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Sartre Os Pensadorés Sartre ~Queremos a liberdadé pela liber. dade € auavés de cada circunstincia particular. €, an querermos a liberda- de, descabrimos que ela depende intet- ramente da liberdade dos outros, © que a liberdade dos outros depende da nossa. Sem divida, a liberdade como definigao do homen nao depende de oulrem, mas, uma ver qué existe a li- gagae de um compromise, sou obriga~ do a querer ap mesmo tempo a minha liberdade © a liberdde dos outros: 36 posse tomar a minha libendade como fim se tome igualmente 2 dos cutras ‘come um fim,” SARTRE: O Existenciahamo é um Hu- manismo. Se me examina a mim mesmo sem preconceitas, obsewarei que ope- fo espontaneamente a discriminagio entre a existéncia como coisa @ a ext tencia como imagem, Eu ndo seria ca- paz de conter a5 aparigées que se de- Rominam imagens. Mas, sejam ou nao evocagées voluntinias, elas se dio, no momento mesmo em gue aparecem, coma algo diverso de uma presenga. E 2 este respeito nia me engana aunca. Surprcenderiamos, mesmo, bastante, alguém que nao tivesse estudado psico- logiz se, apds Ihe ter explicado o que @ psicélogo chama de imagem, Ihe perguntisiemos; acontece-Ihe, as ve- 20s, confundir a. imagem de seu ifmao ‘com a presenca reai? © reconhecimen: to da imagem como zal ¢ um dado ime- diato do senso intima.” SARTRE: A Imaginagao. “Existencialisme ¢ marxismo vi- sam 20 mesmo objeto, mas o segundo reasorveu 0 homem na idéia © © pri- meiro procura-a par toda parte onde ele esta, no seu trabalho, em sua casa, na rue.” SARTRE: Questda de Atérado, Os Pensadorés S26le CIP-Brasil, Cataloyasio-na-Publicagio CAmiara Brasileira do Livro, SP Sartre, Jean Paul, 1905-1980, © cxistencialismo € um humanismo ; A imaginacdo ; Questao de meo- do / Jean-Paul Sartre : sclevio de textos de José Americn Motta Pessaaha : traducdes de Rita Corre 1 Guedes, Luiz Roberto Salisay Fortes, Hente jor. —= $80 Paulo; Abell Cultural, 1984, (Os pensadures) Inclui vida ¢ obra de Sartre, Bibliografia. 1. Existenciatismo 2, Filosofia francesa 3, tmaginuedo 4, Matetialis- mo dialético 5, Sartre. Jean Paul, 1905-1980 1. Pessanha, José Américu: ‘Mota, 1922- Il. ‘Titulo; O existencialismo ¢ um humasismd, Wl, Titulo: A ‘imaginagao. IV, Titulo: Questo de métado. V. Série ebp-194 “1427 “1463 “1833 W214 indices pars eatdlngu sistemaien; |. Existencialiama : Filogafia 142.7 Filosofia francesa 194 . Pildsofos franceses ; Biuyrafia c obra 194 }. Farge ; Filosofia 194 - Imaginacio : Psicologia 153.4 Matersalisnoe disléticn ; Filosofia 146.3 PusbRe JEAN-PAUL SARTRE O EXISTENCIALISMO E UM HUMANISMO A IMAGINACAO QUESTAO DE METODO EDITOR: VICTOR CIVITA Titulos erigiaais: e'Existentiatisne est an Hirmantioe ‘Question de Metiiode L tmagination © Copyright desta edicdo, Abril Sao Paulo, 1984, A. Cultural, ‘Textos publicados sob licenga de Les Editions Nagel, Paris (0 Existenciatismo ¢ wen Humanism, Les Editions Gallanard, Par © Editora Nova Frenteira $.A,. Rio de Janeiro (Questa de Metadu Presses Universitaires de France, Paris, © Difel Difusao Exitorial $.A., Sie Paulo (4 fmaginagdio) Tradugdes publicadas sob licenca de-Difel Difustio Editorial S.A.. Sho Paulo (Questia le Método © A tmaginagze). Di toy exclusives sobre a traducdo do texio @ tevistencialisrro & um Humanism, Atxil $.A. Cultural, Sao Paulo Dirzitos exel sobre “Sartre — Vida ¢ Obra”, Abril S.A. Cultural, S80 Paulo, SARTRE VIDA E OBRA Consultoria + Marilena de Souza Chaui 44 A. Filosofia aparece a alguns como um mein homopinea: os pen samenios nascem nele, morrem nele, as sistemas nele se edifi- a nele desmoronar. Outros consideram-ne como ceria atitude cuja adogdo estaria sempre ao aleance de nossa liberdade. Outros ait da, como um setor determinady da cultura, A nosso ver, a Filosoti ndo existe: sob qualquer forma que a consideremos, essa sombra da ciéneia, essa eminéncia parda da humanidade ndo passa de uma abs: tragao hipustasiada.’” © texto acima constitul as linhas iniciais do livio Questéo de Mé- todo, escrito, paradoxalmente, por um hamem que jamais deixou de fazer de todos os momentos de sua yida uma permanente reilexao so- bre os problemas fundamentais da existéncia humana. Jean-Pau! Sartre nascou.em Paris, no dia 21 de junho de 1905, O- pai faleceu dois anos depois ¢ a mae, Anne-Marie Schweitzer, mu- dou-se para Meudon, nos arredores da capital, a fim de viver na casa de Charles Schweitzer, avé materno de Sartre. Sobre a morte do pai, escreverd mais tarde: “Foi um mal, um bem? Nao sei; may subscrevo de bam grado o veredicto de um eminente psicanalista: nao tenho Su- perego"', Seja como for, talvez a auséncia da figura patema em sua vida passa explicar por que Sartre se tornow um homem radicalmente li- wre, tomada a expressdo no sentido que ele the dard posteriormente: nao existe uma natureza humana, 6 o proprio homem, numa escolha livre porém “‘situada"’, quem determina sua propria existéncia, Outro trago marcante na formagso de Sartre foi a imaginagaio criativa, alimentada pela leitura precoce ¢ intensiva: "... por ler d coberto © mundo através da linguagem, tomei durante muito tempo a Hinguagem polo mundo. Existir era possuir uma marca registrada, algu- ma porta nas tdbuas infinitas do Verbo; escrever era gravar nela seres novos — foi a ha mais tenaz ilusia —, colher as coisas vivas nas armadilhas das frases...’ Come conseqiléncia, aos dez anos de idade quis Tomar-se escriter e ganhou uma mxiquina de escrever, Seria seu instrumento de trabalho por toda a vida, Em 1924, aos dezenove anos de dade, Sartre ingressou ne curse de filosofia da Escola Normal Superior, onde nao foi aluno brifhante, vil SARTRE mas muito interessado, especialmente pelas aulas de Alain (1868-1951), que dedicava atencdo particular 3 discussio da prable- ma da liberdade. Na Escola Normal, Sartre conheceu Simone de Beauveir (1908-1, “uma moca bem comportada”’ que {he afir- mou: "A partir de agora, eu tamo conta de voce’. Desde ontéo, nun- ca mais se separaram, Terminado @ curso de filosofia, em 1926, Sartre teve de prestar o servico militar ¢ o fez em Tours, na fung3e de meteorologista. Depais disso obteve uma cadcira de filosofia numa escola secunddria do Ha- ure, cidade portudria. Nessa égoca escreveu um romance, A Londa da Verdadle, recusaco pelos editores. Em 1933, passou um ano em Berlim, estudando a fenomenologia de Edmund Husser! (1859-1938), as teorias existencialistas de Heidegger © Karl Jaspers (1883-1969) © a filosofia de Max Scheller (1874-1923), A partir desses autores, Sartre foi Ievado a obras de Kierkegaard (1813-1855), Apoiade nessds refe- rencias principais, Sartre elaborou sua prdpria versio da filoswfia oxie- tencialista, Na Alemanha, Sartre iniciou a redagao de Mélarcofia, romance mais tarde concluido-e intitulado A Nausea. De volta 3 Franca, publi- cou, em 1936, A Imaginagéo @ A Transcendincia do Ego, trabalhos marcados por forte influéncia da tenomenologia, Em 1938, tei edita- da A Nausea. Um ano depois, uma coletanea de contos, O Muro, @ © ensaio Esboco de uma Teoria das Emogdes, em 1940, mais um en= saiv, O imaxinério, que, como 9 anterior, utilizava 0 método.fenome- noldgico, © engajamenio da existéncia Ao estoutar a Segunda Guerra Mundial, Sartre fol convocada pa- fa servit Como meteorologista na Lorena, Em junho de 1940, calu pri- slongiro @ foi encerrado no campo de concentragéo de Trier, Alema- nha. Cerca de um ano mais tarde, conseguiu escapar e, na primavera de 1947, encontrousse, em Paris, com Simone de Beauwair, Em Paris, Sartre fundou a grupo Socialism e Liberdade, a fim de colaborar com a Resisténcia, produzindo panflelos clandestinns con- tra. a acupagao alema-¢ contra os colaboracionistas franceses, Em mar- 0 de 1943, encenou sua primeira pega teatral, intitulada As Moscas, uma lenda grega, segundo o programa, Na verdade, todos os elemen- tos da pega funcionavam simbolicamente: o teino de Agamendo ora a Franca ocupada; Egisto, 0 comando alemao que depusera as autorida- des francesas; Clitemnestra, 05 colaboracionistas: a praga das mos+ ¢as, 0 medo de setores cada vez mais amplos da papulagdo; o gesta final de Orestes, eliminando a praga das moscas, uma exortacdo a lu- ta contra os alemies, No mesmo ano, Sartre publicau um volumoso ensaio filosdtico, iniciado em 1939: O Sere o Nada, obra fundamental da teoria exis- tencialista. Em 1945, yma nova pega leatral, Entre Quatro Paredes, pée em cena personagens que vivem as dramas existenciais aborda- dos por Sartre nas obras tedricas. Os romances que escreveu na mes- ma época fazem o mesmo: A idade da Razdo, Sursis, Com a Morte na Alma. Terminada @ Segunda Guerra Mundial, em 1945, Sartre: dissol- veuo movimento Socialismo © Liberdede, por correspander apenas a VIDA E OBRA ix uma necessidade da Resisténcia, ¢ fundau a fevisia Os Tempos Mo- dernos, juntamente com Merleau-Ponty (1808-1961), Raymond Aron (1905- |e outros intelectuais. Na revista apareceram as trabalhos mais diversos, colocanda © analisando os principais problemas da época, sem qualquer espirito sectario. Em 1946, diante das crfticas 4 sua filasofia existencialista, expes- taem O Ser ¢ o Nada, Sartre publica © Existencialisma & unr Huma- nemo, ande mastra o significado ético do existencialisma. No mes- mo ano, publica também duas pegas, Mortos sem Sepultura c A Pros- fituta Respeitesa eo ensaio Reflexdes Sobre a Questio Judaica, onde defende a tese de que 8 emancipagao dos judeus so sera possivel nu- ma sociedade sem classes. Er 1943, encena As Mdos Sujas e, trés anos depois, O Diabo & » Bom Leus. No plano da acao politica, essa @poca marca a aproximagio de Sartre do Partido Comunista, ag qual ataba por filiar-se, ey 1952. A intervengSo sovidtica na Hungria, em 1956, keva-o, gorém, a romper com © Partido e escrever um artigo, O Fantasma de Stilin, no qual explica sua posigao, em tace dos desyios do espirito do manxisme por parte das autoricades sovidticas, Nos anos seguintes, Sartre cantinuaria sendo, ao mesmo tempo, um hamem de acdo e de pensamento: £m 19601, publica um extenso wabalho, a Critica da Razéo Dialética, precedide pelo cnsain Ques- tio de Métada, nos quais se encontram reflexdes no sentido de unir 0 -existencialismo-e 0 marxismo, A abra literdria também nao cessa ¢ no mesmo ano € estreada a pega Seqtiestractes de Altana, cuio tema 0 problema do colonialism francés na Argélia, embora a acao transcor- fa na Alemanha nazista. © interesse pelo problema araeline: liga-se, em Sartre, aos problemas mais gerais do Teceiro Mundo. Viaja para Cuba ¢ para o Brasil (1961) e vé no conflita vietnamita uny alargamen- to “do campo do possivel! par parte dos revoluciondrios vietcongs, Em 1964, surpreende seus admiradores com As Falovras, andlise do significads psicolégico e existencial de sua infancia, No mesmo ano Elhe atribuido © Prémia Nobel de Literatura, mas ele @ recusa, Receber a honraria signiliearia reconhecer a avtondade dos juizes, 0 que considera inatimissivel concessao. A carreira literdria de Sartre parecia a muitos terse encerrada com As Palavras. Em 1971, porém, Sartte surpreende de nove seu pur blico, coma primeira parte de um extenso estudio sobre Flaubert, L'+- diot de Famille. O itinerdrio do pensamento Do ponto de vista estritamente filossfico, o itinerdrio do pensa- mento de Sartre inicia-se com A Transcendéncia de Ego, A Imagina- ao, Eshoca de uma Teoria das Emogdes ¢ © Imaginario, publicades entre 1936 ¢ 1940, Neles encontram-se aplicagoes do metodo feno- menokigico formulade por Husserl, ao mesmo temper que o autor se afasta do mestfe e chega a criticar algumas de suas posigoes. Mas & obra na qual sé encontra a filosofia existencialista que celebrizou Sar tre € O Ser eo Nada, O Ser e 0 Nada subintitula-se ensaio de antologia fenomenoloy)- ca, 0 que desde o inicio define a perspectiva metodoldgica adotada pelo autor. A abordagem praposta pretende nde confundir © abjetiv do livra com as motalisicas tradicronais, Fstas sempre contrastaram x SARTRE ser a aparéncia, esstncias subjacentes 4 realidade e fendmeno: que estaria atras das coisas @ as préprias coisas come suas manifesta- Ges. A ontologia fenemenolégica superaria essa dualidade pela des- crigao do ser como aquilo que se da imediatamente, ou seja, nao pro- pondo explicar a experiéneia humana por referéncia a uma realidade extrafenomenal. Nesse sentido, a ontologia fenomenoldgica seria idéntica a outras especies de descricoes fenomenalogicas, como as que 0 proprio Sartre realizou com relagao as emogées @ 30 imagind- fio. Para Sartre, o dualismo de ser e parecer ndo tem mais “direito de cidadania na filasofia”. © ser de um existente qualquer seria precisa- mente aquilo que parece ¢ nao existiria outta realidade fora do fend- meno: "O fendmeno pode ser estudado e descrito enguanto tal, pois ele € ebsolutamente indicative de si mesmo”. 1850 nao quer dizer que © fendmeno nao seja verdadeiramente um ser, Para Sartre, 0 ser do fe- noémene € posto pela propria consciéncia e esta tem come cardter es- sencial a intencionalidade, Em outros termas, a consciéncia a um objeto transcendente, implicando, portanto, a edsténcia de um ser nao-consciente, Poder-se-ie entio concluir que existem dois tipos de ser: © ser-para-si (consciéncial ¢ a ser-em-si (fendmeno), Do ser-cm-si somente se pode dizer que ele “6 aquilo que ¢’*. Is- 80 significa que @ “scr-em-si 6 gpaco para si mesmo", nem ativo nem Passive, sem qualquer relagao fora de si, nao derivado de nara, nem de outro ser: © ser-em-si simplesmente 6, Dal o cardter de absurdo gus. ser-emsi carrega como sua determinacao fundamental, A densi- lade apaca, © absurdo do ser-em-si provacariam no homem o mal.es- tar, que Sartre denomina nduse, Para Sartre, 0 ser-para-si, a consciéncia, & radicalmente diferen- te, definindo-se “como sendo aquilo que nao é e nao senda aquilo que ele é. Enquanto © ser-om-si @ inteiramente preenchido por si mesmo ¢ sem nenhum vazio, a consciéncia € constituida por uma descompressaa do ser. A cansciéncia @ presenga para si mesma, © que supde que uma fissura se instala dentro do ser. Essa fissura, ou descolamento, 6 a marca do nada no interior da consciéncia. O nada um “buraco" mediante o qual se constitul © ser-para-si, © a funda- mento do nada é © préprio homem: “mediante o homem & que o na- da irrompe no mundo’. O ser-para-si conteria, portanto, uma abertura & seria procisamen- te essa abertura a responsdvel pela faculdade do para-si no sentido de sempre poder ultrapassar seus proprios limites. Enquanto 0 ser-em-si permaneceria fechado dentro de suas prdprias fronteiras, o ser-para-si ultrapassarse-ia perpetuamente, ¢ esse poder de transcendéncis seria expresso através das formas do tempo. Em outras termos, 0 sereparae si seria um ser para 0 futuro, seria espontangidade criadora. Segundo Sartre, o tempo ¢ também expressio de mistura cnire o em-sl @ 9 pafa-si @ essa mistura constitu! a existéncia humana. Dentro dessa perspectiva, o passado nao existe, a ndo ser enquanto ligedo ao presente; todo individuo pode afirmar: eu sou meu passado e no mo- mento de minha mone naa sere’ mais do que 9 meu passade que, agora, é meu presente. © passado, pensa Sartre, ¢ a marca do em-si. Enquanto o homem & cansciente de si mesma, ng presente, ele vive gundo 9 mado do para-si; Cantudo, o seu passada tem todas as caracte- Fisticas do om-si. Da mesma forma como. corpo humane das sereias termina em cauda de peixe, a existéncia humana constitui-se, sobretu- VIDA F OBRA xl do, pela espontaneidade da consciéncia, mas encontra atras de si um ser que tem toda a fixidez de uma coisa qualquer do munda. ‘Apesar disso, afirma Sartre, nao é possivel ver na consciéncia al- £0 distinto do corpo. Este néo é uma coisa que se liga exteriormente a consciéneia; pelo contrario, é constitutive da propria consciéncia. A consciéncia é, estmituralmente, intencional e, portanto, relagdo com © mundo; © corpe exprime a imersao no mundo, caracteristica da existancia humana, © corpo 6 um centro, cm relagao ao qual se orde- nam as coisas do mundo e, por isso, constitui uma estrutura perma- nenie que tora possivel a conseiéncia. Sartre vai mais longe em sua inlerprelacao, dizendo que o corpo ¢ a propria condigdo da liberda- de. Nao existe liberdade sem escolha e 0 corpo @ precisamente a ne- cessidade de que haja escalha, isto é, de que o homem nao seja ime- diatamente a totalidade do ser. © corpo ¢, por conseguinte, tanto a candigao da cansciéncia come consciéncia do mundo, quanto funda- mento da consciéncia enquanta liberdade. (Os dramas da liberdade A tearia sartreana do ser-para-si conduz a uma teoria da liberda- de. © ser-para-si define-se como acgao.¢ a primeira condigao da acao 6a liberdade. O que esta na base da existéneia humana é a livre esco- tha que cada homem faz de si mesmo ¢ de sua mancita de ser. Oem si, sendo simplesmente aquilo que ¢, nae pode ser livre. A liberdade provém do nada que obriga o homem a fazer-se, em lugar de apenas ser, Desse principio decorre a doutrina de Sartre, segundo a qual o homem ¢ inteiramente responsdvel por aquilo que ¢; nae tem sentido ‘ak pessoas quererem atribuir suas falhas a fatores extemos, como a he- reditariedade ou a agéo do meio ambiente ou a influéncia de outras pessoas. Por outro lado, a autonomia da liberdade, enquanto determi- nacdo fundamental ¢ radical do. ser-para-si, vale dizer do homem, faz da doutrina existencialista uma filosofia que prescinde inteiramente da idéia de Deus, Sartre tira todas as consequéncias desse ateismc climinando qualquer fundamenta sobrenatural para os valores: 6 © ho- mem que 05 ctia. A vida nao tem sentido algum antes ¢ ixicpendente- mente do fato de o homem viver; o valor da wida 6 © sentido que ca- da homem escolhe para si mesmo, Em sintese, o tencialismo sar- ireano ¢ uma radical forma de humanisme, suprimindo a necessidade ie Deus e colocando 0 préprio homem come criadar de todos os va- lores. Aa lado das anélises volumusas € rigorosamente téenicas de: O Ser eo Nada, nas quais s¢ encontra exposta a filosofia existencialista, Sarre expresiou secu pensamento através de wirias obras literirias, que 0 colecam como um dos maiores escritores do século XX. Nelas encontram-se todos os temas fundamentais de sua concepcao do ho- mem, tealizados no plano. conereto das personagens, suas acdes © suas situagbes existenctais, Antoine Requentin, personagem principal de A Nausea (1938), ‘vive sozinho, sem amigos, sem amante, nada lhe importande, nem G5 outros homens, nem ele mesma; © munde para cle née tem nenhu- ma razio de sere & absurdo porque compasto de seras emesir a-cida- de, o jardim, as arvores. Pablo Ibietta, republicano espanhol, persanagem central de OQ. xt SARTRE Muro, vive uma das “situagdeslimite" descritas por Sarre: momen- wos de intensificacao de conflitas sociais © individuais, quanda o ho- mem € obrigado a fazer uma escolha ¢ afirmar sua liberdade radical. Pablo tbietta, preso e torturado pelos fascistas de Franco, ve postas a prova as virtudes da coragem, fidelidade e sangue-frio. O préprio Sar- tre viveu uma dessas “situagdes-fimite”, quando preso num campo de concentragao nazisia, em 1940, do qual conseguiu fugir, fazendo sua escolha: participar da resisténcia ao invaser alemao. © problema da acio e da liberdade constitui @ tema da trilogia de romances Os Caminhos da Liberdade. No primeira, A idade da ka- zao (1945), as questées individuais predominam, a histéria e a politi- sa sio panos de funda. Mathieu Delorme, javem professor de filoso- fia, procura a liberdade pura, sem campromisso de qualquer espécie; Brunet, a0 contrério, personitica a rentincla da liberdade pessoal em favor do engajamento politico; Daniel ilustra a tese gideana de liber- dade como ato gratuite, sem qualquer motivo; Jacques abandona os sonhos juvenis do liberdade para casar-se, ter um trabalho, viver uma vida “regular. No segundo volume da trikogia, Sursis (1945), 0s acontecimentas politicos revelam que os projetos de vida individuais so, na verdade, determinadas pelo curso da histéria, tornanda-se ilu- séria a busca da liberdade num plano puramente pessoal: a liberdade € sempre vivida “em situagdo” ¢ realizada no engajamento de proje- tos voliados para interesses humanos comunitérios. Apenas um com- promisso com a histéria pode dar sentido 4 existencia individual. Em Com a Morte na Alma (1949), ultimo romance da trilogia, Mathieu ilustra a tese do engajamento gratuito; ele arrisca a propria vida ape- nay para retardar algumas horas a investida das tropas alemas. Gutras obras litenirias de Sartre ilustram as teses existencialistas ‘Canoris, personagem da pega Mortos sem Sepultura (1946), é um ho- mem de acao, pronto para enfrentar a morte pela causa da liberdade, Hugo, nas Mios Sujas (1948), 6 um intelectual da classe média, enga- jado no Partida Comunista, no por convicgio mas para satisfazer sua necessidade de agao. Na pega O Diabo e o Bom Deus 11951}, Goetz é um nabre da Idade Média que abandana seus privilégios pas ra fazer o bem aos camponeses. Inspirados esse exemplo, os campo- neses rebelam-se contra todos os senhores feudais e empregam a vio- léncia, Goetz acaba par concluir que, para transiormar o mundo, a violéncia, as vezes, @ necessdria; é preciso “ter as maas sujas’, para combater a opressdo; © Bem abstrato e sobrenatural nada consegue realizar, 54-0 prdprio homem 6 criador de sua liberdade. Existencialismo ¢ marxismo- © homem enquanto ser-em-situacdo, 2 necessidade de engaja- mento, @ responsabilidade pessoal por todas as acoes € projetos de vi- da ¢, sobrotuda, a liberdade camo raiz fundamental da pessoa huma- na sdo as coordenadas do pensamento existencialista de Sarre. As ‘obras puramente tedricas expem seus fundamentos filoséficas, © 0 teatro, @ romance ¢ 0 conto revelam cancretamente essas idéias, Por outro lado, a prdpiia vida do autor, principalmente depois de 1940, quando passou a participar ativamente dos acontecimentos politicos de sets tempo, tambérn € testemunho de suas teses. Ay posigdes filusdiices Initials de Sarre sofreram transformacoes, VIDA E OBRA xii a medida que o filésofo buscou inserir 0 existencialismo nume con- cep¢ao mais ampla. Essas transformacdes derivaram, per um lade, do préprio existencialismo sartreane, que constitui uma filosofia “aber la’, &, por outro, do engajamento social © polfiica dv fildsofe. De ponte de vista da tundamentacae tedrica, essa nova cancepgao de ‘Sartre encontra-se em Questie de Método e Critica da Razdo Dialéti- ca, publicadas em 1960. Nessas obras, o problema fundamental colocado pelo autor & sa- ber se é possivel constituir uma antropologia ao mesmo tempo estrutu- tal e histérica, Em outros termos, 9 objetiva visado por Sartre € saber se ha possibilidade de se reencontrar uma compreensdo unitdria do. homem, para além das wérias teorias, das varias técnicas, das varias Ciencias que o investigam. Sartre, contudo, nav pretende inventar es- se nove saber do hamem. Nao se trata de opor a tradigae uma nova fi- losofia, capaz de fornecer solugdes para os problemas que as antigas doutrinas sobre o homem nao conseguiram resolver, Esse novo saber jd existe — segundo Sartre — ¢ circula anonimamente entre os ho- mens: 0 marxismo, © marxismo, para Sartre, a filosofia insupcrdvel do século XX, “6 0 clima de nossas idéias, 0 meio no qual estas se nu- trem... a totalizagio do saber contemporineo”, porque reflete a prd- xis que @ engendrou. Na mesma linha de idéias, Sartre afirma que, de- pois da morte do pensamento buraués, o marxismo 6, por si 56, “a cultura, pois ¢ 0 Gnico que permite compreender as obras, os homens € oy acontecimentas"”. Sartre, Contudo, mio quer se referi¢ ao marxismo oficial, tampou- cp pretende revisar ou superar as obras de Marx, pois para ele a mar- xismo superd-se a si mesmo, senda uma filosofia que, por conta pro- pria, se adapta as transfarmacées sociais. Por outro lado, também nado pretende voltar ao materialisme dialético pura e simples, pois es- te — pensa Sartre — no conseguiu dar conta das ciéncias, que per- manecem ainda na estagio positivista. Também nao se trata do mate- ralismo histérico exclusivamente. Separar o materialismo dialético do materialismo hist6rico constituiria uma divisdo artificial dos domi nios do saber e contrariaria o espirito do marxisma, que pretende ser um projeto de totalizagav do conhecimento. Dentro da concepgdo sartreana de que @ marxismo constitul a ” losofia de nosso tempo’, o existencialismo é concehide come “um lerritéria encravado no préprio marxismo’” que, aa mesmo tempo, o engendra @ 0 recusa. O marxismo de Sartre 6, assim, um marxismo existencialista, dentro da qual © existencialisma seria apenas uma ideologia. Um segundo aspecto de sua doutrina consistiria no mado pelo qual Sartre procura resolver o problema das relacGes materials de producao, através do projeto existencial, O que nao significa que se trate de um enistencialismo tingide de marxismo, posto que © exis- tencialismo esteja “encravado” no marxismo. Significa antes que, se ‘9 saber é marxista, sua linguagem pode ser a linguagem do existencia~ lismo. Ao afirmar que 9 marxisme “é a filusofia insuperdvel de nosso tempo’, Sartre no faz dela uma filosofia eterna. A rigor — afirma —, ‘@ marxismo deverd ser superado quando existir “para todos uma mar- gem de liberdade real além da produgdo da vida". Pode-se imaginar, no future, num universo de abundancia, uma filosofia que seja ape- nas uma filosofia da liberdade; mas a experiéncia atual ndo permile sequer imagind-la, XIV SARTRE Cronologia Bibliogratia 1905 — Jean-Paul Sarize aasce em Paris, a 21 de junko. 1907 — Morte de seu par, Muda-se para 2 casa do avd materne, em Meu- on 1911 — Retorna a Paris, 1917 — Em novembro, os revoluciondrios comunistas conquistam 0 poder nna Russia. 1918 — Proclamagao da Repdblica austriaca e da polonesa, 1919 — Fundagas do Partido Nacional-Socialista na Alemanha. £ criada, em Paris, a Liga das Nacoes. 1922 — More © papa Benta XV. A Cimara das Deputados italianos conee- de plenos poderes ao Roverne Mussolini. A RUssia assume a denominagio de Uniso das Repablicas Socialistas Soviéticas, 1924 — Sartre matricule-se na Escola Nomi Supertor, em Patis, Conhece Simone de Beauvoir, 1931 — E nomeade professor de iflesalia no Mavre, 1936 — Publica A imaginacio cA Transcendéncia do Ego. 1938 — Sartre publica A Nausea. 1940 — Servind na guerra, & jello pristoneiro pelas alemies e enviado a um campo de concentragao. 1941 — Liberto, volte 4 Flanga e entea para a Resisténcia, Funda 2 movie mento Sociallsma e Lberdade, 1943 — Publica © Ser ¢ 0 Nada. 1952 — Sartre ingressa ao Partido Comunista. 1953 — Morre Stalin, 1956 — Sartre rompe cain o Partido Comunisa, Eecreve © Fantasma de Sus- 1960 — Publica a Critica da Raziv Dialétiva, 1964 — Publica As Palavras. Recusa o Prémio Nobel de Literatura. 1971 — Publica U'idiot de Famille. 1980 — Morte sean-Paul Sartre. Janson, 2 Le Probleme Monat et fa Penste de Sartre, éditions du Seuil, Paris, 1965. Junoon, F.: Sartre par lui-méme, Editions du Seuil, Paris, 1965. Gakauor, Ro: Penpectives de Hemme, Prosses Universitaires de France, Pa fis, 1961 " Avpgy. Cu: Sartre, Editions Seghers, Paris, 1966. 7 Mounee £.: Maimux, Camus, Sartre, Bernanos: L'Espoir des Désespérés, Edi- tions du Seuil, Paris, 1953, Anninis, R. Maz Jean-Paul Sarire, Editions Universitaires, Paris, 1960. LAec, ndimera 20, dedicado a Sartre. Sry, A.: Sante, his Philosophy and Psychoanalysis, Liberal Ants Press, Nova York, 1953, Miaicau Ponty, Mui Les Aventures de la Diatectique, Gallimard, Paris, 1955. Wairs, Ania Jean-Paul Satie, Eire ot le Sant in Erasmus, ly 1947. Dian, Wo: The Tragic Finale, an Essay an the Philosophy of Jean-Paul Sarire, Harper and Brother, Nava York, 1960. Laws, W.) The Waiter and the Absolute, Methun, Londres, 1952, Muscioos, > Sure Ramantic Rationalist, Bowes and Bowes, Cambridge, 1953, Sion, P. H.: Témains de ‘Homme, Calin, Paris, 1932. Wainin, C2 La Philosophie Modeme, Payot, Paris, 1954. XISTENCIALISMO OE E UM HUMANISMO" Meee, sAITAKT O a) foe FF | f Gostaria de defender, aqui, o existencilismo de uma série de cri- ticas que Ihe foram feitas, Em primeiro lugar, acusarum-no de incitar as pessoas a perina- aecerem no imobilismo do desespero; todos ox caminhos estando wedados, seria necessirio concluir que u asdo ¢ totalmente impossivel neste mundo; tal consideragdo desembocaria, portanto, numa fikaso- fia contemplativa — 0 que, alisis, nos reconduz a uma filesofia burs guesa, visio que a contemplagao ¢ um luxo. Sao estas, fundamental. mente, as ¢ritieas dos comunistas. Por autro lado, acusaram-nos de enfatizar a ignominia huma- na, de sublinhar 0 s6rdido, 0 equivoco, © viseose, © de nesligenciie certo mimero de belezas radiasas, 6 lado luminoso da natureza hu- ‘mang; por exemplo, segundo a senhorita Mercier, critica catdlica, ¢s- quevemios o sorriso da crianga. Uns ¢ outres nos acusam de haver negado a solidariedade humana, de considerar que o homem vive iso Jado, segundo oy comunistas, isso se deve, em grande parte, ao fato de nds partirmos da pura subjetividade, ou seja, do penso cartesiae no, ou seja ainda, do momento em que o homem se upreende em sua soliddo — o que me tornaria incapaz de retornar, em seguida, a soli- Sariedade com os homens que existem fora de mini ¢ que eu nao pose 80 alcancar no cogito. Na perspeetiva cristi, somos acusados de negar a realidade ¢ a serledade dos empreendimentos humanos, ja que, suprimindo os man- damentos de Deus ¢ os valores inseritos na eternidade, resta apenas 4 pur gratuidade; cada qual pode fazer a que quiser, senda incapaz, 2 partir de seu ponto de vista, de condenar os pontos de vista ¢ os atos athcios, Tais sao as varias acusagdes a que procuro hoje respon- der ea razdo que me levou a intitular esta pequens exposicdo de: “0 Esistencialismo ¢ um Humanismo”’, Muitos poderiio estranhar que falemos aqui de humanismo, Tentaremos explicitar em que sentido oentendemos, De qualquer modo, 0 que podemos desde ja afirmar € que concebemos © existedcialismo como uma doutrina que torna a vida humana possivel e que, por outro lado, declara que toda ver- dade ¢ toda ago implicam um meio ¢ uma subjetividade humana, CRITICAS PLITAS AO, EXISFESCLALISMO: cRITICAS DOS MAMNISTAS CKDHOAS Bes ENTOLICOS, PESSIMISM E EXISTENCIAE ISO, NA IURALISMO ESIS TENG ATISNO A SAMEDORIA DAS. NACOES, ASMObA BXINTUNCIALESTA, UXINTER DAS TStOLAS ENISTENCIALISTAS SARTRE A critica basica que nos fazem 6, como se sabe, de enfatizarmos @ lado negativo da vida humana. Contaram-me, recentemente, 0 vaso de uma senhora que, tendo deixado escapar, por nervosismo, uma pulavea vulgar, se desculpou dizendo: “‘Acho que estou ficando exis- tencialisia’”. A feidra é, por consepuinte, assimilada ao existencialis- mo ¢ ¢ por isso que dizem secmos naturalistas. Se o somes, éestranho que assustemos ¢ escandalizemos muito mais do gue o naturalisme: propriamente dito assusta ou cscandaliza hoje em dia. Aqueles que digerem Lranquilamente um romance de Zola, como A Terra, tieam repugnados quando léem um romance existencialista; outros, que se utilizam da sabedoria das nacdes — profundamente triste — achan- nag mais tristes ainda. Mas seri que existe algo mais desesperangade do que 0 provérbio: “A caridade bem dirigiska comegat por si proprio", ou “Ama quem te serve ¢ serds desprezado; castiga quem te serve © seris amado”? $&0 nolOrioy os lugares-comuns que podem ser utili- zados neste assunta ¢ que significam sempre a mesma coisa: nao se deve lular contra os poderes estabelecides, nio se deve lular contra a forca, nio sedeve dar passos maiores do que as pernas, toda ago que nao se insere numa tradi¢do ¢ remantismo, toda agao que nie se apoia numa experiéncia comprovada esta destinada ao fracasso; ea experidnela mostra que os homens tendem sempre para 0 mais batixo ¢ que sdo nevessarios Preios sdlidos para deté-los, caso contra- rio instala-se a anarquia. No entanto, as pessoas que ficum repetinde esses Listes provérbios sao as mesmas que acham muito humano to- do € qualquer ato mais ou menos repulsive, as mesmas que se dele tum com cangOes realistas: so estas as pessoas que acusam o exis- tcncialismo de ser demasiado sombrio, a tal ponto que eu me pergun- to se elas no o censuram, nao tanto pelo seu pessimismo, mas, jus- lamence, pelo seu otimismo, Seré que, ne fundo, 9 que amedronta na doutring que tentarei expor nae & o Fato de que ela deixa uma pos- Sibilidade de escalha para o homem? Para sabé-lo, precisamos reco- locar @ questdo no plano estritamente filasofico. O que é © existen- sialismo? A majioria das pessoas que utilizam este termo ficaria bastante embaragada sc tivesse de justificd-lo; hoje em dia a palaven est na moda ¢ qualquer um afirma sem hesitagdo que tal music ou Lal pin- tor ¢ existencialista, Um cronista de Clartés assina 0 Existenctalista, Na verdade, essa palavra assumiu atualmente uma amplitude (al ¢ uma tal extensda que ji nfo significa rigorosamente nada. Estd parecenda que, na auséncia de uma doutrina de vanguarda andloga uo surrealis- mo, as pessoas, dividas de esciindalo ¢ de agitacao, esto se voltanda paru esta filosofia, que, alids, ndo pode ajudd-las em nuda aesse cam- po; 0 existencialismo, na realidade, ¢ a doutrina menos cseandalosa gamais austera; ely destina-se exclusivamente aos tecnicos ¢ aos filé- sofos. Todavia, pode ser facilmente definida, O que torna as coisas somplicadas é a existéncia de dois tipos de existencialista: por um la- do, os cristiios — entre os quais eolocarei Jaspers e Gabriel Marcel, © EXISTENCIALISMO E UM HUMANISMO de confissio catlica — ¢, por ulro, as alcus — entre os quais had que situar Heidegger, assim como os existencialistas franceses e eu: mesmo. O que cles tém em comum € simplesmente o fata de todos considerarem gue a existéncia precede a esséncia, ou, se se preferir, que € necessario partir da subjetividade. © que significa isso exa- ‘tamente? ‘Consideremos um objeto fabricade, come, por exemplo, um li- ¥ro ou um corta-papel; esse objeto [oi fabricada por um artifice que se inspirou num conceito; tinha, como referenciais, o conceit de cor- ta-papel assim como determinada técnica de produgdo, que faz parte do conceito ¢ que, no fundo, ¢ uma reccita. Desse modo, 0 corta-pa- pel é, simultaneamente, um objeto que ¢ produvido de certa maneira ‘© que, por outro lado, tem uma utilidade definidy; seria impossivel imaginarmos um homem que producisse um corta-papel sem saber para que tal abjeto iria servir. Podemos, afirmar que, no caso corla-papel, & esstncla — ou seja, o conjunto das téenicas ¢ das idacles que permitem # sua produgio ¢ definicdio — precede a exis- téncia; ¢ desse modo, também.a presenca de tal corta-papel ou de tal livro na minha fronte ¢ determinada. Bis aqui uma visio ienica do mundo em fungdo da qual podemos afirmar que a produgao pre- cede a existéncia. ‘Ao concebermos um Deus criador, Mentificame-lo, na maiaria das vezes, com um artifice superior, e, qualquer que sejn a doutrina que considerarmos — quer se ate de uma doutrina come a de Des- cartes ou comoa de Leibniz —, admitimos sempre que a vontadese= sue mais ou menos o entendimento ou, 0 minima, que oacompanha, que Deus, quando cria, sabe precisamente o que esta criando. As- sim, 0 conceito-de homem, no espirito de Deus, ¢ assimilavel ao von- ceito de corta-papel, no espirito do industrial; e Deus produz o homem: segundo determinadas téeni¢as ¢ em funcdo de determinada concep- ‘do, exatamente como o artifice fabrica um corta-papel segundo uma definigdo e uma téenica. Desse modo, o homem individual materiali- za certo conevila que existe na Inteligengin divina, No séeulo XWIIT, © atcismo dos fildsofos elimina a nogdo de Deus, porém nao suprime a idéia de que a esstncia precede a existéncia, Essa é uma idéia que onecontramas com freqtiéncia: encontramo-la em Diderot, em Voltai- re ¢ mesmo em Kant, O homem possui uma natureza humana; essa natureza humana, que é ¢ conceito humana, pode ser encontrada cm todos os homens, o que significa que cada homem ¢ um exemplo par- ticular de um conceito universal; @ homem. Em Kant, resulta de tal universalidade que o homem da selva, o homem da Naturega, tal co- mo © burgués, devem encaixar-se na mesma definigao, ja que pos« Suem a mestus caracteristicas bilsicus. Assim, mais una vee, a esstneia do homem precede essa existéncia historica que enconiramos nia Natureza, Oexistencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente, Afir- ma que, se Deus nilo existe, ha pele menos um ser no qual a existén- AEXISTENCIA, PRECHDE A RSSENCIA, VISROTERNICA DO. SUNDO, OHOMEM E pebs PARA OS UILGSOFOS fa SECUEO XVI ANATURCA HUMANA NaS FILOSOEOS DOSFCULO SVE OEXISTENCLALISMO ATF A CONCEPEAG. EXISTENCIALISTS, 120 HOME O-HOMEN E 0 QUE ELL PAZ LSI MISMO je pRainte © HOSA E PLDNAMENTL RESPONSAVEL A ESCOLA SARTRE cia precede a esséneia, um ser que existe antes de poder ser definida por qualquer conceito: este ser ¢ 0 homem, ou, como diz Heidegger, arcalidade humana. O que significa, aqui, dizer que a exist@ncia pre- cede a ess€ncia? Significa que, em primeira insténcia, o home exis- te, encontra asi mesmo, surge no mundo ¢ 46 posteriormente se define @ homem, tal como o existencialista o concebe, s6 nfo ¢ passivel de uma definigdo porque, de inicio, nfio é nada: sé posteriormente sera alguma coisa e sera aquilo que ele fizer de si mesmo. Assim, no cxis- te natureza humana, jf que nao existe um Deus para conceh3la. O homem é ldo-somente, no apenas como ele se concebe, mas tam- hém como ele se quer; cama ele 92 concebe apds a existncis, como ele se quer aps esse impulso para a existéncia. O homem nada mais do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse 0 primeiro principio do existencialisme. E também a isso que chamamos de subjetivida- de: a subjetividade de que nos acusam. Porém, nada mais queremos dizer sendo que a dignidade do homem é¢ maior do que « da pedra ou a da mesa. Pois queremos dizer que @ homem, antes de mais na- da, existe, ou seja, o homem é, antes de mais nada, aquilo que se pro~ jgta num futuro, ¢ que tem consciéncia de estar se projetando no futuro, De inicio, o homem ¢ um projeto que se vive a si mesmo sub- |etivamente ao invés de musgo, podridao ou couve-flor; nada existe antes dese projeto; nfo hi nenhuma inteligibilidade no eéu, eo ho- mem serd apenas © que ele projetou ser. Nao o que ele quis ser, pois entendemas vulparmente o querer como uma decisdio consciente que, para quase todos nos, & posterior aquilo que fizemos de nds mesmas, Eu quero aderir a um partide, eserever um liveo, casar-me, tudo isso sio manifestaydes de uma escolha mais original, mais espontdnea do que aquilo 2 que chamamos de vontade. Porém, se realmente a exis- téncia precede a esséncia, o homem é responsvel pelo que ¢. Desse modo, o primeiro passo do existencialismo é 0 de por todo homen na posse do que ele & de submeté-lo & responsabilidade total de sua existéncia. Assim, quando dizemas que o homem ¢ responsével por si mesmo, mio queremos dizer que o homem ¢ apenas responséivel pela sua estrita individualidade, mas que ele ¢ responsavel por todos os homens. A palavra subjetivismo tem dois significados, ¢ os nossos adverstirios s¢ aproveitaram desse duplo sentido. Subjetivismo signi- fica, por um lado, eseolha do sujeito individual por si proprio e, por outro lado, impossibilidade em que 9 homem se encontra de trans- por Os limites da subjetividade humana, E esse segundo significado que constitui o sentido profundo do existencialismo. Ao afirmarmos que © homem se escolhe a si mesmo, queremos dizer que cada um de nds se escolhe, mas queremos dizer lambém que, escalhendo-se, ele escalhe todos as homens. De fato, ndo ha um tinieo de nassas atos que, criando o homem que qucremos ser, no esteja criando, simul fancamente, uma imagem do homem tal como juluamos que ele deva ser. Escolher ser isto ou aquilo é afirmar, concomitantemente, 0 ya- for do que estamos escolhendo, pois ndo podemos nunca escolher © 0 EXISTENCIALISMO E UM HUMANISMO mal: © que eseolhemos é sempre o bem ¢ nada pade ser bor para nos sem © ser para todos. Se, por outro lado, a existéncia precede 2 esséncia, ¢ se nds queremos exislir ao mesmo tempo que moldamas nossa imagem, essa imagem ¢ valida para todos e para toda a nossa época. Portanto, a nossa responsabilidade é muito maior do que po- deriamos supor, pois ela engaja a humanidade inteira. Se cu sou um operdrio e se escollio aderir a um sindivato cristdo em ver de ser co- munista, e se, por essa adesio, quero significar que a resignacay é, ho fundo, # solugao mais adequada ao homem, que o reino do ho- mem nao é sobre @ terra, no estou apenas engajando a mim mesmo: quero resignar-ine por todos ©, portanto, a minha decisdo engaja to- da a humanidade. Numa dimensdio mais individual, se quero casar- mg, ter filhos, ainda que esse casamente dependa exclusivamente de minha situagao, ou de minha paixéo, ou de meu desejo, esvolhendo © casamento estou cugajando néo apenas a mim mesmo, mas a toda 2 humanidade, na trilha da monogamia. Sou, dese modo, responsd- vel por mim mesmo ¢ por todos ¢ crio determinada imagem do ho- mem por mim mesmo escolhido; por outras pakivras: escolhenda-me, escolho o homem, ‘Tudo isso permite-nos compreender o que subjaz a palavras um tanto grandilogiientes como angustia, desamparo, desespero. Coma voees pocleriio canstatar, ¢ ¢xtremamente simples. Em primeiro lu- gar, como devemos entender a angtistia? O existencialista devlara fre- Gulentemente que © homem & anpustia, Tal atirmacdo significa a seguinte: © homem que se cugaja e que se dit conta de que cle ndio ¢ apenas aquele que escolheu ser, mas também um legislador que es- solhe simultuneamente a si mesmo ¢ a hurmanidade inteira, nio con- segue escapar ao sentimento de sua total ¢ profunda responsabilidade. E fata que muitas pessoas nao sentem ansicdade, porém nés estamos convictos de que esas pessoas mascaram a ansiedade perante si mes- mas, ¢vitam encara-la; certamente muitos pensam que, ao agir, esto apenas cngajando a si proprios e, quando se Thes pergunta: mas se tados fizessem o mesmo?, eles encahem os ombros ¢ respondem: news tados fazem o mesmo, Porém, na verdade, devemos sempre perguntar- 808; 6 que acanteveria se toda mundo fizesse como nds? v nao pode mos escapar a essa pergunta inquictante a ndo ser através de uma es pécie de md fé. Aquele que mente ¢ que se desealpa dizendo: nem tado mundo far 6 mesino, ¢ alguém que no esté cm paz com sua conseiéncia, pois o fato de mentir implica um valor universal atribui do & mentira, Mesmo quando ela sz disfarga, a anguistia aparece, E esse lipo de angistia que Kierkegaard chamava de anguistia de Abraiio. Todas conhevem a histéria: um anjo ordena a Abrado que sacrifique seu filho. Esta tudo certo se foi realmente um anjo que veio e disse: tu és Abraio ¢ sacrificards teu filho. Porém, para comecar, cada qual pode perguntar-se: sera que era verdadeiramente um anjo? ou: eer que sou mesmo Abraiio? Que provas tenho? Havia uma louca que Uinha alucinagoes: falavam-the pelo telefore dando-|he ordens. O mé- ©. HOMEM SE ESCOHIIE ESCOLHENDO TODOS OS HOMENS ATO INDIVIDUAL ENGAIA TOA A BUMANIDALE NANGLISTIA ANOUSTIA FMA 1 KIERKEGAARD f A ANGUISTIA AMRAAO.E ANI) A-ANGUSTIA NAO CONDUZ A INAGAD ANCIUSTIA KE RASPONSADILADADE A MORAL LAICA SARTRE dico pergunta: “Mas, afinal, quem fala com vocé?"" Bla responde: “Ble diz que é Deus"*. Que provas finha ela que, de fato, era Deus? Se um anjo aparece, como saberci que é um anjo? E se escuto vores, ‘© que me prova que elas vem do céu endo do inferno. ou de subcons- ciente ou de um estado pateldgico? © que prova que clas s¢ dirigem a mim? Quem pode provar-me que fui eu, efetivamente, o escolhide para impor a minha concepgao do hamem ¢.a minha propria escolha @ humanidade? Nao encontrarci jamais prova alguma, nenhum sinal que possa convencer-me, Se uma voz se dirige a mim, sou sempre cu mesmo que terei de decidir que essa vor é a voz do anja; se considero que determinada acdo ¢ boa, sou eu mesmo que eseolho afirmar que ¢la é boa ¢ no ma. Nada me designa para ser Abrado, ¢, no entanto, sou acada instante abrigado a realizar atos exemplares. Tudo se pas- sa como se a humanidade inteira estivesse de olhos fixos cm cada ho- mem € s¢ regrasse por suas agdes, E cada homem deve perguntar a si proprio: sou eu, realmente, aquele que tem o direito de agir de tal forma que os meus atos sirvam de norma para toda a humanidade? E, se ele nao fizer a si mesmo esta pergunta, ¢ porque estard masca- rando sua angistia, Nao se trata de uma angiistia que conduz a0 qnie- smo, & inagaio, Trata-se de uma angistia simples, que todos aqueles que um dia tiveram responsabilidades conhecem bem. Quando, por cxemplo, um chefe militar assume a responsabilidade de uma ofensi- va ¢ envia para a morte certa numero de homens, ele escolhe fazé-lo, ¢, no fundo, escolhe sozinho, Certamente, algumas ordens vém de cima, porém sao abertas demais ¢ exigem uma interpretagdo: ¢ dessa interpretagao — respansabilidade sua — que depende a vida de der, cutorze ou vinte homens. Nao é possivel que nao exista certa angiis- tia na decisdio tomada. Todas os chefes conhecem essa angustia. Mas isso ndo os impede de agir, muito pelo contrario: é a prépria angiise tia que constitui a condigao de sua ago, pois cla pressupéde que eles chearcm # pluralidade dos possiveis ¢ que, ao escolher um caminho, eles se déem conta de que ele nao tem nenhum valor a nao ser o de ter sido excolide, Weremos que esse tipo de angustia — a que o exis tencialismo descreve — se explica também por uma responsabilida- de direta para com os outros homens engajados pela escolha. Nao se trata de uma cortina entreposta entre nds ¢ a agdo, mas parte cons- titutiva da prépria agao. Quando falamos de desamparo, expresso cara a Heidegger, que- remos simplesmente dizer que Deus nao existe ¢ que é necessdrio le- var esse [alo as suas ultimas consequéncias. O existencialista opde-se Trontalmente a certo tipe de moral laica que gostaria de climinar Deus com 0 minim de danos possivel. Quando, por volta de 1880, os pro~ fessores franceses tentaram constituir uma moral laica, disseram mais ou menos @ seguinte: Deusé uma hipdtese indtil ¢ dispendiasa; va- mos suprimita: porém, & necesstirio — para que existe uma moral, uma sociedade, um mundo policiado — que certos valores sejam res- peitados e considerados como existentes a priori; é preciso que seja 0 EXISTENCIALISMO E UM HUMANISMO obrigatéria, @ pelori, ser honesto, ndo mentir, nao bater na mulher, fazer filhos ctc., ctc. Vamos portanto realizar uma pequena mano- bra que nos permitira demonstrar que esses valores existem, apesar de tudo, inseritos num céu inteligivel, se bem que, como vimios, Deus nfo exista, E essa, ereio cu, a tendéncia de tudo o que é chamado na Franga de radiestismo: por outras palavras, a inexisténcia de Deus no mudara nada; teencontramos as mesmas normas de honestida- de, de progresso, de humanismo ¢ teremes assim transformado Deus numa hipotese caduea, que morrerd (ranquilamente por si propria. O existencialista, pelo contririo, pensa que é extremamente incmo- do que Deus nao exista, pois, junto com ele, desaparece toda ¢ qual- quer possibilidade de encontrar valores num céu inteligivel; nao pode mais existir nenhum bem w priori, }4 que nao existe uma consciéncia infinita © perfeiia para pensd-lo; nao esté eserite em nenhum lugar gue o bem existe, que devemos ser honestus, que nao devemos men- tir, 4 que nos.colocamos precisamente num plano em que sé existem homens. Dostaigvski escreveu: “Se Deus nao existisse, tide seria per mitide”. Bis o ponto ce partida do existencialisme, De fata, tude & permitido se Deus nio existe, ¢, por conseguinte, 0 homem esté de- samparado porque nao encontra nele préprie nem fora dele nada a que se agarrar. Para comecar, ndo encontra desculpas. Com efeito, sea existéncia precede a esséncia, nada poderd jamais ser explicado por referéncia n uma natureza humana dada ¢ definitiva; ou seja, aio existe determinismo, © homem é livre, o homem € liberdade. Por ou- tro Indo, se Deus ndo existe, no encontramos, ja prontos, valores ‘ou ordens que possam Tepitimar a nossa conduta. Assim, néo tere mos nem atrés de nds, nem na nossa frente, no reino haminoso dos valores, nenhuma justificativa ¢ nenhuma desculpa. Estamos s6s, sem desculpas, E 6 que poxso expressar dizends que o homem esti conde: nado a ser livre, Condenado, porque nae se criou asi mesmo, ¢ co. ma, no entanto, ¢ livre. uma vez que foi langado ne mundo, é responsdvel por tudo 0 que faz. Q exisienclalista nao acredita no po- der da paixto, Ele jamais admitirA que uma bela paixdo é uma cor- rente devastadara que condus 6 homem, fatalmente, a determinados: alos, © que, comsegientemente, ¢ uma desculpa, Ele considera que co homem ¢ responsivel por sua paixio. O existencialista nlo pensaré nunea, também, que o homem pode conseguir o auxilio de um sinal qualquer que o ariente no mundo, pois considera que o proprio ho- mem quem decifra o sinal como bem entende. Pensa, porianto, que © homem, sem apoio e sem ajuda, esta condenado a inventar 9 he- mem a cada instante. Ponge esereveu, num belissimo artiga: °O he- mem €o futuro do homem”. E exatamente isso, Apenas, se por essay palavras se entender que esse futuro esta inscrito no cu, aue Deus pode vé-lo, ento a afirmacio esti errada, ja que, assim, nem sequer seria um futuro. Se se entender que, qualquer que seja o homem que surja no mundo, ele tem um futuro a construir, um futuro virgem que 0 espera, entéo a expressito esta correta. Porém, nesse caso, esta~ © RADICALISMO DONT OIEVSRA OUSISLENCIALISMO OOMENL ELBE RADE 6 HOMPAL INVENT A © HOMEM O DESAMPARO

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