa- do? Pois esse ou esses aspectos constituem, a propriedade do objeto crianca que pre- sentemente quero abordar. A esses aspec- tos escolhidos chamamos de atributo. Ou © seu interesse pode se focalizar sobre a inteligéncia. Esta de fato ja é em si mesma uma propriedade do sistema ser humano. Mas ela pode ser igualmente considerada um subsistema complexo, apresentando varias propriedades especificas dela, tais como raciocinio verbal, raciocinio numé- rico, raciocinio abstrato, meméria, per- cepgio espacial, ete. Para se definir um instrumento de medida, é preciso decidir qual ou quais dessas propriedades serdo 0 objeto ime- diato de interesse. Ademais, & medida que © conhecimento sobre o sistema cresce, cresce também ntimero de novas pro- priedades descobertas, que, por sua vez, podem se tornar novos subsistemas de interesse, uma vez. que se vao descobrin- do propriedades diversas dentro desses novos subsistemas. Enfim, é de importin- cia para se prosseguir sem transtornos € desvios de rumo que se defina claramente ¢ preliminarmente as propriedades do sis- tema de interesse que se quer estudar. Tal definicao evita que se misture, no prosse- guimento do processo, “alhos e bugalhos”, como, por exemplo, utilizar uma amostra de itens que mais medem aspectos de co- nhecimento de vocabuldrio, quando, de fato, se queria atingir o raciocinio verbal Com isso, também nao se esté afirmando que entre tais propriedades de um siste- ma nao haja correlaces. Antes, pelo con- trario, relages e interagdes entre as pro- priedades de um mesmo sistema sdo uma suposicao nao somente legitima, mas pro- vavel. Contudo, o que se est afirmando & que é preciso partir com conceituagoes ¢ definicdes claras e precisas, bem como delimitadas, uma vez que a capacidade de conhecimento humano nao é abrangente. Como se decidir por este ou aquele aspecto? Novamente, recorro ao meu in- teresse, & ajuda dos livros indices e aos peritos (concretamente, ao meu orienta- dor, se eu for aluno). Dimensionalidade do atributo Se 0s dois primeiros passos ante- riormente descritos possam parecer, para muitos, um mero exercicio académico, 0 terceiro passo e os demais a seguir jé nao sio tao simples, pois os problemas que eles apresentam so bem mais complexos. A dimensionalidade do atributo diz respeito a sua estrutura interna, seman- tica. O atributo constitui uma unidade semantica unica ou é ele uma sintese de componentes distintos ou até indepen- dentes? Deve ele ser concebido como uma dimensao homogénea ou devem-se nele distinguir aspectos diferenciados? A resposta a esse problema obviamente deve vir da teoria sobre o construto e/ ou dos dados empiricos disponiveis sobre ele, sobretudo dados de pesquisas que uti- lizaram a anélise fatorial na andlise dos dados, pois 0 que estd em jogo aqui é a questao de decidir se o construto é uni ou - multifatorial. Os fatores que compoem o construto (0 atributo) sao 0 produto des- se passo. Por exemplo: Tenho como obje- to psicolégico os processos cognitivos; a propriedade desse objeto psicolégico que estou interessado em estudar é a inteli- géncia verbal. Pergunta-se: & esta inteli- géncia verbal um construto tinico ou devo distinguir nele componentes diferentes? " Os dados empiricos disponiveis me mos- tram que a inteligéncia verbal é composta por, pelo menos, dois fatores bem distin- tos e praticamente independentes, a sa- ber, compreensao verbal e fluéncia verbal. Consequentemente, se quiser pesquisar a inteligéncia verbal e construir para tal um instrumento de medida, néo poderei prescindir de conhecer e levar em con- tao fato de que a inteligéncia apresenta dois fatores distintos, cuja medida exige instrumentos diferentes. Claro, posso me decidir por estudar somente a inteligéncia verbal compreendida sob seu aspecto de compreensao verbal e prescindir de me preocupar com a fluéncia verbal. Porém, nesse caso o meu atributo de interesse de estudo nao é mais a inteligéncia verbal, € sim a compreensao verbal, Mesmo toman- do essa decisiio de somente querer estu- Instrumentacao psicolégica, 17 1 dar a compreensao verbal, nao fico escu sado de expor a teoria sobre a inteligéncia verbal em sua totalidade e, em seguida, justificar minha decisao pelo estudo de apenas um aspecto dela. Evidentemente, nessa justificativa pode ser ¢ sera suti- ciente 0 meu interesse especifico por tal aspecto da inteligéncia. Isto é, eu devo ber 0 que estou fazendo, e demonstro isso na exposicaio da teoria que faco sobre 0 construto inteligéncia verbal. Nesses dois passos, propriedade e di mensionalidade, entramos no ponto mais critico na caminhada para a elaboracao dos instrumentos psicoldgicos, porque toda esta parte resulta essencialmente da teoria psicoldgica, que concebe, define € estrutura os construtos psicolégicos. A tarefa da construcao da teoria psicologica no é especifica do psicometrista, mas do psicdlogo tedrico. O psicometrista deve ria poder contar com essa teoria e, com base nela, fundamentar a construcao dos instrumentos de medida. A existéncia de teorias ou fantasias as mais variadas so bre praticamente qualquer construto em psicologia torna a tarefa do psicometrista quase uma tragédia quando quer construit instrumentos para medir construtos sobre 0s quais os psicélogos nao se entendem. Dessa forma, o psicometrista acaba se de cidindo em construir um instrumento para medir um construto concebido segundo al gum psicdlogo. E ali vocé tem uma fauna enorme de psicdlogos tebricos, desde os behavioristas até os dialéticos, que falam linguagens quase totalmente estranhas um em relagio ao outro. Infelizmente esti € a situacao da teoria psicolégica atual Para caricaturar, imagine 0 seguinte: um fisico vai construir um instrumento para medir 0 comprimento de objetos fisicos E se para poder efetuar tal empreendi mento, ele tivesse que decidir sobre “bem, comprimento entendido segundo quem?” Tal pergunta careceria de sentido e seria ridicula fosse ela feita sobre comprimento a 172 Luiz Pasquali & cols. ow outras propriedades da matéria (pelo menos, na sua grande maioria). Mas, no caso do psicometrista, tal pergunta infe- lizmente € corriqueira, qualquer que seja © construto que ele queira estudar e medir, © que vem a mostrar o estado primitivo em que vive a teoria psicolégica. Essa preca- riedade da teoria psicolégica € a principal responsavel pela fuga, por parte dos p: cometristas, de basear a construcao dos instrumentos psicoldgicos em uma teoria prévia e testé-los em seguida por meio da metodologia cientifica. Essa fuga acarreta que o psicometrista parte de uma colecao atabalhoada de itens para em seguida ver © que eles esto medindo, se alguma coisa psicolégica relevante. Este estado de coisas deveria e deve obrigar o psicometrista a expor ou elabo- rar uma miniteoria sobre 0 que ele en- tende pelo construto que pretende medir. Felizmente, jd existe razodvel abundancia de dados empiricos sobre muitos cons- trutos psicolégicos, com base nos quais 0 psicometrista poder desenvolver uma tal miniteoria do construto, que ird guiar a construcao do seu instrumento de medi- da. Os dados empiricos que serao coleta- dos mediante o instrumento assim cons- truido ird decidir se sua miniteoria tem ou nao alguma consisténcia. Isso ndo é uma tragédia, ¢ a propria légica da pesquisa empitica, isto é, a testagem empirica que pode ou nao confirmar a validade de uma eoria: a verdade cientifica é sempre rela- tiva, nunca sera um dogma, e, portanto, sempre reformavel Uma pausa. Tipicamente, € nesses pas- sos que 0 pesquisador (pés-graduando) se sente perdido, porque nao consegue ver direito o que é exatamente o seu tema de pesquisa e como é que ele se enquadra no campo teérico do tema. Por isso vamos fazer um exercicio. Vamos supor que eu quero construir um instrumento para me- dir 0 raciocinio verbal. Sendo isso verda- de, entao ja tenho um pé no chao e posso fazer as seguintes consideracées: 1. Se quero medir o raciocinio verbal, en- to sei que cle nao é o objeto psicol6gi- co, porque a ciéncia ndo mede objetos, mas sim propriedades dele. Assim, ra- ciocinio verbal é um atributo. 2. Se raciocinio verbal é um atributo, con- sequentemente ele é atributo de algum objeto. Dessa forma, devo descobrir qual é esse objeto do qual o raciocinio verbal é propriedade. 3. Se raciocinio verbal ¢ um atributo de algum objeto, é de se supor que esse objeto tenha mais do que um atributo. Isto é, além de raciocinio verbal, 0 ob- jeto tem outros atributos. Assim, devo descobrir quais so esses outros atri- butos, de tal forma que, depois, possa diferenciar (definir diferencialmente) ‘© meu atributo de interesse ~ o racio- cinio verbal ~ dos demais atributos do objeto em questo. Com base na literatura, em perites e na minha reflexdo, resolvo essa equa- do da seguinte forma: Raciocinio verbal é atributo do processo cognitive chama- do raciocinio. Por sua vez, raciocinio tem como atributos, além de raciocinio verbal, também raciocinio numérico, raciocinio abstrato, raciocinio espacial, raciocinio mecanico e, talvez, outros. Mas, a litera- tura na drea certamente fala desses cinco atributos de raciocinio. Dessa forma, pos- so ilustrar essa minha descoberta da se- guinte forma: Raciocinio verbal Raciocinio numérico Raciocinio abstrato Raclocinio espacial + Raciacinio mecanico Raciocinio Pesquisando urn pouco mais, verifi- co que raciocinio verbal nao é unidimen- sional, De fato, a literatura distingue dois tipos de raciocinio verbal, a saber, com- preensao verbal e fluéncia verbal. Assim, ailustracao apresentada pode ser comple- tada como segue: + Raciocinio + Compreensao verbal verbal + Fluéncia verbal + Raciocinio numérico Raciocinio + Raciocinio abstrato + Raciocinio espacial + Raciocinio mecanico Com isso, tenho 0 meio de campo destrinchado. Agora falta definir diferen- cialmente todos esses atributos e estou bem encaminhado para a elaboragao do meu instrumento de medida, Posso fazer tudo isso com qualquer tema para o qual queira construir um instrumento de men- suracao. Boa sorte! Definicdo dos construtos Definida a propriedade e suas dimen- sées, é preciso conceituar detalhadamen- te esses construtos, novamente baseando- -se na literatura pertinente, nos peritos da rea e na propria experiéncia. O problema deste passo é, portanto, a conceituacio clara e precisa dos fatores para os quais se quer construir o instrumento de medida. A tarefa aqui é dupla, tendo como resul- tado dois produtos: as definigées consti- tutivas e as definigdes operacionais dos construtos. Definicdo constitutiva Um construto definido por meio de outros construtos representa uma defini- do constitutiva. Nesse caso, 0 constru- to é concebido em termos de conceitos proprios da teoria em que ele se insere. Instrumentacao psicologica 1/3 Definigdo constitutiva é a que tipicamen te aparece como definicao de termos em dicionarios e enciclopédias: os conceitos sao ali definidos em termos de outros con- ceitos; isto &, os conceitos, que sao reali dades abstratas, sao definidos em termos de realidades abstratas. Por exemplo, se defino inteligéncia verbal como a capaci- dade de compreender a linguagem, estou diante de uma definigdo constitutiva, por que capacidade de compreender constitu uma realidade abstrata, um construto, um conceito. As definigdes constitutivas sao de extrema importincia no contexto da construciio dos instrumentos de medi da, porque elas situam 0 construto exa ta e precisamente dentro da teoria desse construto, dando, portanto, as. balizas € os limites que ele possui. Enfim, essas definigdes caracterizam 0 construto, dan do as dimensGes que ele deve assumir no espaco semantico da teoria em que esta incluido. Assim, se defino assertividade como a capacidade de dizer nao, a capa cidade de expressar livremente sentimen tos positivos e negativos, a capacidade de expor ideias sem receio, etc., estou dando 08 limites semanticos que esse conceito deve respeitar dentro da minha teoria de assertividade. Definigdes dessa natureza poem limitacdes definidas sobre o que devo explorar quando for medir o cons truto, limitagdes nao somente em termos de fronteiras que nao podem ser ultrapas- sadas, mas mais ainda em termos de fron teiras que devem ser atingidas. De fate normalmente um instrumento que mede um construto nao chega a cobrir toda a amplitude semantica de um conceito. As- sim, boas definigdes constitutivas vao me permitir em seguida avaliar a qualidade do instrumento que mede 0 construto em termos de quanto dessa extensao seman- tica dele é coberta pelo instrumento, sur gindo dai instrumentos melhores ¢ piores uma vez que medem mais ou medem me 174 Luiz Pasquali & cols. nos da extensao conceptual do construto, extenstio esta delimitada pela definigao constitutiva desse mesmo construto. Defini¢do operacional Com as definigGes constitutivas nés estamos ainda no terreno da teoria, do abstrato. Um instrumento de medida jé uma operacao concreta, empirica. A passagem do terreno abstrato para 0 con- creto € precisamente viabilizada pelas definigdes operacionais dos construtos. Este é, talvez, o momento mais eritico na construgio de medidas psicolégicas, poi é aqui que se fundamenta a validade des- ses instrumentos; é aqui que se baseia a legitimidade da representagao empirica (comportamental) dos tracos latentes (os construtos). Duas preocupagées sao rele- vantes e decisivas neste momento: 1. as definigdes operacionais dos constru- tos devem ser realmente operacionais e 2, elas devem ser os mais abrangentes possiveis dos construtos. Primeiramente, as definigdes opera- cionais devem ser realmente operacionais. Esta tautologia € proposital, porque se peca demais neste particular. Uma defini- do de um construto € operacional quando © mesmo construto é definido, nao mais em termos de outros construtos, mas em termos de operacdes concretas, isto é, de comportamentos fisicos por meio dos quais © tal construto se expressa. Assim, se defi- no inteligéncia verbal como a capacidade de compreender uma frase ou, mesmo, compreender uma frase, estou diante de uma definigdio constitutiva e no opera cional. Isto porque compreender nao é um comportamento, mas um construto. Seria uma definigdo operacional de compreensao da frase reproduzir a frase com outras palavras. Mager (1981) da uma formula simples e perfeita para de- cidir se a definicao é ou nao operacional. Ela é operacional se vocé puder dizer ao sujeito “va e faca...”. Assim, se defino in- teligéncia verbal como compreender uma frase, 0 que devo pedir ao sujeito para fa- zer? Pois “va e compreenda...” nao diz ao sujeito nada que ele possa fazer. Ao passo que dizer “vd e reproduza a frase” indi- ca claramente 0 que o sujeito deve fazer, como deve se comportar, e, portanto, esta iiltima é uma definigdo operacional, pois ela define comportamentos que devem ocorrer, enquanto compreender a frase nao indica nenhum comportamento con- creto especifico a ser exibido por parte do sujeito. Em segundo lugar, a definigo ope- racional deve ser a mais abrangente pos- sivel do construto. Nenhuma. definicao operacional esgota a amplitude seman- tica de um construto; assim, pode haver definigdes operacionais mais ou menos abrangentes do mesmo construto, e essa grandeza de abrangéncia, evidentemente, fala da boa, mé ou pior qualidade da de- finigdo operacional, o que vai obviamente repercutir sobre o instrumento de medida do construto que sera baseado nessa de- finigio operacional do mesmo construto. Alids, uma definicaio operacional pode ser perfeitamente operacional e também per- feitamente equivocada ou errada, quan- do nao cobrir nada do espaco semantic proprio do construto, Assim, definir in- teligéncia verbal como desenhar circulos na areia constitui uma definicao perfeita- mente operacional, pois todo mundo en- tende quando se manda desenhar circulos na areia; contudo, apesar de operacional, ela é uma definicdo perfeitamente equi vocada de inteligéncia verbal, pois 0 com- portamento de desenhar circulos na areia nao tem nada a ver com o construto em questo. Disso segue que as definicoes operacionais podem representar um cons- truto em uma escala que expressa uma proporcao de coincidéncia entre constru- to e definigdo operacional que vai de 0 a 1, sendo 0 quando a definigao nao cobre nada do construto e 1 quando ela cobre 100% do espaco semantico do construto. Como ja dissemos, nenhuma definicao operacional sera capaz. de cobrir 100% do construto, mas quanto maior covariancia existir entre construto e definicao opera- cional, maior qualidade se deve atribuir a essa defini¢éio do construto e, por conse- quéncia, maior chance tera o instrumen- to, que de tal definigéo resulta, de ser superior em qualidade. Dizemos maior chance porque a qualidade do instrumen- to no depende unicamente de boas de- finigdes operacionais, embora sem a boa qualidade destas o instrumento ja comega de saida a ser inferior. A Figura 8.3 deixa visualizar a problemdtica da qualidade de Tepresentagao comportamental de dife- rentes definigdes operacionais do constru- to compreensiio verbal. construto, as definigdes operacionais de- "vero especificar e elencar aquelas cate- gorias de comportamentos que seriam a Tepresentacio comportamental do cons- truto. Quanto melhor e mais completa for essa especificacio, melhor sera a garantia de que o instrumento que resultar para a medida do construto sera vélido e titil. Por exemplo, quais seriam as categorias de comportamentos que expressariam com- Para garantir melhor cobertura do Instrumentagao psicologica I/D portamentalmente a compreensio ver bal? Seriam tais como reproduzir 0 tex to, dar sindnimos e anténimos, expli texto, sublinhar alternativas, etc. Quanto mais completa essa listagem de categorias comportamentais, mais préximo estou da construcao do instrumento, porque o Passo seguinte serd simplesmente expres sar essas categorias em tarefas unitarias € especificas (os itens), e 0 instrumento piloto esta construido. Por isso, nunca demais gastar tempo na implementac’io detalhada das definigdes operacionais do construto. Onde vou me inspirar para realizar adequadamente esta tarefa? Novamente ‘os métodos a serem utilizados para reso! ver o problema deste passo de construcao de medidas psicolégicas sao a literatu pertinente sobre o construto, a opiniao dk peritos na area, a experiéncia do proprio pesquisador, bem como a analise de cor tetido do construto. Torna-se aqui, como se vé, indispensavel o conhecimento apro fundado da literatura sobre o construto ¢ sobre as técnicas de anilise de contetido. E bom lembrar nesse contexto que os instrumentos de medida psicolégica visam medir tracos latentes. Mas como medir tracos latentes que sio impérvios a observacao empirica que ¢ 0 método da ciéncia? Estamos aqui nos defron tando com o problema da cdo: qual é a maneira adequada de se Extensio semantica total Desenhar circulos Dizer que compreendeu Escrever afrase Reproduzir a frase Compreensao verbal igura 8.3 Extensao semantica de definicdes operacionais de compreensao verbal 176 Luiz Pasquali & cols. representar esses atributos latentes para que possam ser cientificamente aborda- dos? Embora o problema parega, e é na verdade, grave, ele nao é especifico da psicometria; ele ocorre na propria fisi- ca com a teoria quantica, por exemplo. Como 0 comportamento representa es- ses tracos latentes? E precisamente o problema que as definigdes operacionais precisam resolver. Operacionalizacao do construto Este € 0 passo da construgdo dos itens, que sao a expressiio da representa- cio comportamental do construto, a saber, as tarefas que 0s sujeitos terdo de execu- tar para que se possa avaliar a magnitude de presenca do construto (atributo) Fontes dos itens Se os passos até aqui discutidos fo- ram adequadamente resolvidos, nés es- tamos agora diante das categorias com- portamentais que expressam 0 construto de interesse, que dio praticamente a res- posta 4 construgio dos itens. Além disso, podemos apelar para outras duas fontes de itens: a entrevista e outros testes que medem © mesmo construto. A entrevista consiste em pedir a sujeitos representan- tes da populaco para a qual se deseja construir o instrument para opinar em que tipo de comportamentos tal construto se manifesta. Por exemplo, se meu desejo & construir um instrumento sobre asserti- vidade, posso me dirigir a representantes da populagao e perguntar “como é para vocé uma’ pessoa assertiva?”. De uma pesquisa dessa natureza pode surgir uma grande riqueza de comportamentos que expressam assertividade e que podem ser aproveitados como itens do instrumento. Ademais, posso me inspirar em itens que compéem outros instrumentos disponi- veis no mercado e que medem o mesmo construto no qual estou interessado. As- sim, temos trés fontes preciosas para a construco dos itens: + literatura: outros testes que medem 0 construto; * entrevista: levantamento junto a popu- lacao meta; F + categoria comportamentais: definidas no passo das definigdes operacionais E importante notar que, no proces- so de elaboracao do instrumento como © temos exposto, os itens nao so mais coletados a esmo ou chutados; eles sao elaborados ou, pelo menos, selecionados em fungdo das definicgdes operacionais de um construto que foi exaustivamente analisado em seus fundamentos teéricos e nas evidéncias (dados) empiricas dis- poniveis. Entdo, nao é qualquer item que pareca medir 0 construto que € aceito, mas somente aquele que corresponde as suas definigdes tedricas (constitutivas) € as suas definig6es operacionais. No é mais a malfadada face validity que impe- ra na seleciio dos itens, e sim a sua perti- néncia (a esta altura, obviamente, ainda te6rica) ao contexto tedrico do construto. Alids, os itens nao sao inventados ou pes- cados, eles so construidos para represen- tar comportamentalmente 0 construto de interesse. Regras para construcao de itens Dadas as fontes que baseiam a cons- trugio dos itens, é preciso dar agora al- gumas regras ou critérios fundamentais para a elaboracéio adequada dos prdprios itens. Essas regras se aplicam, em parte, & construcio de cada item individualmen- te, € em parte ao conjunto dos itens que medem um mesmo construto. Ademais, dependendo do tipo de traco a ser medi- do (se ¢ de aptidio ou de personalidade), F algumas des regras se aplicam e outras nao. 4) Ciitrios para a construgao dos itens: 1. Critério comportamental: 0 item deve expressar_ um comportamento, nao uma abstracdo ou construto. Segundo Mager (1981), o item deve poder per- mitir ao sujeito uma agao clara e preci- sa, de sorte que se possa dizer a ele “va e faca”. Assim “reproduzir um texto” é um item comportamental (“va e repro- duza...”), a0 passo que “compreender um texto” nao 0 é, pois o sujeito nao sabe 0 que fazer com “vd e compreen- da... Critério de objetividade ou de desejabili- dade: para o caso de escalas de aptidao, 05 itens devem cobrir comportamentos de fato, permitindo uma resposta certa ou errada. O sujeito respondente deve poder mostrar se conhece a respos- ta ou se é capaz de executar a tarefa proposta. Assim, por exemplo, se vocé quer saber se © sujeito entende o que seja “abstémio”, faz mais sentido pedir a ele que dé um sindnimo do que pedir que diga se entendeu ou nao. J para 0 caso das atitudes e de personalidade em geral, os itens devem cobrir com- portamentos desejdveis (atitude) ou caracteristicos (personalidade). O res- pondente, nesse caso, deve poder con- cordar ou discordar ou opinar sobre se tal comportamento convém ou nao para ele, isto é, os itens devem expres- sar desejabilidade ou preferéncia. Nao existem neste caso respostas certas ou erradas; existem sim diferentes gostos, preferéncias, sentimentos e modos de ser. 3. Critério da simplicidade: um item deve expressar uma tinica ideia. Itens que Instrumentacao psicologica 1// introduzem explicacdes de termos ou oferecem razdes ou justificativas sio normalmente confusos porque intro- duzem ideias variadas e confundem © respondente. Por exemplo: “Gosto de feijao porque € saudavel”. O sujei to pode de fato gostar de feijao, mas nao porque seja saudavel; assim, cle nao saberia como reagir a tal item: se porque 0 feijao é gostoso ou porque ¢ saudvel. O item exprime duas ideias O mesmo vale para “a maca é gostosa e saudavel” }. Critério da clareza: 0 item deve ser in, teligivel até para o estrato mais baixo da populagao meta; dai utilizar frases curtas, com expressées simples e ine quivocas. Frases longas ¢ negativas incorrem facilmente na falta de clare za. Com referéncia as frases negativas normalmente elas sao mais confusas que as positivas; consequentemente, é melhor afirmar a negatividade do que negar uma afirmacao. Por exemplo fica mais inteligivel dizer “detesto ser interrompido” do que “nao gosto de ser interrompido”, ou em vez de “nao me sinto feliz” ¢ melhor dizer “sinto-me in feliz”. Neste contexto, é preciso igual mente ter atencao em nao utilizar gi- rias, porque elas nao so normalmente inteligiveis para todos os membros de uma populago meta do instrumento. além de tipicamente ofender o estrato mais sofisticado da populacdo, o que pecaria contra o critério mimero 10. Contudo, o linguajar tipico da popula cao meta deve ser utilizado na formu lagio dos itens. Assim, sdo admissiveis € so mais apropriadas expressoes co- nhecidas por tal populacao, ainda que elas possam parecer linguisticamente menos castigas. A preocupacado aqui é a compreensao das frases (que repre- sentam tarefas a serem entendidas e se possivel resolvidas), artistica. 0 sua elegancia 178 Luiz Pasquali & cols. 5. Critério da relevéncia (pertinéncia, sa- turagdo, unidimensionalidade, corres- pondéncia): a expressao (frase) deve ser consistente com o traco (atributo, fator, propriedade psicolégica) defini- do e com as outras frases que cobrem © mesmo atributo. Isto é, 0 item nao deve insinuar atributo diferente do definido. O critério diz. respeito a sa- turacdio que o item tem com o constru- to, representada pela carga fatorial na andlise fatorial e que constitui a cova- riancia (correlagdo) entre o item e 0 fator (traco). Veja o seguinte exemplo: seja 0 construto “compreensdo verbal” definido como compreender o signi- ficado de palavras e frases. Dos trés itens a seguir, um é pertinente, outro é mais ou menos e um é impertinent + Reproduzir a frase com as préprias palavras > pertinente. + Decorar uma sentenga > pouco per- tinente. + Falar em voz alta > impertinente. 6. Critério da precisdo: 0 item deve pos suir uma posigao definida no continuo do atributo e ser distinto dos demais itens que cobrem 0 mesmo continuo. Este critério supde que 0 item possa set localizado em uma escala de esi mulos; em termos de Thurstone, dirfa- mos que o item deve ter uma posicao escalar modal definida e um desvio pa- Figura 8.4 ilustracao da precisdo dos itens na escala de Thurstone. dro reduzido. Em termos da TRI, este critério representa os parametros b (di- ficuldade) ¢ a (discriminacdo) e pode realmente ser avaliado definitivamen- te somente apés coleta de dados em- piricos sobre os itens. Por exemplo, na escala de Thurstone (ver Figura 8.4), 0 item E1 é muito preciso, enquanto 0 E2 é impreciso. 7. Critério da variedade: dois aspectos es- pecificam este critério. + Deve-se variar a linguagem pois 0 uso dos mesmos termos em todos 05 itens confunde as frases e dificul- ta diferencid-las, além de provocar monotonia, cansaco e aborrecimen- to. Exemplo: 0 EPPS (Edwards Per- sonal Preference Schedule) em in- glés comeca quase todas as suas 500 frases com a expresso “I like...”. Depois de tantos “I like”, qualquer sujeito deve se sentir saturado! + No caso de escalas de preferéncias, deve-se formular a metade dos itens em termos favordveis e metade em termos desfavordveis, para evitar erro da resposta estereotipada a es- querda ou & direita da escala de res- posta. E a recomendagao que Likert jé dava em 1932. 8. Critério da modalidade: formular frases com expresses de reagio modal, isto 6, nao utilizar expressdes extremadas, 10 “excelente”, “miseravel”, etc. As- _ sim, ninguém é infinitamente inteligen- te, mas a maioria é bastante inteligente. A intensidade da reagio do sujeito ¢ dada na escala de resposta. Se 0 pré- prio item jé vem apresentado em forma extremada, a resposta na escala de res- postas jd estd viciada, Assim, se pergun- to ao sujeito se est pouco ou muito de ~ acordo (em uma escala, por exemplo, de sete pontos que vai de desacordo total a acordo total), um item formulado extre- mado tal como “meus pais sao a melhor coisa do mundo” dificilmente receberia esposta 7 (totalmente de acordo) por parte da maioria dos sujeitos da popu- lacio meta, simplesmente porque a for- mulagao ¢ exagerada. Se em lugar dela eu usasse uma expresso mais modal, tal como “eu gosto dos meus pais”, as chances de respostas mais variadas e in- clusive extremadas (resposta 7) seriam de se esperar. . Critério da tipicidade: formar frases com expressdes condizentes (tipicas, proprias, inerentes) com o atributo. Assim, a beleza no é pesada, nem grossa, nem nojenta. 10. Critério da credibilidade (face validity): 0 item deve ser formulado de modo que nao aparega sendo ridiculo, des- propositado ou infantil. Itens com esta tiltima caracterizagao fazem o adulto se sentir ofendido, irritado ou coisa similar, Enfim, a formulacao do item pode contribuir e contribui (Nevo, 1985; Nevo e Sfez, 1985) para uma atitude desfavordvel para com o tes- te e assim para 0 aumento dos erros (vieses) de resposta. Este tema, as ve- zes, é discutido sob 0 que se chama de validade aparente (face validity), que nao tem nada a ver com a valida- de objetiva do teste, mas pode afetar negativamente a resposta ao teste, a0 afetar o individuo respondente. 179 Instrumentacao psicologica 6) Crtérios referentes ao conjunto dos itens (0 instrumento todo) i 12. Gritério da amplitude: este critério afirma que 0 conjunto dos itens re- ferentes ao mesmo atributo deve co: brir toda a extensio de magnitude do continuo desse atributo. Este critério é novamente satisfeito pela andlise da distribuigéo dos parametros b da TRI A razo disto é que um instrumento deve poder discriminar entre sujeitos de diferentes niveis de magnitude do traco latente, inclusive entre os que Posstiem um trago alto quanto entre 0s que possuem um traco pequeno, nao somente entre os de traco alto ¢ traco baixo. Gritério do. equilibrio: os itens do mesmo continuo devem cobrir igual mente ou proporcionalmente todos 0s segmentos (setores) do continuo, devendo haver, portanto, itens fi dificeis e médios (para aptiddes) ou fracos, moderados e extremos (no caso das atitudes). De fato, os itens devem se distribuir sobre o continuo em uma distribuigdo que se assemelha a da curva normal: maior parte dos itens de dificuldade mediana e dimi- nuindo progressivamente em direcio as caudas (itens faceis ¢ itens dificeis em niimero menor). A razao deste critério se encontra no fato de que a grande maioria dos tracos latentes se distribui entre a populacao mais ou menos dentro da curva normal, isto 6, a maioria dos sujeitos possui mag nitudes medianas dos tracos latentes, sendo que uns poucos possuem mag- nitudes grandes e outros, magnitudes pequenas. Assim, a distribuicio dos itens em um instrumento deve ser mais ou menos segundo a curva nor mal, como mostrado na Figura 8.5 a seguir, onde se diz que 10% dos itens 180 Luiz Pasquali & cols, devem ter dificuldade minima ou ma- xima, 40% dificuldade mediana, etc. Quantidade de itens Para se cobrir a totalidade ou a maior parte ou, pelo menos, grande par- te da extensio semantica do construto, explicitada nas definigGes constitutivas, normalmente se exige, no instrumento fi- nal, um ntimero razoavel de itens. O que um ntimero razoavel? O bom senso de quem trabalha nesta drea sugere que um construto, para ser bem representado, ne- cessita de cerca de 20 itens. Hé, evidente- mente, construtos muito simples que difi- cilmente necessitam de tal nimero, sendo suficientes apenas uma meia diizia ou menos deles, Por exemplo, em relagaio & satisfagéio com o saldrio. Quantas manei- ras ha de se verificar tal satisfagao? Parece exagerado perguntar 20 vezes ao sujeito se estd satisfeito com o seu salario. Posso, sim, perguntar se ele esta contente com a quantia, com o poder de compra, com a pontualidade de entrega, e mais alguns aspectos. Mas parece dificil descobrir umas 20 maneiras de estar satisfeito com © salétio. Entretanto, a grande maioria dos tracos latentes normalmente possui uma gama bem maior de aspectos e, por isso, exige maior niimero de itens para se- rem adequadamente representados. Se o niimero final de itens, isto é, depois que o instrumento passou por to- das as fases de construgo e validacao, deve ser em torno de 20, pergunta-se com quantos itens ¢ preciso comecar para que no final possamos salvar 20. A resposta dada no contexto da psicometria tradi cional positivista é a de que se deve co- mecar com, pelo menos, o triplo de itens para se poder assegurar, no final, um ter- 0 deles. Esta resposta se deve ao modo positivista ou atedrico de construir ins- trumentos psicolégicos. Nesse enfoque, 0s itens nao sdo construidos a partir de uma teoria; eles sao coletados ou selecio- nados de uma tal pool of items que parece medir um dado construto e, em seguida, analisados estatisticamente para ver quais deles se salvam. Quer dizer, os itens so aqui simplesmente chutados; eles siio se- lecionados simplesmente porque parecem medir o que quero medit. Dentro da técnica de construgao de instrumentos baseada na teoria dos tragos latentes que estamos expondo, para se salvar 20 itens no final de toda a elabo- racdo e validacao do instrumento, nao é necessirio iniciar com mais do que 10% de itens além dos 20 requeridos no instru- mento final. Isso porque os itens incluidos Faixa: Figura 8.5 Distribuigdo percentual dos itens em cinco faixas de dificuldade. no instrumento piloto sao itens que pos- suem validade teérica real, e nao simples- mente que parecem ter validade. Anilise tedrica dos itens Operacionalizado 0 construto por intermédio dos itens, estou diante da hi- potese de que eles representam adequa- damente o tal construto. Essa ¢ a minha versio da hipstese a ser testada. Contu- do, € importante avaliar a minha hipé- tese contra a opiniao de outros para me assegurar de que ela apresenta garantias de validade. Essa avaliacao ou andlise da hipdtese (andlise dos itens) ¢ obviamen- te ainda tedrica porque consiste simples- mente em pedir outras opinides sobre minha hipotese, sendo que os outros que a vao avaliar ainda nao sio uma amos- tra representativa da populacao para a qual construi o instrumento. Essa andlise tedrica ¢ feita por juizes e comporta dois tipos distintos deles, segundo a andlise incida sobre a compreensao dos itens (anélise seméntica) ou sobre a pertinén- cia dos itens ao construto que represen- tam (propriamente chamada de andlise dos juizes). Assim, antes de partir para a validagao final do instrumento piloto, este é submetido a uma anilise tedrica dos itens por meio da andlise semantica e da andlise dos juizes. Analise semantica dos itens Aanilise semantica tem como objeti- vo precipuo verificar se todos os itens siio compreensiveis para todos os membros da populacio a que o instrumento se destina. Nela duas preocupacées sio relevantes: 1. verificar se os itens sao inteligiveis para o estrato mais baixo (de habilidade) da populacéo meta e, por isso, a amostra 181 Instrumentagao psicolgica para essa andlise deve ser feita com esse estrato; 2. para evitar deselegancia na formula- ‘co dos itens, a andllise semantica deve- 14 ser feita também com uma amostra mais sofisticada (de maior habilidade) da populagio meta (para garantir a chamada “validade aparente” do teste) Entende-se por estrato mais haixo aquele segmento da populacao meta que apresenta menor nivel de habilidades. Assim, por exemplo, se meu teste se des tina a uma populacao que congrega su jeitos do ensino fundamental até univer sitarios, obviamente o estrato mais baixo esse contexto sao os sujeitos do ensino fundamental, ¢ © mais sofisticado sera representado pelos sujeitos de nivel uni versitério, De qualquer forma, a dificul dade na compreensao dos itens nao deve se constituir em fator complicador na res- posta dos individuos, uma vez. que nao se quer medir a compreensao deles (a nao ser, obviamente, que o teste queira medit precisamente isso), mas sim a magnitude do atributo a que os itens se referem. Que técnica se deve utilizar para fazer essa andlise? Ha varias maneiras eficientes para tal tarefa, como, por exemplo, apli car o instrumento a uma amostra de uns 30 sujeitos da populacio meta e em se- guida discutir com eles as duividas que os itens suscitarem. Entretanto, uma técnica que se tem mostrado das mais eficazes na avaliago da compreensio dos itens con siste em checé-los com pequenos grupos de sujeitos (trés ou quatro) em uma situa cdo de brainstorm. Essa técnica funciona da seguinte forma: constitui-se um grupo de até quatro sujeitos, iniciando com su- jeitos do estrato baixo da populacao meta, porque se supée que, se tal estrato com: preende os itens, a fortiori o estrato mais sofisticado também os compreendera. A esse grupo apresenta-se item por item, pedindo que ele seja reproduzido pelos 182 Luiz Pasquali & cols. membros do grupo. Se a reproducao do item nao deixar nenhuma diivida, o item & corretamente compreendido. Se surgi- rem divergéncias na reproducao do item ou se o pesquisador perceber que esta sendo entendido diferentemente do que ele julga que deveria ser entendido, este item tem problemas. Dada essa situacdo, © pesquisador entao explica ao grupo 0 que ele pretendia dizer com tal item. Nor- malmente, neste caso, os préprios sujei- tos do grupo irdo sugerir como se deveria formular o item para expressar 0 que 0 pesquisador queria dizer com ele; ¢ ai esta 6 item reformulado como deve ser. Quan- tos grupos sao necessdrios para proceder a essa andlise seméntica? Bem, itens que nao ofereceram qualquer dificuldade de compreensio em uma ou no maximo duas sessoes nao necessitam de checagem ul- terior, Itens que continuam apresentando dificuldades apés, digamos, no maximo de cinco sessdes merecem ser simplesmente descartados. Em seguida a essas sess6es, é importante pelo menos uma sessiio de checagem dos itens com um grupo de su- jeitos mais sofisticados. O objetivo desta tiltima verificagao consiste em evitar que os itens se apresentem demasiadamente primitivos para estes sujeitos e que assim percam a validade aparente. E que os itens devem também dar a impressao de serie~ dade — como diz 0 ditado de que a mulher de César néo somente deve ser honesta, QUADRO 8.1 ‘Tabelas para a analise dos itens, mas deve também parecer honesta! (Ver regra niimero 10 dos critérios de constru- ao de itens.) Analise dos juizes Esta analise é, as vezes, chamada de analise de contetido, mas propriamente deve ser chamada de andlise de construto, uma vez que precisamente procura veri- ficar a adequacdo da representaao com- portamental do(s) atriburo(s) latente(s). Na analise de contetido, os juizes devem ser peritos na area do construto, pois sua tarefa consiste em ajuizar se os itens estio se referindo ou nao ao traco em questo. Uma tabela de dupla entra~ da, com os itens arrolados na margem esquerda e os tracos no cabecalho, ser- ve para coletar a informacao, Uma con- cordancia de, pelo menos, 80% entre os juizes pode servir de critério de decisdo sobre a pertinéncia do item ao trago a que teoricamente se refere. ‘A técnica exige que sejam dadas aos juizes duas tabela: uma com as defini- es constitutivas dos construtos/fatores para os quais se criaram os itens ¢ outra tabela de dupla entrada com os fatores € 6s itens, como no Quadro 8.1, em que sio avaliados os itens que medem os dois fa- tores (compreensao verbal e fluéncia ver- bal) de raciocinio verbal. Normalmente € necesséria uma terceira tabela que elenca os itens, uma vez que a tabela de dupla entrada geralmente nfo comporta a ex- pressao completa do contetido dos itens. Com base nessas tabelas, a fungio dos juizes consiste em colocar um X para o item debaixo do fator ao qual o juiz julga item se referir. Uma meia diizia de juizes ser suficiente para realizar a tarefa. Itens que nio atingirem uma concordancia de aplicagdo aos fatores (cerca de 80%) ob- viamente apresentam problemas, e seria 0 caso de descarté-los do instrumento pilo- to, Isso vale, contudo, se 0 construto para o qual se esta construindo o teste apre- sentar fatores (particularmente quando forem em maior quantidade) que se su- péem ou se sabe que nio sio correlacio- nados. Quando os fatores se supdem que sejam correlacionados, acontece que uma mesma tarefa (item) pode se referir, cer- tamente com niveis de saturagao diferen- te, mas de fato se referir simultaneamente a mais de um fator, o que implicaria que 0s juizes iriam mostrar alguma discordn- cia quanto a aplicagao do item a este ou aquele fator. Nesse caso, a discordancia deve ser considerada como concordancia. Uma outra soluciio seria instruir os juizes amarcar, para cada item, nao o fator, mas aqueles fatores aos quais o item se refere. Entretanto, com tal dica, vocé abre campo para muita divagacao por parte dos jui- zes, e voce perde a utilidade pratica des- sa analise. Seria melhor instruir os juizes para colocar, se possivel, cada item sob um fator somente. Com o trabalho dos juizes ficam completados os procedimentos tedricos na construgao do instrumento de medida, que comportaram a explicitagio da teo- ria do(s) construto(s) envolvido(s), bem como a elaboraciio do instrumento piloto que constitui a representagao comporta- mental destes mesmos construtos e que se pée como a hipétese a ser empiricamente testada (validacaio do instrumento). Esta 183 Instrumentacao psicologica tarefa serd iniciada com os procedimentos que seguirao, que consistem em coletar a informagio empirica valida e submeté-la as andlises estatisticas pertinentes em ps cometria, como veremos. PROCEDIMENTOS EXPERIMENTAIS Os procedimentos envolvidos nesta etapa fazem apelo direto ao contetido da disciplina ensinada nas instituigdes uni versitérias sob 0 nome de delineamento ou planejamento de pesquisa, cujo conhe- cimento é absolutamente necessario, uma vez que garante a tecnologia da coleta va lida da informagao empirica. Aqui serao, por isso, explicitados apenas alguns pon tos dessa tecnologia que tém mais a ver diretamente com 0 problema de elabors gao de instrumentos psicoldgicos, mas 0 conhecimento aprofundado da citada dis. ciplina é imprescindivel. Dois passos sao salientados nestes procedimentos empiricos na validagao do instrumento piloto: o planejamento da aplic ea propria coleta da informacao empirica, conforme detalha a Figura 8.6. Com referéncia ao planejamento da aplicacao do instrumento piloto, dois Procedi raced ARMENIA Fase [VALIDAGAO DOINSTRUMENTO Metodo ' |, |Planelamente | — | da Aplicacso, Produtos Figura 8.6 Procedimentos empiricos na elaboracio de medida psicolégica, 184 Luiz Pasquali & cols. pontos sao particularmente relevantes: a definicao da amostra e das instrugées de como aplicar o instrumento. Quanto a amostra: um instrumento é tipicamente construido para um certo tipo de populagdo. Esta, consequentemente, deve ser claramente definida e delimita- dda em termos de suas caracteristicas pecificas. Assim, é necessario se determi- nar para que faixa etdria o instrumento foi construido, para que nivel socioeco- nomico, para que nivel de escolaridade, etc, Enfim, 6 preciso dizer qual € 0 tipo de individuo, em termos de caracteristi- cas biossociodemograficas, que constitui a populacio meta do instrumento. E é dessa populacio que sairé a amostra de ujeitos para a testagem da qualidade psi- cométrica do instrumento de medida. Ob- viamente, aqui se deve recorrer teoria e técnicas de amostragem, ensinadas na disciplina de planejamento de pesquisa ou similar. alientamos aqui apenas alguns as- pectos relevantes da amostra para 0 caso especifico de validagdo de instrumentos psicoldgicos. Como estamos elaborando um instrumento referente a construto, tipicamente a analise estatistica a seguir utilizada para a analise dos dados sera a andlise fatorial e as andlises multivariadas da TRI. Essas técnicas estatisticas fazem algumas exigéncias importantes dos da- dos, especificamente que eles produzam suficiente variaincia para que a andlise seja consistente. Essa afirmagao normalmente implica, pelo menos, que as amostras uti- lizadas sejam grandes. Quanto grandes? Ha duas dicas titeis para responder a essa pergunta. Primeiro, se eu estiver se- guro de quantos fatores 0 meu instrumen- to mede (0 que foi teoricamente definido quando se discutiu 0 passo da dimensio- nalidade do objeto psicolégico que o ins- trumento iria medir), entdo a dica ¢ de que a amostra deve conter um minimo de 100 sujeitos por fator medido. Assim, se ‘meu instrumento mede dois fatores, ne- cessito de 200 sujeitos na minha amostra, Estamos supondo aqui que a populacao ‘meta seja homogénea em relacao ao traco latente que o instrumento mede. Se o tra- co varia dentro da populacdo, nao somen- te em termos de magnitude, 0 que ¢ de se esperat, mas em termos de estrutura, isto 6 ele se torna de fato um traco psicologi- camente diferente para diferentes estratos da mesma populago, ento estamos fa- Jando nao mais de um traco latente, mas de dois ou mais. Nesse caso, estamos as- sumindo que instrumentos diferentes s0 necessrios para avaliar tracos diferentes. Mas se 0 traco se mantém qualitativamen- te (em termos de sua escrutura conceitual, de sistema) 0 mesmo na populagao, ento essa populagio é homogénea. Um exem- plo: um teste de inteligéncia para adultos no inclui criangas na sua populagao, pois a inteligéncia da crianga é qualitativa- mente diferente da dos adultos, segundo teorias (Piaget, Spearman, etc.) ¢ dados empiricos. Assim, a amostra para vali- dacéio de um teste de inteligéncia para adultos deve ser selecionado de uma po- pulacdo de adultos exclusivamente, que, nesse sentido, se tora uma populacdo homogénea. Segunda dica: se houver dtividas sérias quanto ao mimero de dimensdes ou fatores que o instrumento mede, cos- tuma-se dizer que so necessérios para a amostra 10 sujeitos para cada item do instrumento. Assim, um instrumento com 100 itens demandaria 1.000 sujeitos. Isso equivaleria a supor que 0 instrumento es- tivesse medindo cerca de 10 fatores. Esse modo de pensar est mais ligado ao siste- ma positivista de construir instrumentos, em que 0s itens nao sao construidos via teoria e sim “pescados” aleatoriamente em seguida analisados via andlise fato- rial para ver quantos fatores est medin- do. De qualquer forma, é uma dica ainda itil, quando ha diividas com respeito ao ntimero de fatores. Geralmente, entre 5 e 10 sujeitos por item do instrumento se- rao suficientes para responder & questo do tamanho da amostra, com a ressalva de que qualquer analise fatorial e da TRI com menos de 200 sujeitos dificilmente pode ser considerada adequada. Quanto as instrugdes: estas se refe- rem aos contornos da tarefa do. sujeito que vai responder ao instrumento. Aqui sio definidas a sistemdtica de aplicagéo do instrumento, 0 formato em que ele se apresenta € 0 que o sujeito tem que fazer a0 respondé-lo, No tocante a sistematica, sertio definidas as condigdes de aplicacao: se sera coletiva ou individual; se seré pre- ciso ou nao aviso prévio aos testandos; so necessérios contatos prévios com diretores, chefes dos sujeitos, etc. Enfim, devo saber em que estou “me metendo” e quais sao as dificuldades que vou encontrar ao que- rer aplicar o instrumento em uma amostra definida de sujeitos, pois eles normalmen- te nao esto gratuitamente disponiveis as minhas necessidades de pesquisador. Por isso, tenho que elaborar uma estratégia de convencimento, para os responsiveis dos sujeitos que entrario na amostra, e uma estratégia operacional para poder viabili- zar a aplicacao do instrumento. No referente ao formato do instru- mento, deve-se decidir como a resposta do sujeito sera dada para cada item. Aqui existe uma infinidade de formatos possi- veis, como, por exemplo, o da escolha for- sada, em que dois itens sao apresentados simultaneamente, sendo a tarefa do sujei- to escolher um deles como mais apropria- do, mais tipico, ou mais o que seja, bas tante comuns em testes de personalidade emais ainda em testes de interesse; 0 das ‘miltiplas alternativas, mais comuns em testes de aptidio, em que 0 sujeito deve escolher a alternativa correta; 0 das esca- las tipo Likert, em que a cada item segue uma escala de pontos (de 2a mais de 10) que exprimem a intensidade de acordo do Instrumentagao psicolégica 1D. sujeito com o que o item esté afirmando, Este tiltimo formato é 0 mais utilizado no caso de testes de personalidade e escalas de atitudes. Todos esses e outros formatos apresentam vantagens e desvantagens. Por exemplo, 0 caso da escolha forcad: em testes de atitudes e personalidade, pa rece ser a maneira mais facil de respon- der, pois o sujeito tem melhores condicdes de escolher entre duas alternativas do que dar uma resposta absoluta, como & 0 caso nas escalas de Likert. Contudo, dois pro blemas graves existem com este formato de escolha forcada: primeiro, se voce vai comparar os itens do instrumento dois a dois, o instrumento se torna muito rapida mente de um comprimento incontrokivel Por exemplo, um teste com apenas 10 itens terd n(n-1)/n questoes, isto é, 45 questoes, e um de 100 itens terd 4.950! Além dessa dificuldade, existe o problema da chamada desejabilidade social, a saber, os dois itens que estdo sendo comparados devem pos: suir mais ou menos o mesmo nivel de atra tividade, do contrario a propria questio ji estd dando a resposta ao sujeito se um dos itens da questao é socialmente desejavel ¢ © outro indesejavel, como, por exemplo. escolher entre “A — sou uma pessoa simp tica” e “B— sou uma pessoa fraca”. Nesse caso, a maioria das pessoas iria escolher a alternativa A. Certo? No caso do formato de mitipla esco Iha, existem os problemas do ntimero de alternativas ¢ da qualidade das alternati vas. Primeiramente, como se trata de res postas certas ¢ erradas, apenas uma das alternativas sera a correta. Mas, quando 0 sujeito nao sabe a resposta correta, ele tem a chance de “chutar” e acertar por acaso; e isso é um problema, que ¢ tan to mais grave quanto menor for o ntime ro de alternativas. Por exemplo, em um item com duas alternativas, o sujeito tem a chance de acertar por acaso em 50% das vvezes, a0 passo que em um item com cin- co alternativas essa chance cai para 20% 186 Luiz Pasquali & cols. mas ainda nao é zero. Entdo, deve-se ter maior do que menor mimero de alterna- tivas para diminuir 0 acerto aleatério. Mas, fazendo isso, vocé torna 0 teste cada vez mais dificil de construit, porque nao € tarefa facil inventar alternativas, uma vez que elas devem de fato se apresentar como alternativas plausiveis e atrativas (e este 0 segundo problema), isto 6, elas devem ter alguma aparéncia de serem respostas corretas, do contrario nao sao alternativas. Assim se vocé constréi 0 se- guinte item: ‘A camada mais externa da pele se chama: a) epiderme b) paquiderme ©) dermatologia d) epidemia 6 claro que b, ¢, d nao constituem alterna- tivas plausiveis ou sérias. Quanto as escalas tipo Likert, per- gunta-se frequentemente qual é 0 niimero ideal de pontos que a escala de resposta deve ter e qual o formato ideal da escala. Com respeito ao formato das esca- las: Existem 0s mais variados modos de apresentar essas escalas, mas que final- mente se reduzem a escalas verbais, nu- méricas ou graficas, sendo estas ultimas normalmente ancoradas, ou combinagao das trés. Vejamos Esses e outros tipos de formatos nao parecem ter maior impacto sobre a resposta do sujeito, de sorte que o formato da escala depende mais do gosto pessoal do pesqui- sador do que qualquer outra razaio técnica. Pessoalmente acho que quanto mais leve a escala, melhor, ¢ a escala numérica e gré fica me parece muito pesada; mas sua opi- nido é to boa quanto a minha. Quanto ao mimero de pontos: nor- malmente as afirmagdes ou itens so res- pondidos em uma escala de 3 ou mais pontos, isto é, 0 sujeito tem que dizer se concorda, esta em divida ou discorda do que a frase afirma sobre 0 objeto psico- légico. O mimero de pontos na escala de resposta varia de 3 a mais de 10, sendo as mais utilizadas as escalas de 5 e 7 pon: tos. O ntimero de pontos utilizados nas escalas Likert parece, novamente, ser algo irrelevante. Na pesquisa de Matell e Jaco- by (1972), foram utilizadas escalas com 2 até 19 pontos. Com excecao das escalas de 2 e 3 pontos (por oferecerem poucos graus de liberdade), em todas as outras a porcentagem de uso dos pontos ¢ 0 tempo de resposta nao foram afetados de modo significativo, Outros estudos ja haviam descoberto que 0 mimero de pontos da escala e a existéncia ou no de um ponto neutro nao afetam a consisténcia interna da escala Likert (Bendig, 1954; Komorita, 1963; Matell e Jacoby, 1971), nem a esta- bilidade teste-reteste (Jones, 1968; Van der Veer, Howard e Austria, 1970; Goldsamt, fala Pontos [versa om tmaivda Nie ‘Numeca 1 2 3 4 se 7 Gitcaweonda | heats Desocod Mungicaegifea | 2 3 4 7 1971; Matell e Jacoby, 1971) e nem a va- lidade concorrente e preditiva (Matell e Jacoby, 1971; 1972) ‘As instrugdes que acompanham o instrumento tém a funcdo tnica de tornar a tarefa do respondente inambigua. Con- sequentemente, elas devem poder deixar absolutamente claro 0 que o sujeito tem que fazer para responder corretamente 0 teste e, por isso, elas devem ser avaliadas na analise semantica. Algumas precau- ges: as instrugdes devem informar em termos gerais sobre que € 0 teste; devem ser as mais curtas possiveis, sem sacrificar a compreensao da tarefa por parte de to- dos os sujeitos da populagio meta; devem, tipicamente, conter um ou mais exemplos de como os itens devem ser respondidos; devem por o sujeito em um estado psico- logico livre de tensao e ansiedade. Finalmente, no que se refere & pré- pria coleta da informacio (passo 8), devem-se seguir todas as precaugées exi- gidas em qualquer aplicagao de instru- mentos psicoldgicos, a saber, os sujeitos devem ser postos em um ambiente con- dizente e livre de distragées e de tensio, Instrumentagdo psicologica 18 © aplicador deve ser competente para a tarefa, etc. PROCEDIMENTOS ANALITICOS Esta parte da elaboracio de instru- mentos psicolégicos (ver Figura 8.7) ¢ aquela que mais atemoriza os psicdlogos, dada a sua sofisticagdo estatistica. Ela comporta igualmente a parte mais volu mosa de qualquer livro sobre psicometria Entretanto, o conhecimento da estatistica e da psicometria nao sao aqui substituiveis. Felizmente, 0 psicélogo pode apelar neste particular para a ajuda de estatisticos ou de psicometristas. A sofisticagao nesta area é tao grande que nao ¢ possivel ser exposta neste capitulo, Para tanto, so recomenda das as obras que em seguida serao citadas, sendo a exposicao de contetido neste capi tulo apenas exemplificativa. Algumas obras basicas de andlise psicométrica Anastasi, A. (1988). Psychological esting (6 York: Macmillan, i

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