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Samizdat 5

junho de 2008
Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-
Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas 2.5
Edição, Capa e Diagramação: Brasil Creative Commons.
Todas as imagens publicadas são de domínio
Henry Alfred Bugalho público ou royalty free.
As idéias expressas e a revisão das obras são
de inteira responsabilidades de seus autores ou
tradutores.
Autores

Alian Moroz

Carlos Alberto Barros

Denis da Cruz Editorial


Giselle Natsu Sato A edição especial de Ficção Científica
representou uma ruptura na estruturação
Henry Alfred Bugalho
da Revista SAMIZDAT.
José Espírito Santo
Autores e leitores legitimaram a
Marcia Szajnbok qualidade da revista, ao autorizarem
a publicação de seus textos e com a
Pedro Faria repercussão que a edição obteve.
Volmar Camargo Junior
A SAMIZDAT de junho significa também
uma nova etapa por três razões:

Autores Convidados - um layout reelaborado para tornar a revista


mais atraente e mais organizada;
Erik Kurkowski Weber
- a partitipação de dois artistas, Alessandro
Andreuccetti e Sven Geier, que nos
Textos de: permitiram publicar seus trabalhos e
enriquecer ainda mais a diversidade da
Florencia Abbate revista.
Olavo Bilac - por fim, a presença de dois autores da
Simões Lopes Neto mais recente safra de escritores latino-
americanos, Florencia Abatte e Slavko
Slavko Zupic Zupcic, que concordaram com a tradução
de seus contos.

Imagem da capa: E, obviamente, o grande segredo da


SAMIZDAT são os colaboradores fixos,
http://www.flickr.com/photos/mazintosh/2104768410/ sem os quais este projeto jamais poderia
ter se concretizado.

www.samizdat-pt.blogspot.com Henry Alfred Bugalho


Sumário
Por que Samizdat? 6
Henry Alfred Bugalho

RECOMENDAÇÕES DE LEITURA
O Episódio Humano na prosa em verso de Cecília Meireles 8
Marcia Szajnbok

Um Palhaço no palco da Alemanha devastada 10


Henry Alfred Bugalho

AUTORES EM LÍNGUA PORTUGUESA


Os Cabelos da China 12
Simões Lopes Neto

Poemas - seleta 27
Olavo Bilac

CONTOS
Obra do Diabo 29
Henry Alfred Bugalho

O Caso Jersey 32
Volmar Camargo Junior

Luz e Sombras 41
Denis da Cruz

Terra Estranha 45
José Espírito Santo
A Caminhada 47
Pedro Faria

Entrevista com o Coveiro 49


Alian Moroz

Herança Maldita 51
Giselle Natsu Sato

TRADUÇÃO
Unicórnio Perdido em Janeiro 54
Slavko Zupcic

Pecado e Tentação 56
Florencia Abbate

AUTOR CONVIDADO
Três Incisões no meu Dia 59
Erik Kurkowski Weber

TEORIA LITERÁRIA
Literatura: Arte ou Comércio? 60
Henry Alfred Bugalho

MICROCONTOS
Carlos Alberto Barros 64
Denis da Cruz 65
José Espírito Santo 65
Volmar Camargo Junior 66
Henry Alfred Bugalho 66
CRÔNICAS
Fábulas Brasileiras 67
Carlos Alberto Barros

Paradise, my ass! 68
Henry Alfred Bugalho

POESIA
Palavras Poéticas 70
Carlos Alberto Barros

Cordel Póstumo dum Bulinador 71


Carlos Alberto Barros

Laboratório Póetico II 72
Volmar Camargo Junior

Anjos 74
Marcia Szajnbok

SOBRE OS AUTORES DA SAMIZDAT 75

LINKS DESTA EDIÇÃO 78

SEÇÃO DO LEITOR
Agora o leitor da SAMIZDAT também pode colaborar com a elaboração da revista.
Envie-nos suas sugestões, críticas e comentários.

Você também pode propor ou enviar textos para as seguintes seções da revista:
Resenha Literária, Teoria Literária, Autores em Língua Portuguesa, Tradução e Autor
Convidado.

Escreva-nos para:

revistasamizdat@hotmail.com
SAMIZDAT 5 - junho 2008

Por que Samizdat?


Henry Alfred Bugalho

“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,


distribuo e posso ser preso por causa
disto”
Vladimir Bukovsky

Inclusão e Exclusão não queriam, ou não conseguiram, fazer


parte da máquina administrativa - que
estipulava como deveria ser a cultura, a
Nas relações humanas, sempre há
informação, a voz do povo -, encontraram
uma dinâmica de inclusão e exclusão.
na autopublicação clandestina um meio
de expressão.
O grupo dominante, pela própria
natureza restritiva do poder, costuma
Datilografando, mimeografando,
excluir ou ignorar tudo aquilo que não
ou simplesmente manuscrevendo, tais
pertença a seu projeto, ou que esteja
autores russos disseminavam suas
contra seus princípios.
idéias. E ao leitor era incumbida a tarefa
de continuar esta cadeia, reproduzindo
Em regimes autoritários, esta tais obras e também as passando
exclusão é muito evidente, sob forma de adiante. Este processo foi designado
perseguição, censura, exílio. Qualquer "samizdat", que nada mais significa do
um que se interponha no caminho dos que "autopublicado", em oposição às
dirigentes é afastado e ostracizado. publicações oficiais do regime soviético.

As razões disto são muito simples de


se compreender: o diferente, o dissidente E por que Samizdat?
é perigoso, pois apresenta alternativas,
às vezes, muito melhores do que o A indústria cultural - e o mercado
estabelecido. Por isto, é necessário literário faz parte dela - também realiza
suprirmir, esconder, banir. um processo de exclusão, baseado no
que se julga não ter valor mercadológico.
A União Soviética não foi muito Inexplicavelmente, estabeleceu-se que
diferente de demais regimes autocráticos. contos, poemas, autores desconhecidos
Origina-se como uma forma de governo não podem ser comercializados, que não
humanitária, igualitária, mas logo se vale a pena investir neles, pois os gastos
converte em uma ditadura como qualquer seriam maiores do que o lucro.
outra. É a microfísica do poder.
A indústria deseja o produto pronto e
Em reação, aqueles que se com consumidores. Não basta qualidade,
acreditavam como livres-pensadores, que não basta competência; se houver quem
compre, mesmo o lixo possui prioridades

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na hora de ser absorvido pelo mercado. modo, o contato quase pessoal com os
leitores, o diálogo capaz de tornar a obra
E a autopublicação, como em qualquer melhor, a rede de contatos que, se não é
regime excludente, torna-se a via para tão influente quanto a da grande mídia,
produtores culturais atingirem o público. faz do leitor um colaborador, um co-autor
da obra que lê. Não há sucesso, não há
grandes tiragens que substitua o prazer
Este é um processo solitário e
de ouvir o respaldo de leitores sinceros,
gradativo. O autor precisa conquistar
que não estão atrás de grandes autores
leitor a leitor. Não há grandes aparatos
populares, que não perseguem ansiosos
midiáticos - como TV, revistas, jornais -
os 10 mais vendidos.
onde ele possa divulgar seu trabalho. O
único aspecto que conta é o prazer que a
obra causa no leitor. Os autores que compõem este projeto
não fazem parte de nenhum movimento
literário organizado, não são modernistas,
Enquanto que este é um trabalho
pós-modernistas, vanguardistas ou
difícil, por outro lado, concede ao criador
qualquer outra definição que vise rotular
uma liberdade e uma autonomia total: ele
e definir a orientação dum grupo. São
é dono de sua palavra, é o responsável
apenas escritores interessados em trocar
pelo que diz, o culpado por seus erros, é
experiências e sofisticarem suas escritas.
quem recebe os louros por seus acertos.
A qualidade deles não é uma orientação
de estilo, mas sim a heterogeneidade.
E, com a internet, os autores possuem
acesso direto e imediato a seus leitores. A
Enfim, “Samizdat” porque a internet
repercussão do que escreve (quando há)
é um meio de autopublicação, mas
surge em questão de minutos.
“Samizdat” porque também é um modo de
contornar um processo de exclusão e de
Ao serem obrigados a burlarem a atingir o objetivo fundamental da escrita:
indústria cultural, os autores conquistaram ser lido por alguém.
algo que jamais conseguiriam de outro

SAMIZDAT é uma revista eletrônica


mensal, escrita, editada e publicada
pelos integrantes da Oficina de
Escritores e Teoria Literária. Diariamente
são incluídos novos textos de autores
consagrados e de jovens escritores
amadores, entusiastas e profissionais.
Contos, crônicas, poemas, resenhas
literárias e muito mais.

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SAMIZDAT 5 - junho 2008

Recomendações de Leitura

O Episódio Humano
na prosa em verso de Cecília Meireles
Marcia Szajnbok

“Parece que estive desejando alguma


coisa longamente... O quê? E estou
desejando ainda... – um pouco de sol
sobre a minha vida, qualquer coisa
luminosa, qualquer coisa... Ai de mim.
Não sei mais.”

Foi pelos versos de uma edição


ilustrada de Ou Isto ou Aquilo, de Cecília
Meireles, que descobri o universo da
poesia. Tinha, então, nove ou dez anos.
Depois, ao longo da adolescência, viajei
horas a fio a bordo de sua Poesia Completa,
numa edição em papel bíblia da Nova
Aguillar, que ficava permanentemente
em minha mesinha de cabeceira. Que
Cecília Meireles também escrevia prosa, Episódio Humano traz uma coleção de
só vim a descobrir já adulta, lendo textos escritos e publicados em O Jornal,
algumas de suas crônicas publicadas entre 1929 e 1930, no Rio de Janeiro. Esse
pela Nova Fronteira. Impressionante material inédito em livro, já organizado e
sua capacidade de transitar entre estilos apresentado pela própria Cecília Meireles,
e temas os mais diversos, mantendo estava guardado na biblioteca do casarão
sempre coerente a qualidade impecável onde morou, no bairro do Cosme Velho.
dos textos. Impressionante também o O editor nos apresenta a obra como
volume de sua obra que, à medida que um conjunto de crônicas. Mas, quem
o tempo passa, e os problemas relativos debruçar-se na leitura deste livro a espera
aos direitos autorais de seus herdeiros de textos que tragam uma reflexão sobre
vão sendo resolvidos ou contornados, aspectos do cotidiano carioca dos anos
revela-se cada vez maior. Fruto desse 30 vai surpreender-se radicalmente.
desembaraço jurídico que pôs nas mãos
de Alexandre Carlos Teixeira e Ricardo
Cecília Meireles nos traz crônicas de
Strang, netos da autora, a decisão por
seu mundo interno. “Nelas está minha
maioria quanto ao destino de seu acervo,
vida, em toda a sua pureza, numa fase
é a publicação de Episódio Humano, pela
amargurada de construção. (...) Hoje,
Desiderata em 2007.
eu apenas falaria, talvez, com menos

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palavras. Mas é porque na verdade, já "Nasci aqui mesmo no Rio de Janeiro, três
foi usada a minha voz. Naquele tempo, meses depois da morte de meu pai, e perdi
minha mãe antes dos três anos. Essas e outras
ela acordava com espanto: como o grito mortes ocorridas na família acarretaram muitos
dos feridos recentes”. É assim que a contratempos materiais, mas, ao mesmo tempo,
autora nos convida a percorrer textos me deram, desde pequenina, uma tal intimidade
onde transbordam emoção, reflexões com a Morte que docemente aprendi essas
sobre o amor, a vida e a morte, a dor, relações entre o Efêmero e o Eterno.
(...) Em toda a vida, nunca me esforcei por
a existência. Não é um livro para ser ganhar nem me espantei por perder. A noção
devorado. Antes, um desses volumes ou o sentimento da transitoriedade de tudo é o
para se trazer junto de si e, de quando fundamento mesmo da minha personalidade.
em quando, abrir para degustar algumas (...) Minha infância de menina sozinha deu-
páginas. Há frases primorosas, que nos me duas coisas que parecem negativas, e foram
sempre positivas para mim: silêncio e solidão.
fazem orgulhosos deste nosso idioma tão Essa foi sempre a área de minha vida. Área
cheio de potencialidades estilísticas. Há mágica, onde os caleidoscópios inventaram
apreensões sutis e precisas de aspectos fabulosos mundos geométricos, onde os relógios
do humano, que pareceriam banais a revelaram o segredo do seu mecanismo, e as
olhos menos aguçados. Há, enfim, um bonecas o jogo do seu olhar. Mais tarde foi nessa
área que os livros se abriram, e deixaram sair
retrato, ou uma radiografia, da alma de suas realidades e seus sonhos, em combinação
uma mulher em contato permanente com tão harmoniosa que até hoje não compreendo
a substância viva que a constitui. Uma como se possa estabelecer uma separação
leitura para se fazer sozinho, no silêncio, entre esses dois tempos de vida, unidos como
permitindo que a alma se identifique com os fios de um pano."
Cecíclia Meireles
as palavras de cada página. Um livro para
se namorar.

Episódio Humano
Cecília Meireles

Editora: Desiderata

Ano: 2007

Edição: 1

Número de páginas: 176

ISBN 978-8599070-52-9

Fonte:

http://www.releituras.com/cmeireles_bio.asp

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SAMIZDAT 5 - junho 2008

Recomendações de Leitura

Um palhaço
no palco da Alemanha devastada
Henry Alfred Bugalho fracassou, e o país e seus habitantes
pagaram um alto preço. Tal qual a
punição ao herói trágico por sua hybris
Por causa dos delírios de grandeza (desmedida), a Alemanha foi invadida,
dum ditador, a Alemanha nazista declarou devastada, execrada globalmente,
guerra ao mundo. estigma que, de certo modo, o povo
germano traz até hoje: uma imagem
extremamente associada às sandices
A maior potência bélica de sua época
megalomaníacas de Hitler.
desafiou as duas grandes nações de
outrora, a Inglaterra e França, decidida a
controlar os rumos - políticos e ideológicos É interessante e curioso analisarmos
- do mundo Ocidental. o clima de histeria coletiva que dominou
o povo alemão, a ponto de grandes
intelectuais e artistas - Heidegger e Richard
Como bem sabemos, a Alemanha
Strauss são dois exemplos - fecharem os

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olhos para as atrocidades e se curvarem como palhaço; e os vários desencontros


ao Estado Nazista. Alguns deles logo se ideológicos e dogmáticos existente entre
desvincularam, reconheceram seus erros, ele e a namorada.
foram exilados ou se exilaram, outros
foram consumidos pela loucura histórica. No fundo, Hans ainda anseia por
reconstruir sua vida, mesmo que Marie
A biografia do romancista Heinrich Böll já esteja nos braços de outro homem, do
nos conta que ele havia nascido numa mesmo modo que a Alemanha também
família católica e contrária à ideologia ansiava por um futuro melhor.
nazista. Diferente de vários meninos
e jovens de seu tempo, ele conseguiu Apesar do intervalo de 15 anos entre
escapar das malhas da Juventude o fim da guerra e a redação do romance,
Hitlerista, mas, quando a guerra estourou, “O Palhaço” ainda lida com as chagas
não houve como fugir do alistamento. Böll abertas da devastação e dos conflitos
chegou a ser prisioneiro de guerra, quando morais. A geração de Heinrich Böll era
da invasão americana em Colônia, onde atormentada pelos fantasmas do passado,
o autor nasceu e viveu. Por sua postura e a popularidade do autor ainda hoje na
crítica, Heinrich Böll foi premiado com o Alemanha, é uma prova de que estes
Nobel de Literatura em 1972. demônios não foram completamente
exorcizados.
As memórias das atrocidades de
guerra, duma infância turbulenta - sem
entendimento sobre as grandes mudanças
sociais que a guerra traria -, e o peso
dum mundo pós-guerra estão presentes
na obra “O Palhaço” (Ansichten eines
Clowns, 1963).

O protagonista, Hans Schnier, é um


artista em decadência.

Antes, um grande mímico, ele teve


a vida arruinada pelo rompimento com
a namorada, Marie Derkum, e pela
bebida. No cerne do desentendimento,
há uma profunda cisão religiosa. Marie se
aproxima do catolicismo e dum profundo
dilema imposto pelos dogmas católicos -
a condenação do concubinato -, enquanto
Hans, agnóstico declarado, defende a
manutenção do relacionamento estável
entre ele e Marie, sem a necessidade de
casamento.

O romance transita entre estes dois


limiares: as recordações de Hans de
sua infância e dos tempos de glória

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SAMIZDAT 5 - junho 2008

Autores em Língua Portuguesa

OS CABELOS DA CHINA

Simões Lopes Neto

— Vancê sabe que eu tive e me servi muito tempo dum buçalete e cabresto feitos
de cabelo de mulher?…Verdade que fui inocente no caso.

Mais tarde soube que a dona dele morreu; soube, galopeei até onde ela estava
sendo velada;

acompanhei o enterro... e quando botaram a defunta na cova, então atirei lá pra


dentro aquelas peças, feitas do cabelo dela, cortado quando ela era moça e tafulona…
Tirei um peso de cima do peito:

entreguei à criatura o que Deus lhe tinha dado.

Eu conto como foi.

Quem me ensinou a courear uma égua, a preceito, estaquear o couro, cortar,


lonquear, amaciar de mordaça, o quanto, quanto...; e depois tirar os tentos, desde
os mais largos até os fininhos, como cerda de porco, e menos, quem me ensinou

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a trançar, foi um tal Juca Picumã, um chiru


já madurázio, e que tinha mãos de anjo
para trabalhos de guasqueiro, desde fazer
um sovéu campeiro até o mais fino preparo
para um recau de luxo, mestraço, que era,
em armar qualquer roseta, bombas, botões
e tranças de mil feitios.

Este índio Juca era homem de passar


uma noite inteira comendo carne e mateando,
contanto que estivesse acoc’rado em cima
quase dos tições, curtindo-se na fumaça
quente... Era até por causa desta catinga
que chamavam-lhe — picumã.

Pra mais nada prestava; andava sempre esmolambado, com uns caraminguás
mui tristes; e nem se lavava, o desgraçado, pois tinha cascão grosso no cogote.

Comia como um chimarrão, dormia como um lagarto; valente como quê... e ginete,
então, nem se fala!...

Para montar, isso sim!…, fosse potro cru ou qualquer aporreado, caborteiro ou
velhaco — o diabo, que fosse! —, ele enfrenava e bancava-se em cima, quieto como
vancê ou eu, sentados num toco de pau!... Podia o bagual esconder a cabeça, berrar,
despedaçar-se em corcovos, que o chiru velho batia o isqueiro e acendia o pito,
como qualquer dona acende a candeia em cima da mesa! Às vezes o ventana era
traiçoeiro e lá se vinha de lombo, boleando-se, ou acontecia planchar-se: o coronilha
escorregava como um gato e mal que o sotreta batia a alcatra na terra ingrata, já lhe
chovia entre as orelhas o rabo-de-tatu, que era uma temeridade!...

Voltear o caboclo, isto é que não!

E bastante dinheiro ganhava; mas sempre despilchado, pobre como rato de


igreja.

Um dia perguntei-lhe o que é que este fazia das balastracas e bolivianos, e meias-
doblas e até onças de ouro, que ganhava?...

Esteve muito tempo me olhando e depois respondeu, todo num prazer, como se
tivesse um pedaço do céu encravado dentro do coração:

— Mando pra Rosa… tudo! E é pouco, ainda!

— Que Rosa é essa?

— É a minha filha! Linda como os amores! Mas não é pra o bico de qualquer

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SAMIZDAT 5 - junho 2008

lombo-sujo, como eu...

A conversa ficou por aí.

Passaram os anos. Eu já tinha o meu bigodinho.

Rebentou a guerra dos Farrapos; eu me apresentei, de minha vontade; e com


quem vou topar, de companheiro? Com o Juca Picumã.

Duma feita andávamos tocados de perto pelos caramurus... Tínhamos saído em


piquete de descoberta e aconteceu que depois de vararmos um passo, os legalistas
nos cortaram a retirada e vieram nos apertando sobre outra força companheira, como
para comer-nos entre duas queixadas...

E não nos davam alce;


mal boleávamos a perna para
churrasquear um pedaço de carne e
já os bichos nos caíam em cima...

Na guerra a gente às vezes


se vê nestas embretadas, mesmo
sendo o mais forte, como éramos
nós, que bem podíamos até correr a
pelego aqueles camelos…, mas são
cousas que os chefes é que sabem e
mandam que se as agüente, porque
é serviço...

Ora bem; havia já dois dias e duas


noites que vivíamos neste apuro;
arrinconados nalgum campestre
dava-se um verdeio aos cavalos; os homens cochilavam em pé; nisto um bombeiro
assobiava, outro respondia e o capitão, em voz baixa e rápida, mandava:

— Monta, gente!

E o Juca Picumã, que era o vaqueano, tomava a ponta e metia-nos por aquela
enredada de galhos e cipós e lá íamos, mato dentro, roçando nos paus, afastando os
espinhos e batendo a mosquitada, que nos carneava... Ninguém falava. A rapaziada
era de dar e tomar, e —sem desfazer em vancê, que está presente —, eu era do
fandango… e devo dizer, que nesse tempo, fui mondongo meio duro de pelar...

Dessa vereda o vaqueano foi pendendo para a esquerda; de repente batemos na


barranca do arroio, e ele, sem dizer palavra meteu n’água o cavalo e, devagarzinho,
fomos encordoando de trás e varando, de bolapé.

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Seguimos um pedaço, sempre sobre a esquerda, e mui adiante tornamos a varar


o arroio para o lado que tínhamos deixado. Tínhamos feito uma marcha em roda, que
íamos agora fechar saindo na retaguarda do acampamento dos legalistas.

Num campestrezinho paramos; o capitão mandou apear rédea na mão, tudo pronto
ao primeiro grito.

Depois acolherou-se com o Juca Picumã e meteram-se no mato e aí boquejaram


um tempão.

Depois voltaram.

Então o capitão correu os olhos pelos rapazes e disse:

— Preciso de um, que toque viola...

Mas o Picumã xeretou logo:

— Tem aí esse pisa-flores, o furriel Blau...

— Esse gurizote?…

— Sim, senhor, esse; é cruza de calombo!...

E deu de rédea, com cara de sono. O capitão acompanhou-o, mandando que eu


seguisse; e eu segui-o, quente de raiva, pelo pouco caso com que ele chamou-me
—gurizote —. Se não fosse pelas divisas, eu dava-lhe o —gurizote!…

Fomos andando... parando... farejando... escutando... Em certa altura o Picumã,


sem se voltar levantou o braço, de mão aberta e parou. O capitão parou, e eu.

O chiru disse, baixo:

— Está perto… ali!... E o churrasco é gordo!…

E levantava e mexia o nariz, tal e qual como um cachorro, rastreando...

E apeamos.

— Vamos botar um torniquete nos cavalos, para não relincharem…

Fizemos, com o fiel do rebenque.

— Tiramos as esporas, por causa dalguma enrediça... Tiramos.

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SAMIZDAT 5 - junho 2008

— Bom; agora o capitão diz como há de ser o serviço…

O oficial encruzou os braços e assim esteve um pedaço, alinhavando a idéia;


depois, como falando mais pra mim do que pra o outro, disse:

— Olha, furriel Blau, tu e o velho Picumã ides jogar o pelego numa arriscada... Ele
que te escolheu pra companheiro é porque sabe que és homem... Há dois dias, como
sabes, andamos nestes matos..., mas não é tanto pelo serviço militar, é mais por um
vareio que quero dar... por minha conta... Ouve. A minha china fugiu-me, seduzida
pelo comandante desta força... Vocês vão-se apresentar a ele, como desertados e
que se querem passar... Ele é um espalha-brasas; ela é dançarina..., arranja jeito
de rufar numa viola e abre o peito numas cantigas... Tendo farra estão eles como
querem... E enquanto estiverem descuidados, eu caio-lhes em cima com a nossa
gente. Agora... quando fechar o entrevero só quero que tu te botes ao comandante…
e que lhe passes os maneadores... quero-o amarrado...; entendes? És capaz?… O
Picumã ajuda... O resto… depois...

— Mas... não é pra defuntear o homem... amarrado?...

— Não! Acoquiná-lo, só...

— A tal piguancha, também… não é pra... lonquear?...

— Não! Desfeiteá-la, só...

— Então, vou. Mas quem fala é o Picumã...; eu, nem mentindo digo que sou
desertor...

— Estás te fazendo muito de manto de seda!... Cuidado!...

— Seu capitão é oficial… nada pega...; eu sou um pobre soldado que qualquer
pode mandar jungir nas estacas...

Aí o Picumã meteu a colher.

— Seu capitão, o mocito não é sonso, não! Deixe estar, patrãozinho, tudo é
comigo... vancê só tem é que atar o gagino..

Depois os dois se abriram e ainda estiveram de cochicho, rematando as suas


tramas.

O capitão montou.

— Bueno!... Vejam o que fazem; eu vou buscar a gente, e, conforme chegar,


carrego. Vocês devem-se arrinconar junto da carreta, para eu saber. Blau!... não

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cochiles: o ruivo não é trigo limpo!...

E desandou por entre as árvores.

Quando não se ouviu mais nada o chiru convidou.

— Vamos: nos apresentamos como passados, que já andamos entocados aqui há


uns quantos dias. Deixe estar, que eu falo… estes caramurus são uns bolas... Vai ver
como passamos o buçal.. .

logo nos aceitam! Vamos! Ah! meta dentro da camisa uma cana de rédea... é
para a maneia do homem... Os companheiros depois nos levam os mancarrões, a
cabresto.

E metemos a cabeça no mato, ele adiante, a rumo do cheiro, dizia.

Andamos mais de seis quadras; nisto, o chiru pego a cantar umas copias, devagar,
meio baixo, como quem anda muito descansado, de propósito para ir chamando o
ouvido de algum bombeiro, se houvesse...

Ora… dito e feito! Com duas quadras mais, um vulto junto duma caneleira morruda,
gritou, no sombreado das ramas:

— Quem vem lá!

— É de paz!

— Alto! Quem é?

— É gente pra força, patrício! Andamos campeando vocês desde já hoje...

— Há! Pra quê?

— Ora, pra quê... Pra escaramuçar os farrapos!... E queremos jurar bandeira com
o ruivo...

— Ah! vancês conhecem o comandante?

— Ora... ora! Mangangá de ferrão brabo! Ora, se conheço... Então, seguimos?...

— Passem. Vão por aqui… até topar um sangradouro...; aí tem outra sentinela;
diga que falou comigo, o Marcos...

— ‘Tá bom... Quando render, vá tomar um mate comigo!...

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SAMIZDAT 5 - junho 2008

Fomos andando, até a sanga dita; aí topamos com a outra sentinela; o chiru nem
esperou o grito,

ele é que falou, ainda longe;

— Oh... sentinela!

— Quem vem lá?...

— Foi o Marcos que nos mandou; andávamos extraviados... ele nos conhece...
vamos levar um aviso ao comandante... É dos farrapos que andavam ontem por aqui...
foram corridos...

— Hã! Pois passem...

— Sim... Pois é... foram-se à ramada do Guedes... Com um couro na cola, os


trompetas!... Tem ai cavalhada de refresco?

— Que nada! A reiunada está estransilhada... A gente a custo se mexia... E pra mal
dos pecados ainda o comandante traz uma china milongueira, numa carreta toldada,
que só serve pra atrapalhar a marcha... A china é lindaça... mas é o mesmo. .. sempre
é um estorvo!...

Aqui o Picumã se acoc’rou, tirou uma ponta de trás da orelha e pediu-me:

— Dá cá os avios, parceiro...

E bateu fogo. Reparei que a respiração do chiru estava a modo entupida... Mas
pegou outra vez:

— Ë... o Marcos disse-me que o comandante é mui rufião... -

— Ë mesmo; mal empregada, a cabocla; qualquer dia ele mete-lhe os pés… é o


costume...

Ora!...

— É... assim, é pena... Vamos, parceiro. Até logo. Como é a sua graça?

— João Antônio, seu criado... E a sua, inda que mal pergunte?

— Juca, patrício... Juca no mais... Quando render, espero a sua pessoa para um
amargo!...

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— ‘Stá feito!... Vá em paz!...

E outra vez nos mexemos, agora sobre o


acampamento dos legais. Começamos a ouvir o
falaraz dos homens, assobios, risadas, picamento
de lenha, uma rusga de cachorros.

Mais umas braças. Chegamos. No meio do


campestre uma fogueira grande, rodeada de
espetos onde o churrasco chiava, pingando o
fartum da gordura; nas brasas, umas quantas
chocolateiras, fervendo; armas dependuradas,
botas secando, japonas abertas, e ponchos,
nos galhos. Deitados nos pelegos, nas caronas,
muitos soldados ressonavam; outros, em mangas
de camisa, pitavam, mateavam.

Do lado da sombra uma carreta toldada. Num


fueiro, pendurado, um porongo morrudo, tapado
com um sabugo; vestidos de mulher, arejando,
diziam logo o que aquilo era. Pertinho, outro fogão,

também com churrasco, uma chaleira aquentando e uma panela cozinhando


algum fervido... Uma fumaça mui azul, cerrava tudo, alastrando-se na calmaria da
ressolana.

Dois cavalos à soga, e um outro, bem aperado, maneado, pastando.

Mal que desembocamos do mato vimos tudo… e tudo com jeito de acampamento
relaxado.

O chiru foi andando como cancheiro, e eu, na cola dele. Nisto um sujeito, deitado
nos arreios, gritou-nos:

— Che! Aspa-torta! Então isto aqui é quartel de farrapos?… não se dá satisfações


a ninguém?...

— Foi o Marcos, que nos mandou...

— Que Marcos?

— O Marcos, que está de sentinela… e o João Antônio... sim, senhor, para falar
com o comandante...

: — Isso é outro caso… O comandante está sesteando... Se quiserem, esperem

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ali, junto da caneta. Já comeram?

— Já, sim senhor.

— Pois então!... Vão!

E apontou.

Arrolhamo-nos na sombra da carreta, junto da roda, encostando a cabeça na


maça. Eu estava como em cima de brasas… não era pra menos...

Cuna!... Se descobrissem, nos carneavam, vivos!...

O Picumã cochi1ava... mas estava alerta, porque às vezes eu bem via fuzilar o
branco dos olhos, na racha das pálpebras, entre o sombreado das pestanas...

A milicada começou a retirar os churrascos, já prontos e foi-se arranchando em


grupos, para comer.

Nisto, por cima de nós, dentro da carreta, ouvimos falar, e depois uma risada
moça, e logo uma mulher desceu, barulhando anáguas.

O chiru, que estava com os braços encruzados por cima dos joelhos, quando
sentiu a mulher, afundou a cabeça pra diante, escondendo a cara… e o chapéu ainda
ficou imprensado entre a testa e a curva do braço... Então passou pela nossa frente a
cabocla... viu um como dormindo e o outro, que era eu, mui derreado e bocó... E foi-se
à panela, mirou-a, apertando os olhos pro via da fumaça e do mormaço do brasido,
Por Deus e um patacão!... Era um chinocão de agalhas!... Seiúda, enquartada, de
boas cores, olhos terneiros... e com uma trança macota, ondeada, negra, lustrosa,
que caía meio desfeita, pelas costas, até o garrão!...

— Por que seria que este diabo largou o meu capitão, para se acolherar com este
tal ruivo?...

Isto de chinas e gatos... quem amimar sai arranhado... Talvez por este ser ruivo…
talvez por farromeiro... por causa dalgum cavalo que ela gabou e ele regalou-lhe… e
até… até por enfarada do outro... Ora vão lá saber!...

Nisto a piguancha alçou a panela e voltou pra carreta.

O chiru então, com a cara de lado, soprou-me de leve:

— Ela não se arpistou quando me viu?...

— Não... nem nos benzeu com um olhado... É uma cabocla enfestada!...

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— Cale a boca... Apronte-se que o fandango não tarda.

— Eu preferia bailar com a morena...

— Aqueles dois do mate convidado não vêm mais....

— Os sentinelas?

— Sim; com certeza o capitão enxugou-os... Está me palpitando que a gente está
desabando aí...

Palavras não eram ditas, que saiu do mato um milico, pondo a alma pela boca, e
balançando, de cansaço e medo, mascou a nova:

— Os farrapos! Os farrapos! Mataram o João Antô!…

Estrondeou um tiro… zuniu uma bala... um legal virou, pataleando.

E pipoqueou a fuzilaria em cima da camelada!

Eu, pulei logo para o recavém da carreta, para me botar ao ruivo; mas antes de

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chegar já ele tinha descido... e se foi ao cavalo, que


montou de pulo e mesmo sem freio e maneado,
tapeando-o no mais, tocou picada fora.

E berrou à gente:

— Pra o rincão! Pra o rincão!

E com a folha da espada tocou o flete, que


pelo visto era mestre naquelas arrancadas.

Mesmo assim eu ia ver se segurava o homem,


mas o chiru gritou-me:

— Deixe! Deixe! Agora é tarde!…

Naturalmente de dentro da carreta a china viu o entrevero, e que o negócio estava


malparado; e pulou pra fora, pra disparar e ganhar o mato. Mas quando pisou o pé em
terra, a mão do Juca Picumã fechou-me o braço, como uma garra de tamanduá...

A cabocla não estava tão perdida de susto, porque ainda deu um safanão forte e
gritou, braba:

— Larga, desgraçado!...

E olhou, entonada... mas conheceu o chiru e ficou abichornada, pateta...

— O tata! O tata!...

— Cachorra!... Laço, é o que tu mereces!...

— Me largue, tata!...

— Primeiro hei de cair-te de relho... pra não seres a vergonha da minha cara...

Neste instante, fulo de raiva, o nosso capitão manoteou-a pelo outro braço.

— Ah! mencê... perdão!... Nunca mais!... Eu... Eu...

— Eu é que vou dar-te sesteadas com o ruivo, guincha desgraçada!

E furioso, piscando os olhos, com as veias da testa inchadas, largou o braço da


morena mas agarrou-lhe os cabelos, a trança quase desmanchada, fechando na mão
duas voltas, agarrou curto, entre os ombros, pertinho da nuca.., e puxou pra trás a

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cabeça da cabocla..., com a outra mão pelou a faca, afiada, faiscando e procurou o
pescoço da falsa...

Chegou a riscar… riscar, só, porque o chiru velho, o Juca Picumã, foi mais
ligeiro: mandou-lhe o facão, de ponta, bandeando-o de lado a lado, pela altura do
coracão!…

— Isso não!... é minha filha! disse.

O capitão revirou os olhos e deu um suspiro rouco… depois respirou forte, espirrou
uma espumarada de sangue e afrouxou os joelhos... e logo caiu, pesado, com uma
mão apertada, sem largar a faca, com a outra mão apertada, sem largar a trança...

E a china, assim presa; rodou por cima dele, lambuzando-se na sangueira que
golfava pelo rasgão do talho, que bufava na respiração do morrente…

Vendo isso, o Picumã quis soltar a piguancha e forçou abrir a mão do capitão: qual!
era um torniquete de ferro; tironeou... nada! Então, sem perder tempo, com o mesmo
facão matador cortou a trança, rente, entre a mão do morto e a cabeça da viva... Foi
— ra… raaac! — e a china viu-se solta, mas sura da trança, tosada, tosquiada, como
égua xucra que se cerdeia a talhos brutos, ponta abaixo, ponta acima...

E mal que sentiu-se livre sacudiu a cabeça azonzada, relanceou os olhos


assombrados, arrepanhou as anáguas e disparou mato dentro, como uma anta...

— Cachorra!... vai-te!... rugiu o chiru, limpando o ferro na manga da japona. E


olhando o corpo do capitão, cuspiu-lhe em cima, resmungando:

— Pois é... seduziu... e agora queria degolar... E mui triste, pra mim:

— Vancê vai dar parte de mim?

— Esta é a Rosa, a tua filha?

— Sim, senhor, que eu criei com tanto zelo!...

E mais não pudemos dizer, porque o entrevero rondou para o nosso lado.. . e
tivemos que fazer pela vida!... No meio do berzabum o Picumã ainda achou jeito de
atirar uns quantos tições pra dentro da carreta... e daí a pouco o fogo lavorava forte
naquele ninho de amores A la fresca!... que ninho!...

Alguém gritou: o capitão ‘stá morto!... Vamos embora!...

Um de a cavalo atravessou-o no lombilho e fomos retirando, tiroteando sempre.

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Mas a trança não ia mais na mão do morto.

Passaram-se uns três meses largos; em muita correria andamos, surpresas,


tiroteios, combates sérios.

Um dia um estancieiro regalou-me um pingo tordilho, pequenitate, mas mui mimoso.


Quando eu ia sentar-lhe as garras, apareceu-me o Picumã, sempre esfrangalhado e
com cara de sono e disseme, desembrulhando um pano sujo:

— Vim trazer-lhe um presente; é um trançado feito por mim; e há de ficar mui bem
no tordilho, porque é preto...

E ajeitou na cabeça do cavalo um buçalete e cabresto preto, de cabelo, trançado


na perfeição.

Nunca passou-me pela idéia cousa nenhuma a respeito...

O meu esquadrão marchou para a fronteira; depois andamos de Herodes para


Pilatos, até que no combate das Tunas... fomos topar com os antigos companheiros
de divisão. Brigamos muito, nesse dia. Aí ganhei as minhas batatas de sargento.

Não sei como ele soube, mas de noute um fulano procurou-me dizendo que o
soldado Juca Picumã, um chiru velho, que estava muito ferido, pedia para eu não
deixá-lo morrer sem vê-lo.

Lá fui. Estava o chiru deitado nas caronas e todo reatado de panos, pela cabeça,
nas costelas, nas pernas.

O coitado gemia surdo, de boca fechada; e às vezes cuspia preto...

Quando me viu, à luz de uma candeia de barro fresco, quis mexer os ossos e não
pôde...

— Então, Picumã... homem afloxa o garrão?...

E ele falou tremendo na voz:

— Estou… como um crivo... Eram oito... em cima... de mim... só pude... estrompar...


cinco!...

Vancê... ainda… tem... aquele buçalete?...

— Tenho sim; meio estragado, mas tu ainda hás de compô-lo, não é?...

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Não... eu queria… eu queria… lhe... lhe


pedir... ele, outra vez... pra... pra mim...

— Pois sim, dou-te! Amanhã trago-te.

— E do... do cabelo da Rosa... a trança...


lembra-se?...

Levantei-me, como se levasse um


pregaço no costilhar... O buçalete era feito
do cabelo da china?!... E aquele chiru de
alma crua... E quando firmei a vista no índio,
ele arregalou os olhos, teve uma ronqueira
gargalejada e finou-se, nuns esticões...

Nessa mesma madrugada fui mandado


num piquete de reconhecimento, de
forma que não soube onde nem como foi
enterrado o Picumã, porque o meu desejo
era atirar-lhe pra cova aquele presente
agourento...

Agourento… agourento não digo,


porque afinal enquanto usei aquele
buçalete nunca fui ferido.., e ganhei de
uma a quatro divisas...

Tem é que dobrei a prenda, reatei-a


com um tento e soquei-a pro fundo da maleta, até ver...

Até que um dia, como lhe disse, soube que a Rosa morreu e então... ah!... já lhe
disse também: atirei para a cova da china os cabelos daquela trança... doutro jeito, é
verdade… mas sempre os mesmos!...

Fonte:

LOPES NETO, Simão. Contos Gauchescos. Porto Alegre: Editora Globo, 1976.

Disponível em: Domínio Público.

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1829

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Simões Lopes Neto


Apesar de reduzida produção
literária no que diz respeito à
publicação, João Simões Lopes Neto
teve uma expressiva contribuição
intelectual ao regionalismo sul-rio-
grandense. É intensa a valorização
histórica do gaúcho, apresentando
fidelidade aos costumes crioulos e à
linguagem.

Biografia
Simões Lopes Neto (Pelotas — RS, 1865 —
Pelotas, 1916).

Enquanto vivo, o escritor não teve sua obra


reconhecia. Consideravam-no por outros motivos, não pelos seus livros. A modificação
a seu respeito aconteceria a partir de 1924, através de estudos críticos de João Pinto
da Silva, Augusto Meyer e Darcy Azambuja. Desde então, seu nome começou a tomar
vulto na posteridade, para afinal impor-se como nosso maior escritor regionalista.

A copiosa bibliografia hoje existente sobre a sua obra, em que avultam os trabalhos
de Flávio Loureiro Chaves e Lígia C.

Moraes Leite, não deixa dúvidas a esse respeito. Com ele o regionalismo
ultrapassou as aparências nativistas e as limitações localistas, para tornar-se
francamente universal, como sempre acontece com os criadores verdadeiramente
representativos da sua terra e da sua gente.

Dos três livros por ele publicados em vida, dois se encarregariam, postumamente
de fazer-lhe a “carreira literária”: “Contos Gauchescos” (1912) e “Lendas do Sul”
(1913), ambos editados pela Livraria Universal, de Pelotas — RS.

Fonte:

http://www.releituras.com/jslopesneto_menu.asp

Seleção: Henry Alfred Bugalho

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Olavo
Bilac
Muitos dos que, como eu, cresceram no Brasil
durante o período da ditadura militar, associaram Olavo
Bilac apenas à autoria da letra do Hino à Bandeira,
compulsoriamente cantado repetidas vezes nos
páteos escolares. Ou a versos de exaltação nacional,
espuriamente declamados em meio ao típico “Brasil:
ame-o ou deixe-o”, no pior cenário possível dos ideais
ufanistas. Além disso, os parnasianos foram um dos alvos
preferidos do movimento modernista no Brasil. E, em
tempos de censura radical, tudo o que soa libertário torna-
se rapidamente bandeira. Assim, declaramo-nos, muitos
da nossa geração, com cinquenta anos de atraso, também
anti-parnasianos. Há nisso alguma injustiça: primeiro porque
o nacionalismo republicano de Bilac não tinha, de fato,
nenhuma relação com os generais da ditadura; segundo,
porque há uma vasta parcela de sua obra poética dedicada
aos temas líricos, e é uma pena que esse aspecto tenha
ficado um tanto eclipsado pelo uso político que se fez, em Autores em Língua Portuguesa
pleno século XX, de seu patriotismo abolicionista próprio do
final do século XIX. Segue aqui uma pequena amostra desse
lirismo. Que ele sirva de estímulo para que se busque mais!
Seleção: Marcia Szajnbok

Olavo Brás Martins dos Guimarães militar obrigatório, que considerava uma
Bilac nasceu no Rio de Janeiro em 16 forma de combate ao analfabetismo. Foi
de dezembro de 1865. Após os estudos eleito Príncipe dos Poetas Brasileiros
primários e secundários, matriculou-se na pela revista Fon-Fon em 1913. Fundindo
Faculdade de Medicina no Rio de Janeiro o Parnasianismo francês e a tradição
e, posterirormente, no curso de Direito lusitana, Olavo Bilac deu preferência às
em São Paulo, não concluindo nenhum formas fixas do lirismo, especialmente ao
deles. Voltou ao Rio e passou a dedicar- soneto. Foi um dos mais notáveis poetas
se ao jornalismo e à literatura. Foi um brasileiros, prosador exímio e orador
dos mais ardorosos propagandistas da primoroso, participou da fundação da
abolição, estreitamente ligado a José do Academia Brasileira de Letras, na cadeira
Patrocínio. Escreveu em vários jornais, 15, cujo patrono é Gonçalves Dias. Olavo
, substituiu Machado de Assis na seção Bilac morreu no Rio de Janeiro em 28 de
“Semana” da Gazeta de Notícias, exerceu dezembro de 1918.
vários cargos públicos no Rio de Janeiro.
Fonte:
Foi um dos fundadores da Liga da http://www.academia.org.br/abl
Defesa Nacional, tendo lutado pelo serviço

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Ouvir Estrelas
“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muitas vezes desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto


A via-láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: “Tresloucado amigo!


Que conversas com elas? Que sentido Ciclo
Tem o que dizem, quando estão contigo?” Manhã. Sangue em delírio, verde gomo,
Promessa ardente, berço e liminar:
E eu vos direi: “Amai para entendê-las! A árvore pulsa, no primeiro assomo
Pois só quem ama pode ter ouvido Da vida, inchando a seiva ao sol... Sonhar!
Capaz de ouvir e de entender estrelas.”

o
Dia. A flor - o noivado e o beijo, como

l a v
Em perfumes um tálamo e um altar:

O
A árvore abre-se em riso, espera o pomo,
E canta à voz dos pássaros... Amar!

a c
Tarde. Messe e esplendor, glória e tributo;

B i l
A árvore maternal levanta o fruto,
A hóstia da idéia em perfeição... Pensar!

Noite. Oh! Saudade!... A dolorosa rama


Da árvore aflita pelo chão derrama
Delírio As folhas, como lágrimas... Lembrar!
Nua, mas para o amor não cabe o pejo
Na minha a sua boca eu comprimia.
E, em frêmitos carnais, ela dizia:
– Mais abaixo, meu bem, quero o teu beijo!

Na inconsciência bruta do meu desejo


Fremente, a minha boca obedecia,
E os seus seios, tão rígidos mordia,
Fazendo-a arrepiar em doce arpejo.

Em suspiros de gozos infinitos


Disse-me ela, ainda quase em grito:
– Mais abaixo, meu bem! – num frenesi.

No seu ventre pousei a minha boca,


– Mais abaixo, meu bem! – disse ela, louca,
Moralistas, perdoai! Obedeci...

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Ilustração: Alessandro Andreuccetti
http://aandreuccetti.altervista.org
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Contos

OBRA DO DIABO
Henry Alfred Bugalho

As manchas de sangue na cueca de


Marquinhos causaram estranhamento.
A mãe, ingênua, primeiro pensou que
pudesse ser alguma infecção. Há anos
que Joana não dava banho do filho, mas
insistiu; porém, constrangido, Marquinhos,
com treze anos, discordou.

— Que isto, mãe! Já sou quase um


homem. Que negócio é este de querer dar
banho em mim.

Joana conversou com amigas e nenhum


delas sabia o que dizer, até que Flávia
comentou, embaraçada:

— Uma vez, eu e meu marido fizemos


por trás... Depois, por alguns dias, saiu
sangue de lá.

As mulheres riram, descartaram esta


hipótese, pois Marquinhos era homem e
homem não dá o rabo. E, além disto, quem
estaria enrabando Marquinhos?

No entanto, tal conjetura não abandonou


Joana. Passou a bisbilhotar Marquinhos, quando ele estava com amigos, com quem
andava no colégio. Nada que pudesse indicar um comportamento estranho. Foi por
isto que Joana me procurou, para descobri quem estava comendo Marquinhos.

Obtive as mesmas conclusões dela, não eram os amigos, nem colegas de escola,
Marquinhos tinha, inclusive, uma namoradinha no colégio, e dava belos amassos na
garota durante o intervalo do recreio, mãos no peitinho e dentro da calcinha.

Santo o rapaz não era, e isto já era um bom começo.

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Marquinhos tinha a rotina comum dum menino da idade dele: ia à escola durante o
dia, jogava futebol no cair da tarde, flertava com a namoradinha à noite, jantava com
a família, era coroinha nas missas de domingo.

“Tente enxergar o óbvio, Vico!”, eu dizia a mim mesmo.

Depois da missa, Marquinhos acompanhava o padre até a sacristia e desaparecia


por quase duas horas.

Estaria acontecendo algo inusitado neste tempo? Além disto, caso minhas
suspeitas se confirmassem, não seria nada fácil incriminar um bispo influente como
Dom Francesco.

Fui à missa no domingo, e, se minha carreira de detetive não houvesse me


preparado para a espera e a monotonia, certamente teria dormido com a ladainha em
latim de Dom Francesco.

O culto foi encerrado e bispo e coroinha se retiraram para a sacristia. Os fiéis


deixavam a igreja, enquanto eu me esgueirava por entre eles para alcançar o altar e
descobrir o que se sucederia.

Na sacristia, havia uma porta que conduzia a um prédio anexo, onde se localizava
a residência do bispo. Cheguei a tempo para vê-los entrar por esta porta e trancá-la.

Na semana seguinte, fui mais esperto. Dom Francesco rezava a missa, aproveitei
para me infiltrar na sacristia e ingressar no alojamento do bispo, uma cela decorada
com suntuosidade, ao invés do esperado ascetismo. Escondi-me no guarda-roupa,
cuidando para deixar aberta uma fresta por onde assistir ao que estava por vir.

Após um quarto de hora, Dom Francesco e Marquinhos entraram na cela. Este


ajudou o bispo a retirar a batina, logo percebi que o santo homem estava com o pau
ereto. Fez um sinal para Marquinhos, que se ajoelhou e passou a chupar o padre.

Aquilo me fez ter engulhos, se eu não estivesse escondido, teria vomitado ali
mesmo. Mas esta cena seria apenas a primeira dos absurdos que presenciei. Depois,
dum baú, o bispo retirou um açoite e o entregou a Marquinhos:

— Você sabe o que fazer — Dom Francesco disse, então, virou-se para o rapaz
e se preparou para ser flagelado. Marquinhos fazia o chicote estalar nas costas e
nádegas do padre, que gritava, descontrolado — Mais, mais, mais!

Em seguida, Marquinhos enfiou o cabo do chicote do cu do padre, para grande


deleite deste (e desespero meu). Por fim, o bispo se voltou e foi a vez dele sodomizar
o garoto. As manchas de sangue na cueca estavam explicadas.

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Marquinhos recebeu uma bela quantia de dinheiro do bispo e partiu. Dom Francesco
adormeceu, em êxtase. Pude, enfim, deixar aquele antro.

— Dom Francesco? Não é possível! — Joana se descabelava, roendo as unhas


— Você tem de estar errado... Por favor.

— Entendo que você não queira acreditar. Por isto, eu lhe direi como proceder.
Somente assim você livrará seu filho deste pervertido.

No domingo, na hora do almoço, a polícia e jornalistas cercaram a residência


do bispo. A polícia invadiu a cela e apanhou Dom Francesco e Marquinhos em
flagrante.

Sob o flash das câmeras da imprensa, o bispo berrava, justificando-se:

— Isto foi obra do diabo! Obra do diabo!

Recordei-me de meu avô, com sua simplória sabedoria, que sempre repetia: “O
diabo está em nós”.

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Contos

O CASO JERSEY
Volmar Camargo Junior
foto: http://www.flickr.com/photos/curiosita/1178581614/

Meu nome é Rafaela M. Sou médica Lembro que o assunto do dia era aquele
veterinária, sócia-proprietária de uma pastor que chutou uma imagem de Nossa
petshop e clínica de pequenos animais, Senhora em um programa de TV. Eu
junto com meu marido Breno S, jornalista estava no terceiro semestre da faculdade.
e fotógrafo. A história de como nasceu Breno, a esta época, estava quase no final
essa empresa é bastante curiosa, e pode do curso de Jornalismo. Fazia um estágio
parecer até um pouco absurda. Para no Diário Pereiropolitano para o qual
quem quiser conferir, temos ainda todas escrevia como “freela” desde o segundo
as provas de que tudo o que vou contar é grau – essas coisas de padrinhos. Em
a mais absoluta verdade. todo caso, ele já era bastante conhecido
por parecer mais um detetive que um
Foi em 1995, no mês de outubro. repórter. Nós ainda não namorávamos;

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eu, tremenda CDF, bolsista, certinha. Ele, começou a reportagem ali mesmo. Seu
popular na universidade, na redação, Ari não se importou, mostrando-se muito
na rua, no diretório acadêmico. Mas solícito às suas perguntas – diferente de
morávamos no mesmo prédio, e éramos Inspetor Silva, que o achava um estorvo.
muito amigos.
Segundo o dono da propriedade, não
Aconteceu por aqueles dias um evento aconteceu nada extraordinário, além da
curioso, um crime insolúvel para o qual forte chuva de granizo e a tempestade
a polícia não apresentava conclusões de raios, entre as onze a meia-noite. O
– o tipo de caso preferido do Breno. O disparo só pode ter acontecido nesse
agricultor Ari F. era um funcionário público horário, porque o barulho das trovoadas
aposentado (ou um político, não lembro certamente abafaram o estouro da arma.
bem) que tinha uma propriedade na zona
rural de Pereirópolis. Era uma fazendinha A primeira coisa que o jovem jornalista
tão bonita e bem cuidada que parecia de lembrou foi o fato de, na área rural, os
brinquedo. Sua generosa aposentadoria moradores terem armas de fogo e cães de
era toda investida naquele lugar. O que guarda. As armas de seu Ari, um revólver
mais lhe dava prazer adquirir eram os .38 e uma espingarda calibre .12, não
animais. Não eram bichos quaisquer, eram usadas havia muito tempo. Mostrou-
mas verdadeiros campeões de suas as: estavam empoeiradas, guardadas na
raças. Eram ovelhas, galinhas, cavalos, parte mais alta de um armário. Quanto
canários, cães e gatos, uma verdadeira aos cachorros, estes deviam ter contraído
Arca de Noé. De todos estes, seu xodó alguma virose, pois desde o começo da
era Princesa, uma vaquinha Jersey que – semana passavam a maior parte do tempo
segundo os relatos dos concursos que ela dormindo. Seria tristeza demais para ele
venceu – chegou a dar cinqüenta litros de se seus cães também morressem.
leite em um único dia. Um luxo de vaca.
Inspetor Silva pediu para falar com
Naquela sexta-feira treze, o seu Ari as outras pessoas da casa, em caráter
registrou a ocorrência logo de manhã informal, uma vez que aquilo não constituía
na D.P. de Pereirópolis: Princesa fora um depoimento. Na Granja Itália viviam
encontrada morta com um tiro na Seu Ari, sua esposa Teresinha, o filho
cabeça. O Inspetor Silva acompanharia o mais velho Tomás, e a caçula Tatiana.
inconsolável proprietário da vítima até sua
idílica fazenda. O fotógrafo que prestava
A esposa não pareceu nada
serviço para a Delegacia – para o total
abalada com a morte da vaca Princesa.
desgosto do policial – era o Breno.
Respondeu às perguntas sem titubear,
mas acrescentou pouco ao que já havia
Foi difícil chegar até a fazenda por sido dito pelo marido. Disse apenas que
causa da estrada, que virou um barro só só conseguiu dormir depois que a chuva
com a chuva da véspera. A cena do crime terminou. Era uma mulher bonitona, muito
era a seguinte: a vaquinha estava caída bem tratada, com as unhas e os cabelos
de lado dentro do curral, com as pernas arrumados. Pelo que aparentava, Dona
estendidas. Havia um buraco escuro na Teresinha não passava nem perto de
testa e uma poça de sangue no chão, ao uma estrebaria. E, provavelmente, seria
seu redor. Fora isso, não havia nenhum ainda menos provável que empunhasse
outro indício da autoria, nenhuma marca uma arma para matar uma vaca a sangue
de pneu, nenhuma pegada. Nada. Breno

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SAMIZDAT 5 - junho 2008

frio. Assim que chegaram de volta na


cidade, Breno correu para seu laboratório
O rapaz, por outro lado, era bem mais fotográfico. Silva dispensou-o (proibiu-o)
rude. Suas respostas eram monossilábicas de averiguar o suspeito. Na verdade,
e algumas questões sequer dignou-se Breno estava com uma outra idéia, que
a responder. Por fim, já irritado, saiu da não o abandonou desde a hora que tirou
sala batendo a porta, falando em alto e as fotografias. Seu laboratório era o mais
em bom som “Quem se importa com essa artesanal possível – que ainda hoje ele
vaca de merda?”. conserva com muito carinho, apesar de
já ter equipamento bem mais sofisticado.
O fato é que as fotos só estariam prontas
A moça estava em estado de choque.
em algumas horas. Neste intervalo, o
A despeito dos cuidados que a mãe
fotógrafo deu lugar ao detetive-amador.
teve para tentar acalma-la, e talvez
silenciá-la, Tatiana tinha certeza de que
o assassinato de Princesa só poderia ser É nesse ponto que eu entro na
um aviso de seu ex-namorado. O tal era história. Eu costumava ser, de certa
o estereótipo do rapaz rico e mimado, forma, a mãe dele. Ou, no mínimo, a
herdeiro de uma fazenda gigantesca (que,pessoa que o alimentava. Breno é o tipo
muito apropriadamente, os jovens menos de pessoa totalmente inepta na cozinha,
abastados chamam agro-boy). Aquilo capaz de cortar a própria jugular com
seria um aviso, ou uma ameaça a ela e à uma faca sem ponta tentando fazer um
sanduíche. Sendo sua vizinha de porta,
família. Esta foi a declaração que pareceu
seu apartamento era, o mais das vezes,
a mais plausível ao policial. Breno preferiu
não apressar seu julgamento. um dormitório. Isso quando ele não se
passava na hora – ou no álcool – e dormia
no meu sofá. Estava “vesgo” de fome, e
Seu Ari estava bastante emocionado.
só então deu-se conta que eram quase
Já se aproximava do meio-dia, quando
cinco da tarde e ele não havia comido
recebeu uma ligação que estava
nada. No tempo em que preparei o lanche
esperando: um comerciante local aceitou
e enquanto o mesmo era devorado, Breno
pagar pela carne da premiada vaca uma
contou-me tudo o que já contei a vocês.
cifra nada desanimadora. Seu Ari queria
E, em seguida, quis saber algumas coisas
mesmo era enterrar a pobrezinha à beira
sobre minha área.
do açude de que ela tanto gostava.

“Dá para matar uma vaca de quase


Por fim, Silva questionou se a
uma tonelada só com um tiro”, ele
família tinha algum outro suspeito além
perguntou.
do ex-namorado da caçula. O homem
afirmou que não cultivava inimizade com
ninguém. Todos na cidade sabiam disso: “Sim. Há alguns abatedouros que
Seu Ari era (e ainda é) uma doce criatura. preferem dar um tiro com uma arma de
Breno, enquanto o policial fazia as últimas alta-pressão para que o animal não fique
perguntas, observou discretamente os estressado”, respondi, quase entendendo
outros familiares. Quando o dono da casa onde ele queria chegar.
asseverou não possuir nenhum inimigo,
notou que sua esposa ficou com o olhar “Pois, eu tenho uma suspeita de quem
distante, voltado para o chão, dando um seja o autor”
longo suspiro.

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“Quem?” “Você lembra de uma notícia, há uns


cinco anos atrás, mais ou menos depois do
Breno me olhou bem nos olhos, e assim impeachment do Collor, que o governador
ficou por alguns segundos intermináveis, do estado viria para um almoço com os
com uma expressão enigmática, criadores daqui da cidade?” ele perguntou
indecifrável. Ele riu com o canto da boca. enquanto sintonizava uma estação de
Da cadeira onde estava, pulou na direção rádio.
do telefone. Discou consultando uma
agendinha minúscula. “Não muito bem. Por quê?”

“Alô, Seu Ari. Ah... Tomas. Desculpe, “Lembra onde foi que ele se
as vozes são parecidas. Aqui é o Breno, hospedou?”
o fotógrafo da pol... sim, isso. Era eu
mesmo. Não... não..., não é isso. Olhe, “Ah, sim. Lembro sim. Ele ficou
eu tenho uma amiga que é veterinária. justamente na Granja Itália, porque o Seu
Ela disse que não se importaria de dar Ari era seu amigo.”
uma olhada nos cachorros de vocês.
Quando? Domingo, pela manhã? Claro,
“Exato. E lembra também o que
sem problemas. Ah... não, não. Ela não
aconteceu depois dessa visita?”
vai cobrar nada, não. Até domingo, então.
Um abraço.”
“Cara, não recordo. Eu sempre fui
desligada das notícias...”
Era óbvio que eu já havia sido
envolvida nos planos dele. Isso não era
raro. Teve uma vez que ele pediu para “Pois começaram a construir o
eu fazer um corte com um bisturi em sua Frigorífico Pereirópolis S.A. pouco tempo
perna só para ele ser atendido no pronto- depois. Um monte de gente conseguiu
socorro, e fotografar os pacientes sendo emprego, e os granjeiros da região só
atendidos no corredor. O sábado passou tiveram lucro com isso. Muitos pequenos
muito rapidamente, e eu não o vi o dia empresários e comerciantes começaram
inteiro. No domingo, saímos cedo de a depender do Frigorífico.”
casa. Fomos no seu Fusca 76 até a sede
da Granja Itália. Dentro do porta-luvas “Sim, e daí? Não to conseguindo
encontrei um pacotinho da farmácia, entender.”
contendo seringas, luvas descartáveis,
tubos plásticos para coleta de sangue, “Calma... já chego lá. Teve bastante
daqueles de laboratório de análises gente que prosperou com a vinda dessa
clínicas. Ele me olhou e riu empresa. Mas teve gente que não gostou
nem um pouco disso.”
“Ué, temos que prestar um serviço de
qualidade, doutora Rafa!” “Quem?”

Fomos conversando amenidades. O Não deu tempo de ele terminar.


pastor que chutava santas fora totalmente Havíamos chegado à entrada da granja.
esquecido; pelas esquinas, só se falava
na morte da Princesa.
Nosso anfitrião foi Tomas, que ficou
em casa. Os pais e a irmã foram à missa.

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SAMIZDAT 5 - junho 2008

Diferente dos modos que teve quando “E quem trata os cachorros?”


recebeu Breno e o Inspetor Silva na sexta, perguntou outra vez o jornalista-detetive.
o rapaz tratou-me com muita distinção e
cordialidade. Muito educado, conduziu- “Só eu.” devolveu seco. Deu para
nos até o canil. perceber que os dois exemplares machos
da nossa espécie não se davam bem
O canil era espetacular, um primor de desde que se conheceram. A minha ficha
organização do espaço e limpeza. Nem demorou a cair que, na presença de um
parecia que cães moravam ali – talvez exemplar fêmea, eles tendem a competir
uma limpeza recente feita por Tomas, por atenção. Nesse caso, a fêmea era eu.
mas, mesmo assim, o espaço era um Que burra! Nem notei.
luxo. Coisa de revista. Havia ali sete cães,
enormes. Seu ari, pelo visto, apreciava Fiz a coleta de sangue, de fezes, até
os molossos: um casal de Rottweillers, da ração dos cães, exatamente como
um Dogue Alemão, um Mastiff e uma Breno queria. Voltamos para a cidade.
cadela Boxer com dois filhotes. Fiquei No caminho, notei que ele estava mais
consternada com aqueles cachorrões, calado que o costumeiro, com a cara
dormindo pelos cantos. Bem, eu sabia fechada, cenho cerrado. Tentei puxar
que sonolência nos cães é, de fato, conversa. Estava emburrado. Deixei-o
sintoma de uma virose até bem comum, a quieto, porque era provável que ficasse
parvovirose – um tipo de gastro-enterite. ainda mais aborrecido.
Comecei a especular
Perto de casa, já estava mais calmo.
“O que eles costumam comer, Acho que ele tinha a cabeça tão ocupada
Tomas?” pensando nas mil e uma possibilidades
de aplicação de suas teorias que acabou
“Ah, essa ração aqui”, respondeu esquecendo que estava bravo comigo.
ele, pegando o saco quase vazio em Quando paramos, ele foi diretamente para
uma guarita de tijolos, onde ficavam os o orelhão defronte ao edifício. Não pude
apetrechos do canil (que capricho!). Era ouvir a conversa, mas pela expressão
uma ração tradicional, até um pouco cara que ele fez, parece que sua conversa
por causa da marca. Olhei a data de mole teve efeito. Voltou rapidamente para
validade, os componentes... tudo normal. o carro, perguntando

“E é você mesmo que compra a “Vai fazer o que hoje, doutora?”


comida deles?”
“Se você deixar, vou continuar
“Normalmente o pai ou a mãe, não sei. escrevendo meu artigo.”
Esse mês foi a mãe, porque o pai estava
em Esteio com a Princesa, numa mostra “Então, você vai fazer uma extra-
internacional de gado leiteiro.” curricular hoje. Vamos pro laboratório da
Élida.”
“Outro prêmio?” interveio o Breno, que
eu já havia até esquecido. “O quê? Hoje é domingo, esqueceu?”

“Ah, sim.” Respondeu o rapaz, sem “Pois domingo é o dia perfeito para
entusiasmo.

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cobrar uns favores”, disse ele, arrancando era apaixonado pela mimosa. Duvido que
o Volkswagen rumo ao centro. ele tenha cometido o bovicídio.

Sim, a Élida, dona do laboratório, Por último eu coloco a Tatiana. Ela era
devia um favor para Breno, sobre o que a que, a meu ver, tinha menos motivos
preferi nem questionar. Entregamos o para atirar na Jersey.
material, sem dizer que era de cachorro.
Ruim foi explicar a ração. A moça deu a Breno ouviu-me pacientemente,
previsão de que o resultado só sairia na silenciosamente. E assim ficou por mais
manhã seguinte. O trabalho de conter alguns minutos, como se estivesse
a ansiedade evidente de meu amigo, ruminando o que eu havia dito.
agora, seria meu. Em casa, começamos a
divagar sobre os suspeitos. A partir do que
“Bem...” disse ele, me deixando
ele havia me contado, Breno quis que eu
apreensiva. “Há algumas coisas que eu
fizesse uma análise de quem eu achava
descobri, e outras que eu fiz algumas
ser o culpado. Enquanto eu falava, fiz
ligações que você não poderia ter
algumas anotações em um caderno. Ele
levado em conta porque não tinha
não interferiu em nada.
conhecimento”.

O ex-namorado de Tatiana era minha


“É mesmo? E sobre quem recai sua
principal suspeita. Ameaçar a família
suspeita?” eu perguntei, fingindo estar
tirando a vida do bicho mais querido
ofendida por não ter minha excelente
do Seu Ari pode ser uma boa forma de
capacidade dedutiva valorizada.
intimidação. Eu concordo com o Silva
nesse aspecto: acho que ele, o agro-boy,
é o número um. “Quer saber mesmo? Acho que
nenhuma dessas pessoas que você citou
matou a Princesa.”
Tomas tinha ciúme da vaca. Ele teria
ciúme dos outros bichos também, e pelo
que parece, ele gosta apenas dos cães. “Ué? Há mais alguém envolvido?”
Teria sido um crime passional? Será que
os outros bichos não estavam sob uma “Vamos esperar o resultado dos
ameaça, com o assassino dentro de exames. Amanhã eu conto quem é o
casa? culpado.”

Dona Teresinha pode tê-lo feito – ou Fiquei morrendo de curiosidade. Pra


mandado fazer, o que é mais provável. Elafalar a verdade, fiquei até furiosa porque,
parece ser bem materialista. Afinal, uma no fim das contas, Breno conseguiu
vaca que devia custar algumas dezenas conquistar meu interesse para esse caso.
de milhares de reais – ou dólares, não Já estava ficando tarde, eu tinha sono,
entendia bem a cotação das vacas – os trabalhos da faculdade ainda me
certamente renderia, com sua morte, uma esperavam. Mandei-o pra casa. Mesmo
boa grana do seguro. que ficasse a uma parede de distância,
eu precisava ficar um pouco sozinha.
Seu Ari também teria motivos para Quando fui fechar a porta, como se fosse
atirar em Princesa. Talvez os mesmos de a coisa mais natural do mundo, Breno me
Dona Teresinha. Entretanto, acho que ele beijou. Assim, sem mais nem menos. Foi

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nesse exato instante que começamos ração para bovinos que só a empresa dele
a namorar. Acabei não retomando meu tinha a fórmula. Quando veio a empresa
artigo, e o Breno também não foi pro grande, e que começaram a fazer uma
apartamento dele. inspeção pra valer no rebanho bovino
local, acabou-se descobrindo que a ração
que o tal Doutor Orlando produzia tinha uns
metais pesados que podiam causar câncer
em quem consumia a carne proveniente
Era cedinho da manhã de segunda.
dos bois que se alimentavam dela. Não
Nas segundas eu costumava dormir um
precisa nem dizer que a fabriqueta do
pouco mais, já que minhas aulas eram
Doutor faliu. Com isso, ele tinha mais de
somente à tarde. Nem percebi que ele
um motivo para detestar o Seu Ari, já que
havia saído e já estava de volta. Estava
todo mundo diz que o Frigorífico só veio
com as mãos para trás.
para cá porque o governador, amigo dele,
facilitou as coisas. Hoje em dia, o homem
“Nós temos o nosso culpado”, disse, tem um mini-mercado, perto da praça do
entregando-me dois envelopes, um hospital.”
branco e um pardo.
“Que história mais maluca, Breno. Mas
No primeiro estava o resultado dos e aí? Você está achando que esse Doutor
exames de sangue, de fezes, e o da ração Orlando foi quem matou a vaquinha.”
(!) do cachorro. Havia uma substância
química incomum. Ou melhor, comum
“Quer mais algumas evidências?
apenas em pessoas que estão sob efeito
Os cachorros da fazenda não estavam
de sedativos.
contaminados por virose nenhuma, mas
dopados, anestesiados por causa de
“Isso quer dizer que...” uma substância tranqüilizante que estava
onde? Na ração que eles comiam. E o
“... quer dizer que os cachorros não tal Seu Orlando pode, perfeitamente, ter
estão doentes, Rafa. Estão dopados!” fabricado a tal ração.”

“E então? Alguém misturou anestésico “Certo, mas... e como é que ela chegou
na comida deles. Mas só pode ter sido lá?”
alguém da família, certo?”
“Como? Quem foi que comprou a
“Não necessariamente. Você se lembra ração para os cachorros da Granja Itália
que eu comentei sobre um cara que não nesse último mês?”
gostou nada da vinda do frigorífico aqui
pra Pereirópolis? Esse cara é um certo “Segundo o Tomas, foi a mãe dele,
Doutor Orlando.” Dona Teresinha. E o que isso tem
demais?”
“Doutor Orlando... nunca ouvi falar”
“Aí está o coice da vaca! Você lembra
“Deve ter ouvido sim. Pois esse que eu achei muito estranha a reação
Seu Orlando era podre de rico antes do da Dona Teresinha quando o Seu Ari
Frigorífico instalar-se aqui. Dizem que ele falou para o Inspetor Silva que não tinha
ganhava rios de dinheiro vendendo uma inimigos?”

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“Lembro, sim. Você disse que ela a vaca.”


estava com o olhar perdido, deu um
suspiro profundo e tudo mais.” “Hein? Agora é que eu não entendi
mais nada!”
“Pois você não sabe o que eu descobri.
Sábado eu fui visitar a minha mãe, que “Olha isso”
tem uma memória de elefante...”

“Foi por isso que eu não te vi o dia


inteiro.”
E deu-me o segundo envelope.
Dentro dele, havia as fotos que ele tirou
“Pois então. A mãe lembra direitinho da cena do crime. Princesa, de língua
de um “bafafá” que aconteceu aqui em de fora, com a cabeça ensangüentada e
Pereirópolis, quando ainda se chamava um buraco no meio da testa. Uma poça
Vila da Pereira, distrito de Araucária. Pois o vermelha ao redor da pobre vaquinha
Seu Ari veio trabalhar aqui, representando Jersey. Outras fotos mostravam o lombo
algum órgão do governo – ela acha que da vaca, o curral e os arredores. E duas
ele era militar. E ele já estava ficando rico, ampliações enormes. A primeira era da
e comprou as terras onde hoje é a Granja bunda da vaca. A segunda, do furo feito
Itália. E foi nessa época que ele conheceu pela bala.
a Teresinha, que veio a se casar com ele
e dar-lhe um casal de filhos.”

“Que bonitinho... ta. E daí?”


“Qual é, Breno” eu reclamei “precisava
ampliar essa? Que foto mais feia...”
“E daí que a Dona Teresinha, na
época, era noiva de outro cara. Chuta
“Rafa. Você conhece isso muito melhor
quem era o cara?”
do que eu. É um animal morto”

“Não! O Doutor Orlando?”


“Mas isso é o tiro na cabeça da
pobrezinha.”
“Sim. O Doutor Orlando! A mãe diz
que eles nunca deixaram de se ver, e que,
“Olha melhor.” disse, confiante. E
volta e meia, quando o Seu Ari viajava
eu olhei. Prestando atenção, dava para
pras exposições de sua bicharada, ela
perceber que aquele buraco de bala era,
ia até o mercadinho do Orlando para vê-
de fato, muito esquisito. Então eu percebi
lo. É provável que a ração que deixou os
o quanto aquilo era absurdamente
cachorros meio grogues foi comprada
ridículo. E gritei, com o dedo em riste
lá.”
para a foto “Rá! É maquiagem! Isso aqui
é maquiagem”
“Mas é claro! Ele tinha todos os motivos
pra se vingar do Seu Ari! Foi lá e matou
“Agora olha a foto da bunda da Princesa”
a Princesa, a vaca premiada do Seu Ari!
ele falou, pondo a outra fotografia diante
Breno, meu Deus, você é um gênio!”
de mim. Perto das ancas, no lugar bem
escolhido, havia dois pequenos pontos
“Ei. Eu nunca disse que o cara matou vermelhos sob o pelo.

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“Então isso quer dizer que...” fazer o Seu Orlando cair na armadilha.
Quando o processo contra ele foi aberto,
“Quer dizer que a Princesa não foi e suas contas bancárias investigadas,
morta. Isso foi um golpe. Ela recebeu descobriu-se que Princesa havia sido
duas injeções, de algum anestésico vendida por ele para um fazendeiro
muito potente, ou uma dose muito alta. A uruguaio, tão dado a falcatruas quanto
vaquinha estava tão dopada que pareceu Doutor Orlando, por aproximadamente
morta. Ela não foi assassinada, Rafa. Foi quinze mil reais. Seu Ari não teve dúvidas.
roubada debaixo dos bigodes do Seu Mandou buscar sua Jersey campeã de
Ari.” volta. O caso teve alguma notoriedade no
estado, e acabou, depois, virando piada
em Pereirópolis. Doutor Orlando acabou
Eu fiquei estática. Abismada.
condenado por quase uma dezena de
Boquiaberta. Afônica. Tudo fazia sentido.
crimes contra o patrimônio e a saúde
Breno desvendou o quebra-cabeças em
pública, sendo obrigado a pagar uma
três dias, coisa que poderia levar anos
indenização por danos materiais e morais
sem nunca ter uma solução pela polícia.
ao proprietário da vaca.

Levamos essas conclusões para a


A propósito, foi com essa indenização
polícia, ou melhor, para o Inspetor Silva,
que o Seu Ari montou a clínica e deu-a de
além dos resultados dos exames, as fotos
presente para mim e o Breno. O nome,
– que ele mesmo não havia olhado com a
obviamente, foi ele quem escolheu:
atenção devida. Depois disso, bastou uma
Clínica Veterinária Princesa.
das “conversas informais” do Silva para
foto: http://www.flickr.com/photos/jdickert/539731437/

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LUZ E SOMBRAS

Contos Denis da Cruz

- Kir, vá até Mauhaz e pegue a jóia! – grita papai da sala - E não perca tempo no
caminho, pois temos poucas horas de Luz.

- Hat, você vem? – pergunto para meu djin.

- Clac, brat. Bram – é a resposta.

Pobre Hat. Ficou sem a Luz e se transformou num espírito inferior. Sua sorte
foi que um marquiteto* fez este pequeno construto esferóide para transmutar o que
restou de sua essência em um djin.

Coloco-o em meu ombro, ao lado dos meus cabelos ruivos. Ele se agarra e corro
para fora. De fato, a Luz está indo embora e o céu já é tomado por um azul mais

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imagem: http://www.sgeier.net/fractals/fractals/06/Fireball.jpg
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escuro. Em pouco tempo, as Sombras estarão por todos os lugares.

Nas ruas, as pessoas se retiram para seus huszes*. Eu continuo correndo; Hat
cada vez mais firme.

Finalmente chego diante do husze de Mauhaz e sinto um arrepio em minha


orelha.

- Quieto, Hat! – digo para o djin que solta faíscas e estala suas engrenagens.

- Brat, brack – responde-me.

Ele está certo em ter medo, pois a moradia de Mauhaz é realmente de dar calafrios.
Giro a maçaneta que tem a forma da cabeça de um corvo.

- Missur* Mauhaz!? – chamo colocando a cabeça para dentro.

- Entre, menina Kir – diz o homem ao fundo da sala.

Ouço o “clac, brak” de vários djins espalhados pelo chão. Há de todas as formas,
quadrados, esferóides, cônicos e alguns lembram insetos.

Ando de forma desajeitada entre os pequenos construtos, tentando não demonstrar


meu medo. A verdade é que a Luz esverdeada deste husze me incomoda.

- Seu pai mandou o pagamento pela jóia? – pergunta o marquiteto com um sorriso
desenhado por seu farto bigode. O cabelo espetado parece ter sido sugado pela
tromba de um Julufan*.

- Sim – coloco um frasco de luz prateada na mesa.

Ele o puxa para si, com um pequeno riso mórbido. Avalia-me com seus olhos
fundos e nariz pontudo, balançando quase até o queixo.

- Poderia ser você aqui, menina Kir. Poderia ser a sua essência aqui dentro.

- Mas não é! – digo de forma enfática, mas o medo escorre na forma de uma gota
de suor em minha têmpora. – Esta essência paga a jóia?

- Ah, claro que paga, menina Kir. Sim, paga sim – ele sorri como um Iadbo* da
Sombra – Vocês terão Luz por mais alguns meses. Nada mais justo; sacrificar uma
essência para que vocês tenham a proteção contra a Noite.

Mauhaz alisa o frasco com suas mãos de dedos ossudos e olha dentro dele.
Então, me diz em quase um sussurro:

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- Quer saber se você teria um irmão ou uma irmãzinha?

- Não, eu só quero a jóia! – não consigo conter o grito.

Maldito seja este mundo atacado pelas Sombras. Dependemos da Luz para viver,
ou a Escuridão nos leva. E esta Luz só os marquitetos nos fornecem, mediante a
paga de essências vitais. Pais e mães, às vezes, se sacrificam para que a família
possa continuar tendo as Jóias de Proteção.

Hoje eu entreguei nas mãos de Mauhaz a Essência do que seria um dos meus
irmãos, gerado apenas para que pudéssemos comprar uma Jóia e termos mais
alguns meses de Luz em nosso husze. Muitos usam esta estratégia para comprarem
a proteção e, por isto, crianças como eu são muito raras em nosso mundo.

Mauhaz me entrega a jóia. Agradeço com uma rápida mesura e corro para a porta,
tropeçando em dois ou mais djins.

Ao girar a maçaneta do corvo viro-me para traz e cuspo a Profecia para o maldito
marquiteto:

- Um dia a Grande Jóia virá e entregará sua Essência por todos nós. Teremos Luz
para sempre e não mais precisaremos de suas jóias.

- Sim, um dia Ela virá – diz o mago lá do fundo, com uma voz sarcástica. – Mas
ainda não veio e você terá que correr bastante, menina Kir, pois as Sombras já estão
caindo.

Olho assustada para fora. O céu está em um roxo quase negro. A Escuridão está
descendo.

Corro pelas ruas vazias. Hat se segura o mais firme que pode.

Um grito agudo rasga os céus. As Sombras estão caindo. Fortes, densas. Tomam
conta de tudo.

Aperto a jóia contra meu peito e ela emite uma tímida Luz azulada. Não será
suficiente para me proteger até meu husze.

A Escuridão está por todos os lados e os Iadbos das Sombras chiam e gritam.
Continuo correndo; Hat mantém um silêncio tumular em meus ombros.

Sem aviso, uma Sombra cai à minha frente. Salto para lado, mas outra criatura
me cerca. Mais um e outros vários o seguem. São escuros, parecendo mantos mais
negros que a própria Noite.

Estou cercada. Hat solta pequenas faíscas e a Luz da Jóia começa a ser ofuscada.
Um dos iadbos me puxa pelas pernas e caio. Aponto-lhe a pedra, mas sem muita

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utilidade, pois ela precisa estar no Altar ou em um Cetro para emitir sua Luz.

Vou sendo sufocada pelas Sombras que me cobrem. Vejo a energia prateada
saindo de meu corpo, sendo engolida pelo iadbo.

Não sei se quero ser um djin. E também não sei se quero ter minha essência
totalmente absorvida pela Escuridão.

Mas algo surpreendente acontece. O iadbo que sugou minha essência solta um
chiado ainda mais terrível que os anteriores. As outras criaturas se afastam dele,
quando feixes de Luz saem de sua boca, irrompendo numa claridade prateada, cada
vez mais forte.

Olho para minhas mãos e corpo. Estou irradiando.

- Sou Luz!?

As Sombras fogem de mim, chiando, gritando. Meu brilho estilhaça a escuridão.


Reabsorvo minha essência e corro abrindo caminho na Noite; os iadbos se afastam
e não ousam se aproximar.

Quando finalmente chego a meu husze e fecho a porta atrás de mim, meu pai e
mãe olham atônitos. Minha Luz invade o pequeno brilho da morada.

Ofuscados, meus pais caem de joelhos:

- Kir! – diz papai com a voz trêmula – Você é a Grande Jóia da profecia.

Depois disto, ele me contaria sobre como lhes fui entregue pelos Gons*, a fim de
cuidassem de mim até revelar minha Luz.

Agora, uma única parte da Profecia me inundava a mente e eu me perguntava


se estaria pronta para entregar minha Essência Vital para libertar nosso mundo das
Sombras. Isto, só o futuro poderá dizer.

Glossário
*Marquiteto = mago arquiteto e necromancer
*Huszes = casas
*Missur = forma de tratamento para os marquitetos
*Julufan = espécie que lembra um elefante ou mastodonte
*Iadbo = Criatura de sombra.
*Gons = Antigos seres da Luz

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foto: http://www.flickr.com/photos/beija-flor/47276855/sizes/o/
HERANÇA MALDITA
Contos Giselle Natsu Sato

Dona Amélia estava nas últimas. cozinha.


Suspirava e torcia o rosário nas mãos
ossudas e deformadas. A cozinheira mexia a canja no
caldeirão:-Dona Isaurinha, sua madrinha
Há oito semanas repousava na cama de hoje não passa, está por um fio, melhor
cheirando a lavanda. As empregadas chamar o padre.
lavavam várias mudas de roupa por dia,
lençóis brancos, camisolas de cambraia - Tanto sofrimento, coitada da dinda,
de linho bordada em ponto cruz, enxoval tão boa e caridosa, mal cheguei ela caiu
vindo de Lisboa nos tempos áureos da doente.
fazenda Oliveira.
-Uma pena a senhora ter vindo de tão
A pretinha espiava da porta, queria longe, mal colocou os pés na fazenda e
ser a primeira a dar a notícia. A velha não sinhá ficou deste jeito.
morria e a menina voltava triste para a

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- Ela mandou me buscar só para me -E ela vai ficar boa?


dar esta herança. Vês este anel? É uma
jóia de família, minha boa madrinha quis -Vai sim senhora.
me entregar em vida, estava tão feliz e
-Estás a brincar ? Não vês que estou
animada.
desesperada? Ai que má idéia. Mando te
- Já te disse para ir procurar o velho surrar até arrancar teu couro.
Bento, ele cura toda gente, quem sabe
-Bem vejo que puxou sua madrinha.
cura sua madrinha?
-És muito atrevido velho vou me
-Não gosto destas mandingas, sou
queixar da tua audácia.
muito católica, prefiro meus jejuns e
novenas. -Não carece, vou ensinar o que a
senhora precisa. Mas vai depender da
-Então não venha se queixar que não
sinhazinha ter coragem de fazer o que
fez tudo que podia para salvar a pobre
deve ser feito.
sinhá.
- E o que é? Diga que eu faço, anda
logo que não tenho o dia inteiro.
Isaura queria ter coragem para ajudar
O velho Bento ensinou um feitiço muito
a pobre moribunda. Sentia-se culpada
simples. Colocar uma raiz forte em uma
por não fazer esta última tentativa.
gamela virgem, cobrir com leite quente
Angustiada, decidiu ia ver o tal e um pouco do sangue da donzela e a
preto velho que sabia todo tipo reza e doente será curada:
garrafada.
-Que beleza de anel a senhorinha está
Andou ligeiro no passinho apertado, usando!
meio corrido, o sol a pino queimando
- Esta jóia? Tire este olho grande que
sem dó. Na pressa havia esquecido a
vale uma fortuna.
sombrinha.
-Estou só admirando a beleza da pedra,
Bateu palmas na frente do barraco e
muito bonita, vá depressa sinhorinha.
ouviu a voz do velho mandando entrar:
- Entre Dona Isaurinha, estava a sua A mocinha nem se deu ao trabalho
espera. de agradecer o velho. Não notou que ele
tinha uma expressão maliciosa e os olhos
Isaura sentia-se enojada .Um cômodo
brilhantes.
acanhado e humilde, o chão de terra
batida limpo e o velho muito idoso sentado Voltou para a casa grande gritando
em um banco baixo. com a cozinheira e providenciando todo
o material.
A imagem de São Benedito e Santo
Antônio na mesa tosca cercada de velas Sabia que quando a velha senhora
conferiam um aspecto mais fúnebre ao ficasse sabendo quem a havia curado
lugar: - Vim saber se o senhor pode ajudar cairia de amores pela afilhada e a cobriria
a madrinha que está nas últimas de ouro e prendas.
-Posso sim senhora... Meia noite em ponto foi para o quarto
da madrinha.

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A raiz de gengibre tinha as formas -Com esta são quatro inocentes,


quase humanas, exatamente como havia dizem que ela tem mais de cem anos.
sido instruído pelo velho.
-Quatro vezes ela barganhou com
No último momento obrigou a a morte. Pensar que até as filhas ela
cozinheira a servir de companhia:- Dona enterrou para ficar aqui tomando conta
Isaurinha, a senhorinha tem certeza? destas terras. Cruz credo.
Não se deve mexer com estas coisas, eu
tenho medo... A casa grande já estava toda iluminada,
as mulheres afobadas tratando da
-Larga de ser besta que é para a arrumação do velório no salão principal.
saúde da madrinha. Vamos começar
rápido, abra a janela para a lua clarear Dona Amélia escolheu o melhor vestido
bem o quarto. para a afilhada. Tirou o anel da mocinha
e colocou no próprio dedo, admirando o
A moribunda gemia baixinho Isaura enorme rubi vermelho sangue.
ajoelhada ao lado da cama, fez um
talho fundo na palma da mão esquerda Tocou com doçura o rosto da morta.
deixando o sangue escorrer na cabaça. Isaura aos trinta e cinco anos, virgem e
pobre não tinha família para reclamar a
Sentiu uma dor aguda no peito e ausência.
imaginou que fosse nervoso. Na alcova
a velha se mexeu e resmungou o nome Ajeitou os cabelos e pensou nos cinco
da afilhada. Foi a última coisa que Isaura anos que ainda tinha pela frente.
ouviu antes de cair morta aos pés da
O dia estava clareando quando o
madrinha.
padre chegou do vilarejo acompanhado
Dona Amélia deu um longo suspiro e por várias famílias para rezar as novenas
ajeitou o corpo cansado. e velar a defunta.

A cozinheira correu para amparar a Mais uma desgraça na Fazenda


patroa:- Esta deu trabalho sinhá, custou Oliveira.
convencer a danada a procurar o velho
No povoado diziam que era uma
Bento
Maldição de Sinhá Amélia.
- Deixe a defunta aí e vá enterrar o
Ainda que não acreditasse em tais
feitiço antes que o leite esfrie, você já
boatos,o bom cristão benzeu-se e rezou
sabe o que fazer.
uma Salve Rainha antes de apear da
carroça.

A cozinheira correu para o antigo Isaurinha parecia uma noiva, toda de


cemitério de escravos. No canto afastado branco, um buquê de rosas brancas entre
o preto velho havia cavado um buraco as mãos entrelaçadas.
fundo e esperava a gamela:- Desta
A madrinha em luto pesado ocultava
vez quase não deu tempo. Tive dó da
com o véu o frescor e as faces coradas.
menina.
Completamente refeita e bem
-Enquanto a malvada tiver parenta
disposta.
para vir fazer troca ela não morre tão
cedo.

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foto: http://www.flickr.com/photos/snarl/42744921/
TERRA ESTRANHA
Contos
José Espírito Santo
“Se não te vi e não reparei, foi apenas por
não permaneceres comigo o tempo suficiente.”

I corpos, colocando-se as mentes em


A nave prosseguia veloz, rodopiando sintonia. Um único objectivo, que era
sobre o eixo, cortando espaços, claro: efectuar as derradeiras verificações
preenchendo com o corpo metálico em de modo a prevenir falhas. A incumbência
forma de disco um trajecto previamente do pequeno grupo era vital, da maior
programado. Na altura certa, sem mais importância para a comunidade.
nem menos um milésimo de tempo, “Ide em paz, que o Deus Bola vos
chegaria ao solo e estabeleceriam proteja” Disse a voz do velho, erguendo
contacto com toda a suavidade que a bem alto o apêndice - espécie de mão -
(alta) tecnologia tornava possível. direito.
Chegaram sem grande surpresa. A O tempo observou-os com dolência
convocatória chamou toda a equipa para enquanto seis corpos verdes saíam,
a reunião na sala oval. Dispensados protegidos por fatos especiais, iniciando
grandes formalismos, reuniram-se os incursão num meio desconhecido e
escolhidos e, em silêncio, juntaram-se potencialmente adverso. A equipa, sendo

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pequena mas bem qualificada, possuía Arriscaram arriscar para, ao subir,


tudo o que era necessário: Dois soldados, deparar com um cenário ainda mais
quatro chefes, um navegador, um médico, estranho: a superfície lisa e transparente.
um cientista e um linguista. Ao fundo, muito ao fundo, imagens
enormes alternavam e espalhavam
O silêncio era interrompido apenas
recortes de cor. Lentamente, muito
pelo diálogo mental contínuo, interior
lentamente - permanecendo cada por
e omnipresente “Que iriam encontrar?
umas boas cem unidades de tempo.
Seriam os indígenas hostis ou amigáveis?
Poderiam fixar ali nova colónia?”. De II
repente vieram à memória do primeiro
Tinham passado três gerações
chefe algumas experiências passadas,
naquela terra que era estranha, sem
falhanços passados. Destes, o pior fora
dúvida, mas farta e generosa, por certo. O
o desembarque na segunda lua de Tritan.
novo lar fornecia sem qualquer renitência
Se nada permitiria prever os problemas
ou hesitação o ar, a água e os alimentos.
também é certo que não tinham tomado
Sem encontrar quaisquer outros viventes
todas as precauções. Resultado: um
e não conhecendo diferente vida animal
terço dos efectivos mortos, milhares com
(hostil ou amigável), a fixação da colónia
invalidez permanente. Após o descalabro
fora fácil e bem sucedida.
das batalhas tiveram de assumir a derrota
e bater rapidamente em retirada. III
Decorridas quinze mil unidades de Inês tinha chegado da escola, estava
tempo, após muito calcorrear chão igual, ainda de uniforme e com a sacola no
sempre branco e duro e liso, encontraram ombro. Afundou-se na superfície do sofá
o primeiro obstáculo. Era um objecto de pele e estendeu as pernas. Á sua
grande e alto, de cor castanha e com um frente, a mesa de centro e a televisão. Na
formato rectangular. “Um momento. Como mão, o comando comprido e negro, cheio
deparamos com um artefacto alienígena de botões pequenos. Sobre os azulejos
e potencialmente perigoso, vamos parar brancos, no lugar onde deveria estar o
e conferenciar. Comunicarei com a base tapete de arraiolos, arfando, o monte de
e então decidirei o que fazer em seguida” pelo - pequeno Yorkshire. Premiu. “Você e
Disse o primeiro chefe ao segundo, o qual Hiper-Centro, uma vida bem por dentro”.
disse “Alto. Devido a um perigo potencial, Premiu. “Agora, com Viagens-Fernandes,
vamos parar aqui” ao terceiro, que por tudo o que sempre sonhou”. Premiu.
sua vez disse “Atenção. Ninguém avance, Jardim dos amigos. Premiu. Genérico de
pois parece haver perigo eminente” ao série. Deixou ali, no canal com a série
quarto, o qual se limitou a dizer “Atenção sobre o pobre diabo Paraguaio.
soldados. Vamos parar um pouco. Depois,
Deu um salto ao ouvir o barulho da
quando retomarmos a marcha, serão
chave na fechadura, sinal de pai que
pedidos dois voluntários.”
entraria, voltando do trabalho. Derrubou
Era necessário tomar uma decisão. a garrafa de Coca-cola, inundando em
As escolhas não eram muitas. Poderiam fracções de segundo o pequeno cinzeiro
ignorar a coisa, limitando-se a contornar de vidro e destruindo toda uma civilização
o enorme artefacto ou, em alternativa, que nunca teria a oportunidade de
optar por escalar, subir ao cimo e obter conhecer. Desde o momento inicial da
mais informações. Como quase sempre descida tinham passado exactamente
acontece, o dilema que se colocava era três minutos e vinte segundos.
entre arriscar ou ficar…

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SAMIZDAT 5 - junho 2008

A CAMINHADA

foto: http://www.flickr.com/photos/binux/532976077/sizes/o/
Contos
Pedro Faria

A Avenida se estendia à minha frente. Continuei olhando. Queria ir embora,


Eu não tinha opção a não ser caminhar. continuar andando e acabar logo com
aquilo. Mas não podia.
Comecei a andar, e logo na esquina à
minha esquerda, vi um garoto. Deveria ter As formigas continuaram escalando o
uns dez anos. Estava sentado no chão, braço do garoto. “Não são bonitas?”, ele
encostado num poste, e observava duas continuava repetindo enquanto seu corpo
formigas caminhando por seu braço. era invadido por milhares de formigas, até
que ele se tornou apenas uma silhueta
- Não são bonitas? -, ele perguntou. negra, e sua voz ficou abafada pelos
insetos.
Eu não disse nada. Não podia dizer
nada. Apenas o olhei, melancólico. Passaram alguns segundos, e o
corpo dele explodiu, as formigas haviam
entrado por seus orifícios e o entupido.
- Não são bonitas? -, perguntou ele
Os insetos se dispersaram rapidamente,
de novo. Mais formigas subiram em seu
e apenas uma mancha vermelha ficou
braço.
na calçada próxima do poste. Continuei

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caminhando. certo momento, sua cabeça foi lançada


repetidamente contra a vitrine, até que
Andei, e logo vi a mulher. Ela estava seu pescoço quebrou. Eu vi então, num
nua, acorrentada a um carro. Estava relance, alguns dos homens invisíveis,
encolhida, e gesticulava como se alguém mas não reconheci nenhum deles. Não
a ferisse. me importei muito com essa cena.

- Não, por favor, pare. Eu não agüento Finalmente avistei o cruzamento, e fui
mais. em direção à ele.

Suas costas estavam marcadas por Na esquina eu vi a mim mesmo,


arranhões. Cada vez que ela gritava de sentado encostado em um poste, com
dor, novos ferimentos apareciam. uma seringa enfiada no braço.

Ela me viu. Não pude dizer nada. A seringa estava


cheia de insetos.
- Por favor, senhor, faça-o parar, por
favor. - É assim que você acaba. É assim que
você acaba. É assim que você acaba.
Balancei a cabeça.
Tentei tapar os ouvidos, mas não pude.
Vi o meu fim e então lembrei de minha
- Pelo amor de Deus! -, ela gritou.
vida. Lembrei de meu irmão, morto ao
cair em um poço ao seguir uma trilha de
Então o golpe final veio, e seu crânio formigas. Lembrei de minha mãe, morta
abriu-se em dois. Seus olhos estavam por meu pai bêbado. Lembrei de meu pai
fixos em mim quando aconteceu. Queria também, morto numa briga na prisão.
desviar o olhar, mas novamente não
pude.
Principalmente, lembrei de mim, de
minha última dose, que me trouxe para
Apenas continuei andando. cá.

Não queria mais andar, queria parar, - É assim que você acaba.
sentar no chão e ficar ali mesmo. Mas não
podia, tinha que acabar aquela Avenida e
Sim, é assim que eu acabei.
chegar à próxima.

Passei pelo meu corpo, a agulha ainda


Andei até chegar à uma vitrine, do
enfiada no braço, e virei à esquerda,
meu lado direito. Nela, estavam pintadas
sabendo o que me esperava.
barras negras. Lá dentro, um homem
estava sendo espancado por homens
invisíveis, como a mulher acorrentada. A Avenida se estendia à minha frente.
Eu não tinha opção a não ser caminhar.
O homem não dizia nada, apenas
aceitava a surra. Cortes apareciam em
seu rosto, assim como hematomas. Num

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SAMIZDAT 5 - junho 2008

ENTREVISTA
COM

O COVEIRO
foto: http://www.flickr.com/photos/seriykotik/121265292/

Contos
Alian Moroz

Entrei silenciosamente pelo portão Vi uma aglomeração logo abaixo na


principal do cemitério da Água Verde sem quadra 45 e percebi que estavam retirando
ser notado por ninguém; vivo ou morto! um caixão de seu “lugar”. Aproximei-me.
Estava ali para fazer mais uma reportagem
para o jornal do bairro. Durante esse Sombra: Bom dia!
tempo, eu usei o codinome Sombra.
Dava um charme, sei lá. Bem, ao entrar,
Coveiro: Bom dia!
percebi várias flores e vasos espalhados
pelos túmulos e capelas de famílias
abastadas; visto ser o tal cemitério lugar Sombra: O que estão fazendo?
para mortos ilustres da cidade de Curitiba.
As flores eram agonizantes em sua morte Coveiro: Exumação!
prematura, pois foram cultivadas para
esse tento.

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Olhei para dentro da cova, foi quando mesmo...


recebi um ar quente com um cheiro ao
qual jamais pude presenciar. Notei o Sombra: Ok Obrigado então pela
esquife praticamente podre e dentro do conversa... Qual sua graça?
que restava dele jazia um corpo vestido
com o que parecia um terno. Os olhos do
Coveiro: Como?
morto estavam arregalados e carcomidos
por baratas saindo às pressas ante à luz
que penetrava na tumba. Sombra : Seu nome!

Sombra :É comum isso? Coveiro: Natal...

Coveiro: Nada. Mas pra mim é bom... Sombra: (risos) Natal? Bem apropriado
Tem uns trocados a mais. não?

Sombra : O senhor não fica Temam pobres mortais, pois “Natal”


impressionado? está chegando...

Coveiro: Impressionado como? Ah


com medo? Não (risos) já cansei de
trabalhar à noite, sozinho.

Sombra: O Senhor não tem receio dos


fantasmas (risos)?

Coveiro: ( risos) que nada... Tudo


besteira do povo; é o melhor lugar
para se trabalhar..calmo e tranqüilo
(pleonasmo?).

Sombra: Mas já aconteceu de o senhor


se assustar?

Coveiro: (risos novamente) Ah, teve


uma vez que um cachorro vira-latas
entrou aqui e de noite ele pulou de cima
de uma das capelas... Ele era branco...
(risos) fiquei esperto “né”!

Sombra: Ok...posso levar alguns


desses vasos de plástico aí? Minha
esposa está com mania de plantação
agora...

Coveiro: Ah pode levar sim... tem


problema não...vai tudo para o lixo foto: http://www.flickr.com/photos/stuart100/449951330/

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SAMIZDAT 5 - junho 2008

TRADUÇÃO

UNICÓRNIO PERD
Slavko
Slavko Zupcic
Zupcic
Trad.:
Trad.: Henry
Henry Alfred
Alfred Bugalho
Bugalho

Para Ana Bella Guillén incomparável fabricante de violinos, n.


em Cremona (1644?—1737)”.
Nunca pude observar como havia
chegado seu estojo envolto em papel Dois ou três anos mais tarde,
de presente ou num pano de fina seda. começaram os estudos de violino no
Certamente, sempre esteve ali, sua caixa Conservatório. Recebia aulas dum ancião
negra revestida internamente de seda polaco de sobrenome Sienkewicks com
vermelha, perto da biblioteca de casa, na outro violino, bonito também, mas nunca
mesa posta ali apenas para sustentá-lo. como o magnífico Stradivarius de casa.
Algo natural e certo como as poltronas da Era uma pena não poder levar nosso
sala de estar, ou como o retábulo russo tesouro ao Conservatório e ter de fazer
foto: http://www.flickr.com/photos/mazintosh/2104768410/sizes/o/

da Virgem no quarto de minha irmã, mas os exercícios de precisão com o pequeno


maravilhoso e imponente ao mesmo Guarneri de minha tia. De qualquer modo,
tempo. o professor Sienkewicks pôde conhecê-lo
assim que concluídas as aulas do curso
Deve ter sido depois, após três ou primeiro.
quatro ano de estadia vigiada por mim na
biblioteca de casa, que me foi concedido Ainda me lembro seus braços
o privilégio de desvelar o conteúdo do erguendo-o, segurando-o. Sua barbicha
misterioso estojo e segurar em minhas afixada na madeira de cedro. E me lembro
mãos o violino Antonius Stradivarius, de sua voz.
Cremona, feccit anno 1731. Se alguma
vez havia sido apenas um móvel de — É tão suave. Não faz falta uma
respeito, dez vezes maior do que um livro, espaleira para tocá-lo.
mas muito menor que um piano, agora
de tratava dum Stradivarius guardado
Entretanto, suas mãos acariciavam as
religiosamente no estojo de couro
cordas lentamente, um pouco antes de
negro que eu limpava todas as tardes
procurar o arco na parte superior do estojo
com pano azeitado, não importando
e começar a tocar, repentinamente, os
que eu não soubesse, na verdade, o
mais belos compassos de Mendelssohn
significado de seu nome. Logo, uma
de seu Concerto em Mi menor.
enciclopédia esclareceria tudo para mim
repentinamente: “Antonius Stradivarius,

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DIDO EM JANEIRO
Sua visita marcou o início de minhas Para mim, bastava tocar duas ou
apresentações. Cada vez que, depois três peças e pronunciar logo algumas
desta noite, chegava alguma visita em palavras.
casa, minha irmã me convidava a tocar
violino no meio da sala. Eu caminhava — Antonius Stradivarius nasceu em
lentamente pelo corredor rumo à biblioteca, Cremona...
abria a porta do cômodo, acendia a luz
sempre à esquerda, alcançava a mesa
Foi num momento como este, cinco
de mogno e me detinha por cinco ou
anos depois da primeira apresentação, que
dez segundos contemplando o estojo.
um dos visitantes, por acaso engenheiro
Retirava cuidadosamente o pano que
musical, levantou-se de seu assento e se
o cobria, dobrava-o com calma, abria a
atreveu a tocar com suas mãos o violino,
fechadura com a chave que me havia sido
antes de pronunciar a terrível sentença.
entregue previamente e alçava o violino.
Uma voz soava no cômodo ao lado, eu
saía cerimoniosamente da sala e a visita — Não é um Stradivarius. É uma
respondia, surpreendida: imitação.

— Um Stradivarius, um Stradivarius. Isto antes de explicar que a madeira


do tampo não era de faia, nem de bordo,
e outras coisas que preferi me esquecer,
Era como se nenhuma outra coisa no
simplesmente porque a partir deste
mundo importasse além do maravilhoso
dia, apesar de o violino, seu estojo e a
troço de madeira que minhas mãos
delicada chave dourada me terem sido
carregavam.
entregues definitivamente, nunca voltei
a ser chamado para tocá-lo na sala, nas
Logo se aproximavam lentamente, horas de visita.
sem se atreverem a tocá-lo.
Fonte: Ficción Breve Venezolana

Sobre o Autor
Slavko Zupcic (Valencia, 1970) é um psiquiatra e escritor venezuelano. Praticou
vários gêneros literários. Entre suas obras, destacam-se a dramática evocação da
figura paterna em Dragi Sol, o tom escatológico da noveleta Barbie e as peripécias
duma peculiar detetive em Giuliana Labolita: El caso de Pepe Toledo. Seus contos
constam em diversas antologias de contos venezuelanos e latino-americanos.
Fonte: Wikipédia

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SAMIZDAT 5 - junho 2008

TRADUÇÃO

PECADO
PECADO

foto: http://www.flickr.com/photos/8415264@N03/1460911385/
E
E
TENTAÇÃO
TENTAÇÃO
Florencia
Florencia Abbate
Abbate
Trad.:
Trad.: Henry
Henry Alfred
Alfred Bugalho
Bugalho

Quando tocar-se está proibido


A vulnerabilidade da pele gerou, ao
longo da história, um volumoso caudal
de conselhos para se evitar problemas.
Assim, por exemplo, o bispo Francisco
de Sales – tencionando resguardar os
divinos preceitos do dogma de excessos
epidérmicos - sustentou que os corpos
humanos se parecem com cristais: “Não
podem ser transportados juntos porque,
ao se tocarem um com o outro, correm
o perigo de se quebrarem". Durante a
Antigüidade, Aristóteles havia se ocupado
de recomendar temperança e respeito:
“O exato ponto médio em relação a
todos os prazeres do corpo". No entanto,
esclarecia que, dos cinco sentidos, o

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único realmente preocupante é o tato. outra parte fora – lhes responde que não,
Não acreditou exagerado afirmar que a não ser que incorra no erro de falar com
o homem se rebaixa a animal se se um vizinho.
abandona sem reflexão aos gozos da
pele. O cauteloso Sócrates falava do Afastadas da agitação urbana,
risco de se fazer acompanhar por um belo cercadas por véus e vestidos ásperos,
jovem, “aranha venenosa, cujos beijos as esposas de Cristo eram condenadas a
reduzem a escravo quem os recebe”; aplacar a sensibilidade da pele como se
o poder da pele é tal, ele acreditava, se tratasse dum estigma. Em 1670, havia
que pode chegar a nos transformar em 87 monjas gerônimas com um exército de
seres “sem vontade, nem senso crítico". mais de 200 serviçais e escravas. Não por
Piscadelas sobre a bochecha, um roçar acaso, as lacaias, índias ou mulatas, se
de lábios gelados, mordiscadas ou a chamavam “mães de amor”. Entre outras
inquietante sutileza de dois esquimós coisas, essas mulheres – que entravam
que friccionam, rapidamente, os narizes; e saiam do convento e para quem pele
como controlar todos estes atos, gestos, com pele não era acompanhada por
contatos que integram o infindo catálogo remorsos lutuosos – costumavam ser
de experiências táteis? Opulento as encarregadas de dar banho nas
cenário, a pele se apresenta como uma irmãs. Suavemente, elas as introduziam
incontestável evidência da força e da na mornidão da água perfumada com
fragilidade de milhões de corpos lançados ervas e ensaboavam seus corpos, não
ao caos: Chocar-se, afetar-se... sem se deterem a acariciar com pérfida
ternura zonas muito suscetíveis. Durante
estes banhos, as monjas deixavam de
ser monjas e se metamorfoseavam em
damas de belos seios, desejáveis coxas
Marcas sagradas e guaridas cheias de surpresas. Fontes
da época relatam que, numa ocasião, a
Agora, imaginemos um lugar madre superiora, para fechar o rito com
rigorosamente projetado para que a pele chave de ouro, ousou solicitar a uma
não experimente intensidade alguma. criada que a golpeasse até que um líquido
Estamos no século XVII, e o convento opaco escorresse por entre suas pernas.
de São Gerônimo ocupa uma mansão
inteira. Trata-se duma imponente fortaleza De todo modo, o caso de maior
murada, no meio da cidade. Fora, respira- repercussão não foi este, e sim o da irmã
se o ar; dentro, estrita clausura. Nenhum Tomasina, que, desde menina, havia
homem tem acesso ao interior — nem sofrido todo tipo de padecimentos devido
bispos, nem jardineiros, nem nobres, a sua incrível beleza. Sua mãe sentiu
nem inquisidores. O acesso havia sido inveja ao descobrir, precocemente, os
vedado até aos costureiros das monjas, sedutores dotes de sua filha e optou por
que se vêem obrigados a lhes tomar as encerrá-la num obscuro monastério. Ela
medidas para os hábitos olhando-as conseguiu fugir e se casou com um senhor
desde a portaria. O sacerdote lhes dá a cuja riqueza merecia ser equiparada, em
comunhão através duma pequena janela, magnitude, a seu ciúmes: ao morrer,
donde só aparecem suas bocas abertas. dom Franciso Pimentel deixou à viúva
Quando uma delas pergunta se é pecado uma grande herança, mas estipulou que
subir ao telhado e vislumbrar a rua – ela só poderia recebê-la com a condição
deixando assim parte do corpo dentro e de se tornar monja. Quando a abastada

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SAMIZDAT 5 - junho 2008

Tomasina chegou ao convento, soube


que, desde algum tempo, as esposas
de Cristo se diziam consternadas com a
visita do fantasma dum clérigo ao lugar:
Parece que ele surgia diante das mais
bonitas e lhes pedia que orassem para
que ele pudesse escapar do purgatório.
Certa noite, Tomasina dormia em sua
cela e, subitamente, o cavaleiro espectral
se materializou diante de seus olhos.
Sussurrou-lhe ao ouvido seu pedido e,
por ela ter se recusado, impelido pelo
desespero, ele a tomou bruscamente nos
braços. Tomasina lançou um agudo grito
de dor e êxtase, uma obscura e imediata
resposta de exasperada violência, o som
duma ensurdecedora defloração erótica,
ou da queda num profundo abismo
místico.

Ocupemo-nos, por um momento, em


apresentar o que as demais monjas, Êxtase de Santa Theresa
que vieram apressadas e, sem dúvida,
aterrorizadas, descobriram ao ver a até
então imaculada pele do braço de sua Mesmo que concordemos que isto não foi
companheira: a impressão dos dedos um milagre, e sim o resultado duma vívida
do clérigo havia ficado marcada a fogo fantasia onírica, podemos comprender
em sua epiderme. E por esta inapelável que, impactada, ela não tenha desejado
prova de gozo absoluto e abjeto, contar o segredo em confessionário
Tomasina considerou que devia pagar algum. Há um ponto no orgasmo que
com sofrimento: seus autoflagelos foram seguramente pertence à dor e à morte
desde deitar-se vestida sobre tábuas até que engendra a vida. Quem tem o contato
cobrir seu corpo com cilício, ou pôr nos proibido adentra o prazer por caminhos
sapatos pedras e cravos. alternativos. E isto porque o desejo da
pele, impetuoso, astuto, sábio, aprende,
Como desconheciam a sensação se preciso for, a escrever certo por linhas
duma pele masculina fundida na própria, tortas.
suas companheiras nunca conseguiram
explicar o porquê de, a partir daquele dia, Publicado originalmente em Latido
o braço de Tomasina ficou paralisado.

Sobre a autora

Florencia Abbate nasceu em Buenos Aires em 1976. Licenciada em Letras


pela Universidad de Buenos Aires - UBA, periodista cultural e autora dos romances
"El Grito" e "Magic Resort".

Fonte: Wikipédia

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Autor Convidado

TRÊS INCISÕES NO MEU DIA


foto: http://farm1.static.flickr.com/116/267005070_b4931892ab_o.jpg

Erik Kurkowski Weber


Ele veio até mim, e disse: "Amigo, você não tem cabelos"; eu
respondi, "Como você sabe, você é cego". E ele, colocando a mão
na minha cabeça, "Sim, mas eu estou com a mão na sua cabeça". E
eu, "Isso não é uma mão de verdade, é uma prótese". Ele foi embora
resmungando, "Perdão, perdão, eu só quis iniciar uma conversa".

***
Eu disse à ela, "Se você fosse noventa anos mais nova, não precisasse de um
enfermeiro carregando um tanque de oxigênio ao seu lado, não andasse nessa
cadeira de rodas motorizada, acho que teríamos sido um bom casal". E também,
"Ah, e claro, se sua irmã siamesa não fosse canibal. Claro". Ela riu enquanto a
irmã mordiscava uma de suas orelhas.
***
Peguei o controle remoto e mudei de canal, erroneamente: nada aconteceu. Verifiquei as
pilhas, mas elas estavam funcionando. Apertei os botões mais algumas vezes e nada. Fui
até meu carro e peguei outro controle e tentei abrir a porta da garagem, mas ela também não
abriu. Entrei em depressão e fui até meu quarto. Duas horas depois ouvi a notícia, que um
ônibus espacial da NASA estava sendo afetado por ondas de rádios vindas de meu bairro.
Ri muito, até saber que a trajetória tinha sido deslocada e que a espaçonave agora se dirigia
ao sol.

Peguei os dois controles, na esperança de reverter isso. Apertei os botões e nada. Entrei
em depressão e fui dormir. Na manhã seguinte ouvi no rádio a notícia que duas bombas
nucleares haviam devastado um país de terceiro mundo.

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Teoria Literária

LITERATURA:
ARTE OU COMÉRCIO?
Henry Alfred Bugalho
foto: http://litminds.org/8_bookstore.jpg

Esta questão, nem de longe incomum nos meios literários, é por si só enganosa, uma
pergunta viciada, isto por duas razões principais: a) não devemos, necessariamente,
considerar Arte e Comércio como pólos excludentes; b) não possuímos definições
apodícticas sobre o que é Arte, por isto, é complicado saber se determinada produção
é ou não Arte se nem ao menos sabemos o que isto significa.

Fomos condicionados a dividirmos e organizarmos o mundo em categorias e


sob determinados rótulos. Como se fosse simples realizar esta tarefa, como se não
existissem, geralmente, limites não muito definidos, zonas acinzentadas entre o preto
e o branco, territórios difusos.

A pergunta proposta exemplifica a complicação que é patinar entre dois conceitos


que, por vezes, se mesclam.

O que é Arte?
O que entendemos por Arte já passou por tantas transformações e renovações
— conjunto de técnicas, entre os gregos; o que expressa o Belo, para Hegel; um
juízo sem conceito, para Kant; o que causa determinadas sensações estéticas nos
receptores, e assim por diante — que mal teríamos condições para definir quais delas
melhor se aplica ao objeto dito artístico. Podemos dizer que esta incapacidade é o
legado, e a maldição, das vanguardas modernistas do século XX. Ao tentar ampliar
os limites da Arte, os modernistas eliminaram qualquer possibilidade de se falar sobre
Arte.

Por isto, tentaram transferir do observado, i.e. obra de Arte, para o observador a
responsabilidade sobre a existência da Arte. Obviamente que isto cria uma série de
outros problemas, pois, supondo que jamais existe unanimidade de juízos estéticos,
uma obra seria Arte para uns, mas não para outros, ou seja, não resolvemos nada.

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O que é Comércio?

foto: http://www.flickr.com/photos/maddiedigital/523382758/sizes/o/
Enquanto precisamos recuar diante do conceito de Arte, ou fingirmos que o
entendemos sem a necessidade de explicações, definir comércio já é bem mais fácil
e inquestionável: o ato de troca de determinado produto, mercadoria, serviço ou valor
por outro produto, mercadoria, serviço ou valor, com a finalidade de obter lucro.

O comércio não surge com o


capitalismo, mas é radicalizado por ele
e pela sociedade industrial. Seria muita
ingenuidade nossa pressupor que todos
os artistas da Antigüidade criavam
altruisticamente, sem a necessidade
de sustentar suas famílias, seus lares,
pagar suas contas ou dívidas. Aliás,
esta é uma tendência generalizada,
de idealizar o artista como uma
criatura supraterrena, que não come
pão, não dorme, e que convive com
os demais seres humanos apenas
incidentalmente. Este mito foi criado, em parte, pelos próprios artistas, e perpetuado
como uma verdade.

O que ocorreu de fato foi apenas uma mudança na conjuntura história. Anteriormente,
o artista não precisava vender o resultado de seu trabalho, pelo menos não como
o artista de hoje, mas atuava como um vassalo da Igreja ou da aristocracia. Eram
remunerados e sustentados por seu senhor e, deste modo, terminavam por vender,
mesmo que dissimuladamente, seus serviços a certa classe social.

O Advento do Romance Moderno


No entanto, se acompanharmos o percurso
da Literatura Ocidental, constataremos que o
surgimento do romance (novel) na Inglaterra anda
de braços dados com a dominação mercantilista e
com o comércio. Por exemplo, Robinson Crusoé,
de Daniel Defoe: o protagonista é um rapaz que
abomina o simples pensamento de se tornar um
indivíduo de classe média, por isto, decide viajar
o mundo como mercador, acumular riquezas, e
voltar para sua terra numa nova posição social. O
naufrágio e os anos de isolamento numa ilha são
apenas um revés para o Robinson Crusoé. Ele é
resgatado, mas nem assim desiste de seu intento,
retorna ao mar para cumprir sua meta.

O romance é a própria expressão da nova

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SAMIZDAT 5 - junho 2008

relação entre o homem e o capital, a busca frenética pela aquisição de bens. E


Robinson Crusoé foi, por sua vez, um livro boas vendas em seu tempo.

Este novo tipo de romance, que se afastou dos princípios e da temática do romance
de cavalaria, era uma literatura voltada para a classe burguesa ascendente. É a este
leitor ávido por capital, mas também sequioso por adquirir bens culturais, de modo a
se assemelhar à decadente aristocracia, que obras como as de autores ingleses —
Defoe, Henry Fielding, Walter Scott, Dickens — , ou na França, de Alexandre Dumas,
Balzac, Flaubert, Vitor Hugo, se destinam.

Não nos iludamos, tais autores, não mais sob proteção dum senhor feudal, ou de
algum outro tipo de soberano aristocrata, tinham de ganhar seu sustento à base da
venda de seu trabalho, literário ou não. A proliferação dos folhetins foi a oportunidade,
para muitos, de adquirir fama e fortuna, ou seja, na gênese do romance moderno está
vinculada a capitalização e a compreensão do livro enquanto produto.

A Intersecção
Agora, suponhamos que entendamos o que seja Arte e tentemos relacioná-la com
o comércio.

Muitos escritores tendem a pensar estes dois conceitos em oposição, ou melhor


dizendo, qualitativamente.

O que vende é popular; o popular é simplório; portanto, o que vende é simplório.

Temos um juízo de valor que atribuir qualidade ao produto (cultural) destinado às


elites, aos poucos capazes de compreendê-lo. A questão nem chega a ser se um é
mercadoria e outro não; ambos, tanto a obra de arte do populacho, quando a da elite
são, sem dúvida, mercadorias, posto que são produzidas por instâncias que visam
lucro e que possuem um valor de mercado.

Para ser mais claro, o livro possui um preço e uma valoração qualitativa. O preço
é constante, mas a qualidade varia de acordo com os exemplares vendidos, quanto
maior a vendagem, mais simplória, mais adequada à mente do leitor do populacho é
a obra, isto se radicalizássemos esta perspectiva.

Mas logo surgem as inúmeras, incontáveis, exceções, de autores canônicos que,


mesmo após séculos, continuam vendendo bem — o Google realizou uma pesquisa
recentemente sobre quais eram as obras mais procuradas na internet, a listagem
obtida nem de longe coincidia com as listagens de best-sellers veiculadas pela mídia,
porém este resultado foi abafado pelas grandes editoras; outro caso é das editoras
especializadas em publicação de obras canônicas, como a Penguin Books, que em
suas estatísticas apresentam dados assombrosos de autores clássicos que possuem
vendagem constante na casa das centenas de milhares de exemplares, muito mais,

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às vezes, do que autores da moda —, ou de autores contemporâneos reconhecidos


pela crítica, como ganhadores de Nobel, ou outros prêmios importantes.

Quer dizer então que as obras de tais autores teriam seu valor qualitativo diminuído
por causa das estatísticas de vendas?

Talvez fosse muito mais fácil pensarmos numa dualidade, em dois conjuntos —
Literatura e Comércio.

No conjunto Literatura incluiríamos


tudo aquilo que pertence ao domínio
das Letras, obras canônicas e atuais,
boas ou ruins, ficção e não-ficção;
no conjunto Comércio teríamos tudo
aquilo que pode ser comercializado,
desde TVs, geladeiras, canetas e
passando por livros.

Nem tudo o que há no conjunto


Literatura é comercializável, nem
tudo que há no conjunto Comércio é
Literatura, porém há uma intersecção
nestes conjuntos, uma área onde encontramos obras literárias que possuem potencial
mercadológico — canônicas ou não, ficcionais ou não, bem escritas ou não.

Considerações Finais
Parece ser da natureza humana mistificar a realidade, querer pintá-la com cores
que não lhe dizem respeito. É esta a impressão que tenho quando se fala em Arte, na
sublimidade de Belo, na intocabilidade do artista.

Escrever é um ofício como outro qualquer e o escritor é um profissional como outro


qualquer. É óbvio que, como em toda atividade criativa, paira um aura de fascínio
sobre a gênese da criação, a inspiração inicial, mas, no fim das contas, o resultado
esta em igual relação com o resultado de várias outras ocupações.

Então, tentando responder à mal concebida pergunta inicial: “Literatura: Arte ou


Comércio?”

Os dois, ou nenhum, ou apenas um dos dois; no fundo, isto nem faz muita diferença
mesmo.

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SAMIZDAT 5 - junho 2008

Microcontos

Carlos Alberto Barros

O Saci
Um pesadelo terrível: sonhou que tinha duas pernas.

Reis Magos

Os quatro reis magos seguiam jornada pelo deserto


em busca do messias. Exaustos, próximos a morrerem
de sede, tiraram a sorte. Gaspar, Baltazar e Melquior
beberam, comeram e seguiram caminho. Para trás,
apenas os restos sem nome do primeiro mártir.

O Moribundo

Quando a morte recostou-se no leito, encontrou


o homem de braços abertos. A receptividade foi uma
surpresa, não esperava tamanha acolhida.

O moribundo não a queria, fingiu-se conformado.


Quando teve a oportunidade, apunhalou-a pelas
costas.

Dia seguinte, notícia aos parentes: saíra da UTI,


estava fora de perigo.

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Denis da Cruz
Viagem

Pedro nao gostava de viajar, pois achava que o banheiro de


sua casa ficava muito longe.

José Espírito Santo

Telegrama
Pequim, 2008. Equipa chinesa
campeã. Modalidade de tiro.
Impossível reutilizar alvos

,
femininos em muito mau estado.

, , ...
Pontuação
Entre as palavras de um texto corrido,
perfilavam-se vírgulas sós e nuas esperando
pelos derradeiros três pontos...

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SAMIZDAT 5 - junho 2008

Microcontos
Volmar Camargo Junior
HÁ VAGAS
Leu nos classificados “Precisa-se de homem disposto a matar um desafeto. Paga-
se bem. Ligar para.......”

— Agência de empregos, bom dia.

— Estou ligando pela vaga.

— Certo, senhor. Qual é o seu nome?

— Fulano da Silva.

— Temos um problema, senhor.

— Qual?

— A vaga é para matar o senhor.

SUBMISSÃO
— Depois de ti, quero tua mulher e tuas filhas. – disse, ofegante.

Henry Alfred Bugalho


Engano
Os bandidos ligavam desde o presídio.

- Estamos com sua mãe!

- Meus Deus! Vocês profanaram o túmulo


dela?

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Crônicas

FÁBULAS BRASILEIRAS
Carlos Alberto Barros

Quebra-barraco, Lacraia, Bola-de-


fogo, Tigrão, Moleque-piranha, Créu,
Mulher-melancia, Éguinha Pocotó...
O que seria isso? Elementos de uma
clássica fábula infantil? Personagens de
algum romance de realismo fantástico?
Seres mitológicos de uma civilização
perdida? Creio que a última opção
parece a mais próxima da verdade.

Todas essas alcunhas, por sinal, de


uma criatividade exuberante, são apenas
parte da cultura funk brasileira. Mas, que
dariam ótimos personagens, dariam!
Não se pode negar. Imagine:

Papai Bola-de-fogo sempre amou


Mamãe-melancia, desde quando ela era
só uma sementinha.

O amor do Papai Bola-de-fogo era


uma chama linda e eterna, Mamãe- O amor e a paz reinavam na bela
melancia era muito feliz ao seu lado. família.Viviam felizes e em harmonia, até
ninguém mais lembrar que existiam.
Dessa bela união, nasceram o
Moleque-piranha, que adorava brincar na Apesar da engenhosidade dessas
água da fonte e comer minhoquinhas, e a personagens, acredito que não chegarão ao
Menina Quebra-barraco, que era a mais imaginário popular tal como Chapeuzinho
bagunceira e deixava a casa de pernas Vermelho ou Os Três Porquinhos. Porém,
para o ar. não se pode ter certeza.

Lacraia, Tigrão e Éguinha Pocotó Pergunto-me: Quantas mais


eram os bichinhos de estimação. Sempre personagens fantásticas surgirão nas
muito alegres e saltitantes. fábulas brasileiras? Quais “estórias” esta
e as próximas gerações ouvirão?
O Bebê Créu foi encontrado perdido
na floresta. Ele era bem espertinho: para Penso nas respostas e chego a me
comer, velocidade cinco; no dever de arrepiar. Lembro do Lobo Mau... Que
casa, velocidade um. medo!

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SAMIZDAT 5 - junho 2008

PARADISE,
foto: http://brasil.indymedia.org/images/2007/06/385801.jpg

Crônicas
MY ASS! Henry Alfred Bugalho

O brasileiro parece possuir uma Recife, e em até cidades que já foram


atração mórbida pela violência, ou melhor, consideradas como exemplos — Curitiba
esta é uma peculiaridade do ser humano é uma delas —, a violência faz suas
— este fascínio pela desgraça —, mas vítimas.
em rodinhas de brasileiros isto se torna
ainda mais manifesto. É quase impossível Quem ainda não foi assaltado, ou foi
o assunto não surgir quando um ou mais pego em meio a tiroteios, ou conheceu
brasileiros se reúnem. alguém que foi baleado, ou vítima de
seqüestro-relâmpago, ou de qualquer
Não podemos negar que isto se deve outro tipo de ato criminoso, atire a primeira
ao estado calamitoso de segurança pedra.
pública do país. Qualquer pessoa que
habite grandes centros urbanos, seja São E isto se projeta na mídia, no cinema,
Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, na literatura, na música.

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A violência se tornou parte da vida Fiz uma busca na internet, e a minha


cotidiana do brasileiro, assim como o conclusão foi assustadora. Para não
desemprego, ou a dividazinha teimosa que ficar enchendo-o com índices de mortes
consome as economias no fim do mês, ou violentas e números de assassinatos,
como as epidemias de dengue no verão, basta saber que, ao compararmos a
ou a corrupção dos políticos. Talvez, para maior cidade dos EUA — Nova York —,
muitos, um Brasil sem violência é quase com a maior cidade brasileira — São
inconcebível, inimaginável. Paulo —, o número de assassinatos
chega a ser 20 vezes maior na “Terra
Por ser um brasileiro no exterior, da Garoa” do que na “Big Apple”, ou
comumente acabo me deparando com seja, estamos falando duma proporção
perguntas curiosas sobre o Brasil. Sem de oitocentos para dezesseis mil
dúvida, a grande imagem que estrangeiros assassinatos ao ano. Se extrapolarmos
possuem do país é a do carnaval, das estes índices nacionalmente, podemos,
praias, do futebol e da bossa-nova, com tranqüilidade, considerar o caso
esta última ignorada pela maioria dos brasileiro como de calamidade pública.
brasileiros, mas idolatrada pelos gringos.
Foram justamente estes dados que
Não há como escapar destas apresentei ao tal dramaturgo numa
perguntas, deste mito carnavalesco criado conversa posterior.
em torno do Brasil e, como brasileiro que
se preza, minha resposta acaba sendo: — Engraçado, uma amiga minha
ficou uma semana no Rio de Janeiro e
“É, o Brasil é bonito mesmo, mas me disse que não é nada disto! — foi a
muito violento”. resposta dele.

E esta é uma constatação assombrosa De fato, acho que ele tinha razão,
para os estrangeiros, pois violência para uma semana é bastante tempo para
eles é algo comparável à guerra de Iraque. se conhecer todas as mazelas e
Quando eles descobrem que, no Brasil, problemas dum país com vários milhões
morrem mais pessoas ao ano do que em de habitantes, com a maior extensão
guerras, ninguém acredita. Pensam que territorial da América Latina.
é alguma ojeriza pessoal minha, que eu é
que sou um indivíduo antipatriota. Se o meu interlocutor não fosse um
senhor de quase oitenta anos, acho que
Há algumas semanas, numa conversa eu incorporaria o bordão da juventude
com um dramaturgo americano, surgiu esta americana e encerraria o diálogo com:
discussão e ele retrucou, espantado:
— Paradise, my ass!
— Nossa, sempre imaginei que o
Brasil fosse um paraíso! Você não está Que, em bom e politicamente correto
exagerando? português, seria: “paraíso, uma ova!”

Isto me fez ponderar. Estaria eu Pelo menos, esta afirmação minha


exagerando? se fundaria numa experiência um pouco
mais longa de que uma semana...

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SAMIZDAT 5 - junho 2008

Poesia

PALAVRAS POÉTICAS
Carlos Alberto Barros

SONO
Vem, sono.
Vem
E tira-me deste pesadelo real,
foto: http://emma.museum/info/images/i0154.jpg

Faz-me desfalecer em teus braços,


Leva-me contigo para o teu mundo.
Vem
Com tuas vestes escuras, desnuda-me a visão,
Sacia-me a fome com teu surreal alimento.
Vem
Para anestesiar-me do cotidiano doído,
Para que eu diga que tive ao menos um sonho realizado.
Vem
E permita-me esquecer o frio.
Molha-me a mente daquilo que falta em meus lábios.
Vem, sono.
Vem dar-me tudo isso
E quantas mais inconstantes loucuras quiseres oferecer.

Só não te esqueças, ao final, de conceder-me o mais importante:

A tua ausência.

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Poesia
CORDEL PÓSTUMO DE UM BULINADOR
Carlos Alberto Barros
Em tua via, Que vadia!
Uma placa havia. Com a navalha fria,
Contramão, dizia, Que nem cirurgia,
E eu não quis parar. Um golpe foi dar.

Nesse dia, Valentia


Com pavor, fugia E muita ousadia!
Naquela bacia Como te atrevia
De tu te banhar. A vir me cortar?

Nostalgia Percebia
Era o que eu vivia. Que o sangue fluía,
Tua pele macia Meu membro pendia
Queria apalpar. E eu a gritar.

Heresia Já caía,
Pensei que tu via, E bem triste eu ria
Mas, já lá na pia Daquela ironia
Estava a chamar. Que fui me enfiar.

Todavia, Covardia!
Minha mente fazia Minha mãe já dizia:
Eu ter precavia “Filho, não confia...
E não descuidar. Tu vai te estrepar”.

Porcaria! Insistia
Como é que podia? E bem já sabia
De medo, em folia Que burro eu nascia,
Tu te transformar? Ia vacilar.

Só devia Parecia
De ser fantasia: Que era profecia.
Tudo que eu queria, Tudo acontecia,
Era só pegar. E eu a lembrar.

Na alegria, Fantasia,
De mansinho, eu ia, Que a vida fazia?
E tu só sorria, E a hemorragia
Já toda a pulsar. Sem nunca estancar?

Putaria Só sentia
Da boca saía. Que, aos poucos, morria.
Aquilo eu ouvia E ali eu jazia,
Sem nem me tocar. Sem mais bulinar.

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SAMIZDAT 5 - junho 2008

Poesia

LABORATÓRIO POÉTICO II
Volmar Camargo Junior

Preciosa prece
Se todo meu pesar pelo passado
Passasse para sempre para longe
Parasse para ser o que foi hoje
No ontem que ficou desmantelado.

Desvios no caminho são sinceros


Cincerros que secretam confidências.
Confesso que carregam minhas ânsias
Anseiam meus encargos mais secretos.

Seria mais um dia sem surpresas


Surpresos estariam os meus dias
Se fossem pois passados sem sossego.

Cansaço que se cesse esse serviço


Fracasso esse só me esvazia
O apreço dessa preciosa prece.

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foto: http://www.flickr.com/photos/elwanderer/762694617/sizes/l/
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Conseqüências
O homem, frustrado,
Bateu na mulher, nas crianças e no cachorro.
A mulher, revoltada,
Bateu nas crianças e no cachorro.
As crianças, impotentes,
Bateram no cachorro.

O carteiro, com a calça rasgada,


Teve de ser vacinado contra a raiva.

O ser
Ser não é mais o que era.
É parecer o que não será.
Ser é mais que ser.
Ser é mais que o ser.
É sempre um não a si,
E sempre um sim ao não.
É um eu que não sabe ser-se.

Tudo o que se pode ser,


Talvez, de uma só vez.
É o ser que é.

Esse eu não quero ser.


Quero, não sendo, ser.
Enternecer-me pelos seres.
Ser eu, não eles.

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SAMIZDAT 5 - junho 2008

Poesia

ANJOS

foto: http://anemailfromtheangels.com/Angels%20in%20America3.jpg
Marcia
Marcia Szajnbok
Szajnbok

Sussurra o anjo:
- Olha! Ouve!
E o olhar pousa obediente e a escuta de uma voz se faz...

A vida passa, estranha e imprevista


Destino e desejo se compõem
Tecem juntos ímpares figuras
Tingem os dias, fabricam o tempo...
O encontro mais improvável
Na mais banal das esquinas do espaço
O instante fortuito que produz revolução
E no mesmo gesto instaura a paz...

Sussurra o anjo:
- Ama!
E o coração bate tão forte que acorda o mundo...

A realidade é conforme os olhos


Corpo e alma, sensação e pensamento
Vagando, qual fantasmas, existentes e etéreos...
Um sorriso, um beijo, o gesto simples
Que faz receber a mão, outra mão...
Numa faísca se produz um ser:
O que era puro ideal, suposição
Faz-se matéria num segundo.

Sussurra o anjo:
- Vem comigo!
E o coração pára, o olhar se apaga, cessa todo o movimento...

No instante último há de aparecer o sentido


O divisor de águas entre o mero passar e o real existir...
Recebe a morte em paz
Aquele que soube viver e dar-se...
Desfaz-se o corpo, viaja a alma
Mantêm-se eternas as sementes
De amor salpicadas no infinito.

74
DA DA
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S
RE

T
TO
AU
IZ
S
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M
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B R E O S AU TO R E S D A
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SAMIZDAT
SOBRE OS AUT
ORES DA

SAMIZDAT
SOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDAT

SOBRE
OS AU
TORES
SAMIZ DA

DAT 75

foto: http://www.labnews.co.uk/cms_images/Image/March_2/318239_4385web.gif
SAMIZDAT 5 - junho 2008
Alian Moroz
Formado em Matemática pela
UFPR,lecionou durante 20 anos. Formado
ainda pela Faculdade de Belas Artes do Paraná
em Licenciatura em Desenho,trabalhou junto
a Estúdios de propaganda e no setor editorial.
Historiador e Filósofo amador, venceu em
2006 o Prèmio ‘Destaque cultural’ promovido
pela secretaria de Cultura de Curitiba com
o livro ‘ Desvendando a História e os mitos
Bíblicos’. Lançou em 2007 a primeira edição
de ‘ O Manuscrito XXXII’,seu primeiro romance , pela Editora
Corifeu. Poeta e
músico nas horas vagas, têm como principais influências,Um
berto Eco e Luis
Fernando Veríssimo.

alian.moroz@hotmail.com

s
erto Barro enhista
Carlos Alb n o r d e stinos, des
, filh o d e ormado,
Paulistano s t a p lástico f
pre, a r t i l como
desde sem a v i d a profissiona
Começou s u rastro
escritor. ã o , j á deixou seu
, desde e n t ulturais,
educador e e Centros C
, Esc o l a s agógicos
por ONG’s a r t í s ticos e ped
trabal h o s cia sobre
através de ê m f o rte influên
cias q u e t za oficinas
– experiên l m e n te, organi -
tos. A t u a studa pós
seus escri p a r a c r ianças, e e p a r a
ação rev
de ilustr t ó r i a d a Arte e esc
em Hi s
graduação net.
ç õ e s na inter
publica
il.com
ador@hotma
carloseduc pot.com
t t p : / / d e s nome.blogs
h

Denis da Cruz
Advogado, Servidor Público, marido de Elisa
e pai dos pequenos Lívia e Kalel. Escritor amador,
faz da literatura um agradável e despretencioso
passatempo. Mais detalhes, o leitor poderá
foto: http://bonfireblaze.files.wordpress.com/2007/12/grafiti_wall.jpg

flagrar nos textos que serão apresentados na


Samizdat, afinal, já escreveu certa vez: “não
sou nenhuma de minhas personagens, mas sou
todas elas vivendo ao mesmo tempo”.
deniscdacruz@hotmail.com
http://www.recantodasletras.com.br/autores/kzar

Giselle Sato
Giselle se autodefine apenas como uma contadora de
histórias carioca. Estudou Belas Artes e foi comissária de
bordo — cargo em que não fez muita arte, esperamos. Adora
viajar (felizmente!) e fala alguns idiomas.
Atualmente se diverte com a literatura, participando de
concursos e escrevendo para diversos sites pela net. Gosta de
retratar a realidade, dedicando-se a textos fortes que chegam
a chocar pelos detalhes, funcionando como um eficiente
panorama da sociedade em que vivemos, principalmente daquilo
que é comumente
jogado para baixo do tapete pelos veículos de comunicação.
gisellesato@superig.com.br
76 http://www.trilhasdaimensidao.prosaeverso.net/
www.samizdat-pt.blogspot.com
o
Henry Alfred Bugalh fase
a pela UFPR, com ên
É formado em Filosofi História.
lista em Literatura e
em Estética. Especia ân eas de
nces e de duas colet
Autor de quatro roma
contos. a
Nova York, com su
Mora, atualmente, em
sua cachorrinha.
esposa Denise e Bia,
m
henrybugalho@gmail.co
www.maosdevaca.com

José Espírito Santo


Informático com licenciatura e pós
graduação na Faculdade de Ciências
da
Universidade de Lisboa, trabalha há
largos
anos em formação e consultoria,
sendo
especialista em Bases de Dados, Siste
mas
de Gestão Transaccional e Middlew
are de
“Messaging”. A paixão pela escrita
surgiu
recentemente, tendo no ano de
2007
produzido os livros “Esboços” (con
tos) e
“Onde termina esta praia” (poesia).
Vive
com a família em Portugal em Alve
rca, uma pequena cidade um pouco
Lisboa. a norte de

jjsanto@gmail.com
http://www.riodeescrita.blogspot.com
/

Marcia Szajnbok
Médica formada pela Faculdade
de
de Medicina da Universidade
o psiq uia tra Pedro Faria
São Paulo, trabalha com
e psicanalista. Apaixonada por Estuda Matemática na
, Universidade Estadual do Rio de
literatura e línguas estrangeiras
lê sempre que pode e brin
ca Janeiro, músico amador e escritor
de escrever de vez em qua ndo . quando dá na telha. Nascido e criado
des de no Rio.
Paulistana convicta, vive
sempre em São Paulo.
punksterbass@hotmail.com
marciasz@hotmail.com http://civilizadoselvagem.blogspot.com/

Volmar Camargo Juni


or é gaúcho. Formado
Letras pela Universida em
de de Cruz Alta, não
por sua própria vontade lec ion a
. Entrou na ECT em 20
desde então já morou em 04, e
meia dúzia de “Pereiróp
pelo Rio Grande. Atua olis”
lmente vive com a es
Natascha em Canela, posa
na Serra Gaúcha. Divid
apartamento com Ma em o
rie, uma gata voluntar
cínica. ios a e

v.camargo.junior@gm
http://recantodasletras.u ail.com
ol.com.br/autores/vcj

77
www.samizdat-pt.blogspot.com SAMIZDAT 5 - junho 2008

foto: http://www.sgeier.net/fractals/fractals/06/Robot%20Spider%20Web.jpg
Links desta edição
Ligações
Sites ou páginas pessoais: Henry Alfred Bugalho
www.maosdevaca.com
Alessandro Andreuccetti
http://aandreuccetti.altervista.org/
José Espírito Santo

Carlos Alberto Barros http://www.riodeescrita.blogspot.com/

http://desnome.blogspot.com
Pedro Faria
http://civilizadoselvagem.blogspot.com/
Denis da Cruz

http://www.recantodasletras.com.br/autores/kzar Revista SAMIZDAT


www.samizdat-pt.blogspot.com
Erik Kurkowski Weber
http://recantodasletras.uol.com.br/autores/ Sven Geier
asdecopas
http://www.sgeier.net/fractals/

Giselle Natsu Sato


Volmar Camargo Junior
http://www.trilhasdaimensidao.prosaeverso.net/ http://recantodasletras.uol.com.br/autores/vcj

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Referências: Latido

Academia Brasileira de Letras http://www.terra.com.ar/canales/latido/besame/


http://www.academia.org.br/abl nota2.shtml

Domínio Público Recanto das Letras


http://recantodasletras.uol.com.br/
http://www.dominiopublico.gov.br/

Releituras
Ficción Breve Venezolana
http://www.releituras.com/
http://www.ficcionbreve.org/

Wikipédia
Flickr
http://www.wikipedia.org/
http://www.flickr.com/

Fotos e ilustrações:
Angels in America
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Flickr
Violino: http://www.flickr.com/photos/mazintosh/2104768410/
O Caso Jersey: http://www.flickr.com/photos/curiosita/1178581614/
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A Herança Maldita: http://www.flickr.com/photos/beija-flor/47276855/sizes/o/
Terra Estranha: http://www.flickr.com/photos/snarl/42744921/
A Caminhada: http://www.flickr.com/photos/binux/532976077/sizes/o/
Entrevista com o Coveiro: http://www.flickr.com/photos/seriykotik/121265292/
http://www.flickr.com/photos/stuart100/449951330/
Pecado e Tentação: http://www.flickr.com/photos/8415264@N03/1460911385/
Três incisões no meu dia: http://farm1.static.flickr.com/116/267005070_b4931892ab_o.jpg
Literatura: Arte ou Comércio?: http://www.flickr.com/photos/maddiedigital/523382758/sizes/o/
Laboratório Poético II: http://www.flickr.com/photos/elwanderer/762694617/sizes/l/

Grafites
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Latuff
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Livraria
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Salvador Dalí
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79
SAMIZDAT 5 - junho 2008

TAMBÉM NESTA EDIÇÃO,


TEXTOS DE

Alian Moroz

Carlos Alberto Barros

Denis da Cruz

Erik Kurkowski Weber

Giselle Natsu Sato

Henry Alfred Bugalho

José Espírito Santo

Marcia Szajnbok

Pedro Faria

Volmar Camargo Junior

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