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A André Cayatte,
pai desta aventura inspirador deste livro,
com a minha amizade.
R.B.
Minha bem amada, minha abandonada, eu te deixei lá no fim do mundo, voltei para
meu quarto de homem da cidade com seus móveis familiares sobre os quais tantas v
ezes pousei minhas mãos que os amavam, com os seus livros que me alimentaram, co
m sua velha cama de cerejeira onde dormi minha infância e onde, esta noite, proc
urei em vão encontrar o sono. E todo este cenário que me viu crescer, desenvolve
r, tornar-me eu, hoje me parece estranho, impossível Este mundo que não é o teu
tornou-se um mundo falso, no qual meu lugar jamais existiu.
E no entanto é meu pais, eu o conheci...
Vai ser preciso reconhecê-lo, aprender novamente a nele respirar, a nele fazer o
meu trabalho de homem no meio dos homens. Serei capaz disso?
Cheguei ontem à noite pelo jato australiano. No aeroporto de Paris-Norte, um ban
do de jornalistas me esperava, com seus microfones, suas câmaras, suas inúmeras
perguntas. Que poderia eu responder?
Todos eles te conheciam, todos eles haviam visto sobre suas telas a cor dos teus
olhos, a incrível distância do teu olhar, as formas perturbadoras do teu rosto
e do teu corpo. Mesmo aqueles que te viram apenas uma vez não puderam te esquece
r. Eu os sentia, por trás dos reflexos de sua curiosidade profissional, secretam
ente mudos, agitados, magoados. Mas talvez fosse a minha própria dor que eu proj
etava sobre o rosto deles, minha própria ferida que sangrava quando eles pronunc
iavam o teu nome...
Voltei para meu quarto. Não o reconheci. A noite passou e não dormi. Através da
parede de vidro, o céu, que era negro, tornava-se pálido. As trinta torres da De
fesa se tingiam de cor-de-rosa. A Torre Eiffel e a Torre Montparnasse enfiavam s
eus pés na bruma. O Sacré-Coeur parecia uma maquete de gesso pousada no algodão,
sobre esta bruma envenenada por suas fadigas de ontem, milhões de homens acorda
m já extenuados de hoje. Do lado de Courbevoie, uma chaminé alta joga uma fumaça
negra que tenta reter a noite. Sobre o Sena, um rebocador solta seu grito de mo
nstro melancólico.
Estremeço. Nunca mais, nunca mais sentirei calor no meu sangue nem na minha carn
e...
O Dr. Simon, as mãos nos bolsos, a testa apoiada na parede de vidro de seu quart
o, olha Paris, sobre a qual o dia se levanta. É um homem de 32 anos, grande, mag
ro, moreno. Veste um suéter grosso de gola roulé, cor de pão queimado, um pouco
deformado, gasto nos cotovelos, e calça de veludo negro. Sobre o tapete, seus pé
s estão descalços. Seu rosto é coberto por anéis de barba castanha, curta, barba
de alguém que a deixou crescer por necessidade. Por causa dos óculos que usou d
urante o verão polar, o côncavo dos olhos parece claro e frágil, vulnerável como
a pele cicatrizada de um ferimento. Sua testa é larga, meio escondida pela nasc
ente dos cabelos curtos, um pouco tombada em cima dos olhos e cortada por uma pr
ofunda ruga. Suas pálpebras estão inchadas, o branco de seus olhos é estriado de
vermelho. Não pode dormir, não pode mais chorar, não pode esquecer, é impossíve
l...
A aventura começou com uma missão de simples rotina, das mais banais. Havia anos
que o trabalho sobre o continente antártico não era mais feito pelos corajosos,
mas sim por sábios organizados. Havia todo o material necessário para lutar con
tra os inconvenientes do clima e da distância, para conhecer o que procuravam sa
ber, para assegurar aos pesquisadores um conforto equivalente ao de um hotel de
luxo. Todo o pessoal da equipe possuía os conhecimentos indispensáveis à missão.
Quando o vento soprava forte demais, fechavam-se e deixavam-no soprar; quando s
e acalmava, todos saíam e cada um fazia o que tinha a fazer. Sobre o recortado m
apa daquele continente, na Base Paul-Emile Victor, a missão francesa permanente
debruçava-se sobre a fatia que lhe coubera, dividia-a em pequenos quadrados e tr
apézios e os explorava sistematicamente um após outro. Sabia que não havia mais
nada a ser encontrado a não ser gelo, neve e vento, vento, gelo e neve. E, abaix
o, rochas e terra, como em toda parte. Não havia nisso nada de excitante, mas me
smo assim aquilo os apaixonava, porque eles estavam longe do óxido de carbono e
dos engarrafamentos, porque cada um dava a si próprio uma pequena ilusão de ser
um pouco de herói explorador, enfrentando grandes perigos, e principalmente porq
ue estavam no meio de amigos.
A missão acabara de fazer a exploração do trapézio 381, a documentação estava en
cerrada, uma cópia tinha sido enviada à sede em Paris. Restava-nos passar à tare
fa seguinte. Burocraticamente, do 381, deveríamos ter saltado para o 382, mas ne
m sempre as coisas aconteciam assim. Havia as circunstâncias, os imprevistos e a
necessidade de um mínimo de variedade.
A missão acabava de receber um novo aparelho de sondagem subglacial de concepção
revolucionária, que, segundo seu construtor, era capaz de descobrir os menores
detalhes do solo sob vários quilômetros de gelo. Louis Grey, o glaciólogo, 37 an
os, agregado de Geografia, estava ardendo de impaciência para pô-lo à prova, com
parar o seu trabalho com o das sondas clássicas. Foi então decidido que um grupo
iria fazer um levantamento do solo subglacial no quadrado 612, que se situava a
algumas centenas de quilômetros do Pólo Sul.
Em duas viagens, o pesado helicóptero depositou os homens, seus veículos, e todo
o material sobre o local de operação.
O lugar já havia sido bastante sondado pelos métodos e engenhos habituais. Sabia
-se que profundidades de 800 a 1.000 metros de gelo terminavam em abismos de mai
s de 4.000 metros. Aos olhos de Louis Grey, o local constituía um campo de exper
iência ideal para testar o novo aparelho. Era, acreditava ele, o que havia motiv
ado sua escolha. Hoje em dia, ninguém ousa acreditar.
Com tudo o que foi revelado depois, como se poderia pensar ainda que tinha sido
só o acaso, ou uma razão qualquer, que fizera vir esses homens com todo o materi
al necessário exatamente a este ponto do continente, ao invés de a qualquer outr
o ponto desse deserto de gelo maior que a Europa e os Estados Unidos juntos?
Muitos espíritos sérios acreditam agora que Louis Grey e seus companheiros tenha
m sido "chamados". De que maneira? Isso não foi esclarecido com os acontecimento
s seguintes. E nem mesmo se tratou disso. Havia problemas bem maiores e mais urg
entes a elucidar. Mas a verdade é que Louis Grey e mais onze homens, levados em
três snodogs, se colocaram exatamente no lugar certo.
E, dois dias depois, todos estes homens sabiam que tinham vindo ao encontro de u
m acontecimento inimaginável. Dois dias...
Como falar aqui de dias e de noites? Estávamos no princípio de dezembro, quer di
zer em pleno verão austral. O sol não se punha. Girava sobre os homens e os cami
nhões, em volta do seu mundo redondo, como para vigiar de longe e por todos os l
ados. Mais ou menos às 9 horas da noite, passava atrás de uma montanha de gelo,
reaparecia às 10 do outro lado dessa montanha, lá pela meia-noite parecia a pont
o de sucumbir e desaparecer sob o horizonte que começava a engoli-lo. Então se d
efendia, crescendo, deformando-se, tornando-se vermelho. Ganhava a batalha e rec
omeçava lentamente a percorrer suas distâncias e sua ronda de sentinela, ilumina
ndo ao redor da missão um imenso disco branco e azul de frio e solidão. Por outr
o lado, muito além desses limites longínquos sobre os quais montava guarda, atrá
s dele havia a Terra, as cidades e as multidões, os campos com suas vacas, as er
vas, as árvores e os passarinhos.
O Dr. Simon estava nostálgico. Acabava uma permanência de três anos, quase inint
errupta, nas diferentes bases francesas da Antártida, e estava mais do que cansa
do. Após esse estágio, deveria ter tomado o avião para Sidney. Ficou, porém, a p
edido do seu amigo Louis Grey, para acompanhar sua missão, pois o Dr. Jaillon, s
eu substituto, estava ocupado na base atacada por uma epidemia de rubéola.
Essa rubéola era inverossímil. Quase nunca se vêem moléstias na Antártida, dir-s
e-ia até que os micróbios têm medo do frio. Os médicos só têm que cuidar de acid
entes e, às vezes, de frieiras dos recém-chegados, que não deixam de cometer imp
rudências. Por outro lado, a rubéola quase que desapareceu da face da Terra depo
is que inventaram a vacina bucal que todos os recém-nascidos tomam nas suas prim
eiras mamadeiras. Apesar dessas evidências, havia rubéola na Base Victor. Um hom
em em cada quatro ardia de febre em sua cama, a pele transformada num tecido de
bolinhas.
Louis Grey juntou um grupo ainda ileso, em meio do qual estava o Dr. Simon, e em
barcou-o a toda pressa para o ponto 612, desejando ardentemente que o vírus não
os seguisse.
Se não tivesse sido a rubéola...
* Snodogs: caminhão-tanque montado em esteiras e colchões de ar.
Se naquele dia, ao invés de subir no helicóptero, eu tivesse embarcado no avião
para Sidney, se do alto da sua decolagem vertical, antes que ele se lançasse rug
indo em direção às terras quentes, eu tivesse dito adeus para sempre à base, ao
gelo, ao monstruoso continente frio, que teria acontecido?
Quem teria estado perto de ti, minha bem-amada, no momento terrível? Quem teria
visto em meu lugar? Quem teria sabido?
Alguém teria gritado, berrado o nome? Eu, eu não disse nada. Nada...
E tudo se consumou...
Desde então, repito a mim mesmo que era tarde demais, que se eu tivesse gritado
isso não teria mudado nada, e eu teria simplesmente ficado arrasado sob o peso d
e um desespero inexpiável. Durante aqueles poucos segundos, não teria havido bas
tante horror no mundo para encher teu coração.
Eis o que me repito sem cessar, desde aquele dia, desde aquela hora: "Muito tard
e... muito tarde... muito tarde..."
Mas talvez seja uma mentira que eu mastigo e torno a mastigar, e da qual tenha d
e me alimentar para viver...
Sentado numa esteira do snodog, o Dr. Simon sonhava com um croissant molhado num
café cremoso. Molhado, sumarento, para ser comido aos pequenos pedaços, mastiga
ndo devagar, à maneira dos bons parisienses. Era um prazer que lhe trazia as mel
hores lembranças, aquele de entrar no bistrot, aproximar-se do balcão, aspirando
o cheiro do café expresso, os pés sobre a serragem, lado a lado com os rabugent
os da manhã, compartilhando do seu primeiro prazer do dia, talvez o maior, o de
se encontrar neste lugar de primeiro encontro com os outros homens, sentindo o c
alor e as correntes de ar.
Não podia mais com todo este gelo e este vento, um vento que não cessava jamais
de fustigá-lo, de fustigar todos os homens da Antártida, metidos naquele deserto
glacial. Empurrava-os sem cessar, a eles e a suas barracas, antenas e caminhões
, para que se fossem, abandonassem o continente, e os deixassem, ele e a neve mo
rtal, consumar a sós, eternamente na solidão, suas monstruosas bodas ultragelada
s...
Era preciso ser verdadeiramente obstinado para suportar aquela vida. Simon tinha
chegado ao auge de sua obstinação. Antes de sentar-se, havia colocado uma cober
ta dobrada em quatro sobre a esteira do snodog, a fim de que suas nádegas ficass
em melhor protegidas.
Estava com o rosto voltado para o sol e esfregava as faces, escondidas pela barb
a, tentando convencer-se de que o sol o esquentava, se bem que lhe fornecesse ma
is ou menos tantas calorias quanto uma lanterna a óleo a três quilômetros de dis
tância. O vento tentava virar o seu nariz em direção a sua orelha esquerda. Viro
u a cabeça para receber o vento do outro lado. Pensava na brisa do mar à noite e
m Collioure, tão quente, mas que achavam fresca porque fazia muito calor durante
o dia. Pensava no indescritível prazer de se despir, de mergulhar na água sem s
e transformar em gelo, de se deitar sobre as areias quentes... Quentes! Isso lhe
pareceu tão inverossímil que ele riu.
Você agora ri sozinho? disse Brivaux. Estamos bem... Você estará com rubéola?
Brivaux estava por trás dele, a sonda a tiracolo, pendurada numa larga correia d
e pele de lobo que passava por trás do seu pescoço.
Estava pensando nos lugares do mundo onde faz calor disse Simon.
Não é rubéola, é meningite... Fique sentado assim, e você vai gelar até a alma..
. Olhe, venha ver um pouco isto aqui... Apontou-lhe o mostrador da sonda, com su
a folha registradora já em parte enrolada. Era um modelo comum como qual ele aca
bava de prospectar o setor que lhe tinha sido designado.
Simon levantou-se e olhou. Não entendia muito da parte técnica. O mecanismo do c
orpo humano lhe era mais familiar do que o de um simples isqueiro a gás. Mas tiv
era tempo, depois de três anos, de se familiarizar com os desenhos que traçava,
sobre o papel magnético, a grafite das sondas portáteis. Pareciam, em geral, com
o corte de um terreno vago, ou de um montão de ruínas, ou de não importa o quê,
que não se parecesse com coisa alguma. Ora, o que lhe mostrava Brivaux parecia
com qualquer coisa...
Com quê?
Com nada de conhecido, nada de familiar, mas...
Seu espírito, habituado a fazer a síntese dos sintomas para apresentar um diagnó
stico, compreendeu de repente o que havia de incomum nesse relevo do solo glacia
l. A linha reta não existe na natureza bruta. A linha curva regular também não.
O solo brutalizado, áspero, misturado no decorrer das idades geológicas, pelas f
ormidáveis forças da Terra, é sempre totalmente irregular. Ora, o que a sonda de
Brivaux havia inscrito sobre o papel era uma sucessão de curvas e de retas. Int
errompidas e quebradas, mas perfeitamente regulares. Que o solo pudesse apresent
ar um tal perfil, era totalmente improvável e mesmo impossível. Simon tirou a co
nclusão mais evidente:
Há qualquer coisa errada nesse negócio...
E você, você tem qualquer coisa errada aí dentro? Brivaux bateu com o dedo enluv
ado na sua cabeça.
Este aparelho funciona com perfeição. Gostaria de funcionar tão bem quanto ele a
té o meu último dia. Mas lá embaixo há qualquer coisa que não está bem...
Bateu na superfície do gelo com o salto da sua bota forrada.
Um perfil assim, não é possível continuou Simon.
Eu sei, isto não parece ser verdade.
E os outros? O que encontraram?
Não sei de nada, vou dar um toque de cometa para chamá-los... Subiu no laboratór
io do caminhão, e, três segundos depois, soava a sirena chamando os membros da m
issão de volta ao acampamento.
Aliás, eles já estavam prestes a voltar. Primeiro as duas equipes a pé, com suas
sondas clássicas. Depois o snodog, que tinha na frente o transmissor-receptor d
a nova sonda, uma armadura metálica entre suas duas lagartas. Um cabo vermelho o
ligava ao posto de comando e ao registrador, no interior do veículo. Estava tam
bém, no veículo, o mecânico Eloi, Louis Grey, impaciente para ver funcionar o no
vo instrumento, e um engenheiro da fábrica que tinha vindo para mostrar o seu fu
ncionamento.
Era um rapaz alto e magro, mais para louro, e de maneiras delicadas. Dava a impr
essão, por sua elegância natural, de ter feito cortar seus trajes polares numa c
asa de alta costura. Os veteranos não podiam deixar de sorrir ao olhá-lo. Eloi o
havia chamado de "Cornexquis" o que lhe assentava com perfeição.
Desceu do caminhão em silêncio, escutando com um ar reservado as apreciações de
Grey sobre seu "utensílio". Segundo a opinião do glaciólogo, a nova sonda falhar
a completamente. Ele nunca havia visto, nem mesmo no aparelho mais antigo, ser t
raçado um perfil igual àquele.
Mas o mistério não acaba aí... disse Brivaux, que esperava junto ao caminhão - l
aboratório.
Foi você quem chamou?
Fui eu, velhinho...
O que é que está acontecendo?
Entre e verá... E eles viram...
Não sou um técnico. Não me debruço sobre meus doentes: faço isso o menos possíve
l. Antes procuro compreendê-los. Para agir assim é preciso poder. Mas eu sou um
privilegiado... Meu pai, que era médico em Puteaux, via desfilar mais de cinqüen
ta clientes por dia no seu gabinete. Como saber o que eles são, o que eles têm?
Cinco minutos de exame, a pinça para perfurar, o cartão, a máquina de diagnóstic
o, a receita impressa, o selo de imposto, está pronto, pode se vestir, o seguint
e. Ele detestava sua profissão tal como ele e seus colegas eram obrigados a exer
cer. Quando se apresentou para mim a ocasião de vir para cá, ele me empurrou pel
os ombros com todas as suas forças: "Vai! Vai! Você terá um punhado de homens pa
ra tratar. Uma cidade! Você poderá conhecê-los..."
Ele morreu no ano passado, esgotado. Seu coração lhe falhou. Não tive nem tempo
para ir lá. Ele nunca pensou em perfurar seu cartão pessoal e colocá-lo na fenda
do seu médico eletrônico. Mas pensou em me ensinar umas tantas coisas que havia
aprendido com seu pai, médico em Auvergne. Por exemplo, a tatear o pulso, olhar
uma língua e o branco dos olhos. É prodigioso o que o pulso pode revelar sobre
o interior de um homem. Não somente sobre o estado momentâneo de sua saúde, mas
sobre suas tendências habituais, seu temperamento, e mesmo seu caráter, se ele é
superficial ou profundo, agressivo ou suscetível, sedoso ou áspero. Há o pulso
do saudável e o do doente, há também o pulso da caça e o do caçador.
Tenho também, como todos os médicos, um diagnosticador e pequenos cartões. Que m
édico não os tem? Só os uso para confortar aqueles que têm mais confiança na máq
uina do que no homem. Aqui, felizmente, eles não são muito numerosos. Aqui, o ho
mem conta.
Quando Brivaux deixou a fazenda de seu pai, para fazer em Grenoble os estudos qu
e o apaixonavam, havia calmamente dado uma olhada no programa e transposto todos
os obstáculos. Tendo saído em primeiro lugar da escola eletrônica com um ano ad
iantado, pôde transformar seu diploma de engenheiro numa ponte de ouro para qual
quer grande indústria do mundo. Mas escolheu a Base Victor. "Porque explicava el
e ao Dr. Simon, seu amigo tratar de eletrônica aqui, é divertido... Estamos a do
is dedos do pólo magnético, em pleno vaivém das partículas ionizadas, em pleno s
opro do vento solar, e mais uma quantidade enorme de coisas que não se conhecem.
Isso faz uma salada interessante. Pode-se fazer "misérias"...
Ele abria os braços horizontalmente e agitava os dedos, como se convidasse as co
rrentes misteriosas da Criação a penetrar no seu corpo e a percorrê-lo. Simon so
rria, imaginando-o um Netuno da eletrônica, em pé sobre o pólo, os cabelos plant
ados nas trevas do céu, sua barba vermelha mergulhada nas chamas da Terra, seus
braços estendidos no vento perpétuo dos elétrons, distribuindo à Natureza os flu
xos e refluxos vivos do planeta-mãe. Mas era nessas "misérias" que ele manifesta
va uma espécie de gênio. Seus grossos dedos cabeludos eram incrivelmente hábeis,
e sua ciência, associada a um instinto infalível, lhe dizia exatamente o que de
via fazer. Ele sentia essas correntes assim como os bichos sentem a água. E seus
dedos hábeis começavam a agir. Três pontas de fio, um circuito, três metais gra
nulados semicondutores, que ele virava, juntava, colava, ligava. Uma fumacinha,
um cheiro de resina - e pronto, um quadrante começava a viver, um arabesco palpi
tava na espessura da tela.
O problema que Lancieux lhe formulou não era um problema para ele. Em menos de u
ma hora havia trocado as três sondas clássicas e as equipes se repartiam. O que
iam procurar era tão espantoso que todos estavam convenci- dos de que iam voltar
, sem haver conseguido nada. Afora Lancieux, que conhecia bem seu aparelho, os d
emais pensavam que a pequena linha ondulada era efeito de um capricho da nova so
nda. Um "fantasma", como dizem os técnicos de televisão.
O sol se escondia por trás de uma montanha de gelo quando eles voltaram. Tudo es
tava azul, o céu, as nuvens, o gelo, os rostos e o vapor que saía de suas narina
s. O casaco vermelho de Bernard estava cor de abóbora. Eles não tinham voltado s
em nada conseguir. A linha ondulada estava gravada em suas fitas registradoras,
sob a forma de uma linha reta. Menos detalhada, ela havia perdido sua pequena on
dulação, mas ela estava lá. Bem que haviam encontrado o que tinham ido procurar.
Comparando seus levantamentos e o de Lancieux, Grey pôde localizar um ponto cert
o do solo subglacial. Projetou o perfil sobre a tela do snodog. Aquilo parecia r
epresentar um pedaço gigantesco de escada, virado e quebrado.
Meus filhos disse Grey com uma voz controlada lá... lá tem... Na mão esquerda, s
egurava uma folha de papel que tremia. Calou-se, pigarreou. Sua voz não consegui
a mais sair. Batia na tela com seu papel que se amassava.
Engoliu a saliva, explodiu:
Meu Deus, isso é loucura! Mas existe! As quatro sondas não podem ter enlouquecid
o exatamente da mesma maneira! Não há somente ruínas, no meio dessa camada, lá,
nesse lugar aí, justamente aí, há um emissor de ultra-sons que funciona!
Seria a pequena linha misteriosa o registro de um sinal enviado por um emissor q
ue funcionava, segundo toda lógica, há mais de novecentos mil anos? Tal suposiçã
o ultrapassava a história e a pré-história, derrubava todos os credos científico
s, não estava no alcance daquilo que aqueles homens sabiam. O único que aceitava
o acontecimento com calma era Brivaux, o único nascido e educado no campo. Os o
utros, nas cidades, tinham crescido no meio do provisório, do efêmero, do que se
constrói, se queima, se desmorona e se transforma. Ele, na vizinhança das rocha
s alpinas, tinha aprendido a ver a grandeza e a perscrutar a eternidade das cois
as.
Vão pensar que estamos loucos disse Grey.
Chamou a base pelo rádio e pediu o helicóptero com urgência para ir buscar o gru
po. Mas havia esquecido da rubéola. O último piloto disponível acabara de cair d
e cama. Tem o André que está melhorzinho disse o rádio da base dentro de três ou
quatro dias poderemos mandá-lo. Mas por que é que vocês querem voltar? O que fo
i que aconteceu? Pegou fogo nas geleiras?
Grey cortou. Enfim, essa brincadeira boba adiantara de certo modo.
Dez minutos mais tarde, o chefe da base, Pontailler, chamava outra vez, muito pr
eocupado. Queria saber qual a razão da missão querer voltar. Grey tranqüilizou-o
, porém recusou-se a dizer o que quer que fosse.
Não bastará que eu lhe diga, é preciso que lhe mostre disse senão você vai pensa
r que ficamos todos malucos. Mande-nos buscar logo que for possível.
E desligou.
Quando o helicóptero chegou ao ponto 612, cinco dias mais tarde, Pontailler esta
va nele e foi o primeiro a saltar em terra.
Os homens de Grey haviam passado aqueles cinco dias numa excitação e numa alegri
a crescentes. Acabado o estupor devido ao choque inicial, eles haviam aceito as
ruínas, aceito o emissor, e os haviam adotado. O próprio mistério e sua inveross
imilhança os exaltavam assim como crianças que entram numa floresta onde as fada
s existem de verdade. Haviam acumulado os levantamentos E os registros. Bernard,
baseado nas coordenadas fornecidas pelos aparelhos, trabalhava numa espécie de
plano piloto, cheio de lapsos e de partes em branco, mas que já tomava o aspecto
de uma paisagem fantástica, mineral, deserta, desconhecida, porém humana.
Brivaux havia trazido um magnetofone e o havia acoplado ao registrador da sonda
nova. Obteve uma fita magnética e convidou seus amigos para escutá-la. Eles não
ouviram ruído nenhum, nada de nada.
Esse seu "troço" deve estar meio esburacado! resmungou Elói...
Brivaux sorriu.
Está tudo em silêncio disse ele. Vocês não podem ouvir os ultra-sons.
Mas eles estão lá, isso eu garanto. Para ouvi-los, seria preciso um redutor de f
reqüência. Eu não tenho. Na base também não há. Seria preciso ir a Paris.
Seria preciso ir a Paris. Esta foi também a conclusão de Pontailler que a princí
pio havia recusado para depois aceitar a evidência da descoberta. Não se podia n
em mesmo falar sobre isso pelo rádio, com todos os ouvidos do mundo atentos noit
e e dia ao menor segredo. Era preciso levar todos os documentos à sede em Paris.
O chefe das Expedições Polares decidiria o que e a quem comunicar. Enquanto esp
eravam, todos deviam ficar calados. Como dizia Elói, "isso poderia ser algo de d
iferente".
Peguei o avião para Sidney, com duas semanas de atraso, e o desejo de voltar o m
ais depressa possível. Não estava mais atormentado por aquele desejo de café cre
me. Nem um pouco. Havia lá, embaixo do gelo, qualquer coisa de bem mais excitant
e que o odor dos cafés parisienses.
O avião ganhou velocidade na pista, subiu no ar como uma bolinha de plástico sob
re um repuxo, virou um pouco no mesmo lugar à procura da sua direção; depois, co
m um ruído ensurdecedor, atirou-se rumo ao norte e para cima, a 50 graus de incl
inação. Apesar das cadeiras reclinadas e acolchoadas como amas-de-leite, é engra
çada a sensação que dá ao subir, com tal inclinação e muita velocidade. O avião
levava somente viajantes experimentados e não corria o risco de quebrar as janel
as por conta do bang. Então os pilotos pouco ligavam para o resto...
Ele me levava com minhas valises e minha pasta, que continha, além da escova de
dentes e o pijama, os microfilmes dos levantamentos e do plano piloto de Bernard
, a fita magnética, as cartas de Grey e de Pontailler autenticando tudo isso.
Eu levava também, sem saber, o vírus da rubéola, que iria dar a volta ao mundo s
ob o nome de rubéola australiana. Os laboratórios farmacêuticos fabricaram a tod
a pressa uma nova vacina e ganharam muito dinheiro.
Só cheguei a Paris dois dias depois da minha partida. Ignorava que tinha se torn
ado muito difícil atravessar os oceanos. No nosso isolamento de gelo, havíamos e
squecido os ódios estúpidos do mundo, que haviam crescido mais e se ramificado d
urante esses três anos. A estupidez generalizada evocava para mim a idéia de cãe
s enormes acorrentados uns diante dos outros, cada um forçando a sua corrente, n
ão pensando senão em rompê-la para ir abocanhar o cão que estava à sua frente. S
em razão. Simplesmente porque é um outro cão. Ou talvez porque esteja com medo..
.
Li os jornais australianos. Havia pequenos incêndios espalhados pelo mundo intei
ro. Eles haviam crescido depois da minha partida para a Antártida. E haviam-se m
ultiplicado. Em todas as fronteiras, à medida que se tiram as barreiras alfandeg
árias, barreiras policiais as substituem. Desembarcado no aeroporto de Sidney, n
ão fui autorizado nem a sair nem a partir novamente. Faltava não sei qual visto
militar no meu passaporte. Foram-me necessárias 36 horas de discussão furiosa pa
ra finalmente poder pegar o jato com destino a Paris. Eu tremia com a idéia de q
ue eles pudessem meter o nariz nos meus microfilmes. Que teriam imaginado? Porém
ninguém me pediu para abrir a pasta. Poderia muito bem estar transportando os p
lanos das bases atômicas. Mas isso não os interessava. Precisavam do visto, nada
mais. Era a estupidez. Era o mundo organizado.
Logo que Simon lhe entregou o conteúdo de sua pasta, Rochefoux, chefe das Expedi
ções Polares Francesas, tomou-o na mão com sua energia habitual. Ele tinha quase
80 anos, o que não impedia de passar todos os anos algumas semanas na proximida
de de um ou de outro pólo. Seu rosto era cor de tijolo, seus cabelos curtos de u
m branco brilhante, seus olhos azul-celeste, seu sorriso otimista, tornavam-no i
dealmente fotogênico para a televisão, que não perdia uma oportunidade de entrev
istá-lo, de preferência em primeiro plano.
Naquele dia, ele as havia convocado todas, as do mundo inteiro e toda a imprensa
, no fim da reunião da Comissão da UNESCO. Ele havia decidido que o segredo já h
avia sido guardado durante, bastante tempo, e tinha a intenção de sacudir a UNES
CO, como um fox-terrier sacode um rato, a fim de poder obter toda a ajuda necess
ária, imediatamente.
Num grande escritório do 7º andar, os operadores do Centro Nacional de Pesquisas
Científicas acabavam de instalar seus aparelhos sob a direção de um engenheiro.
Rochefoux e Simon de pé diante da grande janela, olhavam os dois oficiais trota
r seus cavalos alazões na perspectiva retangular do pátio da Escola Militar.
A Praça Fontenoy estava cheia de jogadores de pelanque que sopravam nos dedos an
tes de jogar as pesadas bolas.
Rochefoux pigarreou e virou-se. Não gostava nem dos ociosos nem dos militares. O
engenheiro informou que tudo estava pronto. Os membros da Comissão começaram a
chegar e a tomar lugar ao longo da mesa, diante dos instrumentos. Eram dois negr
os, dois amarelos, quatro brancos e três mulatos. Mas o sangue de todos eles mis
turados, formaria um só sangue bem vermelho. No momento em que Rochefoux começou
a falar, a atenção e emoção deles foram únicas.
Duas horas mais tarde, eles sabiam tudo, haviam visto tudo, haviam feito cem per
guntas a Simon. Rochefoux concluiu, mostrando sobre a tela um ponto do mapa que
ali estava projetado:
- La no ponto 612 do continente antártico, sobre o paralelo 88, sob 980 metros d
e gelo, há os retos de qualquer coisa que foi construída por uma inteligência e
há milênios emite um sinal. Há novecentos mil anos, este sinal diz: "Estou aqui,
eu os estou chamando, venham..." Pela primeira vez, os homens vieram a ouvi-lo.
Vamos hesitar? Nós salvamos os templos do vale do Nilo. Mas a água sempre cresc
ente da barragem de Assuã nos jogava para trás. Aqui, evidentemente, não há nec
essidade, não há urgência! Mas há qualquer coisa de bem maior: há o dever de con
hecer, de saber. Chamam-nos. É preciso ir! Isto exige de nós meios consideráveis
. A França não pode fazer tudo. Ela fará a sua parte. E pede às outras nações pa
ra se juntarem a ela. O delegado americano desejava alguns detalhes. Rochefoux p
ediu-lhe que tivesse paciência, e continuou:
- Esse sinal, vocês o viram sob a forma de uma simples linha escrita sobre um qu
adrilátero. Agora, graças aos meus amigos do Centre National de Recherches Scien
tifiques, que o ouviram de todas as maneiras possíveis, vou fazê-los ouvir...
Fez sinal ao engenheiro, que colocou um novo circuito sob tensão. No começo, u
rgiu na tela do osciloscópio uma linha reta luminosa como o mi de um violão, enq
uanto que se ouvia um assobio superagudo que fez Simon caretear. O negro mais ne
gro passou a língua sobre os lábios ressequidos. O branco mais louro colocou seu
dedo indicador no ouvido e agitou-o violentamente. Os dois amarelos fecharam co
mpletamente a brecha dos seus olhos. O engenheiro do CNRS apertou lentamente um
botão. O som superagudo tornou-se agudo. Os músculos se distenderam. Os maxilare
s se relaxaram. O agudo baixou, o assobio tornou-se um trinado. Começaram a toss
ir e a limpar a garganta. Sobre a tela do osciloscópio a linha reta tinha-se tor
nado ondulada.
Lentamente, lentamente, a mão do engenheiro fazia descer o sinal, do agudo ao gr
ave, em toda a escala das freqüências. Quando chegou ao limite dos infra-sons,
foi como uma massa de feltro batendo na pele de um tambor gigantesco. E cada bat
ida fazia tremer os ossos, a carne, os móveis, os muros da UNESCO até suas raize
s. Era semelhante às batidas de um coração enorme, o coração de um animal inimag
inável, o coração da própria Terra.
No dia seguinte, lia-se nos títulos da imprensa francesa: "A maior descoberta de
todos os tempos", "Uma civilização congelada", "A UNESCO vai derreter o Pólo Su
l".
Um jornal inglês perguntava em sua manchete principal: "Quem ou quê?"
Em redor de uma mesa em forma de meia-lua estão os Vignont, família francesa: o
pai, a mãe e um casal de filhos. Na tela da tevê, penduradas na parede diante de
les vêem o jornal televisionado, enquanto jantam. Os pais dirigem uma loja da Un
ião Européia de Calçados. A filha segue um curso na Escola de Artes Decorativas.
O filho se arrasta entre o segundo e o terceiro ano do ginásio.
Na tela assiste-se à entrevista de uma etnóloga russa, transmitida diretamente p
elo satélite. Ela fala em russo, com tradução simultânea.
A senhora pediu para fazer parte da expedição encarregada de elucidar o que se c
hama o mistério do Pólo Sul. A senhora espera encontrar traços humanos sob mil m
etros de gelo?
A etnóloga sorri.
Se existe uma cidade, ela não foi construída por pingüins...
Não existem pingüins no Sul. Só existem manchots. Mas uma etnóloga não é obrigad
a a saber disso.
O Secretário Geral da UNESCO anuncia que os Estados Unidos, a URSS, a Inglaterra
, a China, o Japão, a União Africana, a Itália, a Alemanha, e outras nações fize
ram saber que dariam todo o seu apoio material à empreitada de degelo do ponto 6
12. Os preparativos vão ser apressados. Tudo estará pronto em princípio do próxi
mo verão polar.
A televisão fazia entrevistas com populares:
Você sabe onde é o Pólo Sul?
Bem... eu...
E você?
Ora... é lá em baixo...
E você?
É ao sul!
Bravos. Você gostaria de ir lá?
Eu não, bolas.
Por quê?
Bem, deve fazer muito frio.
Na mesa em forma de meia-lua, a mãe Vignont sacudiu a cabeça:
Como eles são bobos de fazer essas perguntas assim! Refletiu um segundo e depois
acrescentou:
É claro que lá não deve fazer calor... O pai Vignont replicou:
Imagine só o que isso vai custar em dinheiro! Seria muito melhor que eles constr
uíssem parqueamentos...
Na tela apareceu o plano piloto de Bernard.
Mas mesmo assim é um bocado gozado encontrar isto naquele lugar disse a mãe.
Não é novo disse a filha - é pré-colombiano...
O filho nem olhou. Enquanto comia, lia as historinhas de aventuras de Billy Kid.
Sua irmã o sacudiu.
Olha um pouco! Não é gozado? Ele sacudiu os ombros.
Besteiras disse ele.
Um engenho monstruoso afundava-se no flanco da montanha de gelo, projetando atrá
s de si uma nuvem de fragmentos transparentes que o sol atravessava e coloria co
m um arco-íris.
A montanha já estava cortada por umas trinta galerias em volta das quais haviam
instalado, no coração vivo do gelo, os entrepostos e os emissores de rádio e tel
evisão da EP1 Expedição Polar Internacional. A cidade na montanha chamava-se EPI
-1 e a que estava abrigada sob o gelo no platô 612 chamava-se EPI-2. Esta compre
endia todas as outras instalações e a pilha atômica que fornecia a força, a luz
e o calor às duas cidades protegidas e a EPI-3, a cidade da superfície composta
dos hangares, dos veículos e de todas as máquinas que atacavam gelo de todas as
maneiras que a técnica podia imaginar.
Jamais uma empreitada internacional desse tamanho fora realizada. Parecia que os
homens haviam encontrado, com alívio, a tão sonhada ocasião de esquecer ódios,
de confraternizar num esforço totalmente desinteressado.
A França era a potência que convidara, o francês tinha sido escolhido como língu
a de trabalho. Mas para tornar as relações mais fáceis, o Japão havia instalado
na EPI-2 uma máquina tradutora de ondas curtas. Ela traduzia imediatamente discu
rsos, os diálogos que lhe eram transmitidos, e emitia a tradução em dezessete lí
nguas sobre dezessete ondas diferentes. Cada sábio, cada chefe de equipe e técni
co importante, havia recebido um receptor adesivo, que não era maior que uma erv
ilha, no comprimento de onda da sua língua materna, que e mantinha permanentemen
te no ouvido, e um emissor-alfinete que levava geralmente preso à lapela ou ao o
mbro. O manipulador de bolso, da espessura de uma moeda, lhe permitia se isolar
do barulho das mil conversas quando dezessete traduções se misturavam no éter, n
uma confusão de Babel, e permitia lecionar o diálogo do qual se desejava partici
par.
A pilha atômica era americana, os helicópteros pesados eram russos, as roupas ac
olchoadas eram chinesas, as botas finlandesas, o uísque escocês e a cozinha fran
cesa. Havia máquinas e aparelhos ingleses, alemães, italianos, canadenses, carne
da Argentina e frutos de Israel. O condicionamento de temperatura e o conforto
no interior do EPI-1 e 2 eram americanos. E eram tão perfeitos que poderiam rece
ber visita de mulheres.
Um poço se afundava no gelo translúcido, partindo numa linha vertical do ponto o
nde havia sido localizado o emissor do sinal. Tinha onze metros de diâmetro. Uma
torre de ferro semelhante a um derrick o dominava, trepidante de motores, fumeg
ante de vapores, que o vento transformava em echarpes de neve. Dois elevadores l
evavam para as profundezas os homens e o matéria" que se afundavam cada dia um p
ouco, rumo ao coração do mistério.
A 917 metros, os mineiros do frio encontraram um pássaro no gelo. Era vermelho,
com o peito branco, as patas alaranjadas, uma crista da mesma cor, o bico amarel
o, largo, entreaberto, o olho ruço e preto, brilhante. Tinha as asas meio aberta
s, distorcidas, a cauda em leque, as patas bem abertas como se tentasse frear, d
ando a impressão de se debater numa rajada de vento que o pegara por trás. Estav
a eriçado como uma chama.
Recortaram ao seu redor um cubo de gelo e ele foi enviado para a superfície...
O comitê diretor da expedição decidiu deixá-lo em sua embalagem natural. Foi col
ocado num refrigerador transparente, e os sábios começaram a discutir sobre o se
u sexo e sua espécie. A tevê tornou sua imagem conhecida no mundo inteiro.
Quinze dias mais tarde, em plumas, em pelúcia, de seda, de lã, de plástico, de m
adeira e de penas, ele inundava a moda e as lojas de brinquedos. No fundo do poç
o os entalhadores de gelo tinham atingido as ruínas.
O Professor João de Aguiar, delegado do Brasil, presidente em exercício da UNESC
O, subiu à tribuna e virou-se para a assistência. Estava de casaca. Na grande sa
la de conferências, havia naquela tarde não somente sábios, diplomatas e jornali
stas, mas também o tout-Paris muito parisiense e o tout-Paris internacional.
Acima da cabeça do Professor Aguiar, a maior tela de tevê do mundo ocupava quase
toda a parede do fundo. Ela ia receber e mostrar em relevo holográfico a emissã
o vinda do fundo do poço, emitida pela antena do EPI-1 e retransmitida pelo saté
lite Trio.
A tela iluminou-se. O busto gigantesco do presidente apareceu, em cores pastéis,
um pouco enfeitadoras, em relevo perfeito.
Os dois presidentes, o pequeno em carne e osso e sua grande imagem, ergueram a m
ão direita num gesto amigável e falaram. Isto durou sete minutos. Concluiu infor
mando: "Uma sala pôde ser talhada no gelo, no meio das ruínas extraordinárias. S
alvo alguns heróicos pioneiros da ciência humana que cruzaram o poço com sua téc
nica e sua coragem, ninguém ainda no mundo as viu. E o mundo inteiro vai, dentro
de um instante, descobri-las. Quando eu apertar este botão, graças ao milagre d
as ondas, lá, do outro lado do mundo, os projetores se iluminarão e a imagem daq
uilo que talvez tenha sido a primeira civilização do mundo, á enviada a todos os
lares da civilização de hoje..."
Na sua pequena cabina, o realizador vigiava na tela de controle a imagem do pres
idente. Os dois abaixaram o dedo polegar ao mesmo tempo. Nos confins do mundo a
sala de gelo iluminou-se.
O que logo viram todos os espectadores foi um cavalo branco. Ele estava de pé, p
or trás da superfície de gelo. Magro, grande, alongado, parecia prestes a cair d
e lado, relinchando de medo, os lábios arreganhados sobre os dentes, sua crina e
sua cauda flutuavam, imóveis, há novecentos mil anos.
O tronco partido de uma árvore gigantesca estava caído e atravessado atrás dele.
Nas palmas de sua folhagem, no teto da sala, aparecia a goela aberta de um tuba
rão. Um lance de escadas enormes, ou de pequenos degraus amarelos, descendo da n
oite, se perdiam na escuridão.
Em frente, uma flor flamejante, grande como uma rosácea de catedral, espalhava t
rês quartos de suas pétalas púrpuras. À sua direita, erguia-se um trecho destruí
do de muro cor-de-rosa, de uma matéria desconhecida, que não era completamente o
paca. Aí se abria uma espécie de porta, ou de janela, através da qual se viam, i
móveis, um pequeno roedor com a cauda em pé, as patas para o ar, e um bando de o
uriços azuis. Mais abaixo, notava-se o pico de uma larga pista helicoidal feita
de um metal que parecia com o aço. Tudo envolto na bruma de um mundo gelado.
A segunda operação começou. Uma mangueira de ar foi dirigida para a parede onde
estava um pedaço de muro. Aos olhos do mundo inteiro, o primeiro fragmento do pa
ssado embalsamado ia ser libertado da sua canga.
O ar quente jorrou, afundando-se no gelo que começou a derreter. Uma mangueira d
e sucção aspirava a lama que se formava, uma outra engolia a água da fonte e tor
nava a enviá-la à superfície.
A parede de gelo começou a diminuir, recuar, até que o muro verde apareceu. E so
bre as telas, a imagem distorcida, deformada pelas gotas que escorriam das câmar
as blindadas, mostrou esse fenômeno inacreditável: o muro fundiu ao mesmo tempo
que o gelo...
Os ouriços e o roedor de patas para o ar derreteram-se e sumiram. O ar quente ha
via invadido toda a sala. Todas as paredes se fundiam. Do teto, cataratas corria
m sobre os homens de escafandros. As palmas da árvore se derreteram. A goela do
tubarão derreteu-se como um chocolate. Duas das pernas do cavalo e o seu flanco
se derreteram. O interior do seu corpo apareceu, vermelho e fresco. A flor verme
lha transformou-se em água sangrenta. O ar morno atingiu o alto da pista helicoi
dal de aço, e o aço se fundiu.
Os jornais exploraram com sensacionalismo o assunto. As suas manchetes diziam: "
A maior decepção do século". "A cidade embalsamada não era senão um fantasma". "
Milhões engolidos por uma miragem".
Uma entrevista televisionada de Rochefoux colocou as coisas no lugar. Ele explic
ou que a enorme pressão sofrida durante milênios havia dissociado os corpos mais
resistentes até suas moléculas. Mas o gelo mantinha na sua forma primitiva a po
eira impalpável na qual eles se tinham transformado. Ao fundirem- se, a poeira o
s libertava e eram arrastados pela água.
Vamos adotar uma nova técnica acrescentou Rochefoux. Recortaremos o gelo com os
objetos que ele contém. Não renunciamos a descobrir o segredo dessa civilização
que nos vem da noite dos tempos. O transmissor de ultra-sons continua a emitir s
eu sinal. Nós continuamos a descer em sua direção...
A 978 metros abaixo da superfície do gelo, o poço atingiu o solo do continente.
Mas o sinal emitido vinha do subsolo.
Depois de ter se enfiado no gelo, o poço afundou-se mais dentro da terra, e depo
is dentro da rocha. Em seguida, esta apareceu muito dura, vitrificada, como se t
ivesse sido cozida e comprimida, e que depois se enrijecesse cada vez mais. Sua
consistência deixou os geólogos desconcertados. Ela apresentava uma dureza, uma
compacidade desconhecida em qualquer outro ponto do globo. Era uma espécie de gr
anito, mas as moléculas que o compunham pareciam ter sido ordenadas e arrumadas
para ocupar um mínimo de lugar possível e oferecer um máximo de coesão. Depois d
e ter quebrado uma quantidade de ferramentas mecânicas, chegamos finalmente ao f
im da rocha, e a 107 metros abaixo do gelo, encontramos areia. Esta areia era um
absurdo geológico. Não poderia ser encontrada aí. Rochefoux, sempre otimista, d
izia que ela deveria ter sido trazida para aquele lugar. Isto era uma prova de q
ue estávamos no bom caminho.
O sinal continuava chamando, cada vez mais para o fundo. Era preciso continuar d
escendo.
Continuamos.
Após atingirmos a areia, fomos obrigados a fechar o poço antes mesmo de tê-lo ca
vado, enfiando um invólucro metálico na areia, tão seco e móvel quanto a de uma
ampulheta e que escorria como água.
A dezesseis metros abaixo da rocha, um mineiro seguro pelas cordas começou a faz
er gestos frenéticos e a gritar qualquer coisa que sua máscara contra poeira tor
nava incompreensível. O que ele queria dizer é que sentia qualquer coisa dura so
b seus pés.
O aspirador, enfiado na areia, subitamente começou a fazer barulho e a vibrar at
é que seu tubo achatou-se. Higgins, o engenheiro, que do alto da plataforma supe
rvisionava os trabalhos, desligou o motor. Juntou-se aos mineiros, e começou a e
scavar com precaução, primeiro com a pá, depois com a mão, depois com uma vassou
ra.
Quando Rochefoux desceu, acompanhado de Simon, de Brivaux, da atraente antropólo
ga Leonova, chefe da delegação russa, e do químico Hoover, chefe da delegação am
ericana, encontraram no fundo do poço, já limpa de toda a areia fina, uma superf
ície metálica, ligeiramente convexa, unida, de cor amarela.
Hoover pediu que parassem os motores, mesmo o da ventilação, e que todos se abst
ivessem de falar ou de mexer.
Houve então um silêncio extraordinário, protegido dos barulhos da Terra por cem
metros de rocha e um quilômetro de gelo. Hoover ajoelhou-se e o seu joelho esque
rdo estalou. Com o dedo indicador dobrado, ele bateu na superfície do metal. Ouv
iu-se somente um barulho frágil: aquele da carne frágil de um homem de encontro
a um obstáculo maciço.
Houver tirou um martelo de cobre da sua maleta e bateu no metal, primeiro suavem
ente, depois com grandes golpes. Não houve nenhuma ressonância.
Hoover resmungou e inclinou-se para examinar a superfície. Não tinha marca nenhu
ma dos golpes. Tentou ver se tirava uma amostra. Mas sua tesoura de tungstênio e
scorregou sobre a superfície e não conseguiu prendê-la.
Então jogou diferentes ácidos que logo examinava com espectroscópio portátil. Le
vantou-se. Estava perplexo.
Não compreendo o que o torna tão duro. Ele é praticamente puro.
Ele, por que ele? Que metal é este? Leonova perguntou irritada.
Hoover era um gigante avermelhado, barrigudo e bonachão, com movimentos lentos.
Leonova era miúda e morena, nervosa. Era a mulher mais bonita da expedição. Hoov
er olhou-a sorridente.
O quê! Você não reconheceu? Você, uma mulher?... É ouro!...
Brivaux tinha feito seu aparelho registrador funcionar. O papel se desenrolava.
A delgada linha registradora aparecia sem um colchete, sem uma interrupção.
O sinal vinha do interior do ouro.
Parecia que o poço tinha atingido uma grande esfera, não exatamente no seu cimo,
mas um pouco do lado. Uma grande parte da superfície fora limpa, mas pelos lado
s tudo parecia afundado em areia.
Limparam o ponto mais alto da esfera e o transpuseram. Logo depois fizeram a pri
meira descoberta reveladora. No metal aparecia uma série de círculos concêntrico
s, o maior tendo mais ou menos três metros de diâmetro. Esses círculos eram comp
ostos de uma fileira de dentes agudos e baixos inclinados como para funcionar no
sentido de uma rotação.
Isto parece a extremidade de uma escavadora disse Hoover. Para fazer um buraco!
Para sair de lá de dentro!...
Você acredita que seja oco e que exista alguém lá dentro? disse Leonova.
Hoover fez uma careta.
Talvez...
Ele acrescentou:
Antes de pensar em sair, foi preciso que eles entrassem. Em algum lugar deve exi
stir uma porta!...
Duas semanas depois do primeiro contato com o objeto de ouro, os diversos instru
mentos de sondagem haviam fornecido bastantes conhecimentos para que pudessem ti
rar conclusões provisórias:
O objeto parecia ser uma esfera pousada sobre um pedestal, o todo colocado num b
olso cheio de areia e afundado numa rocha artificialmente endurecida A areia ser
viria sem dúvida para isolar o objeto dos abalos sísmicos e de todos os moviment
os terrestres. A esfera e seu pedestal pareciam estar solidários e formar um só
bloco. A esfera tinha 27 metros e 42 de diâmetro e era oca. A espessura de sua p
arede era de 2m92.
Resolveu-se começar por tirar toda a areia e a esvaziar o bolso rochoso para sol
tar o objeto de ouro, pelo menos até a metade.
A letra A marca a porção do bolso rochoso desembaraçada de areia. A letra B indi
ca a porção ainda cheia de areia. Na letra C inicia-se a extremidade do poço. O
E designa a esfera e o P o pedestal. Continuávamos a chamar assim a este último,
embora ficasse depois evidente que ele não servia de maneira nenhuma de suporte
para a esfera. A sondagem havia revelado que ele era oco como esta última.
Um desenho mostra a realidade, os números são inexpressivos. Para materializar
o que representavam os 27 metros de diâmetro da esfera, é preciso se dizer que é
a altura de um prédio de dez andares. E, tomando em consideração a espessura da
sua parede, restava ainda lugar, no interior, para um prédio de oito andares.
O número 1 marca o lugar da cabeça da máquina de perfurar.
O número 2 marca o lugar da porta. Pelo menos supunha-se que se tratasse de uma
porta. Era um círculo de um diâmetro um pouco superior ao da mão de um homem, de
senhado na parede pelo que parecia ter sido uma solda.
Do momento em que descobrimos a porta, uma ponte provisória foi colocada na arei
a para receber sábios e técnicos que desciam numa espécie de caixa improvisada e
que podia ser dirigida.
Brivaux fez com que seu pequeno aparelho de quadrantes passeasse ao longo de tod
a a circunferência.
Está soldada por todos os lados disse ele em toda a sua espessura.
Dê-nos a espessura do centro pediu Leonova.
Colocou seu aparelho no centro do círculo e leu o número sobre o quadrante:2m92.
Era a largura geral da parede da esfera.
Uma vez a marmita cheia, soldaram a tampa disse Hoover. Isto dá mais a idéia de
um túmulo do que de um abrigo.
E a perfuratriz? disse Leonova. É para fazer sair o quê? O gato?
Vai ver que naquele tempo nem existia gato, minha bonequinha disse Hoover.
Com a sua cordial má educação americana, que tinha sido agravada pelos inúmeros
anos vividos em Paris, no Quartier Latin e em Montparnasse, ele quis passar seu
dedo indicador sob o queixo dela.
Seu dedo tinha o tamanho e a cor de um salsichão, com manchas de sardas coberto
de pêlos ruivos.
Furiosa, Leonova deu um tapa na mão que subia em direção ao seu rosto
Ela morde! disse Hoover sorrindo. Ora, boneca, vamos subir. Passe primeiro...
A caixa podia levar duas pessoas, mas Hoover contava por três. Ele ergueu Leonov
a como uma pluma e colocou-a sobre um banquinho de ferro. Gritou
Puxem!
A caixa começou a subir. Ouviu-se um barulho e gritos. Alguma coisa atingiu Hoov
er na altura das canelas, ele caiu para trás e sua cabeça bateu contra um obstác
ulo duro. Ouviu um estalo no interior do seu crânio e desmaiou. Acordou num leit
o da enfermaria. Simon, inclinado sobre ele, olhava-o com um sorriso otimista. H
oover bateu duas ou três vezes as pálpebras para sair daquela espécie de inconsc
iência e perguntou bruscamente:
E a moça?
Simon sacudiu a cabeça com uma careta tranquilizadora.
O que foi que aconteceu? perguntou Hoover.
Um desmoronamento. Toda a parede acima do corredor caiu.
Há feridos?
Dois mortos...
Simon havia pronunciado estas palavras em voz baixa, como se tivesse vergonha de
fazê-lo. Os dois primeiros mortos da expedição... Um mineiro do agrupamento e u
m marceneiro francês. Companheiros do dever, que trabalhavam no cofre. Houve tam
bém quatro feridos, entre os quais um eletricista japonês em estado grave.
O corredor está designado no desenho pela letra D.
Na parede de rocha desenhava-se uma abertura que deve ter sido retangular e que
cumulava uma mistura caótica de pedaços de rocha, de uma espécie de cimento e de
formas metálicas retorcidas e devolvidas à sua origem mineral Entre essa abertu
ra e a porta da esfera, haviam encontrado na areia a mesma espécie de destroços,
que eles haviam cuidadosamente embrulhado e enviado à superfície, para exame e
análise.
O corredor tinha sido chamado assim porque os sábios pensavam que ele fosse o fi
m de uma passagem, mas suas proporções faziam crer mais num esboço de uma sala b
astante ampla. Fosse como fosse, era sem dúvida a partir de lá que os homens do
passado se se tratassem de homens, mas o que mais poderia ser? tinham atravessad
o e endurecido a rocha, trazido a areia e construído a esfera. Era o cordão umbi
lical a partir de que esta se desenvolvia na sua placenta rochosa. Era claro que
o corredor vinha de alguma parte e podia para lá nos conduzir. Íamos abrir pass
agem através dele, mas antes tínhamos de explorar a esfera, conforme havia decid
ido a assembléia de sábios.
E eu, o que é que tenho?
Hoover quis apalpar seu crânio, mas os dedos não chegavam até lá: sua cabeça est
ava envolta numa espessa atadura.
Está quebrada? perguntou Hoover.
Não. O couro cabeludo se abriu, houve uma contusão no osso, e um pequeno pedaço
de granito enfiou-se no occipital. Já o extraí, não estava muito fundo. Está tud
o bem agora.
Brrruu... fez Hoover.
Relaxou-se e afundou-se com prazer no travesseiro.
No dia seguinte, ele já assistia à reunião de informação, na Sala das Conferênci
as. Quando subiu ao pódio para tomar lugar à mesa do comitê diretor do EPI perce
beu primeiro uma onda de risos. Havia saído do leito para vir, e havia simplesme
nte enfiado seu robe de chambre cor de framboesa amassada com pequenas meias-lua
s azuis e verdes. Seu ventre volumoso erguia a faixa da cintura e uma das pontas
caía até suas botas de pele de urso branco, que usava para andar dentro de casa
. Sua atadura redonda em forma de turbante acabava de lhe dar um ar extravagante
, que provocava risos à primeira vista, Rochefoux, que presidia a sessão, levant
ou-se e abraçou-o. Uma onda de aplausos cobriu a onda de risos. Todo mundo gosta
va de Hoover, e todos sabiam que ele tinha sido vítima de um acidente.
A sala estava cheia. Havia lá, além dos sábios e dos técnicos vindos de todas as
fronteiras, uma dúzia de jornalistas representando as maiores agências do mundo
, que dispunham, na tribuna da imprensa, de receptores individuais de tradução.
Sobre uma grande tela, atrás do pódio, apareceu uma vista geral do bolso rochoso
iluminado pelos projetores.
Uns trinta homens ali trabalhavam ativamente, vestidos de vermelho ou laranja,
capacetes na cabeça e máscara pendurada no pescoço, pronta para ser utilizada im
ediatamente. A metade superior da esfera, emergindo da areia e do solo, brilhava
suavemente, enorme e tranquila, ameaçadora também por causa do seu volume, do s
eu mistério, e pelo desconhecido que encerrava.
Com uma voz cantante, um pouco monótona, Leonova fez o resumo dos trabalhos, e a
tradutora começou a cochichar em todos os ouvidos, em dezessete línguas diferen
tes. Leonova calou-se, ficou um instante sonhadora, e recomeçou:
Não sei o que lhes sugere a vista dessa esfera, mas a mim ela faz pensar num grã
o. Na primavera, o grão devia germinar. A perfuratriz telescópica, é a haste que
deveria se desenvolver e abrir caminho até a luz, e o pedestal oco estava lá pa
ra receber os entulhos... Mas o verão não veio e o inverno dura desde novecentos
mil anos... No entanto, eu não quero, eu não posso acreditar que o grão esteja
morto!...
Fez uma pausa, observou a platéia e disse em voz alta:
Existe o sinal!
Um jornalista levantou-se e perguntou no mesmo tom veemente:
Então o que é que voces estão esperando para abrir a porta? Leonova, espantada,
olhou e respondeu num tom que havia se tornado glacial:
Nós não a abriremos.
Um murmúrio de surpresa percorreu a assistência. Rochefoux levantou-se sorrindo
e colocou os pontos nos ii.
Nós não abriremos a porta disse ele pois é possível que a ela esteja ligado algu
m dispositivo de segurança ou de destruição. Iremos abrir aqui.
Com uma vara de bambu ele tocou na imagem, apontando um lugar situado no alto da
esfera.
Mas há uma dificuldade. Nossas perfuratrizes quebraram os dentes sobre este meta
l. Ele também não se funde com maçarico oxídrico. Ou melhor, ele se funde mas to
rna a se fechar em seguida. Como se alguém abrisse a carne com um escalpelo, e q
ue a carne cicatrizasse imediatamente depois da lâmina, passar. É um fenômeno cu
jo mecanismo nós não compreendemos, mas que se passa na escala molecular. Devemo
s, para poder abrir caminho nesse metal atacá-lo ao nível das moléculas, dissoci
á-las. Esperamos um novo maçarico que usa ao mesmo tempo o laser e o plasma. Log
o que nós o tivermos recebido, começaremos a operação A: Abertura...
O poço de gelo e rocha conduzia a um poço de ouro. Um buraco de dois metros de d
iâmetro afunda-se na crosta da esfera. No fundo do buraco, dentro de uma luz dou
rada, um cavaleiro de branco ataca um metal com uma lança de luz. Vestido de ami
anto, com uma máscara de vidro e de aço, é o engenheiro inglês Lister munido do
seu plaser. Uma voz explica que a palavra plaser foi formada pela conjunção das
duas palavras plasma e laser, e que este maravilhoso e gigantesco maçarico foi c
onstruído graças à colaboração das indústrias inglesa e japonesa.
Sobre a tela de tevê a imagem recua descobrindo a parte de cima do poço de ouro.
Sobre a plataforma que o cerca, técnicos de laranja e de vermelho seguram os ca
bos, dirigem câmaras ou projetores. O calor que sobe do buraco faz com que seus
rostos transpirem abundantemente.
A tela da tevê é dobrável e está pendurada sobre um guarda-sol à beira de uma pi
scina em Miami. Um homem gordo e congestionado, vestido de um calção muito curto
, estirado sobre uma rede que se balança ao sopro de um ventilador, suspira e pa
ssa sobre o peito um guardanapo esponjoso. Ele acha que é desumano mostrar um ta
l espetáculo a alguém que já esteja sentindo tanta dor.
O comentador recorda as dificuldades a que tiveram de se sujeitar os sábios do E
PI. Em particular, as dificuldades climatéricas. Em seguida, a câmara focaliza a
superfície do local das pesquisas.
Sobre a tela, uma tempestade terrível assola o EP1-3. Fantasmas de veículos que
transportam dum edifício ao outro suas silhuetas amarelas, a coberta batida pela
neve que o vento leva horizontalmente, a duzentos e quarenta quilômetros a hora
. O termômetro marca 52° abaixo de zero.
O homem gordo congestionado torna-se lívido, embrulha-se na toalha batendo do os
dentes.
Numa casa japonesa a tela substituiu, sobre a parede de papel, a gravura tradici
onal. A dona da casa, ajoelhada, serve o chá. O comentador fala calmamente te. D
iz ele que o fundo do poço não tem mais que alguns centímetros de espessura e qu
e um buraco vai ser feito para permitir a introdução de uma câmara de tevê em se
u interior. Dentro de alguns instantes os espectadores do mundo inteiro vão pene
trar na esfera junto com a câmara e conhecer finalmente o seu mistério.
Entrei. E te vi.
E fui logo tomado pela vontade louca, mortal, de afastar, de destruir todos aque
les que lá, atrás de mim, na esfera, sobre o gelo, diante de suas telas no mundo
inteiro, esperavam saber e ver. E que iam te ver, como eu te via.
Entretanto, eu queria também que eles te vissem. Queria que o mundo inteiro soub
esse como eras maravilhosa e incrivelmente bela.
Mostrar-te ao universo no tempo de um relâmpago, depois de encerrar-me contigo,
sozinho, e olhar-te durante a eternidade.
Uma luz azulada vinha do interior do ovo. Simon entrou primeiro e, por causa des
ta claridade, não acendeu sua lanterna. A escada prosseguia no interior e pareci
a acabar no azul. Seus últimos degraus se recortavam em silhuetas negras, e para
vam mais ou menos na metade da altura do ovo. Mais abaixo, um grande anel metáli
co horizontal estava suspenso no vazio. Era aquilo que emitia a breve claridade,
ou melhor, essa luminescência suficiente para iluminar à sua volta uma quantida
de de aparelhos cujas formas eram estranhas, desconhecidas. Hastes e fios se lig
avam entre si e todos estavam de uma certa maneira virados para o anel, como se
para receber alguma coisa.
O grande anel azul estava suspenso no ar sustentado por nada, em contato com coi
sa alguma. Todo o resto estava rigorosamente em ordem. Ele girava, mas era tão l
iso o seu movimento, tão perfeitamente realizado em torno de si mesmo, que Simon
o adivinhou mais que o viu, e não pôde ter certeza se girava muito lentamente o
u a uma velocidade considerável.
Do exterior, Lanson que tinha descido da Sala de Conferências para supervisionar
as câmaras, acendeu um projetor. Seus mil watts sorveram a luminescência azul,
fizeram desaparecer a mecânica fantasmagórica, revelaram em seu lugar uma laje t
ransparente que, agora, refletia a claridade viva e não deixava mais distinguir
o que havia embaixo dela.
Simon continuava em pé na escada, cinco degraus abaixo do solo transparente te,
e Leonova dois degraus abaixo dele. Juntos pararam de olhar o chão a seus pés, e
rgueram a cabeça e viram o que havia diante deles.
O pico do ovo se constituía de uma sala em cúpula. Sobre o solo, diante da escad
a, duas bases de ouro de forma alongada. Sobre cada uma dessas bases repousava u
m bloco de matéria transparente, semelhante ao gelo, extremamente clara. Em cada
um desses blocos se encontrava deitado um ser humano, com os pés em direção à p
orta.
Uma mulher à esquerda. A direita, um homem. Não havia nenhuma dúvida pois eles e
stavam nus. O sexo do homem estava ereto, como um avião ao decolar. Sua mão esqu
erda fechada repousava sobre o peito. A mão direita estava erguida obliquamente
e o dedo indicador em riste. As pernas da mulher estavam juntas. Suas mãos abert
as descansavam uma sobre a outra, logo abaixo do busto. Seus seios eram a própri
a imagem da perfeição. As curvas de suas ancas eram como as de uma duna que o ve
nto tivesse levado um século para moldar com suas carícias. Suas coxas eram redo
ndas e longas, um desenho perfeito. O ninho discreto do sexo era coberto de pêlo
s dourados curtos e crespos. Dos ombros aos pés, semelhantes a flores, seu corpo
era uma harmonia em que cada nota, milagrosamente justa, se encontrava em compl
eto acordo com o conjunto.
Não se via o seu rosto. O do homem estava coberto, até o queixo, por um capacete
de ouro, com traços estilizados, de uma beleza grave.
A matéria transparente que os envolvia, tanto a um como a outro, era tão fria qu
e o ar, ao seu contato, tornava-se líquido e escorria, franjando os dois blocos
de uma renda que dançava, se despegava, caía e se evaporava antes de tocar no ch
ão.
Estendidos nesses cofres de claridade movediça, estavam pela sua própria nudez r
evestidos de um esplendor de inocência. Suas peles lisas como uma pedra polida t
inham uma cor clara, indefinida.
Embora fosse menos perfeito que o da mulher, o corpo do homem dava a mesma impre
ssão de uma extraordinária juventude nunca dantes vista. Não era a mocidade de u
m homem e de uma mulher, mas a da espécie. Estes dois seres eram novos, conserva
dos intactos desde a infância humana.
Simon, lentamente, estendeu a mão para a frente. Entre todos os homens que naque
le momento olhavam nas suas telas a imagem dessa mulher, que viam esses meigos o
mbros perfeitos, esses braços redondos encerrando numa cesta os frutos ligeiros
dos seios, e a curva dessas ancas onde corria a beleza total da criação, quantos
não desejaram impedir sua mão de se estender para pousar ali?
E entre as mulheres que olhavam este homem, quantas não foram queimadas pelo des
ejo irrealizável de se deitar sobre ele, de nele se plantar e de nele morrer?
Houve no mundo inteiro um instante de estupor e de silêncio. Mesmo os velhos e a
s crianças se calaram. Depois as imagens do ponto 612 se apagaram, e a vida norm
al recomeçou um pouco mais irritada, um pouco mais amarga. A humanidade, através
de um pouco mais de barulho, esforçava-se para esquecer o que vinha de compreen
der olhando aqueles dois que jaziam no Pólo: a que ponto ela era antiga, cansada
, mesmo nos seus mais belos adolescentes.
Leonova fechou os olhos e sacudiu a cabeça dentro do seu capacete. Quando ergueu
as pálpebras, não olhava mais na direção do homem. Desceu, empurrou Simon com s
eu joelho. Tirou da sua sacola um pequeno instrumento, deu alguns passos, e colo
cou-o em contato com o bloco que continha a mulher. Ela olhou
O quadrante e disse numa voz neutra ao seu microfone:
Temperatura na superfície do bloco: menos 272 graus centígrados.
Houve entre os sábios reunidos na Sala de Conferências murmúrios de espanto. Era
quase o zero absoluto.
Louis Deville, esquecendo o microfone, levantou-se para gritar sua pergunta:
Pode perguntar ao Dr. Simon, enquanto os olha, falando como médico, se acredita
que eles estejam vivos?
Não fiquem na proximidade dos blocos disse a voz traduzida de Hoover nos aparelh
os de escuta de Simon e de Leonova. Recuem! Mais!
As roupas que vocês usam não foram feitas para um frio igual a este!...
Recuaram para a parte debaixo da escada. Simon recebeu a pergunta de Deville. Es
ta pergunta, ele fazia a si mesmo, há alguns momentos, com angústia.
Primeiro ele não tinha tido dúvida nenhuma: esta mulher estava viva, não podia e
star senão viva... Mas era um desejo, não uma convicção. E agora procurava razõe
s objetivas para acreditar ou duvidar. Informou no seu microfone, falando princi
palmente para si mesmo.
Estavam vivos quando o frio os atingiu. O estado do homem comprova isto.
Estendeu seu braço forrado em direção ao sexo oblíquo do homem.
Um fenômeno que já havia sido constatado em certos enforcados. Prova uma congest
ão brutal de fluxo sangüíneo, em direção à parte inferior do corpo. Daí vem a le
nda da Mandrágora, aquela raiz mágica, de forma humana, que nascia sob os patíbu
los na terra que tinha sido inundada pelo esperma dos
enforcados. Pode ser que uma congestão análoga tenha se produzido no processo de
um resfriamento rápido. Ela não pode ser produzida senão num corpo
ainda com vida. Mas é possível que num instante mais tarde a morte tenha se dado
. E mesmo se esses dois seres estavam num estado de vida que tinha sido parado,
mas de vida possível depois da sua congelação, como podemos a saber em que estad
o eles estarão hoje, novecentos mil anos depois da sua congelação?
O emissor da Sala de Conferências, que transmitia diretamente a voz de S
imon, traiu nessas últimas palavras a angústia do jovem médico, e calou-se.
O físico japonês, Hoi-To, sentado à mesa do Conselho, fez notar o seguinte:
É preciso saber a que temperatura eles se encontram. Nossa civilização nunca con
seguiu obter o zero absoluto. Mas parece que essas pessoas dispunham de uma técn
ica superior. Eles chegaram lá... Esse zero absoluto é a imobilidade total das m
oléculas. Quer dizer que nenhuma outra modificação química e possível. Nenhuma t
ransformação mesmo infinitesimal... Ora, a morte é uma transformação. Se no cent
ro desses blocos reina o frio absoluto* este homem e esta mulher se encontram ex
atamente no mesmo estado que estavam no momento em que aí foram mergulhados. E p
oderiam ficar assim durante a eternidade.
Há uma maneira bem simples de saber se estão mortos ou vivos - disse a voz de Si
mon no emissor. E como médico, creio que é nosso dever: é preciso tentar reanimá
-los...
Novos macacões espaciais tinham chegado ao 612 mas nenhum era do tamanho de Hoov
er. Ele teve que mandar fazer um sob medida. Esperando sua chegada, ele assistia
, impotente e furioso, do alto da escada de ouro, aos trabalhos de seus colegas,
que se locomoviam no ovo com imperícia, as pernas abertas e os braços duros. A
umidade da esfera penetrava no ovo e se condensava logo numa neblina composta de
flocos imperceptíveis. Uma geada tinha se formado sobre toda a superfície inter
na do muro e uma coberta de neve pulverizada, imóvel como a poeira, cobria o chã
o.
Apesar dos seus macacões, os homens que desciam no ovo podiam ficar aí durante u
m tempo muito curto, o que tornava difícil a continuação das pesquisas. Tinham p
odido analisar a matéria transparente que envolvia os que 1á jaziam. Era hélio s
ólido, isto é, um corpo que os físicos nunca tinham conseguido obter, e sobre o
qual pensavam até mesmo que, teoricamente, ele não podia existir.
* Isto é, 273,15 graus centígrados abaixo de zero.
O nevoeiro gelado que enchia o ovo tirava era parte o homem e a mulher nus da vi
sta das equipes que trabalhavam a seus lados. Eles pareciam se esconder atrás de
ssa tumba, tomar de novo suas distâncias, se afastar no fundo dos tempos, longe
dos homens que tinham querido encontrá-los. Mas o mundo não os esquecia.
Os paleontólogos esbravejavam. O que haviam encontrado no Pólo não podia ser ver
dade. Ou então os laboratórios que haviam feito as medidas das datas tinham se e
nganado.
Tinham examinado a lama fundida das ruínas, os restos de ouro e a poeira da esfe
ra. Através de todos os métodos conhecidos tinham determinado a sua antigüidade.
Mais de cem laboratórios de todos os continentes tinham feito cada um mais de c
em medidas, chegando a mais de dez mil resultados concordantes que confirmavam o
s 900 mil anos aproximativos de antigüidade da descoberta subglacial.
Esta unanimidade não incluía a convicção dos paleontólogos, pois estes gritavam
que era uma fraude, um erro, uma distorção da verdade. Para eles, não havia dúvi
da: menos de 900 mil anos, era mais ou menos o começo do pleistoceno. Nesta époc
a, tudo o que podia existir de espécie de homens, era a australopiteca, ou seja,
uma espécie de primata minável junto do qual um chimpanzé teria feito a figura
de um ilustre civilizado.
Estas instalações e esses indivíduos que haviam sido encontrados sob o gelo, ou
bem eram falsas, ou bem mais recentes, ou então vinham de outro lugar. Aquilo nã
o podia ser verdade. Era impossível!
Respostas dos transeuntes interrogados à saída do metrô, em Saint-Germain-en-Lay
e:
O repórter da tevê O senhor acha que é verdade ou não o que foi encontrado?
Um senhor bem vestido O que é que não é verdade?
O repórter da tevê Aquele negócio lá, embaixo do gelo, lá, no Pólo...
O senhor Oh! sabe, eu... só vendo!...
O repórter da tevê E a senhora, madame?
Uma velhinha maravilhada Eles são lindos! Eles são tão lindos! É claro que são v
erdadeiros!
Um senhor magro, moreno, sentindo frio, irritado, apossou-se do microfon
e Eu,
acho o seguinte: Por que os sábios querem sempre que os nossos ancestrais sejam
medonhos? Cro-Magnon e seus companheiros, gênero orangotango? Os bisões que vimo
s nas grutas de Altamira e de Lascaux eram mais lindos que a vaca normanda, não
é mesmo? E por que nós também não? Na ONU, a Assembléia desinteressou-se subitam
ente dos dois seres cuja sorte havia motivado sua convocação. O delegado do Paqu
istão acabara de subir à tribuna e fizera uma declaração sensacional.
Os técnicos do seu país tinham calculado qual deveria ser a quantidade de ouro c
onstituída pela esfera, seu pedestal e suas instalações internas. Tinham chegado
a uma cifra fantástica. Havia, lá embaixo do gelo, perto de duzentas mil tonela
das de ouro! Significava uma soma de ouro maior do que a contida em todas as res
ervas nacionais, em todos os bancos particulares e em todos os haveres individua
is e clandestinos! Mais que todo o ouro do mundo!
Por que haviam escondido esta verdade da opinião? Que preparavam as grandes potê
ncias? Será que tinham feito um acordo para dividir entre si esta riqueza fabulo
sa como já dividiam todas as outras? Esse volume de ouro era o fim da miséria pa
ra a metade da humanidade que sofria ainda de fome e que tinha necessidade de tu
do. As nações pobres, as nações esfomeadas exigiam que esse ouro fosse tirado, d
ividido, repartido entre elas proporcionalmente ao número da sua população.
Os negros, os amarelos, os verdes, os cinzentos e alguns brancos juntaram-se e a
plaudiram freneticamente o paquistanês. As nações pobres formavam na ONU uma gra
nde maioria que a habilidade e direito de veto das grandes potências controlava
com uma dificuldade sempre crescente.
O delegado dos Estados Unidos pediu e obteve a palavra.
Era um homem alto e magro que com um ar cansado carregava a hereditariedade de u
ma das famílias mais distintas e antigas de Massachusetts.
Numa voz sem paixões, um pouco velada, declarou que compreendia a emoção do seu
colega, que os técnicos dos Estados Unidos tinham chegado às mesmas conclusões q
ue aqueles do Paquistão, e que ele se apressava justamente a fazer uma declaraçã
o a esse respeito.
Mas, acrescentou, outros técnicos examinando as amostras do ouro do Pólo, tinham
chegado a uma outra conclusão: este ouro não era um ouro natural, era um metal
sintético, fabricado por um processo do qual eles não podiam fazer a menor idéia
. Os físicos atômicos, esclareceram, fabricam um ouro artificial, através da tra
nsmutação dos átomos. Mas somente em pequena quantidade e a um preço que o torna
va proibitivo.
O verdadeiro tesouro escondido sob o gelo, não era que tal ou qual quantidade de
ouro fosse considerável mas sim os conhecimentos encerrados no cérebro daquele
homem ou daquela mulher, ou talvez dos dois. Quer dizer, não somente o segredo d
a fabricação do ouro, do zero absoluto, do moto perpétuo, mas sem dúvida uma qua
ntidade de outras coisas ainda bem mais importantes.
O que encontramos no ponto 612 prosseguiu o orador na verdade permite supor que
uma civilização muito adiantada, sentindo-se ameaçada por um cataclismo que amea
çava destruí-la inteiramente, colocou num abrigo, com luxo de precauções que tal
vez tenham esgotado todas as suas riquezas, um homem e uma mulher suscetíveis de
fazer renascer a vida depois da passagem do flagelo. Não é lógico pensar que es
te casal tenha sido escolhido unicamente por suas qualidades físicas. Um ou outr
o, ou os dois, devem possuir bastante ciência para fazer renascer uma civilizaçã
o equivalente àquela da qual eles faziam parte. É esta ciência que o mundo de ho
je deve sonhar em dividir, antes de qualquer outra coisa. É por isso que é preci
so que se reanimem aqueles que a possuem e dar-lhes um lugar entre nós.
Se eles ainda estiverem vivos disse o delegado chinês.
O delegado americano fez um gesto ligeiro com a mão esquerda e esboçou um sorris
o que revelava certo desprezo:
É claro...
Olhou toda a Assembléia com ar ausente e aborrecido e prosseguiu:
A Universidade de Columbia está perfeitamente equipada em matéria de sábios e ap
arelhos para realizar essa reanimação. Os Estados Unidos se propõem então, com o
vosso acordo, ir buscar no ponto 612 o homem e a mulher dentro dos seus blocos
de gelo, transportá-los com todas as precauções necessárias e no menor tempo pos
sível, até os laboratórios de Columbia. Lá então, serão despertados do longo son
o e acolhidos em nome de toda a humanidade.
O delegado russo levantou-se sorridente e disse que não duvidava da boa vontade
americana, nem da competência dos seus sábios. Mas a URSS possuía igualmente, em
Akademgorodok, os técnicos, os teóricos e aparelhagem necessários. Ela podia, t
ambém, encarregar-se da operação de reanimação. Mas não se tratava nesse momento
capital do futuro da humanidade de fazer a grande pesquisa científica e de disp
utar um jogo que pertencia a todos os povos do mundo. A URSS propunha então divi
dir o casal, ela se encarregaria de um dos dois indivíduos e os Estados Unidos s
e ocupariam do outro.
O delegado paquistanês explodiu. O complô das grandes potências estourava à luz
do dia! Desde o primeiro momento elas tinham decidido atribuir a si mesmas o tes
ouro do 612, fosse um tesouro monetário, ou um tesouro científico. E, dividindo
entre elas o segredo do passado, dividiam a supremacia do futuro, como já possuí
am a do presente. As nações que adquirissem o monopólio dos conhecimentos submer
sos sob o ponto 612, possuiriam um domínio total e absoluto do mundo. Nenhum out
ro país poderia jamais esperar se subtrair à sua hegemonia. As nações pobres dev
eriam se opor com todas as suas forças à realização desse abominável ensejo, nem
que para isso os dois seres vindos do passado tivessem que ficar para sempre de
ntro da sua carapaça de hélio!
O delegado francês que tinha ido telefonar a seu Governo, pediu, por sua vez, a
palavra. Fez pacificamente notar que o ponto 612 encontrava-se no interior de um
a fatia do continente antártico atribuído à França, isto é, em território francê
s. E, daí, tudo o que pudesse vir a ser descoberto era propriedade francesa...
Formou-se uma enorme confusão. Delegados de grandes e pequenas nações encontrava
m-se desta vez de acordo para protestar, ironizar, ou simplesmente fazer uma car
a divertida segundo o seu grau de civilização.
O delegado francês sorriu e fez um gesto pacificador. Quando a calma voltou, dec
larou que a França, diante do interesse universal da descoberta, renunciava aos
seus direitos nacionais, e mesmo aos direitos de "inventor", e depunha tudo o qu
e tinha sido encontrado e tudo o que ainda poderia ser encontrado no ponto 612 s
obre o altar das Nações Unidas.
Agora eram aplausos polidos que o seu gesto se esforçava para fazer cessar. Mas.
.. mas sem comungar dos temores do Paquistão, a França pensava que era necessári
o tudo fazer para impedi-los de se tornarem justificados, por menores que fossem
. Não havia senão a Columbia e a Akademgorodok que tinham equipes de reanimação.
Podiam se encontrar especialistas eminentes na Iugoslávia, na Holanda, nas Índi
as, sem falar da Universidade Árabe e da equipe muito competente do Dr. Lebeau,
do Hospital de Vaugirard, em Paris.
A França não afastava as equipes russas e americanas. Pedia somente que a escolh
a fosse feita pela Assembléia inteira e sancionada por um voto...
O delegado americano riu-se logo dessa proposta. Para deixar às candidaturas com
petentes o tempo de se manifestar, pediu que transferissem o debate para o dia s
eguinte, o que foi decidido. Os regateios e as negociatas secretas iam começar i
mediatamente.
Por uma vez, a tevê funcionou em sentido contrário. O satélite Trio, de alto do
éter, enviou para a antena do EPI-1 as imagens da ONU. Na sala de Conferências,
os sábios que não tinham se ocupado de suas missões mais urgentes tinham seguido
os debates em companhia dos jornalistas. Quando tudo terminou, Hoover, com um g
esto do seu polegar, apagou a grande tela e olhou seus colegas fazendo uma caret
a.
Creio disse ele que nós também teremos que deliberar. Pediu aos jornalistas que
tivessem a fineza de se retirar, e lançou pelos aparelhos emissores um apelo ger
al a todos os sábios, técnicos, operários e trabalhadores da Expedição para uma
reunião imediata.
No dia seguinte, no momento em que se abria a reunião da Assembléia da ONU, um c
omunicado proveniente do ponto 612 foi entregue ao presidente. O seu texto difun
dido para o mundo inteiro através de todos os meios de informação era o seguinte
:
Os membros da Expedição Polar Internacional decidiram por unanimidade o que se s
egue:
1.º Negam a toda nação, seja ela rica ou pobre, o direito de reivindicar para us
o lucrativo, o menor fragmento de ouro da esfera e de seus acessórios.
2.º Sugerem, se isso pode ser útil à Humanidade, que uma moeda internacional sej
a criada e afiançada por este ouro, à condição que ele fique onde está, consider
ando que ele não será nem mais útil nem mais "congelado" sob um quilômetro de ge
lo do que nos cofres dos bancos nacionais.
3.º Não reconhecem a competência da ONU, organismo político, no que concerne à d
ecisão, de ordem médica e científica, de tomar a si a responsabilidade do casal
em hibernação.
4.º Não confiarão esse casal a nenhuma nação em particular.
5.º Colocarão à disposição da humanidade inteira o conjunto de informações cient
íficas ou de qualquer outra ordem que possam ser recolhidos pela Expedição.
6.º Convidam Forster, de Columbia, Moissov, de Akademgoro- dok, Zabrec, de Belgr
ado, Van Houcke, de Haia, Haman, de Beirute, e Lebeau, de Paris, a se reunir com
eles, no ponto 612, com urgência, trazendo todo o material necessário para proc
eder à reanimação.
O manifesto foi como uma ducha fria nas discussões da ONU. Os vidros do palácio
tremeram até o último andar. O delegado do Paquistão estigmatizou, em nome das c
rianças que morreriam de fome, o orgulho dos sábios que queriam colocar-se acima
da humanidade e com isso se distanciavam daquele problema, Falou de "ditadura d
e cérebros", declarou que tudo era inadmissível e pediu sanções.
Depois de um debate apaixonado, a Assembléia votou o envio imediato de uma força
militar representativa ao ponto 612 para tomar posse, em nome das nações, de tu
do o que ali se encontrava.
Duas horas mais tarde, a antena do EPI-1 pedia e obtinha um corredor internacion
al. Todos os postos particulares e nacionais interromperam suas emissões para da
rem lugar às imagens vindas do Pólo. Foi o rosto de Hoover que apareceu. O rosto
de um homem gordo, sempre pronto a sorrir, fosse qual fosse a emoção que ele te
ntasse exprimir. Mas a gravidade do seu olhar era ta1 que fez esquecer suas face
s rosadas e gordas e seus cabelos vermelhos mal penteados. Hoover iniciou:
Estamos chocados. Chocados porém decididos.
Virou-se para a direita e para a esquerda e fez um sinal. A câmara recuou para p
ermitir aos que se aproximavam de surgirem na imagem. Era Leonova, Rochefoux, Sh
anga, Lao Tchang. Vieram se colocar ao lado de Hoover, dando-lhe a caução de sua
s presenças. Atrás deles a luz dos projetores revelava os rostos dos sábios de t
odas as nacionalidades que há meses se batiam contra o gelo para lhe arrancar se
u segredo. Hoover recomeçou:
- Vocês vêem, estamos todos aqui. E todos decididos. Jamais permitiremos as manc
omunações privadas, nacionais ou internacionais, não deixaremos que ponham a mão
sobre bens do qual depende talvez a felicidade dos homens de hoje e de amanhã.
De todos os homens, e não somente de alguns e de tais ou quais categorias.
Passou a mão na testa, deu um pigarro e continuou:
Não temos confiança na ONU. Não temos confiança em sua representação militar. Se
soldados desembarcarem no 612, deixaremos cair a pilha atômica dentro do poço e
o faremos explodir!...
Ficou imóvel durante um instante, silencioso, para dar tempo aos ouvintes de dig
erirem a enormidade da decisão tomada. Depois a sua imagem apagou-se e surgiu a
de Leonova.
O seu queixo tremia. Ela abriu a boca e não conseguiu falar. A mão gorda de Hoov
er apoiou-se sobre o seu ombro. Leonova fechou os olhos, respirou fundo, e encon
trou um pouco de calma.
Nós queremos trabalhar aqui para todos os homens disse ela. Ê fácil nos impedir.
Não dispomos de um parafuso ou de uma migalha de pão que não seja enviado por u
ma ou outra nação. Basta nos cortar a remessa de víveres. Ou simplesmente usarem
de má vontade. Nosso sucesso, até o momento, foi o resultado de um esforço conc
entrado e desinteressado das nações. É preciso que esse esforço continue com a m
esma intensidade. Vocês podem obter, vocês que nos escutam. Não é aos governos,
nem aos políticos que eu me dirijo. É aos homens, às mulheres, aos povos, a todo
s os povos. Escrevam aos vossos governos, aos chefes de Estado, aos ministros, a
os sovietes. Escrevam imediatamente, escrevam todos! Vocês ainda podem salvar tu
do!
Ela transpirava. A câmara mostrou-a mais de perto. Via-se o suor banhar o seu ro
sto. Uma mão entrou na imagem, alcançando-lhe um lenço de papel cor de ouro. Ela
o pegou e apalpou sobre a testa e sobre os lados do nariz. Prosseguiu:
Se temos que renunciar, não abandonaremos, seja aquém for, as possibilidades de
conhecimentos, que, mal empregados, poderiam acarretar para o mundo uma infelici
dade irreparável. Se nos obrigam a partir, não deixaremos nada atrás de nós.
Virou-se e passou o lenço nos olhos. Ela chorava.
Em quase todos os lugares onde a televisão era um monopólio do Estado a transmis
são do apelo dos sábios tinha sido cortada antes do fim. Mas durante doze horas,
a antena de EPI-1 continuava a bombardear o satélite Trio com as imagens de Hoo
ver e de Leonova. E Trio, objeto científico perfeitamente desligado de opinião,
as transmitiu durante doze horas a seus gêmeos e seus primos que circulavam no g
lobo todo. Quase dois terços dentre eles emitiam com grande potência para serem
captados diretamente em receptores particulares. Cada vez que as imagens recomeç
avam, a máquina traduzia as palavras em uma língua diferente. E no fim apareciam
os dois seres do passado, na sua beleza e na sua imobilidade total, tal como as
telas os haviam mostrado a primeira vez.
A emissão se superpunha aos programas previstos, embaralhava tudo, e acabava por
passar por trechos diferentes e por ser compreendida por aqueles que queriam co
mpreender.
Durante o meio dia que se seguiu, todos os serviços de rádio foram brutalmente c
ontrolados. Nas menores cidades de Auvergne ou Béloutchistan, as caixas de corre
io transbordavam. Desde os primeiros centros de reagrupamento das malas postais,
as salas de recepção estavam cheias até o teto. No escalão acima, era a submers
ão total. Os poderes públicos e as companhias privadas negaram-se a transportar
este correio mais longe. Não era necessário lê-lo Sua abundância era sem signifi
cado. Pela primeira vez, os povos manifestavam, acima de suas línguas, suas fron
teiras, suas diferenças e suas divisões, uma vontade comum. Nenhum governo podia
ir contra sentimento de tamanha amplidão. Novas instruções foram dadas aos dele
gados da ONU.
Uma moção foi votada em meio ao entusiasmo e à unanimidade, anulando o envio da
tropa, e exprimindo a confiança das nações nos sábios do EPI para conduzir ao be
m... etc, para o maior bem... etc, a fraternidade dos povos... etc, do presente
e do passado, ponto final.
Os reanimadores aos quais o comunicado dos sábios havia feito um apelo tinham ch
egado com suas equipes e seu material.
Sob a orientação de Lebeau, os técnicos e operários construíram uma sala de rean
imação no interior da esfera, acima do ovo.
Um problema grave apresentou-se aos responsáveis: por quem começar? Pe1o homem o
u pela mulher?
O primeiro a ser reanimado, forçosamente teria que correr riscos. O segundo, ao
contrário, se beneficiaria da experiência. Era preciso começar pelo menos precio
so. Mas qual era ele?
Para o árabe, não havia dúvida. O único que contava era o homem. Para o american
o, era em torno da mulher que deveriam tomar a mais respeitosa das precauções, e
até mesmo arriscar por ela a vida do homem. O holandês não tinha opinião; o iug
oslavo e o francês, embora evitassem opinar, a tendência deles era para o lado m
asculino.
Meus caros colegas disse Lebeau no curso de uma das reuniões vocês sabem tão bem
quanto eu, que os cérebros masculinos são superiores em volume e peso aos céreb
ros femininos. Se é o cérebro que nos interessa, parece-me então que é o homem q
ue nós devemos reservar para a segunda intervenção.
Mas pessoalmente acrescentou ele sorrindo depois de ter visto a mulher, teria fa
cilmente uma tendência maior em pensar que uma tal beleza tem mais importância q
ue o saber, por maior que ele seja...
Não há razão disse Moissov para que tratemos um antes do outro. Os direitos são
iguais. Proponho que formemos duas equipes e que operemos ao mesmo tempo sobre o
s dois.
Era generoso, porém impossível. Não havia bastante espaço, nem bastante material
. E os conhecimentos dos dez sábios não seriam demais, juntando-os todos, para f
azer a luz nos momentos difíceis. Quanto ao raciocínio de Lebeau, ele era válido
para os cérebros de hoje. Mais quem podia afirmar que na época de onde tinham v
indo estes dois seres a diferença de peso e de volume existia? E se existia, que
m sabe, naquele momento, ela não seria ao contrário a favor dos cérebros feminin
os? As máscaras de ouro que escondiam as duas cabeças não permitiam mesmo fazer
uma comparação aproximativa do seu volume, e, por dedução, dos seus conteúdos...
O holandês Van Houcke era especialista notável em hibernação de focas. Mantinha
uma congelada há doze anos. Aquecia-a, despertava-a todo ano, na entrada da prim
avera. Fazia com que ela se regalasse com alguns arenques, e depois que ela os h
avia digerido, ele a recongelava.
Mas, afora essa especialidade, era um homem muito esperto. Confiou aos jornalist
as as dúvidas dos seus colegas, e pediu-lhes conselho.
Pelo Trio, os jornalistas encantados expuseram a situação à opinião mundial e fi
zeram uma pergunta: "Por quem se deve começar? Pelo homem ou pela mulher?".
Hoover havia finalmente recebido o seu macacão. Vestiu-o e desceu no ovo. Desapa
receu no nevoeiro. Quando voltou, pediu ao conselho para se reunir com os reanim
adores.
É preciso se decidir disse ele. Os blocos de hélio estão diminuindo. O mecanismo
que transmitia o frio continua a funcionar, mas nossa intrusão no ovo tirou-lhe
uma parte de sua eficiência. Se vocês permitirem, vou dar a minha opinião. Aca
bo de ver de perto o homem e a mulher... Meu Deus, como ela é bela!... Mas não é
esta a questão. Ela pareceu-me estar em melhor estado do que ele. Ele apresenta
no peito e em diversos lugares do corpo, pequenas alterações de cor na pele, qu
e talvez sejam sinais de lesões epidérmicas superficiais. Ou talvez não sejam na
da, eu não sei. Mas creio digo francamente que creio, é uma impressão, não uma c
onvicção que ela é mais forte que ele, mais capaz de suportar os vossos pequenos
erros, se é que vocês o farão. Vocês são médicos, olhem-nos de novo, examinem o
homem pensando no que eu acabo de dizer, e decidam. Na minha opinião, é pela mu
lher que se deve começar.
Eles nem desceram no ovo. Era preciso começar por qualquer um. Basearam-se na op
inião de Hoover.
Assim, enquanto que a opinião se apaixonava, que a metade masculina e a metade f
eminina da humanidade investiam uma contra a outra, que as disputas estouravam e
m todas as famílias, entre todos os casais, entre os colegiais e estudantes que
se entregavam às discussões ferozes, os seis reanimadores decidiram começar pela
mulher.
Como poderiam saber que cometeriam um erro trágico se tivessem escolhido começar
pelo homem?
A mangueira de ar foi dirigida para o bloco da esquerda, e começou a lançar ar n
a temperatura da superfície, que era de menos 32 graus. O bloco de hélio desmanc
hou-se em alguns instantes. Passou diretamente do estado sólido ao estado gasoso
e desapareceu, deixando a mulher intacta dentro do seu caixão. Os quatro homens
de macacão que a olhavam estremeceram. Parecia-lhes que agora, toda nua dentro
deste caixão de metal, envolvida pelo turbilhão de bruma gelada, ela deveria sen
tir frio mortal. Todavia, ela estava sensivelmente mais aquecida.
Simon estava entre os quatro. Lebeau lhe havia pedido, em virtude dos seus conhe
cimentos de problemas polares, e de tudo o que ele já sabia da esfera, de ovo e
do casal, para que se juntasse à equipe de reanimação.
Ele deu a volta no caixão. Segurava sem jeito, numa das suas luvas de astronauta
, um grande par de pinças cortantes. A um sinal de Lebeau inclinou-se, e cortou
o canudo metálico que ligava a máscara de ouro à parte de trás do caixão. Lebeau
, com uma delicadeza infinita, tentou erguer a máscara, mas não o conseguiu. Par
ecia estar soldada na cabeça da mulher, embora fosse visivelmente separada por u
m espaço de pelo menos um centímetro.
Lebeau endireitou-se, fez um sinal de renúncia, e dirigiu-se para a escada de ou
ro. Os outros o seguiram.
Eles não podiam ficar lá muito tempo. O frio entrava por dentro de suas vestes p
rotetoras. E não podiam levar a mulher pois, na temperatura em que ela ainda est
ava, arriscavam-se a quebrá-la como a um vidro.
A mangueira de ar, teleguiada da sala de reanimação, continuava passeando lentam
ente ao redor dela, banhando-a com uma corrente de ar com uma temperatura aproxi
mada de 20 graus.
Algumas horas mais tarde os quatro desceram novamente. Sincronizando seus movime
ntos, escorregaram suas mãos enluvadas por baixo da mulher congelada e a separar
am do caixão. Lebeau tinha medo de que ela ficasse colada ao metal pelo gelo. Ma
s isso não aconteceu e as oito mãos a ergueram, rija como uma estátua, e a carre
garam acima dos ombros. Depois os quatro homens começaram a andar lentamente, co
m um medo enorme de dar um passo em falso. A neve pulverulenta batia-lhe nas per
nas e afastava-se diante deles como a água. Grotescos dentro dos seus macacões c
om capuz, meio apagados pela
bruma eles tinham um ar de personagem de pesadelo, levando para outro mundo a mu
lher que o atormentava em sonhos. Subiram a escadaria de ouro e saíram pelo bura
co luminoso da porta. A mangueira de ar foi retirada e o bloco transparente onde
o homem permaneceu, que havia diminuído bastante no decorrer da operação, parou
de se reduzir.
Os quatro entraram na sala de operação e depositaram a mulher sobre a mesa de re
animação. Daquele momento em diante nada mais podia parar o desenvolvimento fata
l dos acontecimentos.
Na superfície, a entrada do poço tinha sido cercada por uma construção de enorme
s blocos de gelo que o seu próprio peso ligava uns aos outros. Pesada porta sobr
e trilhos fechava o acesso. No interior se encontravam as instalações de foles,
o relais da tevê, do telefone, da máquina tradutora, da corrente de força e luz,
os motores dos elevadores, dos monta-cargas e suas estações de saída, baterias,
e acumuladores de socorro a eletrólise seca.
Diante das portas dos elevadores, Rochefoux enfrentava uma multidão de jornalist
as. Ele havia fechado as portas e colocado as chaves no bolso. Os jornalistas pr
otestavam violentamente, em todas as línguas. Queriam ver a mulher, assistir ao
seu despertar. Rochefoux, sorrindo, declarou-lhes que isto não era possível. A p
arte o pessoal da equipe médica, ninguém, nem ele mesmo, seria admitido na sala
de operações.
Conseguiu acalmá-los prometendo-lhes que veriam tudo pela televisão interna, na
grande tela da Sala das Conferências.
Simon e os seis reanimadores, vestidos de blusas verde-claras com chapéus e masc
aras de cirurgião, botas de algodão branco, luvas de látex rosa, rodeavam a mesa
de reanimação. Uma coberta aquecedora envolvia a mulher até a altura o queixo.
A máscara de ouro continuava cobrindo o seu rosto. Pelas frestas a coberta saíam
fios multicores que se ligavam a aparelhos de medida, correias, eletrodos, vent
osa, apalpadores aplicados em diferentes lugares do seu corpo gelado.
Nove técnicos, vestidos de blusas amarelas, mascarados como os cirurgiões, não t
iravam os olhos dos quadrantes dos aparelhos. Quatro enfermeiras e três enfermei
ros de azul ficavam próximos de cada médico, prontos a obedecer imediatamente.
Lebeau, reconhecível por causa de suas enormes sobrancelhas grisalhas, inclinou-
se em direção à mesa, e, mais uma vez, tentou arrancar a máscara. A proteção se
mexeu, mas parecia esta presa por uma espécie de haste central.
Temperatura? perguntou Lebeau. Um homem amarelo respondeu:
Fole. Cinco positivos. Uma mulher azul estendeu a extremidade de um tubo macio,
que Lebeau introduziu entre a máscara e o queixo.
Pressão cem gramas, temperatura quinze.
Um homem amarelo virou dois pequenos volantes e repetiu os números.
Mande ordenou Lebeau.
Um assobio fraquinho fez-se ouvir. O ar a quinze graus correu entre a máscara e
o rosto da moça. Lebeau endireitou-se e olhou para os seus colegas. Seu olhar es
tava sério, no limite da ansiedade. Uma mulher de azul, com uma compressa de gaz
e, enxugou-lhe as têmporas onde o suor escorria.
Experimente falou Forster.
Alguns minutos disse Lebeau. Atenção à parte de cima... De cima! Foram minutos i
ntermináveis. Os vinte e três homens e mulheres presentes na sala esperavam, em
pé. Eles ouviam seus corações martelando dentro do peito e sentiam o peso dos se
us corpos enrijecer os músculos de suas pernas como uma pedra. A câmara n° 1 vir
ada para a máscara de ouro enviava a imagem gigantesca sobre a grande tela. Um s
ilêncio total reinava na Sala de Conferências, mais uma vez cheia até o limite.
O difusor fazia ouvir as respirações agitadas por trás das máscaras de algodão,
e o longo sopro de ar sob a máscara de ouro.
Quanto tempo? perguntou Lebeau.
Três minutos e dezessete segundos disse um homem amarelo.
Vou experimentar disse Lebeau.
Inclinou-se de novo para a mulher, introduziu a ponta dos seus dedos sob a másca
ra e apoiou suavemente a ponta do queixo, que cedeu com lentidão. A boca da mulh
er que não se podia ver, deveria estar aberta. Lebeau pegou a máscara com as dua
s mãos e, mais uma vez, muito lentamente, tentou erguê-la. Não houve mais resist
ência...
Lebeau suspirou e sob as grossas sobrancelhas seus olhos sorriram. Com o mesmo m
ovimento, sem pressa, ele continuou a levantar a máscara.
Era exatamente o que pensávamos: máscara de ar ou de oxigênio. Ela estava com um
a ponteira na boca...
Ergueu totalmente a máscara e tirou-a. Efetivamente, no lugar da boca encontrava
-se uma saliência orlada de uma borda, de matéria translúcida que parecia elásti
ca.
Vejam! disse a seus colegas, mostrando-lhes o interior da máscara. Mas ninguém o
lhou. Todos admiravam o rosto da mulher.
Primeiro vi a tua boca entreaberta. À tua boca entreaberta, o recorte quase tran
sparente dos dentes delicados que apareciam em cima e embaixo, ultrapassando ape
nas a borda dos teus lábios pálidos. Comecei a tremer. Via demais dessas bocas e
ntreabertas no hospital, as bocas dos corpos que a seiva da vida acabara de aban
donar, deixando de um só golpe todas as células, e que, bruscamente, não são mai
s do que carne vazia, exposta à gravidade.
Porém Moissov colocou sua mão em concha sob teu queixo, carinhosamente fechou tu
a boca, esperou um segundo, e retirou a mão. E tua boca ficou fechada...
Sua boca fechada nacarada pelo frio e pelo sangue retirado era como o debrum de
uma concha frágil. Suas pálpebras eram duas longas folhas sobre as quais os cíli
os e as sobrancelhas desenhavam o contorno sombreado de dourado. Seu nariz era p
equeno, bem feito, suas narinas ligeiramente acesas e bem desenhadas. Seus cabel
os de um castanho quente, como batidos por uma luz de ouro, rodeavam sua cabeça
com pequenas ondas de raios de sol e escondiam parte da testa e das faces. Das o
relhas apareciam somente o lóbulo da esquerda, como uma pétala engastada num bri
nco.
Houve um grande suspiro, por parte do homem, ao microfone o qual a máquina tradu
tora não soube reproduzir. Haman inclinou-se, afastou os cabelos da mulher e com
eçou a instalar os eletrodos do encefalógrafo.
Na cave do Hotel Internacional de Londres à prova de bomba A, mas não da bomba H
; de desmoronamentos, mas não de um golpe direto bastante sólido para dar segura
nça a uma clientela rica que exigia esta segurança ao lado do conforto suficient
emente e visivelmente blindada para inspirar confiança, mas não para assegurar p
roteção ninguém, nada poderia proteger nada nem ninguém -, a cave do Internacion
al de Londres, por sua arquitetura, sua calefação e sua betonagem, reunia as con
dições ideais para se transformar num shaker.
Era assim que se chamavam as salas, cada vez maiores, onde se reuniam rapazes e
moças de todas as classes, para aí se entregar em comum a danças frenéticas. Pre
ssionados por seus instintos dirigidos para uma nova concepção de vida, os joven
s se encerravam ali, sacudidos por pulsações sonoras e perdiam os últimos vestíg
ios de preconceitos e de convenções que ainda lhes acossavam. A cave do Internac
ional de Londres era o mais vasto shaker da Europa. E também um dos mais quentes
.
Seis mil rapazes e moças. Uma só orquestra, porém doze alto-falantes iônicos sem
membrana que faziam vibrar o ar da cave como o interior de um sax-tenor. E mais
Yuni, o brasa de Londres, dezesseis anos, cabelos raspados, óculos de fundo de
garrafa, um olho vesgo, o outro esbugalhado, yuni que convencera a administraçã
o do hotel a lhe alugar a cave. Nenhuma nota musical chegava aos ouvidos dos hós
pedes que ocupavam os andares. Às vezes, alguns desciam para "balançar o esquele
to" e subiam maravilhados e apavorados pelo espetáculo dessa juventude em estado
primitivo e efervescente.
Yuni, diante de um teclado, na cadeira de alumínio presa ao muro acima da orques
tra, uma orelha escondida por um enorme aparelho de escuta em feitio de couve-fl
or, escutava todas as orquestras e, quando encontrava uma música quente, ligava-
a nos alto-falantes mais próximos. De olhos fechados, ele escutava. Num ouvido o
barulho enorme da cave, no outro, três medidas, duas medidas, vinte medidas col
hidas no inatingível. Em intervalos, sem abrir o olho, soltava um grito agudo e
longo, que ressoava acima do barulho do fundo. De repente arregalou os olhos, co
rtou o som e gritou:
Ouçam! Ouçam!
A orquestra calou-se. Seis mil corpos suados ficaram repentinamente no silêncio
e na imobilidade. Enquanto que por trás do estupor a consciência começava a rena
scer neles, Yuni continuava:
Notícia sobre a moça congelada!
Assobios, xingamentos. Bolas! Se dane! Vá lá você esquentá-la! Que é que eu tenh
o com isso! Yuni gritou:
Cambada de ratos! Escutem!
Ligou para a BBC. Nos doze alto-falantes soou a voz do speaker de serviço. Ela e
ncheu o ar da cave com uma vibração forte e bem marcada:
Difundimos pela segunda vez o documento que nos chegou do ponto 612. Isto consti
tui certamente a mais importante notícia do dia...
Pigarros. Silêncio. O céu penetrou na cave com o ruído indizível da multidão que
caminha pela noite cósmica: o barulho das estrelas. Depois a voz de Hoover. Com
o se estivesse ofegante. Talvez estivesse com asma. Ou o coração envolvido por u
ma grande emoção.
Aqui é EPI. Ponto 612. Hoover falando. Estou feliz... muito feliz... de vos ler
o comunicado seguinte chegado da sala de operações: "O processo de reanimação pr
ossegue normalmente. Hoje, 17 de novembro, às 14h52m, hora local, o coração da j
ovem mulher recomeçou a bater..."
A cave explodiu num grito. Yuni, visivelmente contrariado, berrou mais forte:
Calem a boca! Vocês são uns burros! Vocês não têm alma! Escutem! Obedeceram. Obe
deciam tanto à voz como à música. Contanto que esta fosse mais forte. Feito silê
ncio, ouviu-se de novo a voz de Hoover:
As primeiras batidas do coração dessa mulher foram registradas. O órgão não bati
a há mais de novecentos mil anos. Escutem... Desta vez, verdadeiramente, todos s
e calaram. Yuni fechou os olhos, o rosto iluminado. Ouvia a mesma coisa nos seus
dois ouvidos. Escutava:
Silêncio.
Uma batida surda: bum... Uma só.
Silêncio... silêncio... silêncio... Bum...
Silêncio... silêncio... Bum... Silêncio... Bum... bum... Silêncio...
Bum... bum... bum... bum, bum, bum...
O bateria da orquestra respondeu, suavemente, em contraponto, com o pé na caixa.
Depois acrescentou a ponta dos dedos. Yuni superpôs a orquestra e as ondas. O c
ontrabaixo uniu-se à bateria e ao coração. O clarinete gritou uma longa nota, de
pois terminou numa improvisação alegre. Os seis violões elétricos e os dois viol
ões de aço desandaram a tocar. O baterista batia por sua vez em todas as peles..
. Yuni gritou como um minarete:
Ela está acordada! Bum! Bum! Bum! Os seis mil cantavam:
Ela está acordada!... Ela está acordada!...
Seis mil cantavam, dançavam, no ritmo do coração que acabava de renascer. Assim
nasceu o wake, a dança do despertar... Aqueles que queriam dançar, dancem. Aquel
es que podem acordar, acordem.
Não, ela não estava acordada. Suas longas pálpebras ainda estavam abaixadas sobr
e o sono interminável. Mas seu coração batia com uma potência tranqüila, seus pu
lmões respiravam calmamente, sua temperatura subia pouco a pouco em direção à vi
da.
Atenção: disse Lebeau, inclinado sobre o encefalograma. Pulsações irregulares...
Ela sonha!
Ela sonhava! Um sonho que a havia acompanhado, enroscado, gelado dentro de algum
a parte da sua cabeça, e agora aquecido vinha a florescer. Florescer em que espa
ntosas imagens? Azuis ou negras? Sonho ou pesadelo? As pulsações do coração subi
ram bruscamente de 30 para 45, a pressão sangüínea atingiu o limite, a respiraçã
o acelerou-se e tornou-se regular, a temperatura subiu para 36 graus.
Atenção! exclamou Lebeau. Pulsações do pré-despertar. Ela vai acordar! Ela acord
a! Tirem o oxigênio!
Simon ergueu o inalador e estendeu-o para a enfermeira. As pálpebras da moça tre
meram. Uma pequena sombra de dúvida apareceu na parte de baixo das suas pálpebra
s.
Nós vamos lhe meter medo! disse Simon.
Arrancou a máscara de cirurgião que lhe cobria a parte inferior do rosto. Todos
os médicos o imitaram.
Lentamente, as pálpebras se ergueram, os olhos apareceram, incrivelmente grandes
. O branco era muito claro, muito puro. A íris larga, um pouco eclipsada pela pá
lpebra superior, era de um azul de céu em noite de verão, semeado de lantejoulas
de ouro.
Seus olhos estavam fixos no teto, que certamente não viam. Depois piscaram vezes
seguidas, suas sobrancelhas se ergueram, seus olhos mexeram, olharam e viram. V
iram primeiro Simon, depois Moissov, Lebeau, os enfermeiros, todo mundo. Uma exp
ressão de espanto invadiu seu rosto de mulher. Tentou falar, abriu a boca, mas n
ão chegou a ter o comando dos músculos da língua nem da garganta. Emitiu uma esp
écie de estertor. Fez um esforço enorme para erguer um pouco a cabeça e olhar tu
do. Ela não compreendia onde estava, tinha medo, e ninguém podia fazer nada para
dar-lhe confiança. Moissov sorriu-lhe. Simon tremia de emoção. Lebeau começou a
falar muito carinhosamente. Recitou dois versos de Racine, as palavras mais har
moniosas que alguma língua já pôde reunir:
Ariane, minha irmã, de que amor ferida...
Era a canção do verbo perfeito e acariciante. Mas a mulher não escutava. Via-se
que o horror a dominava. Mais uma vez ela tentou falar, sem conseguir. Seu queix
o começou a tremer. Ela fechou os olhos e deixou a cabeça cair para trás.
Oxigênio! ordenou Lebeau. E o coração?
Normal! Cinqüenta e dois... disse um homem amarelo.
Desmaiou... observou Van Houcke. Nós lhe metemos um medo enorme... O que ela esp
erava encontrar?
Bem, é como se você fizesse sua filha dormir e ela acordasse no meio de um bando
de feiticeiros... disse Forster.
Os médicos decidiram aproveitar do seu desmaio para carregá-la para a superfície
, onde uma sala mais confortável a esperava na enfermaria. Ela foi introduzida n
uma espécie de caixa plástica transparente, com a parede dupla isolante, aliment
ada por uma bomba de ar. Quatro homens carregaram-na ate o elevador. Todos os fo
tógrafos da imprensa deixaram a sala do Conselho para se precipitar ao seu encon
tro. Os jornalistas estavam já nas cabinas de rádio, a telefonar para o mundo in
teiro sobre aquilo que eles haviam visto e que não haviam visto. A grande tela m
ostrava os homens amarelos retirando suas máscaras do rosto e se desembaraçando
dos seus aparelhos. Lanson apagou a imagem da sala de trabalho e substituiu-a pe
la que enviava a câmara de controle do interior do ovo.
Leonova levantou-se bruscamente:
Olhe! disse ela apontando seu dedo em direção à tela. Sr. Lanson, focalize sobre
o pedestal da esquerda.
A imagem do pedestal com o caixão vazio apareceu, cresceu e fez-se ver atrás de
um ligeiro véu de bruma. Repararam então que faltava um dos seus lados. Toda uma
parede vertical havia se afundado no solo, aparecendo uma espécie de estante co
m prateleiras metálicas sobre as quais estavam colocados objetos de formas desco
nhecidas.
Quando a mulher deixou a sala de operação, os objetos achados na prateleira a su
bstituíam sobre a mesa de reanimação. Voltavam a sua temperatura normal. Constit
uíam, de certa maneira, a "bagagem" da viajante adormecida.
Agora não eram mais os médicos que rodeavam a mesa, eram os sábios, s mais susce
tíveis, por sua especialidade, de compreender o uso, e o funcionamento desses ob
jetos.
Leonova pegou com toda a precaução alguma coisa que parecia ser uma roupa dobrad
a e a desdobrou. Era algo que não era papel nem fazenda, de cor alaranjada, com
desenhos amarelos e vermelhos. O frio absoluto o havia guardado num estado de co
nservação perfeita. Era leve, fino e parecia sólido, avia vários, de cores, form
as e dimensões diferentes. Sem nenhuma manga, em abertura de espécie alguma, nem
botões, nem fechos, nem nada, nenhuma maneira de os colocar ou de fixá-los.
Foram pesados, medidos, numerados, fotografados, e tiraram-lhes amostras microsc
ópicas para análises. Depois passaram ao objeto seguinte.
Era um cubo com os cantos arredondados, com 22 centímetros de aresta. Comportava
, grudado numa de suas faces, um tubo oco e disposto em posição diagonal. O todo
era compacto, feito de uma matéria sólida e leve, de um cinza muito claro. O fí
sico Hoi-To segurou-o na mão, olhou-o longamente e olhou os outros objetos.
Havia uma caixa sem tampa que continha varinhas octogonais de cores diferentes.
Pegou uma e introduziu-a no tubo oco colado ao cubo. Logo, uma luz nasceu dentro
do objeto e iluminou-o suavemente.
E o objeto suspirou... Hoi-To teve um pequeno sorriso. Suas mãos delicadas botar
am o cubo de volta sobre a mesa branca.
Agora o objeto falava. Uma voz feminina falava em voz baixa, numa língua desconh
ecida. Nasceu uma música, semelhante ao sopro de um vento ligeiro numa floresta
povoada de pássaros e de harpas eólias. E sobre a face superior do cubo, como pr
ojetada do interior, uma imagem surgiu: o rosto da moça A imagem do pedestal com
o caixão vazio apareceu, cresceu e fez-se ver r trás de um ligeiro véu de bruma
. Repararam então que faltava um dos seus lados. Toda uma parede vertical havia
se afundado no solo, aparecendo uma espécie de estante com prateleiras metálicas
sobre as quais estavam colocados objetos de formas desconhecidas
que falava. Parecia com aquele que tinham encontrado dentro do ovo. Mas não era
ela. Sorriu e apagou-se, substituída por uma flor estranha, que por sua vez derr
eteu-se numa cor movediça. A voz da mulher continuava. Não era uma canção, não e
ra uma poesia, era ao mesmo tempo um e outro, era coisa simples e natural como o
barulho de um riacho ou de chuva. E todas as faces do cubo se iluminavam simult
aneamente, mostrando uma mão, uma flor, um sexo, um pássaro, um seio, um rosto,
um objeto que mudava de forma e de cor, uma forma sem objeto, uma cor sem forma.
Todos olhavam e escutavam, interessados. Era o desconhecido, o inesperado, e os
tocava profundamente, como se esse conjunto de imagens e de sons tivesse sido co
mposto especialmente para cada um, segundo suas aspirações mais secretas e profu
ndas, ultrapassando todas as convenções e barreiras.
Hoover sacudiu a cabeça, pigarreou e tossiu.
Que transistor mais gozado disse ele. Desligue esse troço. Hoi-To retirou a vari
nha do tubo. O tubo apagou-se e silenciou.
No quarto da enfermaria, aquecido a 30 graus, a mulher, nua, jazia estendida sob
re um leito estreito.
Elétrodos, placas, pulseiras fixadas nos seus pulsos, nas suas têmporas, em seus
pés, nos seus braços, ligavam-na por meio de espirais e de ziguezagues aos fios
dos aparelhos de observação.
Duas enfermeiras massageavam os músculos de suas coxas. Um massagista friccionav
a os músculos dos seus maxilares. Uma outra enfermeira passava sobre o seu pesco
ço um aparelho de infravermelho. Van Houcke apalpava-lhe suavemente a parede do
ventre. Os médicos, as enfermeiras, os técnicos, transpiravam na atmosfera super
aquecida, irritados com esse desmaio que se prolongava. Trocavam olhares, espera
vam, davam sua opinião em voz baixa. Simon olhava a mulher, olhava aqueles que a
cercavam, que a tocavam. Apertou os punhos e os maxilares.
Seus músculos respondem disse Van Houcke. Diríamos que ela está consciente...
Moissov veio para a cabeceira do leito, inclinou-se sobre a moça, ergueu uma pál
pebra, depois a outra...
Ela está consciente! disse ele. Ela fecha os olhos voluntariamente... não está m
ais nem desmaiada nem adormecida...
Por que então ela fecha os olhos? perguntou Forster. Simon explodiu:
Porque ela está com medo! Se queremos parar de lhe meter medo, é preciso parar d
e tratá-la como um animal de laboratório!
Fez um gesto brusco em direção às cinco pessoas reunidas ao redor do leito.
Saiam daí! Deixem-na tranqüila! Van Houcke protestou. Lebeau interveio:
Ele talvez tenha razão... Estudou psicoterapia durante dois anos com Pèrier... T
alvez esteja mais capacitado que nós; vamos! Tirem tudo isso daí...
Moissov no mesmo momento retirou os Elétrodos do encefalograma. As enfermeiras d
esembaraçaram o corpo estendido de todos os outros fios que partiam dele como de
uma teia de aranha. Simon pegou um lençol que estava enrolado nos pés da cama e
ergueu-o delicadamente até os ombros da moça, deixando os seus braços de fora.
Ela usava no dedo maior um grande anel de ouro que tinha a forma de uma pirâmide
truncada. Simon pegou a outra mão entre as suas, a mão esquerda, a mão nua, e a
segurou como se segura um passarinho perdido ao qual se queira infundir confian
ça.
Lebeau, sem barulho, fez sair as enfermeiras e os técnicos. Trouxe uma cadeira p
ara perto de Simon, recuou até a parede e fez sinal aos outros médicos para que
o imitassem.
Van Houcke sacudiu os ombros e saiu.
Simon sentou-se, deixou sobre o leito suas mãos que seguravam sempre a da mulher
, e começou a falar. Muito carinhosamente, quase cochichando. Muito docemente, m
uito ardentemente, muito calmamente, como a uma criança doente que necessita de
carinho durante os pesadelos da febre.
Nós somos amigos... disse ele. Você não compreende o que eu lhe digo, mas você
ompreende que eu lhe falo como um amigo... somos amigos... Você pode abrir os ol
hos... você pode olhar nossos rostos... nós queremos o seu bem... tudo vai bem..
. Você vai ver... você pode acordar... nós somos seus amigos... queremos fazê-la
feliz... nós a amamos...
Ela abriu os olhos e olhou-o.
Eléa acordou estendida sobre um tapete de peles. Repousava sob uma coberta morna
e macia pousada sobre nada. Flutuava num estado de descanso total.
Havia sido examinada da cabeça aos pés, pesada quase que célula por célula,alime
ntada, massageada, impregnada, equilibrada, balanceada até não ser mais que um c
orpo no peso exatamente requerido e de uma passividade perfeita. Depois Coban, t
endo voltado, explicou-lhe o mecanismo da abertura e do fechamento do abrigo, ao
mesmo tempo que administrava ele mesmo, em fumaças para respirar, em óleo sobre
a língua, em neblina nos olhos, em longas modulações de infra-sons sobre as têm
poras, os diversos elementos do soro universal. Ela havia sentido uma energia no
va, luminosa, invadir todo o seu corpo, limpar todos os recantos de cansaço, enc
her até sua pele de um entusiasmo semelhante ao das florestas na primavera. Ela
se sentia tornar dura como uma árvore, forte como um touro, equilibrada como um
lago. A força, o equilíbrio e a paz haviam-na irresistivelmente conduzido ao son
o.
Adormecera na poltrona do laboratório, acabava de abrir os olhos sobre este tape
te, numa peça redonda e nua. A única porta encontrava-se diante dela. Diante da
porta um guarda verde, sentado sobre um cubo, olhava-a. Segurava na ponta dos de
dos um objeto de vidro feito de tubos minúsculos entrelaçados em volteios compli
cados. Os tubos frágeis estavam cheios de um líquido verde.
Já que a senhora não dorme mais - disse o guarda - vou preveni-la: se tentar sai
r à força, abro os dedos, isto cai e quebra, e a senhora dormirá como uma pedra.
Eléa não respondeu. Olhou-o. Mobilizava todos os recursos do seu espírito com um
só fim: sair e encontrar Paikan.
O guarda era grande de ombros largos, cintura grossa. Seus cabelos trançados tin
ham a cor do bronze novo. Estava com a cabeça descoberta e sem arma. Seu pescoço
grosso era quase tão largo quanto seu rosto maciço. Constituía um sério obstácu
lo diante da porta única. Na ponta do seu braço musculoso, da sua mão rude, segu
rava esse objeto infinitamente frágil, obstáculo ainda mais forte.
Escute, Eléa disse uma voz. Paikan pede para lhe falar e vê-la. Nós permitiremos
.
A imagem de Paikan apareceu entre ela e o guarda. Eléa saltou e ficou de pé.
Eléa!
Paikan!
Ele estava de pé na cúpula de trabalho. Ela via perto dele um fragmento da mesa
e a imagem de uma nuvem.
Eléa! Onde está você? Onde? Por que você vai me abandonar?
Eu recusei! Eu sou sua! Eu não sou deles! Coban obrigou-me! Eles me prenderam!
Vou buscá-la! Quebrarei tudo! Matarei todos! Sacudiu sua mão esquerda enfiada na
arma.
Você não pode! Você não sabe onde é que estou!... Eu também não sei! Espere, eu
voltarei! De qualquer maneira!...
Acredito em você, estou esperando disse Paikan. A imagem desapareceu.
O guarda, sempre sentado, olhava Eléa. Em pleno centro da peça redonda, ela o ol
hava e avaliava. Deu um passo na sua direção. Ele pegou a máscara que estava pen
durada como um colar e ajustou-a sobre o nariz.
Atenção! disse com uma voz nasal.
Sacudiu ligeiramente, com todo o cuidado, os entrelaçamentos frágeis dos tubos d
e vidro.
Eu o conheço disse ela. Ele a olhou surpreso.
Você e seus semelhantes. Vocês são simples, vocês são corajosos. Fazem tudo o qu
e lhes dizem e não lhes explicam nada.
Ela fez escorregar a extremidade da faixa azul do busto, e começou a desenrolá-l
a.
Coban não lhe disse que você ia morrer.
O guarda deu um sorriso pequeno. Ele era guarda. Estava nas profundezas, não acr
editava na sua própria morte.
Vai haver uma guerra e não haverá sobreviventes. Você sabe que eu digo a verdade
: você vai morrer. Vocês todos vão morrer, exceto eu e Coban.
O guarda soube que ela não mentia. Ela não era daquelas que se rebaixavam a ment
ir fossem quais fossem as circunstâncias. Mas ela devia estar enganada, há sempr
e sobreviventes. Os outros morrem, eu não, pensou.
Agora sua cintura estava nua e ela começou a soltar a faixa em diagonal do lado
do ombro.
Todo o mundo vai morrer em Gondawa. Coban sabe disso. Ele construiu um abrigo qu
e nada pode destruir, para nele se encerrar. Encarregou o computador de escolher
a mulher que ele encerraria com ele. Esta mulher sou eu. Você sabe por que o co
mputador me escolheu entre milhões? Porque sou a mais bela. Você não viu senão m
eu rosto, olhe.
Ela desnudou seu seio direito. O guarda olhou aquela carne maravilhosa, flor e f
ruto, e ouviu o barulho do sangue latejar nos seus ouvidos.
Você me deseja? perguntou Eléa.
Ela continuava lentamente a descobrir seu busto. O seio esquerdo ainda estava me
io encoberto pela fazenda.
Eu sei qual o gênero de mulher que o computador escolheu para você. Ela pesa trê
s vezes o meu peso. Uma mulher como eu, você nunca viu...
A faixa inteira caiu ao solo, liberando o seio esquerdo. Eléa deixou seus braços
caírem ao longo do corpo, as palmas da mão meio viradas para a frente, os braço
s um pouco afastados, oferecendo seu busto nu, o esplendor vindo dos seios bem p
roporcionados, cheios, macios, gloriosos.
Antes de morrer, você me deseja?
Ela ergueu a mão esquerda, e, com um único gesto, fez cair a roupa que estava pr
esa nas cadeiras.
O guarda levantou-se, pousou sobre o cubo o perigoso, frágil, ameaçador objeto d
e vidro, arrancou sua máscara e sua túnica. Conjunto perfeito de músculos equili
brados e fortes, seu torso nu era magnífico.
Você é de Paikan disse ele.
Eu lhe prometi: de qualquer maneira.
Eu lhe abrirei a porta e a levarei para fora.
Ele tirou a roupa. Estavam de pé, nus, um diante do outro. Ela recuou lentamente
e, quando sentiu o tapete sob seus pés, agachou-se e deitou-se. Ele se aproximo
u, poderoso e pesado, precedido por seu desejo soberbo. Deitou-se sobre ela e el
a se abriu.
Ela o sentiu encostar, cruzou suas pernas sobre seus rins e esmagou-o contra ela
. Ele a penetrou como uma lâmina. Ela teve um espasmo de horror.
Eu sou de Paikan gritou.
E enfiou seus dois polegares ao mesmo tempo nas carótidas dele.
Ele sufocava e se torcia. Mas ela era forte como dez homens e o segurava com seu
s pés apertados, seus joelhos, seus cotovelos, seus dedos enfiados nos seus cabe
los trançados. E seus polegares inexoráveis, duro como aço pela vontade de matar
, privavam seu cérebro da menor gota de sangue.
Foi uma luta selvagem: enlaçados, ligados um ao outro e um no outro, rolavam sob
re o solo em todas as direções. As mãos do homem agarravam-se às mãos de Eléa e
puxavam, tentando arrancar a morte que se enfiava no seu pescoço. A parte de bai
xo do seu ventre ainda queria viver, viver ainda um pouco, viver o bastante para
ir até o fim do seu prazer. Seus braços e seu torso lutavam para sobreviver, e
seus rins e suas coxas lutavam, se apressavam para ganhar a morte em rapidez, pa
ra gozar, gozar antes de morrer.
Uma convulsão terrível o sacudiu. Ele enfiou-se até o fundo da morte enroscada e
m volta dele e nela esvaziou, num gozo fulgurante, interminavelmente, toda a sua
vida. A luta parou. Eléa esperou que o homem se tornasse passivo e pesado como
um bicho morto. Então retirou seus polegares enfiados na sua carne mole. Suas un
has estavam cheias de sangue. Ela abriu suas pernas crispadas e escorregou para
fora do peso do homem. Arquejava de nojo. Teria querido se virar do avesso como
uma luva e se lavar toda por dentro dela mesma até os cabelos. Pegou a túnica do
guarda, enxugou com ela seu rosto, o peito e o ventre, jogou-a longe molhada, e
vestiu-se rapidamente.
Aplicou a máscara sobre o nariz, pegou a frágil construção de vidro e, com preca
ução, empurrou a porta, que se abriu.
ava sobre o laboratório onde Eléa havia recebido os preparativos. O chefe do lab
oratório e dois laboratoristas estavam inclinados sobre uma mesa. Um guarda arma
do estava em pé diante de uma porta. Viu Eléa primeiro. Disse:
Ei!
Ergueu a mão para colocar sua máscara.
Eléa jogou o objeto de vidro a seus pés. Ele se quebrou sem barulho. Instantanea
mente a peça ficou cheia de uma bruma verde. O guarda e os três homens de roupa
salmão caíram sobre eles mesmos.
Eléa dirigiu-se para a porta, e pegou as armas do guarda.
Não sou um adolescente romântico. Não sou um bruto governado pelo estômago e pel
o sexo. Sou razoavelmente sensato, sentimental e sensual, capaz de controlar min
has emoções e meus instintos. Pude rapidamente suportar a visão de tua vida mais
intima, pude suportar ver esse bruto se deitar em cima de ti e penetrar na mara
vilha do teu corpo. O que me transtornou foi o que li sobre o teu rosto.
Poderias não ter morto este homem. Ele havia dito que te levaria para fora. Talv
ez mentisse, mas não foi para assegurar a tua fuga que tu o mataste, foi porque
ele estava no teu ventre e não podías suportá-lo. Tu o mataste. por amor a Paika
n. Amor. Esta palavra que a tradutora utiliza porque não encontra o equivalente,
não existe na tua língua. Depois que te vi viver junto de Paikan, compreendi qu
e era uma palavra insuficiente. Nós dizemos "eu amo", dizemos da mulher, mas ta
mbém da fruta que comemos, da gravata que escolhemos, e a mulher o diz falando s
obre o seu batom. Ela diz do seu amante: "ele é meu". Tu dizes o contrário: "eu
sou de Paikan". E Paikan diz "eu sou de Eléa". Tu és dele, és uma parte dele mes
mo. Chegarei eu jamais a te desprender? Tento te interessar no nosso mundo, te f
iz ouvir Mozart e Bach, mostrei-te fotografias de Paris, de Nova Iorque, de Bras
ília, te falei da história dos homens, pelo menos da que nós conhecemos e que é
o nosso passado, tão curto ao lado da durabilidade imensa do teu sono. Em vão, t
u escutas, olhas, mas nada te interessa. Estás por trás do muro. Não estás em co
ntato com o nosso tempo. Teu passado te seguiu no consciente e no subconsciente
da tua memória. Não pensas senão em nele mergulhar de novo, e encontrá-lo, e rev
ivê-lo. O presente para ti é ele.
Um engenho rápido da universidade estava pousado sobre o braço de atraca- mento
da torre. Os guardas que dele haviam saído vasculharam o apartamento e a cúpula.
No terraço, perto da árvore de seda, Coban falava a Paikan. Acabava de lhe expl
icar por que tinha necessidade de Eléa e lhe comunicava sua evasão.
Ela destruiu tudo o que a impedia de passar. Homens, portas e paredes! Pude segu
ir sua pista como a de um projétil até a rua, onde ela tornou-se um transeunte l
ivre.
Os guardas interromperam Coban para lhe dizer que Eléa não estava no apartamento
nem na cúpula. Ele ordenou-lhes que procurassem no terraço.
Eu tinha minhas dúvidas de que ela já tivesse chegado disse ele a Paikan. Ela sa
bia que eu viria diretamente aqui. Mas sei que ela só tem um desejo: o de encont
rá-lo. Virá, ou então fará com que você vá aonde ela estiver, para que se encont
rem. Então nós a prenderemos. É inevitável. Mas vamos perder muito tempo. Se ela
o chamar, faça-lhe compreender, diga-lhe para voltar à universidade.
Não disse Paikan.
Coban olhou-o com seriedade e tristeza.
Você não é um gênio, Paikan, mas você é inteligente. Você é de Eléa?
Eu sou de Eléa!
Se ela entrar no abrigo, ela viverá. Se ela não entrar ela morrerá. Ela é inteli
gente e resoluta. O computador a escolheu bem, ela acaba de prová-lo. Pode ser q
ue apesar da nossa vigilância ela consiga encontrá-lo. Então, é você quem tem de
convencê-la a voltar para nós. Comigo, ela viverá; com você ela morrerá. No abr
igo é a vida. Fora do abrigo, é a morte, dentro de alguns dias, talvez dentro de
algumas horas. O que é que você prefere? Que ela viva sem você, ou que ela morr
a com você?
Abalado, torturado, furioso, Paikan gritou:
Por que não escolhem uma outra mulher?
Não é mais possível. Eléa recebeu a única dose disponível de soro universal. Sem
esse soro, nenhum organismo humano poderá atravessar o frio absoluto sem sofrer
graves conseqüências e talvez até morrer.
Os guardas vieram dizer a Coban que Eléa não estava no terraço.
Ela está nalgum lugar nas proximidades, espera que partamos. A torre ficará sob
vigilância. Vocês não poderão se encontrar sem que nós o saibamos. Mas se por um
milagre vocês conseguirem fazê-lo, lembre-se de que você tem a escolha entre su
a vida e sua morte...
Coban e os guardas voltaram para o engenho que se elevou alguns centímetros acim
a do braço de atracação, girou sobre o mesmo lugar e afastou-se na velocidade má
xima.
Paikan aproximou-se da rampa e olhou para cima. O engenho com a marca da equação
de Zoran descrevia círculos lentos em volta da vertical da torre.
Paikan ligou a tela de proximidade e dirigiu-a para as casas de repouso colocada
s no solo todas ao redor da torre. Em todas via rostos de guardas que olhavam at
ravés de suas próprias telas.
Entrou no apartamento, abriu o elevador. Um guarda estava de pé na cabina. Fecho
u a porta, enraivecido, e subiu para a cúpula. Plantou-se no meio da cúpula tran
sparente, olhou o céu puro onde o engenho da universidade continuava a girar len
tamente, ergueu os braços em cruz, dedos afastados, e começou a fazer gestos est
ranhos.
Diante dele, uma pequena nuvem branca cheinha nasceu no azul do céu. Espalhadas
pelo céu perto da torre, nasceram pequenas nuvens brancas encantadoras, que tran
sformavam o azul num grande prado florido. Rapidamente elas se desenvolveram e s
e juntaram, formando uma massa que se tornava mais espessa e negra, e pôs-se a g
irar em torno dela mesma com seus trovões represados que ribombavam. O vento cur
vou as árvores do terraço, atingiu o solo, gritou ao rasgar-se sobre as ruínas,
e sacudiu as casas de repouso.
O rosto do chefe de serviço apareceu em cima da mesa. Parecia perturbado.
Escute, Paikan! O que é que está acontecendo aí? O que é este furacão? O que é q
ue você está fazendo? Você está louco?
Não fiz nada respondeu Paikan. A cúpula está bloqueada! Mande-me o engenho da of
icina! Rápido! Isto não é senão um furacão, e vai se tornar um ciclone! Mande rá
pido.
O chefe de serviço cuspiu palavras desagradáveis e desapareceu.
A nuvem giratória tinha ficado verde, com bruscas iluminações internas púrpuras
ou rosadas. Um barulho terrível, contínuo, caía sobre a Terra, o barulho de mil
trovões retidos. Um feixe de raios arrombou sua superfície e atingiu o engenho d
a universidade, que desapareceu numa chama.
Na confusão que se seguiu e atingiu a torre, Paikan desceu correndo para o apart
amento e para o terraço e mergulhou na piscina.
Eléa estava lá, no fundo, enfiada na areia, o rosto recoberto pela máscara e dis
simulado sob as algas. Ela viu chegar Paikan que lhe fazia sinal. Saiu então do
esconderijo e subiu com ele para a superfície. Trombas d'água caíam da nuvem, ca
rregadas pelo vento que sacudia loucamente as casas de repouso agarradas às suas
âncoras. Uma rajada enroscou-se na torre e tentou arrancá-la. A torre gemeu e r
esistiu. O vento carregou a árvore de seda que subiu, descabelada, para a nuvem,
e desapareceu numa boca negra.
Paikan havia levado Eléa para a cúpula. A parte de baixo da nuvem acabava de ati
ngi-la e rasgava-se sobre ela, mistura de vento que uivava, de bruma opaca, de c
huva de granizo, iluminado pela sucessão dos relâmpagos. Ao atingirem uma saída
da cúpula, ajustaram suas armas na cintura. Paikan abriu a porta de uma nave. Do
is mecânicos saltaram na torre, acompanhados dos uivos e do canhoneio do furacão
.
O que é que está acontecendo? perguntou um deles, espantado.
Em vez de responder, Paikan mergulhou sua mão na arma e atirou na estrutura da c
úpula que ressoou, gemeu e desmoronou. Ele pegou Eléa, empurrou-a em direção ao
veículo, entrou atrás dela e decolou rápido, enquanto ela, com esforço, consegui
a fechar o vidro cônico. A nave desapareceu na espessura da nuvem.
Era um engenho pesado, lento, de pouco manejo, mas que não temia nenhuma forma d
e furacão. Paikan quebrou o emissor que assinalava sem cessara posição do aparel
ho, virou na nuvem que crepitava ao redor deles, e foi para o centro que se desl
ocava para oeste, seguindo o impulso que ele lhe tinha dado. Com a cúpula destru
ída, seria necessária a intervenção das outras torres para modificar o curso do
furacão e neutralizá-lo. Isto dava bastante tempo para executar o início do plan
o que Paikan expunha a Eléa.
A única solução para eles era abandonar Gondawa e ir para Lamoss, a nação neutra
. Para isso, era necessário invadir a pista, pousar, e pegar um engenho de longa
distância. Somente poderiam encontrar um no parqueamento da vila subterrânea.
Os engenhos da universidade não ousariam se arriscar numa tal tempestade, com me
do de ver seu campo de não gravidade perturbado, e cair como pedra. Mas deviam m
ontar uma boa guarda no local. Teriam portanto de ir ao local de um elevador, fi
car camuflados pela nuvem e protegidos pela ronda da tempestade.
Paikan fez a nave descer até o limite inferior da nuvem. O sol, varrido pelas to
rrentes de chuva, brilhava a baixa altura, sobre a claridade dos relâmpagos. Era
a grande planície vitrificada. Os últimos elevadores de Gonda-7 não deveriam es
tar longe. Eléa viu surgir um na bruma. Paikan pousou brutalmente. Apenas no chã
o, saíram correndo e ambos apontaram para ele suas armas, ao mesmo tempo. O vent
o zunindo levantava nuvens de poeira.
Era um elevador rápido, que ia diretamente à 5ª Profundidade. Isto não tinha gra
nde importância. Cada profundidade possuía seus parqueamentos. Foram para a cabi
na de serviços expressos. Quando o elevador se abriu para deixá-los passar, esta
vam secos, lavados, penteados, escovados. Haviam utilizado para isso suas chaves
.
Na avenida de transportes a multidão parecia ao mesmo tempo nervosa e espantada.
Imagens surgiam por todos os lados para dar as últimas noticias. Era preciso en
fiar a chave na placa de som para ouvir as palavras. Apoiados num galho de uma á
rvore, sobre a pista de alta velocidade, viram e ouviram o Presidente Lokan faze
r declarações tranqüilizadoras. Não, não era a guerra. Ainda não. O conselho far
ia todo o possível para evitá-la. Mas cada habitante de Gondawa não deveria se a
fastar do seu posto de mobilização. A nação poderia precisar de todos de um mome
nto para o outro.
A maior parte dos homens e mulheres usava o cinturão com a arma, e, sem dúvida,
dissimulado em alguma parte do seu corpo, o Grão Negro.
Os pássaros não conheciam as notícias: cantavam, pipilando de prazer, batendo em
rapidez a pista central. Eléa sorriu e ergueu o braço esquerdo na vertical, aci
ma de sua cabeça, o punho fechado, o indicador horizontal. Um pássaro amarelo fr
eou em pleno vôo e pousou sobre o seu dedo estendido. Eléa baixou-o à altura do
seu rosto e encostou-o contra sua face. Era morno macio. Sentia seu coração bate
r tão rápido que mais parecia uma vibração. Ela lhe cantou algumas palavras de a
mizade. Ele respondeu com um assobio agudo, saltou do dedo de Eléa para sua cabe
ça, deu-lhe algumas bicadas nos cabelos, bateu as asas e se deixou conduzir por
um bando que passava. Eléa pousou sua mão na de Paikan.
Desceram da Avenida no parqueamento. Era uma floresta em feitio de leque. Os gal
hos das árvores se reuniam acima das filas de engenhos estacionados ali As pista
s convergiam para a rampa da chaminé de partida. Da chaminé de chegada, que se a
bria no centro da floresta, surgiam engenhos de todos os tamanhos que seguiam na
s pistas de volta, para se abrigar sob as folhas como bichos na hora do repouso
depois de uma corrida.
Paikan escolheu um veículo rápido de dois lugares, de longa distância, sentou-se
numa das cadeiras. Eléa a seu lado.
Enfiou sua chave na placa de comando, esperando para indicar sua designação e qu
e se acendesse um sinal azul na placa que começou a piscar. O sinal não se ilumi
nou.
O que é que está acontecendo?
Retirou sua chave da placa e enfiou-a novamente. O sinal não respondeu.
Experimente a sua...
Eléa por sua vez enfiou sua chave no metal elástico, sem mais sucesso.
Há um enguiço qualquer disse Paikan. Um outro, rápido!... No momento em que ele
se preparava para sair, o emissor do engenho começou a falar. A voz fez com que
eles parassem petrificados. Era a de Coban.
Eléa, Paikan, sabemos onde vocês estão. Não se movam. Vou mandar buscá-los. Você
s não poderão ir a lugar nenhum,fiz anular suas contas no computador central. Vo
cês não obterão mais nada com suas chaves. Elas não poderão mais lhes ajudar. Só
vos assinalar. O que estão esperando ainda? Não se mexam, vou mandar buscá-los.
..
Eles não tiveram necessidade de se combinarem. Saltaram fora do aparelho e afast
aram-se rapidamente. De mãos dadas, atravessaram uma pista diante do nariz de um
aparelho que freou rápido, e afundaram-se sob as árvores. Milhares de passarinh
os cantavam nas folhagens verdes ou vermelhas, ao redor dos galhos luminosos. Os
pios apenas audíveis dos motores mais lentos compunham um barulho de fundo tran
qüilizante que incitava a não fazer nada, a esperar, a se confundir com a alegri
a dos pássaros e das folhas. Na claridade verde-dourada, chegaram ao fim de uma
longa fila de engenhos de longa distância. O último acabara de pousar e tomar se
u lugar. Um viajante descia. Paikan ergueu sua arma e atirou com potência fraca.
O homem foi projetado ao solo, espantado. Paikan correu em sua direção, segurou
-o sobre os braços, arrastou-o para baixo de um ramo e ajoelhou-se a seu lado. T
eve um trabalho enorme para lhe arrancar sua chave. O homem era gordo, seu anel
ficara afundado na carne. Teve que cuspir nos dedos para conseguir fazê-lo escor
regar. Quando finalmente o anel cedeu, ele estava pronto a cortar o dedo, a garg
anta, não importa o que para carregar Eléa para longe de Coban e da guerra.
Subiram para o aparelho ainda quente e Paikan enfiou a chave na placa de comando
. Em vez do sinal azul, foi um sinal amarelo que começou a palpitar. A porta do
aparelho fechou-se batendo e o emissor de bordo começou a gritar: "Chave roubada
! chave roubada!" Do exterior do aparelho um aviso guinchava.
Paikan atirou na porta. Correram para fora e afastaram-se para o abrigo das árvo
res. Atrás deles o sinal de alarme continuava a lançar seu grito de apelo: "Chav
e roubada! chave roubada!"
Os viajantes que se dirigiam para os outros engenhos ou que saíam prestavam pouc
a atenção ao incidente. Preocupações mais graves faziam com que eles se apressas
sem. Acima da entrada das Treze Ruas, uma enorme imagem mostrava a batalha da Lu
a. Os dois campos a bombardeavam com suas armas nucleares, arrepiando-a com cogu
melos, abrindo gigantescas crateras, fissurando seus continentes, vaporizando se
us mares, dispersando sua atmosfera no vazio. Os passantes paravam, olhavam um i
nstante, e saíam mais depressa. Cada família tinha um amigo ou um parente nas gu
arnições da Lua ou de Marte.
No momento em que Eléa e Paikan entravam na décima primeira rua, a chaminé de ch
egada do parqueamento abriu passagem para uma frota de aparelhos da universidade
que se dirigiram para todas as pistas e todas as entradas.
A décima primeira rua estava cheia de uma multidão febricitante. Grupos se aglom
eravam diante das imagens oficiais que transmitiam as notícias da Lua ou a últim
a declaração do presidente. De tempos em tempos, alguém que ainda não havia ouvi
do suas declarações enfiava sua chave na placa de som e Lokan pronunciava mais u
ma vez. as mesmas palavras tranqüilizadoras: "Ainda não é a guerra..."
O que mais que eles querem? gritou um rapaz magro, de torso nu, cabelos curtos.
Se vocês aceitam, já é a guerra! Digam que não com os estudantes! Não para a gue
rra! Não! Não! Não!
Seu protesto não ergueu eco nenhum. As pessoas que estavam mais próximas dele se
afastaram e se dispersaram isoladas ou de mãos dadas. Tinham consciência de que
gritar não ou sim ou qualquer outra palavra, no momento não adiantava mais, fos
se para o que fosse.
Eléa e Paikan se apressaram em direção à porta do elevador comum, esperando se m
isturar no meio da multidão a fim de chegar à superfície. Uma vez lá fora, eles
combinariam. Agora, não tinham tempo para pensar. Os guardas verdes surgiram no
fim da rua. Eles fizeram uma fila tripla em toda a largura da rua e avançavam ve
rificando a identidade de cada um. A multidão se inquietava e se irritava.
O que é que estão procurando?
Um espião!
Um enisor!
Tem um enisor na 5ª Profundidade!
Todo um destacamento de enisores! Sabotadores!
Atenção! Escutem e vejam!
A imagem de Coban acabava de surgir no meio da rua. Ela se repetia em cada 50 me
tros, dominando a multidão e as árvores, repetindo os mesmos gestos e pronuncian
do as mesmas palavras.
Escutem e vejam. Sou Coban. Procuro Eléa 3-19-07-91. Eis aqui seu rosto.
Um retrato de Eléa tomado algumas horas antes no laboratório surgiu no lugar de
Coban. Eléa virou-se para Paikan e escondeu seu rosto no seu peito.
Não tenha medo de nada! disse ele docemente.
Acariciou o seu rosto, escorregou uma mão sobre seu braço, desfez a extremidade
da faixa que passava pelo busto, desnudou-lhe um ombro e, com a parte da faixa a
ssim livre, envolveu-lhe o pescoço, o queixo, a testa e os cabelos. Era um traje
que os homens e as mulheres às vezes adotavam, que não faria com que ela fosse
notada e que lhe dava poucas possibilidades de ser reconhecida.
Procuro esta mulher para salvá-la. Se vocês souberem onde ela está, avisem, mas
não a toquem... Escute, Eléa! Sei que você está me ouvindo. Assinale-se com sua
chave, enfiando-a em qualquer placa. Assinale e não se mexa. Escutem e vejam, pr
ocuro esta mulher, Eléa 3-19-0791...
Um homem, um sem-chave, a reconheceu. Reconheceu seus olhos: não havia azul tão
azul nos olhos de outra mulher, nem em Gonda-7, talvez nem em todo o continente.
O homem estava apoiado no muro, entre dois troncos tortos, sobre os galhos de o
nde pendem máquinas distribuidoras de água, de alimentos e de mil objetos necess
ários ou supérfluos que se podem obter com suas chaves. Ele não podia obter nada
. Era um pária, um sem-chave, não tinha mais conta, só podia viver de mendicânci
a. Estendia a mão, e as pessoas que vinham se servir na floresta das máquinas mu
lticores, lhe davam um pouco de alimento que ele comia ou guardava num saco pend
urado na cintura. Para esconder a vergonhosa nudez do seu dedo sem anel, trazia
em volta da falange do dedo médio uma fita preta.
Ele viu Eléa esconder o rosto no peito de Paikan, e este dissimular-lhe o rosto.
Mas quando ela ergueu a cabeça para olhar Paikan, viu seus olhos e reconheceu o
s olhos azuis da, imagem.
Os guardas verdes se aproximavam lenta e inexoravelmente. Cada pessoa interrogad
a enfiava sua chave numa placa fixada no punho do guarda. A de qualquer pessoa p
rocurada aí ficaria enfiada e fixa, tornando-a prisioneira. Eléa e Paikan se afa
staram. O sem-chave os seguiu.
Eles nunca haviam tomado o elevador comum, freqüentado principalmente pelas pess
oas menos-bem-designadas, aqueles que não andavam de mãos dadas e tinham necessi
dade da companhia dos outros. Sabiam agora que não o tomaram nunca: as portas de
correr não deixavam passar senão uma pessoa de cada vez, após introduzir a chav
e na placa...
Não tomariam nem esse elevador ou nenhum outro, nem as avenidas de transporte, n
em alimento, nem bebida. Nada. Não poderiam obter mais nada. Uma imagem gigantes
ca de Eléa encheu bruscamente toda a largura da rua.
A universidade procura esta mulher, Eléa 3-19-07-91. Procura-a para salvá-la. Se
você encontrá-la, não a segure, não a toque. Siga-a e assinale-a. Nós a procura
mos para salvá-la. Escute, Eléa, sei que você está me ouvindo... Assinale sua pr
esença com sua chave!
Estão me olhando! estão me olhando!
Não disse Paikan não podem reconhecê-la.
Vocês a reconhecerão dizia o aviso pelos seus olhos, seja qual for o disfarce. O
lhem nos olhos desta mulher. Nós a procuramos para salvá-la.
Abaixe as pálpebras! Olhe para o chão!...
Uma fila tripla de guardas verdes surgiu na encruzilhada da décima primeira rua
e da transversal e avançou ao encontro das outras. Não havia mais escapatória. P
aikan olhou ao seu redor, desesperado.
Olhem bem os olhos desta mulher...
Cada um dos olhos da imagem era grande como uma árvore, e o azul da íris era uma
porta aberta no céu da noite. Neles, as lantejoulas de ouro brilhavam como fogo
s. A imagem girava lentamente para que cada um pudesse vê-la de frente e de perf
il. Arrasada por esta presença dividida dela mesma, Eléa baixava a cabeça, curva
va os ombros, crispava sua mão na mão de Paikan que a dirigia para a porta da av
enida, na esperança de aí conseguir se insinuar para a saída. A imagem intocável
barrava-lhes a rua. Chegaram bem perto dela. Eléa parou e ergueu a cabeça. Do a
lto do seu rosto gigantesco, seus olhos imensos olharam-na nos olhos.
Vem... disse Paikan carinhosamente.
Ele a puxou para si, ela recomeçou a andar. Um nevoeiro de mil cores tremeluzent
es envolveu-a: tinham entrado dentro da imagem. Caíram dentro das portas da aven
ida. Os batentes da saída se abriram bruscamente sobre a pressão de uma multidão
de estudantes que corriam. Rapazes e moças, todos tinham o torso nu, extremamen
te magros. As moças tinham pintado sobre cada seio um grande X vermelho, para ne
gar sua feminilidade. Não havia mais nem moças nem rapazes, somente revoltados.
Desde o início de sua campanha, que eles jejuavam um dia em cada dois, sendo que
no segundo não comiam senão a ração energética. Tinham se tornado duros e ágeis
como flechas.
Corriam gritando a palavra "Pao" que significava "não" nas duas línguas gondas.
Paikan e Eléa misturaram-se entre eles, contra a onda, para atingir os batentes
antes que se fechassem.
Pao!... Pao!... Pao!... Pao!...
Os estudantes lhes davam encontr]oes e os empurravam, eles tornavam a andar para
a frente, Paikan afastando a multidão como um aríete. Os estudantes passavam po
r eles, empurravam à esquerda e à direita, pareciam não os ver, alucinados pela
fome e pelo grito repetido.
Pao!... Pao!... Pao!... Pao!...
Finalmente chegaram à porta. Porém um grupo a encheu e transbordou, fazendo-os r
ecuar diante deles. Era uma companhia de guardas brancos da polícia do Conselho,
de braços colados, cotovelo com cotovelo, a mão esquerda ar Fria, eficiente, se
m emoção, a polícia branca não aparecia a não ser para agir. Seus membros eram e
scolhidos pelo computador antes da idade de Designação. Não recebiam chave, não
tinham nem mesmo conta de crédito. Eram educados e treinados num campo especial,
abaixo da 9ª Profundidade, abaixo mesmo do complexo das máquinas imóveis. Não s
e mostravam jamais na superfície. Raramente acima das máquinas. Seu universo era
o do Grande Lago Selvagem, cujas águas se perdiam nas trevas de uma caverna ine
xplorável. Sobre suas margens minerais, eles treinavam sem cessar em batalhas im
piedosas uns contra os outros. Lutavam, dormiam, comiam, lutavam, dormiam, comia
m. A alimentação que recebiam transformava em atividades de combate sua energia
sexual não empregada. Quando o conselho tinha necessidade deles, injetava-lhes u
ma quantidade mais ou menos grande onde a necessidade se fazia sentir, como um o
rganismo mobiliza seus fagócitos contra o furúnculo e tudo entrava rapidamente e
m ordem. Estavam cobertos, da cabeça aos pés, inclusive por um colante de matéri
a branca semelhante ao couro, que deixava livres somente o nariz e os olhos. Nin
guém nunca soube qual era o comprimento dos seus cabelos. Carregavam duas armas
G, igualmente de cor branca, uma para a mão esquerda, a outra sobre o ventre, do
lado direito. Eram os únicos a poder atirar com as duas mãos. O conselho os hav
ia soltado na cidade para liquidar a revolta dos estudantes.
Pao!... Pao!... Pao!... Pao!...
O grupo dos guardas brancos continuavam a sair compacto pelas portas da avenida
e avançava em direção aos estudantes cujas roupas multicores esvoaçavam na rua,
escalavam as árvores. A multidão, pressentindo chegar o choque, escondia-se em t
odas as saídas possíveis. Bloqueada pelos guardas verdes nas duas extremidades d
a rua, ela refluía para a entrada dos elevadores da avenida. Uma nova imagem do
presidente surgiu na abóbada horizontal, longa como a rua, acima da multidão, e
falou.
Uma imagem falante sem chave era tão excepcional que todo o mundo parou para ouv
ir, até mesmo os guardas.
Escutem e olhem!... Eu vos informo que o conselho decidiu enviar o Conselheiro d
a Amizade Internacional a Lamoss, e pedimos ao governo enisor para também enviar
seu ministro equivalente. Nossa finalidade é de tentar acantonar a guerra nos t
erritórios exteriores e impedir que ela se estenda à Terra. A paz ainda pode ser
salva!... Todos os seres vivos das categorias de 1 a 26 devem se apresentar ime
diatamente nos seus lugares de mobilização.
A imagem apareceu de corpo inteiro e recomeçou o seu discurso.
Escutem e olhem!... Quero informar-lhes...
Pao!... Pao!... Pao!... Pao!...
Os estudantes haviam formado uma pirâmide. No cimo, uma moça com os seios pintad
os, ardente de fé, gritava, os braços em cruz:
Pao! Pao! Não escutem! Não ide aos vossos lugares de mobilização! Recusem a guer
ra seja como for! Dizei NÃO! Obriguem o conselho a declarar a paz. Sigam-nos!...
Um guarda branco atirou. A moça atingida desapareceu na face da imagem de Eléa.
Procuramos esta mulher...
Os guardas continuaram atirando.
Pao!... Pao!... Pao!... Pao!
A pirâmide desapareceu em pedaços compostos de rapazes e moças mortos. Paikan qu
is pegar sua arma, mas ela não estava mais na sua cintura. Ele a havia perdido,
sem dúvida, no momento em que acreditava tê-la colocado no lugar ao saltar do ap
arelho. A massa compacta branca dos guardas ia atingi-los, a multidão fugia, os
estudantes gritavam seu brado de revolta. Paikan deitou Eléa no chão e atirou-se
por cima dela. Um guarda branco tropeçou nele ao correr. Paikan pegou no vôo a
ponta de um pé e virou-o com um golpe seco. O tornozelo estalou. O guarda caiu s
em gritar. Paikan esmagou com seu joelho suas vértebras cervicais e puxou a cabe
ça para trás com as duas mãos. As vértebras estalaram. Paikan ergueu a mão esque
rda armada inerte e dobrou bem os dedos enfiados na arma. Um grupo de guardas vo
ou e chocou-se contra a parede e a parede pulverizada desapareceu numa nuvem. Po
r trás da brecha aberta, a pista da avenida apareceu. A multidão meteu-se por el
a, gritando. Paikan e Eléa no meio deles. Paikan carregava a arma do morto. Os g
uardas brancos, indiferentes, prosseguiam com calma sua tarefa de exterminação.
Abandonaram a avenida no ponto circular do parqueamento. O parqueamento era a ún
ica esperança, a única saída. Paikan havia pensado numa outra maneira de arranja
r um aparelho. Mas era preciso chegar até ele...
No centro do ponto circular erguiam-se os 12 troncos de uma árvore vermelha. Uni
dos pela base, eles se erguiam em corola, segurando-se por seus galhos comuns co
mo crianças que fazem uma roda. Muito alto, suas folhas vermelhas escondiam a ab
óbada e se uniam sobre a multidão das patas e das asas dos pássaros ali escondid
os. Em volta do seu pé corria um riacho de onde pequenas tartarugas luminosas er
guiam suas cabeças chatas quase transparentes para procurar vermes e larvas. Ofe
gante de sede, Eléa ajoelhou-se à beira do riacho. Pegou a água na concha de sua
s mãos e nela mergulhou a boca. Cuspiu-a com horror.
Ela vem do lago da Primeira Profundidade disse Paikan. Você bem sabe...
Ela o sabia, mas estava com sede. Essa maravilhosa água clara era amarga, salgad
a, pútrida e morna. Era imbebível, mesmo na hora da morte. Paikan ergueu docemen
te Eléa e apertou-a contra ele. Ele estava com sede e com fome; estava mais esgo
tado do que ela, pois não tinha para se manter o soro universal. Dos galhos acim
a deles pendiam mil máquinas que lhe propunham, em mil cores mutantes, bebidas,
alimentos, jogos, prazeres, tudo o que era de necessidade. Sabia que ele não tin
ha nem o recurso de quebrar uma ou outra, pois no interior não havia nada. Cada
uma fabricava o que tinha de fabricar a partir do nada. Com a chave.
Vem disse carinhosamente Paikan.
De mãos dadas, eles se aproximaram da entrada do parqueamento, que estava barrad
a por três filas de guardas verdes. Em cada rua que terminava no ponto circular,
uma fila tripla avançava, empurrando diante dela multidões irritadas, e cada ve
z mais densas. Paikan afundou sua mão na arma, tirou-a da cintura, virou-se para
a entrada o parqueamento e ergueu o braço.
Não! disse Eléa. Eles têm granadas.
Cada guarda tinha na cintura uma granada S, transparente, frágil, cheia de um lí
quido verde. Era suficiente uma só para que toda a multidão ficasse adormecida i
mediatamente. Eléa trazia em feitio de colar a máscara que já lhe havia servido
na universidade e nas profundezas da piscina, mas Paikan não tinha.
Posso ficar dois minutos sem respirar disse Paikan. Ponha a máscara, no momento
em que eu atirar, corra.
Um retrato de Eléa iluminou-se bruscamente no meio da árvore vermelha a voz de C
oban elevou-se:
Vocês não poderão deixar a cidade. Todas as saídas estão guardadas, Eléa onde vo
cê estiver você me ouve. Assinale sua presença com a chave. Paikan, pense nela e
não em você. Comigo é a vida, com você é a morte!
Atire! gritou Eléa.
Ele respirou fundo e atirou a meia potência.
Os guardas caíram. Granadas se quebraram. Uma brisa verde encheu de um só golpe
o ponto circular até em cima. A multidão dobrou o joelho, foi escorregando, fico
u deitada. De cima das folhas das doze árvores, dezenas de milhares de pássaros
caíram como flocos de todas as cores velados pela bruma, Paikan já estava puxand
o Eléa, correndo para o parqueamento. Corria, saltava corpos estendidos, e subst
ituía pouco a pouco o ar que lhe enchia os pulmões. Tropeçou contra um joelho er
guido. Deu um ai e respirou sem querer. Adormeceu como uma pedra e, ainda no imp
ulso da corrida, caiu de cabeça sobre uma barriga deitada. Eléa o virou, segurou
-o por baixo dos braços e começou a puxar.
Não conseguirá nunca sozinha! disse uma voz anasalada.
Perto dela estava o sem-chave, seu rosto escondido por uma máscara de odeio ant
igo, remendada e presa de qualquer maneira. Abaixou-se e segurou os pés de Paika
n.
Por aqui falou ele.
Conduziu Eléa e seu fardo em direção ao muro, num canto entre dois troncos retor
cidos. Pousou Paikan e olhou ao redor. Não havia nenhum ser vivo diante da porta
. Tirou do seu saco um pedaço de ferro, enfiou-o no buraco do muro, virou e empu
rrou. O pedaço de muro entre os dois troncos abriu-se como uma porta.
Depressa! depressa!...
Um aparelho da universidade estava descendo à entrada do parqueamento. Eles ergu
eram Paikan e entraram dentro daquele buraco negro
O despertar era tão brusco quanto a queda no sono. Logo que ficou longe da influ
ência da bruma verde, Paikan abriu os olhos e viu o rosto de Eléa. Ela estava aj
oelhada ao seu lado, segurava sua mão direita entre suas duas mãos, e o olhava a
ngustiada. Vendo-o despertar, suspirou de alegria, deu-lhe um sorriso, abandonou
suas mãos e afastou-se para que ele pudesse olhar ao redor.
Ele olhou e só viu cinzento. Paredes cinzas, chão cinza, abóbada cinza. E diante
dele a escadaria cinza. Bastante larga para deixar passar uma multidão, subia,
deserta, vazia, nua, interminavelmente, dentro do cinza e do silêncio e nele des
aparecia.
A esquerda, uma outra escadaria tão larga e vazia descia virando no cinza que a
absorvia. Alguns lances mais estreitos de corredores em rampa cruzavam as parede
s em todas as direções, para baixo e para cima. Uma camada de poeira cinzenta co
bria, uniformemente, as paredes, o solo e os arcos.
A escadaria! disse Paikan. Tinha me esquecido.
Todos a esqueceram acrescentou o sem-chave.
Paikan levantou-se e olhou o homem. Ele também era cinzento. Suas roupas e seus
cabelos eram cinzentos, sua pele de um rosa acinzentado.
Foi você que me trouxe aqui?
Sim, com ela... É ela que estão procurando, não é? Ele falava a meia voz, sem ti
mbre, sem entonação.
Sim, sou eu disse Eléa.
Eles não pensarão logo na escadaria. Ninguém a utiliza há muito tempo. As portas
foram condenadas e camufladas. E eles terão trabalho para encontrá-las.
Três homens cinzentos surgiram silenciosos num corredor inclinado. Vendo o grupo
, pararam alguns instantes, se aproximaram, olharam Eléa e Paikan, e partiram no
vamente sem dizer uma palavra pelos degraus principais para cima. Era um pouco d
e cinza se movendo no cinza imóvel. Tornavam-se cada vez menos visíveis, cada ve
z menores em direção ao alto, cinza sobre cinza, indiscerníveis. De repente foi
possível adivinhá-los porque um deles em vez de continuar em frente, deu um pass
o para o lado. Um ponto cinza que mexia sobre cinza depois mais nada que o cinza
que não se mexia. Seus pés sobre os degraus haviam esmagado a poeira sem desloc
á-la. Ela se reagrupava lentamente atrás deles, apagando o vestígio dos seus pas
sos, de sua passagem, de sua vida. A poeira não era pulverulenta e sim como um f
eltro, compacta, soli- dária. Uma espécie de tapete arejado, frágil e estável, e
ra o forro deste lado do avesso do mundo.
Se você quiser subir até a superfície disse o homem com sua voz que era apenas s
uficientemente forte para que o ouvissem tem trinta mil degraus. Será necessário
um dia ou dois.
Paikan respondeu abafando instintivamente sua voz. O silêncio era como um mata-b
orrâo no qual tinham medo de ouvir as palavras se enfiarem e desaparecerem.
O que nós queremos é chegar ao parqueamento.
O da Quinta Profundidade está cheio de guardas. Seria necessário subir ou descer
uma profundidade. Descer será mais fácil.
O sem-chave mergulhou a mão no bolso, tirou algumas esférulas de alimento e lhes
deu. Enquanto as deixava desmanchar na boca, ele enxugou com as costas da mão a
poeira de uma espécie de cilindro que corria à altura de um homem ao longo da p
arede, e aí enfiou duas vezes uma lâmina. Um duplo jato de água começou a correr
.
Eléa, a boca aberta, jogou-se sobre a fina coluna transparente. Engasgou-se, tos
siu, espirrou, riu de felicidade. Paikan bebia com suas mãos em concha. Tinham a
penas acabado de matar a sede quando o jato duplo secou: o conduto de água havia
reparado seu defeito.
Vocês beberão novamente mais longe disse o homem. Apressemo-nos, são trezentos d
egraus para descer a fim de atingir a Sexta Profundidade.
Tomou uma escada à direita. Os dois o seguiram. Ele quase corria sobre os degrau
s, com uma segurança nascida na longa freqüência da escada e da sua roupa de poe
ira. Atravessou um estreito patamar, pegou uma escada perpendicular, depois uma
outra, outra, outra. Depois à esquerda, à direita, bifurcava, ziguezagueava, sem
hesitação, descendo de andar em andar, sempre mais baixo. De mãos dadas, Eléa e
Paikan desciam atrás dele, enfiando-se pela espessura cinza. Às vezes encontrav
am, cruzavam ou ultrapassavam outros sem-chave silenciosos, que caminhavam sem p
ressa, sozinhos ou em grupos pequenos. O complexo da escadaria era seu universo.
Esse corpo abandonado, esvaziado, esse esqueleto oco, vivia da presença furtiva
deles. Haviam feito aberturas clandestinas e reaberto portas desconhecidas no s
ubsolo: aqueles homens viviam no mundo do barulho e da cor, o tempo necessário p
ara encontrar o indispensável pela mendicidade ou pelo roubo. Depois voltavam a
penetrar no interior cinzento do qual eles haviam pouco a pouco assimilado a cor
. A poeira do chão engolia o barulho dos passos, a dos muros o barulho das palav
ras. O silêncio que os cercava penetrava neles e os fazia calar.
Atordoados, correndo, saltando degraus, Eléa e Paikan seguiam seu guia que se af
undava cada vez mais. O homem lhes explicava tudo, em algumas palavras, pedaços
de frases, apenas falados, quase segredados. Falava da fome quando as pessoas-da
-cor não queriam dar. Então ficavam reduzidos a comer os pássaros-redondos. Most
rou um diante deles que se escondeu. Era gordo como uma mão fechada, cinzento e
não tinha asas. Para atravessar um patamar corria a toda pressa sobre suas perna
s magras. Chegado ao alto dos degraus, atirou-se, escondeu a cabeça e as patas s
ob as plumas, e rolou, caindo como uma bola até embaixo.
Viram muitos outros que bicavam o chão e arrancavam com a ponta do bico alguns v
ermes cinzentos que habitavam a galeria dentro da camada de poeira e se alimenta
vam dela.
Eléa conservava suas forças e seu fôlego, mas Paikan teve que parar. Descansaram
alguns instantes, sentados embaixo de um lance de degraus. Num canto do patamar
, brilhava uma pequena chama. Três silenciosos agachados assavam pássaros-redond
os, que seguravam pelas patas acima de um fogo de poeira. O cheiro horrível da c
arne assada chegou até eles e Paikan ficou de coração apertado.
Continuemos disse ele.
No momento em que se levantava, o barulho de dois golpes ressoou numa das parede
s. Os três silenciosos fugiram levando suas presas meio cruas. Um fragmento do m
uro voou em pedaços.
Rápido! disse o sem-chave. Eles a encontraram! É uma antiga porta!...
Empurrou-os na sua frente, para cima. Voltaram a subir o lance de degraus quatro
a quatro. No patamar, um pedaço do muro desmanchou-se, e os guardas verdes entr
aram.
Os três fugitivos corriam a toda velocidade por um corredor em rampa, enxotando
um bando de pássaros-redondos que rolavam e que para aumentar sua velocidade bot
avam as patas para fora e se atiravam de novo, cada vez mais rápido, sem um pio
de medo, redondos, rolantes, silenciosos e cinzentos.
Do fundo do corredor, diante deles, ergueu-se a voz de Coban. Estava abafada, de
sencarnada pelos feltros da poeira, parecia próxima e vir, extenuada, do fim do
mundo.
Escute, Eléa, sabemos onde você está. Você vai se perder. Não se mexa. Iremos en
contrá-la. Não se mexa. O tempo urge...
A marcha surda dos guardas vinha da frente deles, por trás deles, acima deles.
O sem-chave parou.
Eles estão em todos os lados falou. Paikan enfiou a mão na sua arma.
Espere! disse o homem.
Ajoelhou-se, fez um buraco com as mãos no tapete de poeira, colou seu ouvido ao
solo e escutou. Ergue-se com um salto.
Sim, atire aí!
Veio refugiar-se atrás de Paikan e mostrou o solo desnudo. Paikan atirou, o solo
tremeu. Nuvens de poeira voaram pelo corredor.
Mais forte!
Paikan atirou de novo. O solo se abriu gemendo.
Saltem!
O sem-chave deu o exemplo e saltou no abismo de onde se ouvia um barulho de rio.
Eles saltaram atrás, caíram na água amarga e morna. Uma corrente forte os levou
. Eléa voltou à superfície e procurou Paikan. A água era ligeiramente fosforesce
nte, mais brilhante nos redemoinhos e nos turbilhões. Viu o rosto de Paikan que
saía da água. Seus cabelos brilhavam com uma luz verde. Ele lhe sorriu e estende
u-lhe a mão. O teto em rampa afundava-se na corrente, que corria como por um sif
ão. No centro do turbilhão apareceu uma bola brilhante: a cabeça do sem-chave. E
le ergueu a mão, fez sinal de que mergulhava, e desapareceu. Eléa e Paikan começ
aram a rodar sobre si mesmos e foram aspirados pela profundidade. Mão na mão, pe
rnas largadas, sem peso, afundavam-se na enorme espessura de um músculo de água
palpitante e morno. Caíam a uma velocidade fantástica, giravam estendidos em vol
ta de suas mãos unidas, faziam viradas que os jogavam contra as paredes forradas
por milhares de pequenas raízes, emergiam no cimo de uma curva, respiravam, asp
irados, carregados, sempre mais para baixo. A água tinha gosto de podridão e de
sais químicos. Era o grande lago corrente, oriundo do lago da Primeira Profundid
ade. À saída do lago, ele atravessava uma máquina imóvel, que lhe acrescentava o
s alimentos reclamados pelas plantas. Descia em seguida de andar em andar, nas p
aredes e nos solos e banhava as raízes de todas as vegetações enterradas.
A queda vertical terminou por uma curva larga e uma subida que os atirou no meio
de um gêiser de bolhas fosforescentes. Encontraram ar na superfície de um lago
que corria lentamente para um pórtico sombrio. Uma quantidade de colunas retorci
das, umas largas como dez homens, outras finas como um punho de mulher, desciam
do teto e se enfiavam na água onde se ramificavam e desabrochavam. Era um polvo
brilhante de raízes.
Sobre uma delas, tortuosa, estava o sem-chave. Gritou-lhes:
Subam! Rápido!
Eléa ergueu-se até a altura de um tronco quase horizontal e puxou Paikan sobre q
uem o cansaço pesava. A água brilhava e corria sobre as longas serpentes vegetai
s com um barulho de carícia. Do pórtico sombrio vinha de tempos em tempos o baru
lho surdo de redemoinhos mais fortes. Uma claridade pálida subia da água, corria
pelas raízes, fria, viscosa, verde. De todas as partes do lago pontas redondas
luminosas, de um rosa vivo corriam em direção ao redemoinho deixado pelos três f
ugitivos. Formou-se pouco depois abaixo deles umaebulição frenética de claridade
rósea. De tempos em tempos, algumas dessas gotas vivas saltavam para fora da ág
ua, como faíscas, tentando colar-se às pernas nuas que pendiam para fora do seu
alcance. Eram peixes minúsculos, quase cortados em dois por sua boca aberta.
Os peixes-amargos disse o sem-chave. Se eles lhe mordem, comem tudo, até os osso
s.
Eléa estremeceu.
Mas normalmente, o que é que eles comem?
Raízes mortas, e todos os restos que a corrente traz. São limpadores, quando não
há mais nada, se comem entre si.
Virou-se para Paikan, bateu no teto que se encostava na sua cabeça, e disse:
Parqueamento!...
As raízes que mergulhavam no lago eram as da floresta do parqueamento da Sexta P
rofundidade.
Paikan ergueu sua arma, e atirou entre duas raízes. Uma parte do teto caiu. Pela
brecha, uma árvore gigante desceu lentamente. Seus galhos seguravam um aparelho
no qual se agitavam duas silhuetas claras. Ele caiu no lago, e a árvore inclina
da afundou-se e o manteve embaixo da água. Era um barco de intervenção da políci
a do conselho, ocupado por dois guardas brancos. Num relâmpago cor-de-rosa os mi
lhões de peixes lenticulares caíram sobre eles e os atacaram pela parte descober
ta de seu rosto, entraram pelos olhos para dentro das suas cabeças e, pelo nariz
, para o peito e para o ventre. O aparelho encheu-se de água vermelha.
Seguidos pelo sem-chave, Eléa e Paikan subiram pelas raízes e galhos, e tomaram
pé no solo do parqueamento. Os estudantes aí lutavam uma batalha sem esperança c
om os guardas brancos. Tinham encontrado, num engenho cargueiro bloqueado pela g
uerra, barras e bolas de ouro que deviam servir para edificar sobre a Lua máquin
as e móveis. Bombardeavam os policiais e corriam escondendo-se atrás das árvores
e dos aparelhos. Eram armas irrisórias. Às vezes uma delas atingia o alvo e que
brava um crânio num lampejo de ouro. Mas a maior parte não atingia o alvo.
As filas de policiais avançavam entre as árvores como serpentes brancas e atirav
am. Colhiam os estudantes em plena corrida e os jogavam, deslocados, contra os t
roncos ou nas folhagens. Os galhos estalavam e caíam. Aparelhos ficavam despedaç
ados. Todos os pássaros do parqueamento haviam abandonado a floresta e voavam so
bre a abóbada em círculo aloucado, acompanhado de pios de pavor. Apresentaram a
imagem do conselheiro militar, de cabelos negros trançados, que anunciava a recu
sa do governo enisor em enviar um ministro a Lamoss. Convocava todos os seres de
Gondawa para se apresentarem ao seu posto de mobilização. A imagem sinistrado h
omem magro apagou-se, reapareceu um pouco mais longe, recomeçou seu anúncio.
Acima da entrada das doze ruas, uma imagem de Eléa girava. Um quarto para a esqu
erda, um quarto para a direita, à esquerda, à direita...
A universidade procura esta mulher, Eléa 3-19-07-91. Vocês a reconhecerão por ca
usa de seus olhos. Nós a procuramos para salvá-la. Eléa, assinale sua presença c
om sua chave...
Na extremidade de uma pista, perto da torre de vôo, uma pequena multidão havia b
loqueado um aparelho de forma oblonga, inusitado em Gondawa. Um cidadão de Lamos
s, que o ocupava, dele foi arrancado violentamente. Gritava que não era um eniso
r, que não era um espião, que não era um inimigo. Mas a multidão não compreendia
a língua lamoss. Via as roupas diferentes, cabelos curtos, o rosto claro, e gri
tava: "Espião!" "Morte!" Começaram a bater. Os estudantes voaram em socorro do h
omem. Os guardas brancos os seguiram. O lamoss estava machucado, rasgado, em f
rangalhos, completamente amassado pelos pés da multidão enraivecida. Os estudant
es furiosos berravam contra o horror e contra a bobagem. A multidão louca gritou
: "Estudantes! Espiões! Vendidos! Morte!" A multidão em fúria rasgou as roupas d
os estudantes, arrancou-lhes os cabelos, as orelhas, os seios, os sexos. Os guar
das-brancos atiraram, limparam todo o local, todo o canto, todo mundo.
O sem-chave deu um sorriso triste, fez um gesto de amizade aos seus dois companh
eiros, e afastou-se em direção das doze ruas. Eléa e Paikan apressaram-se para o
lado de uma região mais calma do parqueamento. A segunda fila de aparelhos de l
onga distância estava quase deserta, em calma. Um desses aparelhos que acabara d
e descer procurava vaga. Parou, pousou, a porta abriu, um homem apareceu. No mom
ento de descer, estancou, surpreso, para escutar os gritos de violência e o choq
ue surdo das armas. As árvores o impedi de ver, mas o tumulto chegava até ele. S
altou em terra.
O que é que está acontecendo? perguntou a Paikan.
Este, como resposta, ergueu para ele sua mão esquerda enluvada da arma branca, e
com a mão direita arrancou-lhe a arma e jogou-a longe.
Suba outra vez! Rápido!
Compreendendo cada vez menos, o homem obedeceu. Paikan o fez sentar, legou-lhe a
mão e enfiou sua placa na chapa elástica...
Espera interminável num instante de silêncio. Depois, bruscamente, o mostrador p
alpitou. Paikan deu um profundo suspiro e com sua mão direita fechou a boca do h
omem.
Destino? perguntou o emissor.
Lamoss, primeiro parque.
Houve um pequeno ronronar seguido de um estalo.
Crédito suficiente. Destino registrado. Retire sua chave... Partida... Paikan ar
rancou o homem de sua cadeira e jogou-o para fora, enquanto lhe gritava seus agr
adecimentos e suas desculpas. No mesmo momento a porta fechava-se, o aparelho de
colava, girava sobre si mesmo e ganhava a pista. Pegou a da rampa de saída.
O emissor de bordo falou:
A universidade procura Eléa 3-19-07-91. Eléa, assinale-se com sua chave...
A torre de partida comandou o engenho que decolou em direção ao alto. Saiu da bo
ca e subiu na noite exterior.
Depois que viviam na superfície, Eléa e Paikan tinham perdido o hábito da luz pe
rpetuamente acesa nas vilas enterradas. Era dia quando deixaram o parqueamento.
Pensavam encontrar dia no exterior. Mas a Terra e o Sol tinham continuado seu cu
rso, e a noite tinha chegado com sua multidão de estrelas. Eles se deitaram lado
a lado sobre o leito da nave, e, de mãos dadas, sem dizer uma palavra, se deixa
ram invadir pela doçura e pelo silêncio infinitos. Subiam na noite e na paz em d
ireção ao céu estrelado, esqueciam a Terra e seus horrores absurdos. Estavam jun
tos, estavam bem, cada instante de felicidade era uma eternidade.
Colocaram na cabeça os círculos de ouro com os quais estava munido o leito, e os
dois abaixaram a placa frontal. Tinham adquirido de tal maneira o hábito de se
comunicar assim, que cada um podia receber do outro o conteúdo da sua memória, a
o mesmo tempo que, sem ter necessidade de pensar, contava- lhe o que continha a
sua. A troca se efetuava numa velocidade instantânea. Eles colocavam o círculo,
fechavam os olhos, abaixavam a placa, e logo havia uma só memória, um só passado
. Cada um se lembrava das recordações do outro como se fossem suas. Não eram mai
s dois seres que crêem se conhecer e se enganam, mas um só ser, sem sombra de dú
vida, solidários e sólidos diante do mundo. Assim Paikan soube tudo do projeto d
o Abrigo, e de cada instante vivido por Eléa entre o momento em que se haviam se
parado e o que ela o havia reencontrado. Assim conheceu ele a maneira pela qual
ela havia recuperado sua liberdade. Sabendo-o por ela mesma, ele sofreu por ela
sem recriminação e sem ciúme. Não havia entre eles lugar para sentimento dessa o
rdem, pois cada um, conhecendo tudo do outro, o compreendia completamente.
Tiraram ao mesmo tempo seus círculos de ouro e se sorriram, numa união total, nu
ma felicidade perfeita por estarem juntos. Eram um único ser e eram dois para di
vidir e multiplicar suas alegrias. Como duas mãos do mesmo corpo que acariciam o
mesmo objeto, como dois olhos que dão ao mundo sua profundidade.
O emissário de bordo falou.
Atingimos o nível 17. Vamos começar o vôo horizontal em direção a Lamoss. Veloci
dade autorizada: 9 a 17. Que velocidade desejam?
A máxima respondeu Paikan.
Máxima, velocidade 17, registrada. Atenção à aceleração!
Apesar do aviso, o deslocamento horizontal pressionou Eléa contra o alto, e rolo
u Paikan por baixo dela. Ela começou a rir, tomou nas suas mãos os longos cabelo
s louros ainda úmidos, mordiscou-lhe o nariz, as faces, os lábios.
Não pensavam mais nas suas provas, nas ameaças, nem na guerra. Voavam para um po
rto de paz. Talvez momentânea, precária, ilusória, e onde múltiplos problemas se
colocariam em todo o caso diante deles. Mas essas precauções eram para amanhã e
não para agora. Viver antecipadamente as infelicidades é sofrê-las duas vezes.
O momento presente era momento de alegria, era preciso não envenená-lo.
Aquele momento de paz foi cortado bruscamente por um grito de alerta no emissor.
Gelados, se endireitaram. Um sinal vermelho piscava na placa de comando.
Alerta geral disse o emissor. Todos os vôos estão cancelados. Voltareis ao parqu
eamento pelo caminho mais curto. Deveis ir imediatamente aos vossos locais de mo
bilização.
O aparelho virou-se e começou uma descida vertiginosa oblíqua. No solo, através
da carlinga transparente, viam um balé louco de casas de repouso se aproximando
a uma velocidade que aumentava cada vez mais, e o funil da Boca aspirar as bolas
luminosas que giravam em cima dela esperando sua vez.
O aparelho diminuiu e veio tomar seu lugar na roda. Todos os aparelhos na superf
ície tinham recebido ordem de voltar. Casas ou engenhos, eles eram milhares a gi
rar em cima da Boca que aspirava os mais próximos em plena abertura. Sua roda co
bria todo o lago e a floresta.
Está nos levando de volta para a cidade! Para a armadilha! gritou Eléa. É precis
o saltar!
Estavam quase sobrevoando o lago em velocidade reduzida, a uma altura razoável p
ara um salto. Mas as portas ficavam bloqueadas durante o vôo. Logo, deixaram o l
ago e sobrevoaram a massa compacta das árvores. Paikan atirou na placa de comand
o. O aparelho curvou-se e começou a subir, descer, subir oscilando, perdendo cad
a vez mais altitude, como uma folha de outono que cai. Passou rasante sobre o ci
mo da floresta, subiu mais um pouco, desceu e atingiu o cimo de um tronco gigant
e coroado de folhas de palmeiras. Ficou plantado aí como uma maçã num lápis.
Estavam deitados lado a lado à beira do lago, sobre a grama que descia direção à
areia. A mão de Eléa estava na mão de Paikan. Seus grandes olhos abertos olhava
m a noite limpa. A Boca havia absorvido os últimos retardatá- rios. o céu não of
erecia nada além de suas estrelas. Não viam outra coisa senão elas, prosseguiam
no meio delas, na imensa paz indiferente dos pássaros, sua viagem de esperança i
nterrompida.
Diante deles, ao nível do lago, a lua se erguia em seu último quarto. Estava inc
hada, como se estivesse envolta em algodão, deformada, avermelhada. Fulguraçôes
vermelhas iluminavam sem cessar sua parte sombria. Ela brilhava às vezes inteira
num rápido esplendor semelhante ao do sol. Era a imagem silenciosa da destruiçã
o do mundo, proposta aos homens pelos homens. Aqui mesmo, antes do fim da noite.
..
Sem se mexerem muito, sem se olhar, enlaçaram os dedos e colaram suas palmas uma
contra outra, bem apertadas.
Atrás deles, na floresta, um cavalo relinchou suavemente como para se queixar. U
m pássaro perturbado no seu sono, pipilou e voltou a dormir. Um pouco de vento l
igeiro passou pelos seus rostos.
Poderíamos partir a cavalo... murmurou Paikan.
Ir para onde? - sussurrou Eléa. Nada mais é possível... Está acabado... Ela sorr
iu dentro da noite. Ela estava com ele. Acontecesse o que acontecesse, acontecer
ia a ele com ela, e a ela com ele.
Houve um relincho mais próximo, e o barulho abafado das patas do cavalo sobre a
erva.
Levantaram-se. O cavalo, branco de lua, veio até eles, parou e sacudiu a cabeça.
Ela enfiou sua mão nos longos pêlos e o sentiu tremer.
Está com medo disse ela.
Ele tem razão...
Ela viu a silhueta de seu braço estendido fazer a volta do horizonte. Em todas a
s direções, a noite se iluminava de breves claridades, como tempes- tades distan
tes.
A batalha... Gonda-17... Gondawa-41... Enawa... Zenawa... Eles desembarcaram por
todos os lados...
Um ribombar surdo começava a seguir os clarões. Era ininterrupto, provinha de to
do o círculo em redor, do qual eles eram o centro. Tornava o solo sensível sob s
eus pés.
O ruído acordou os bichos da floresta. Os pássaros voavam, aflitos, aflitos por
ainda encontrar a noite, tentavam voltar para seus ninhos, se chocavam nos galho
s e nas folhas. As corças saíram do bosque e vieram se juntar ao redor do casal
humano. Veio também um cavalo azul, invisível na noite, e os pequenos ursos lent
os das árvores com seus coletes claros, e os coelhos negros de orelhas curtas, c
uja cauda branca remexia-se no solo.
Antes do fim da noite disse Paikan não restará mais nada de vivo aqui, nem um bi
cho, nem um talo de grama. E aqueles que se crêem protegidos lá em baixo, têm so
mente uma prorrogação de alguns dias, talvez de algumas horas... Quero que você
vá para o abrigo... Quero que você viva!...
Viver? Sem você?...
Apoiou-se contra ele e levantou a cabeça. Ele via a noite dos seus olhos refleti
r as estrelas.
Não ficarei sozinha no abrigo. Tem Coban. Você já pensou? Ele sacudiu a cabeça c
omo para recusar esta imagem.
Quando acordarmos, deverei lhe dar filhos. Eu que ainda não tive filhos de você.
.. Eu que esperava... este homem dentro de mim, sem cessar, para me semear filho
s, você não se incomoda?
Ele apertou-a bruscamente contra si, depois reagiu, fez um esforço para ficar ca
lmo.
Estarei morto... há muito tempo... depois desta noite...
Uma voz imensa e descarnada saiu da floresta. Os pássaros fugiram, chocando-se n
o seu vôo com todos os obstáculos da noite. Todos os emissores da floresta falav
am a voz de Coban. Ela se misturava e se superpunha a ela mesma, vibrava e ecoav
a sobre a superfície das águas. O cavalo azul levantou a cabeça para o céu e sol
tou um relincho agudo.
Eléa, Eléa, escute Eléa... Sei que você está no exterior... está em perigo... o
exército invasor desce sem parar... breve ocupará toda a superfície... assinale-
se para um elevador com sua chave... nós iremos buscá-la onde você estiver... nã
o demore mais... Escute Paikan, pense nela!... Eléa, Eléa, este é o meu último a
pelo. Antes do fim da noite, o abrigo será fechado, com ou sem você.
Depois foi o silêncio.
Eu sou de Paikan disse Eléa numa voz baixa e grave. Pendurou-se no seu pescoço.
Ele passou seus braços à Volta dela, ergueu-a e deitou-a sobre a coberta macia d
e grama, entre os bichos, que se afastaram e fizeram um círculo ao redor deles.
Chegavam outros vindos da floresta, todos os cavalos brancos, cavalos azuis e os
cavalos negros, menores, que não se viam nem mesmo sob a luz da lua. E lentas t
artarugas saíam dágua para os encontrar. A claridade dos horizontes palpitava à
volta deles até as extremidades do mundo. Estavam sozinhos no meio de uma praça
viva, fortificada pelos bichos que os protegiam e os confortavam. Ele passou a m
ão por baixo da faixa que cobria o peito de Eléa e fez florescer um seio entre d
uas pregas da fazenda. Pousou sobre ele a palma arredondada da sua mão, e o acar
iciou com um gemido de felicidade, de amor, de respeito, de admiração, de ternur
a, com um reconhecimento infinito, para a vida que havia criado tanta beleza per
feita e a havia lhe dado para que ele provasse e sentisse que ela era bela.
E agora, era a última vez.
Colou sobre o seio sua boca entreaberta e sentiu a ponta macia tornar-se dura en
tre seus lábios.
Eu sou sua... murmurou Eléa.
Ele libertou o outro seio e o apertou carinhosamente, depois desfez a roupa dos
quadris. Sua mão correu ao longo das ancas, ao longo das coxas, e todas as desci
das levavam ao mesmo ponto, ao cimo da pequena floresta dourada, à nascente do v
ale fechado. Eléa resistia ao desejo de se abrir. Era a última vez. Era preciso
eternizar cada impaciência e cada entrega. Ela se entreabriu o suficiente para d
eixar mão dele escorregar, procurar, encontrar, no cimo do monte e do vale, na c
onfluência de todas as rampas, protegido, escondido, coberto, ah!... descoberto!
O centro abrasador dos seus prazeres.
Ela gemeu e por sua vez colocou suas mãos sobre Paikan.
O horizonte estremeceu. Uma claridade verde ofuscou uma manada de cavalos branco
s que dançavam no local, assustados.
Eléa não via mais nada. Paikan via Eléa, olhava-a com seus olhos, com suas mãos,
com seus lábios, enchia a mente com sua carne e com sua beleza e com o prazer q
ue a percorria, fazia-a gemer, arrancava-lhe suspiros e gritos. Ela parou de aca
riciá-lo. Suas mãos sem forças se desprenderam dele. Os olhos fechados, os braço
s pendidos, ela não pesava mais, não pensava mais. Ela era o capim e o lago e o
céu, ela era um rio e um sol de prazer. Mas não eram ainda senão ondas antes da
onda única, a grande estrada luminosa múltipla para o único cimo, o maravilhoso
caminho que ela nunca havia tão longamente percorrido, que ele desenhava e redes
enhava com suas mãos e com seus lábios sobre todos os tesouros que ela lhe dava.
Ele lastimava não ter mais mãos, mais lábios para lhe proporcionar no corpo tod
o mais prazeres ao mesmo tempo. E no seu coração ele lhe agradecia por ser tão b
ela e tão feliz.
De repente o céu todo tornou-se vermelho. O rebanho vermelho dos cavalos partiu
a galope em direção à floresta.
Eléa queimava. Ofegante, impaciente, tomou entre suas mãos a cabeça de Paikan co
m seus doces cabelos cor de trigo que ela não via, que ela não podia mais ver, a
proximou-o de si, sua boca sobre a boca dele, depois suas mãos desceram novament
e e pegaram a árvore amada, a árvore oferecida, aproximada e recusada e a conduz
iram para seu vale aberto até a alma. Quando ele entrou, ela gemeu, morreu, derr
eteu-se, espalhou-se sobre os bosques, sobre o lago, sobre a carne da terra. Mas
ele, Paikan, estava nela, ele a chamava para si, com longos apelos poderosos qu
e a transportavam aos píncaros do mundo Paikan chamavam-na, atraíam-na, congrega
vam-na, condensavam-na, apertavam-na até que o meio de seu ventre transpassado d
e chamas Paikan! explodisse num gozo prodigioso, indizível, divino, bem-amado, a
brasante, até a extremidade da menor parcela do seu corpo, que a excedia. Seus r
ostos calmos repousavam encostados um no outro. O de Eléa estava virado em direç
ão ao céu vermelho. O de Paikan banhava-se na erva fresca. Ele ainda não queria
se retirar dela. Era a última vez. Ele pesava sobre ela o necessário para tocá-l
a e senti-la ao longo de sua pele. Quando ele a deixasse, seria para sempre. Não
havia mais amanhã. Nada recomeçaria. Ele quase se deixou levar pelo desespero,
e começou a berrar contra a absurda, atroz e insuportável separação. O pensament
o da sua morte próxima o acalmou. Uma detonação pesada fez estremecer o solo. Um
a parte da floresta afundou-se de um só golpe. Paikan levantou a cabeça e olhou,
na claridade dançante, o rosto de Eléa. Estava banhada por uma grande doçura, a
grande paz que conhecem depois do amor as mulheres que receberam e deram em tod
a a sua plenitude. Ela repousava sobre a grama o seu corpo inteiramente relaxado
. Apenas respirava. Estava mais além da vigia e do sonho. Ela estava toda bem, e
ele o sabia. Sem abrir os olhos perguntou muito carinhosamente:
Você está me olhando?
Ele respondeu:
Você é bela...
Lentamente a boca e os olhos fechados se transformaram num sorriso.
O céu palpitou e se fendeu. Num urro, uma nuvem de soldados enisores seminus, pi
ntados de vermelho, montados sobre seus carros de ferro, surgiu nas alturas da n
oite incandescente, e correu obliquamente por cima do lago, em direção à Boca. D
e todas as chaminés, as armas de defesa atiraram. O exército aéreo foi destroçad
o, dispersado, desmantelado, mandado de volta para as estrelas em milhares de ca
dáveres desconjuntados que tombavam no lago e na floresta. Os animais corriam em
todas as direções, jogavam-se na água, saíam, rodavam ao redor do casal gritand
o loucamente. Uma série de explosões terríveis ergueu a floresta incendiada e at
irou-a para todos os lados. Um galho em chamas caiu sobre uma corça que deu um s
alto fantástico e mergulhou. Os cavalos em fogo galopavam e escoiceavam. Do céu
um novo exército descia gritando. Paikan quis erguer Eléa. Ela o segurou. Abriu
seus olhos. Olhou-o. Ela estava feliz.
Vamos morrer juntos disse ela.
Ele escorregou sua mão dentro da arma abandonada sobre a grama, levantou-se e en
direitou-se. Ela teve tempo de ver a arma apontada em sua direção. Gritou:
Você!
Você vai viver disse ele.
E atirou.
O que se seguiu, Eléa descobriu ao mesmo tempo que os sábios da EPI. A arma a ha
via atingido mas os seus sentidos tinham continuado a receber impressões, e sua
memória inconsciente as registraram.
Seus ouvidos haviam ouvido, seus olhos entreabertos haviam visto, seu corpo havi
a sentido Paikan arrumarem volta dela algumas roupas, tomá-la nos braços e andar
em direção ao elevador no meio daquele inferno desencadeado. Ele havia enfiado
sua chave na placa, mas o elevador não subia. Então ele gritou:
Coban! Estou chamando! Sou Paikan! Estou lhe trazendo Eléa!... Houve um silêncio
. Ele gritou de novo o nome de Coban e o nome de Eléa. O sinal verde começou a p
alpitar abaixo da porta e a voz de Coban ressoou embrulhada, cortada, às vezes a
bafada, às vezes vibrante com o som de uma lâmina de aço.
Tarde... bem tarde... inimigo... penetrou em Gonda-7... seu grupo de elevadores.
.. isolado... vou tentar... desça... estou enviando um grupo... atacar inimigo..
. ao seu encontro... assinale-se... seu anel... todas as placas... repito... env
io...
A cabina do elevador chegou e abriu-se.
O solo ergueu-se numa explosão assustadora, a parte de cima do elevador foi pulv
erizada, Eléa arrancada dos braços de Paikan, um e outro erguidos, projetados, j
ogados por terra. Os olhos de Eléa inconsciente viam o céu vermelho de onde desc
ia sem cessar a nuvem dos homens vermelhos. E seus ouvidos ouviam seus berros qu
e enchiam a noite em chamas. Seu corpo sentiu a presença de Paikan. Ele a havia
encontrado. Ele a tocava. Seus olhos viram seu rosto angustiado esconder o céu e
inclinar-se sobre ela. Viram sua testa machucada, seus cabelos louros manchados
de sangue. Mas a sua consciência estava ausente e ela não sentiu emoção nenhuma
. Seus ouvidos ouviram sua voz lhe falar para tranqüilizá-la.
Eléa... Eléa... estou aqui... vou levá-la... ao... abrigo... você viverá... Ele
a ergueu e a colocou sobre os ombros.
O busto de Eléa pendia nas costas de Paikan, e seus olhos não viram mais nada. E
sua memória não registrou mais que barulhos, sensações difusas, profundas, que
entram no corpo por toda a superfície e espessura da sua carne, e que a consciên
cia ignora.
Paikan lhe falava, e ela ouvia sua voz no meio das explosões e dos estalos da fl
oresta que queimava.
Vou levá-la... Vou descer no elevador... Pela escada... Eu sou eu... Não tenha m
edo de nada... Estou com você...
Na grande tela da sala do conselho não havia mais imagens precisas. Na mesa do p
ódio, Eléa, os olhos fechados, a cabeça entre as mãos, deixava sua memória se en
tregar ao que ela havia registrado. Os emissores estalavam com o barulho dos est
rondos, das explosões, dos gritos horríveis, dos desmoronamentos e tremores de t
erra. Sobre a tela, o circuito-imagem mostrava os impulsos recebidos pelos desab
amentos de cores gigantescas, quedas intermináveis em direção ao abismo sulfuros
o, das erupções de trevas. Era o retorno de um mundo fracassado para o caos que
precedeu todas as criações.
Depois foi uma sucessão de golpes surdos e abafados, cada vez mais próximos, cad
a vez mais fortes.
Eléa ficou pouco à vontade, perturbada. Reabriu os olhos e arrancou o círculo de
ouro.
A tela se apagou.
Os golpes surdos continuaram e, de repente, ouviu-se a voz de Lebeau:
Vocês estão ouvindo? Ê o seu coração!
Ele falava diretamente da sala de reanimação, através de todos os transmissores.
Conseguimos! Ele vive! Coban vive!
Hoover levantou-se de um salto, gritou "Bravos!" e pôs-se a aplaudir. Todo mundo
o imitou. Os velhos sábios e mesmo os mais jovens, os homens e também as poucas
mulheres entre eles, disfarçavam por meio de gestos e com grandes gritos e cons
trangimento que sentiram ao se encontrarem reunidos a se olhar uns aos outros, d
epois de terem ouvido e visto juntos sobre a tela as cenas as mais íntimas evoca
das pela memória de Eléa. Fingiam não dar importância nenhuma, serem calejados,
considerá-las dentro de um puro espírito científico, ou de diversão. Mas cada um
estava profundamente perturbado no seu espírito e na sua carne. E, encontrando-
se de repente no mundo de hoje, não ousavam olhar seu vizinho que, por sua vez,
desviava os olhos. Tinham vergonha do seu pudor e vergonha da sua vergonha. A ma
ravilhosa, a total inocência de Eléa mostrava-lhe a que ponto a civilização cris
tã tinha depois de São Paulo e não depois de Cristo pervertido ao condenar as al
egrias mais belas que Deus dera ao homem. Todos eles se sentiam, mesmo os mais j
ovens, semelhantes aos velhos lascivos, impotentes e tarados. O coração de Coban
, ao acordar, vinha poupá-los deste momento de penoso embaraço coletivo, onde a
metade dentre eles começava a enrubescer e a outra metade a censurar.
O coração de Coban batia, parava, recomeçava, irregular, ameaçado. Os eletrodos
de um estimulador fixado no seu peito por meio de ataduras intervinham automatic
amente quando a parada se prolongava, e a surpresa de um choque elétrico fazia o
coração recomeçar, num sobressalto.
Os médicos ao redor da mesa de reanimação mostravam rostos preocupados.
De repente, o que eles temiam aconteceu. A respiração de Coban tornou-se difícil
, e as ataduras se mancharam de sangue no lugar da boca.
Coagulante! Soro! Deite-o de lado. Libere a boca. Sonda bucal... Os pulmões sang
ravam.
Sem cessar nem por um instante os atenciosos cuidados, acima do corpo que eles d
esprendiam, libertavam, manipulavam, aliviavam, os reanimadores fizeram um conse
lho.
Se a hemorragia não cessava era porque as queimaduras do tecido pulmonar haviam
sido muito graves para cicatrizarem. Nesse caso, seria necessário fazer um trans
plante de pulmões.
Mas para isso havia as seguintes objeções:
Atraso para fazer virem os pulmões novos (três partes, por medida de segurança)
do Banco Internacional de Órgãos; chamada pelo rádio, embalagem, transporte de a
vião, travessia Genebra-Sidney, transbordo, travessia Sidney - EPI: total, 20 ho
ras.
Não esqueçam as chatices militares... os papéis de alfândega...
Não vão querer...
Tudo é possível. Dobre o atraso.
Quarenta horas.
Manter Coban vivo durante todo esse tempo. Necessidade de sangue para a transfus
ão. Teste do sangue de Coban, imediatamente. Grupo e subgrupo vermelhos, grupo e
subgrupos brancos.
Um enfermeiro desamarrou-lhe a mão e sangrou a esquerda.
Mesmo problema para a operação: sangue, em quantidade. Prever o dobro.
Outro problema para a operação: uma equipe cirúrgica especialista em transplante
de órgãos.
Moissov: Nós temos...
Forster: Nós podemos...
Zabrec: No meu país...
Lebeau: Impossível. Muito arriscado. Nada de mãos novas aqui. Principalmente mão
s armadas de facas. Operaremos nós mesmos, em rede de televisão com as equipes f
rancesa, americana e do Cabo. Podemos fazê-lo. Pulmões, isto não é um diabo.
Pulmão artificial para nele ramificar os circuitos sanguíneos durante a operaçõe
s.
Havia um na enfermaria.
Então por que não utilizar logo esse aparelho e deixar repousar os pulmões de Co
ban e permitir-lhes cicatrizar?
Eles não se cicatrizarão se não receberem sangue. Devem continuar a funcionar. F
icarão bons ou não, é um jogo.
Resultados dos Testes Sanguíneos: Grupos e Subgrupos Desconhecidos. O sangue tes
tado (Coban) coagula todos os outros sangues.
Surpreendente!
É um sangue fóssil! Não esqueçam que este tipo é um fóssil! Vivo, porém fóssil!
Há novecentos mil anos, o sangue evoluiu, meus filhos.
Sem sangue, nada de operação. A situação está simplificada. Ou ele fica bom ou e
le morre.
Tem a moça...
Que moça?
Eléa... seu sangue talvez servisse!
Mas nunca o bastante para uma operação! Seria necessário sangrá-la sem saber qua
nto, e isto não seria suficiente.
Talvez. Ligando tudo, e muito rápido. Com o pulmão artificial no circuito logo e
m seguida...
Mas não vamos, por isso, assassinar esta moça!
Ela suportaria... Vocês viram como ela se recupera...
É sua alimentação...
Ou o soro universal...
Ou os dois...
Eu me oponho! Vocês sabem bem que ela não poderia refabricar seu sangue suficien
temente tão depressa. Estão pedindo que a sacrifiquemos. Eu me recuso a isso!
Ela é bela, isto é verdade, mas diante do cérebro deste sujeito, ela não tem imp
ortância nenhuma.
Bela ou não, esta não é a questão: ela está viva. Nós somos médicos. Não somos v
ampiros.
Mas pode-se de qualquer maneira testar seu sangue com o de Coban. Isto não nos c
ompromete em nada. Teremos sem dúvida necessidade de que ela nos dê um pouco, ca
so ele continue a sangrar. Sem falar em operação.
De acordo. Quanto a isso, estou de acordo, completamente de acordo.
No mesmo dia, Coban ressuscitado, Coban em perigo de morte, a equação de Zoran e
xplicada, ou para sempre perdida. As multidões as mais obtusas compreenderam que
alguma coisa de fabulosamente importante para elas estava em vias de ser jogada
perto do Pólo Sul, no interior de um homem que a morte segurava pela mão.
Tentem compreender o que se passa no interior deste homem. O tecido de seus pulm
ões está queimado, em parte até destruído. Para que ele possa recomeçar a respir
ar novamente, a sobreviver e viver, é preciso que o que resta desse tecido regen
ere o que não existe mais. Ele ainda dorme. Começou a dormir a novecentos mil an
os e continua. Mas a carne do seu corpo está acordada e se defende. E se ele mes
mo estivesse acordado isto não mudaria nada. Não é ele quem comanda. Seu corpo n
ão tem necessidade dele. As células do tecido pulmonar, as maravilhosas pequenas
usinas vivas, estão prestes a fabricar a toda pressa novas usinas que se lhes a
ssemelhem para substituir aquelas que o frio ou o fogo destruiu. Ao mesmo tempo,
elas fazem seu trabalho comum, múltiplo, incrivelmente complexo no domínio da q
uímica, física, eletrônica, vitalidade. Recebem, escolhem, transformam, fabricam
, destroem, seguram, rejeitam, reservam, dosam, obedecem, ordenam, coordenam com
uma segurança e uma inteligência espantosa. Cada uma delas sabe mais que mil en
genheiros, médicos e arquitetos. São células comuns num corpo vivo. Somos constr
uídos por milhares delas, milhares de mistérios, milhares de complexos microscóp
icos obstinadamente agarrados à sua tarefa fantasticamente complicada. Quem coma
nda estas maravilhosas pequenas células? Será você, Vignont?
Oh! Senhor...
Não as de Coban, mas as suas? As do seu fígado? Será que é você que lhes ordena
para fazer o seu trabalho de fígado?
Não, senhor.
Então, quem comanda suas pequenas células? Quem lhes ordena a fazer o que elas f
azem? Quem as construiu como deveria para que elas pudessem fazê-lo? Quem coloco
u cada uma no seu lugar, no seu fígado, no seu pequeno cérebro, na retina dos se
us lindos olhos? Quem? Responda, Vignont, responda!
Eu não sei, senhor.
Você não sabe?
Não, senhor.
Nem eu, Vignont. O que é que você sabe fora disso?
Bem...
Você não sabe nada, Vignont...
Não, senhor.
Diga: "Eu não sei nada".
Eu não sei nada, senhor.
Bravo! Olhem para ele, os outros, riem, caçoam, pensam saber alguma coisa. O que
é que eles sabem, Vignont?
Não sei não senhor.
Eles não sabem nada, Vignont. O que é isto que estou desenhando no quadro, você
reconhece?
Sim, senhor.
O que é? Diga.
É a equação de Zoban, senhor.
Escute só como riem, esses idiotas só porque você se enganou numa consoante. Você
acredita que eles saibam mais do que você? Pensa que eles sabem lê-la?
Não, senhor.
E no entanto eles estão orgulhosos, caçoam, se divertem; acreditam-se inteligent
es e tomam você por um idiota. Será que você é idiota, Vignont?
Estou pouco me incomodando, senhor.
Muito bem, Vignont, mas isso não é verdade. Você está inquieto. Você se diz: "Eu
talvez seja um idiota". Eu lhe asseguro: você não é idiota! Você é feito das me
smas pequenas células que um homem cujos pulmões estão prestes a sangrar no pont
o 612, exatamente as mesmas com que era feito Zoran, o que encontrou a chave do
campo universal. Milhares de pequenas células supremamente inteligentes. Exatame
nte as mesmas que as minhas, Senhor Vignont, e as minhas são agregadas de filoso
fia. Você vê bem que não é um idiota!
Sim, senhor.
Olhe, eis aí o idiota: Jules-Jacques Ardillon, primeiro em todas as matérias des
de a sexta classe, cabeça, grande! Pensa que sabe alguma coisa, julga-se intelig
ente. Você é inteligente, Sr. Ardillon?
Bem... eu...
Sim... você pensa. Pensa que estou brincando e que na realidade acredito e sei q
ue você é inteligente. Não, Sr. Ardillon, creio e sei que você é um idiota. Será
que você sabe ler a equação de Zoran?
Não, senhor.
E se você soubesse, será que saberia o que ela significa?
Penso que sim, senhor.
Você pensa!... você pensa!... Que idéia! Você é um Ardillon-pensador! Você teria
no bolso a chave do universo, a chave do bem e do mal, a chave da vida e da mor
te. O que é que você faria, Sr. Ardillon-pensador?
Eu...
Eis aí, Sr. Ardillon, eis aí...
General, o senhor ouviu as notícias?
Sim, Sr. Presidente.
Este Co... como é mesmo?
Coban.
Coban, foi acordado.
Eles o acordaram...
Talvez consigam salvá-lo?
Talvez...
Estão loucos!
Estão loucos...
A equação desse troço, o senhor compreende alguma coisa?
Eu, sabeis, as equações...
Mesmo no C.N.R.S.*, eles não compreendem nada!
Centre National de Recherches Scientifiques. (N. do T.)
Nada!...
Mas é pior do que a bomba!
Pior...
E por outro lado, pode ser bom...
Pode...
Mas mesmo esse bom pode ser mau.
Mau, muito mau...
Pensai na China!
Estou pensando.
Colocai-vos no seu lugar!
É um pouco grande...
Fazei um esforço! O que pensaríeis?
Vós pensaríeis: "São esses sem-vergonhas dos brancos que vão meter a mão nesse n
egócio. No momento em que nós ousemos igualar, talvez ultrapassá-los, eles vão n
ovamente tomar mil anos adiante. Não pode ser. De maneira nenhuma". E eis aí o q
ue pensaríeis se fosseis a China.
Evidentemente... acreditais que eles vão sabotar?
Sabotar, raptar, atacar, massacrar, não sei de nada. Talvez não façam nada mesmo
. Como saber com os chineses?
Como saber?
Como! Como saber? É sua obrigação de saber! Vós dirigis os S.I.I Os S.I. são os
Serviços de Informação! Isso é um pouco esquecido! Vigiai a China, general! Vigi
ai a China! É de lá que virá...
A força internacional aeronaval estacionada no Norte de Terra Adélia deslocou-s
e nas três dimensões em forma de escudo, e ficou em estado de alerta permanente.
Tinha dois olhos virados para o ar e acima do ar, e ouvidos que iam até o fundo
do oceano.
Tu ainda podias ouvir. Podias saber. Não tinhas mais forças para manter tuas pál
pebras abertas, tuas têmporas se afundavam, teus dedos se tornavam brancos, tua
mão escorregava e caia da máquina-de-comer, mas ainda estavas presente e compree
ndias.
Eu teria podido gritar a verdade, gritar o nome de Paikan, terias sabido antes d
e morrer que ele estava perto de ti, que vocês morreriam juntos como sempre havi
am desejado. Mas que arrependimentos cruéis, quando vocês poderiam ter vivido! Q
ue horror de saber que no momento de acordar de um tal sonho, ele morria com o t
eu sangue que o poderia salvar...
Gritei teu nome e ia gritar: "É Paikan!", mas vi tua chave aberta, o suor das tu
as têmporas, a morte já pousada sobre ti, pousada sobre ele. A mão abominável da
infelicidade fechou-me a boca...
Se eu tivesse falado...
Se tivesse sabido que o homem perto de ti era Paikan, terias morrido num sobress
alto de desespero? Ou poderias ainda se salvar e a ele contigo? Não conhecias um
remédio, não poderias fabricar com teus toques milagrosos da máquina-de-comer u
m antídoto que teria rechaçado a morte para fora de vosso sangue comum, de vossa
s veias ligadas? Mas te restavam ainda bastantes forças? Podias tu somente olhá-
la?
Tudo isto, eu me perguntei em alguns instantes, num segundo tão breve e tão long
o quanto o longo sono do qual nós te tiramos. E depois enfim, gritei novamente.
Mas não disse o nome de Paikan. Gritei para esses homens que viam vocês dois mor
rer e que não sabiam por que e se afobavam. Gritei-lhes: "Vocês não vêem que ela
se envenenou!" E insultei-os, peguei o mais próximo, já nem sei mais quem era,
sacudi-o, bati-lhe, eles não haviam visto nada, tinham te deixado fazer aquilo,
eram imbecis, uns asnos pretensiosos, mas cretinos cegos...
E eles não me compreendiam. Respondiam-me cada um na sua língua, e eu não os com
preendia. Só Lebeau me havia compreendido e arrancava a agulha do braço de Coban
. E ele também gritava, mostrava com o dedo, dava ordens e os outros não compree
ndiam.
Ao redor de ti e Paikan, imóveis e em paz, era a loucura das vozes e dos gestos,
e o balé das blusas verdes, amarelas, azuis.
Cada um se dirigia a todos, gritava, mostrava, falava e não compreendia. Aquela
que compreendia tudo e que todos compreendiam não falava mais nos ouvidos. Babel
tinha caído novamente sobre nós. A tradutora acabara de explodir.
Moissov, vendo Lebeau arrancar a agulha do braço do homem, pensou que ele havia
enlouquecido ou que queria matá-lo. Segurou-lhe o pulso e bateu-lhe. Lebeau def
endeu-se gritando: "Veneno, veneno!"
Simon, mostrando a chave aberta, a boca de Eléa, dizia: "Veneno! Veneno!"
Forster compreendeu, gritou em inglês para Moissov, arrancando-lhe das mãos o ma
ltratado Lebeau. Zabrec cessou a transfusão. O sangue de Eléa parou de correr so
b os curativos de Paikan. Depois de alguns minutos de confusão total, a verdade
atravessou a barreira das línguas e de novo todas as atenções convergiram para o
mesmo fim: salvar Eléa, salvar aquele que todos, com exceção de Simon, ainda ac
reditavam ser Coban.
Mas eles já estavam muito longe na sua viagem, já quase no horizonte.
Simon pegou a mão nua de Eléa e colocou-a na mão do homem enfaixado. Os outros o
lhavam com espanto, porém ninguém dizia mais nada. A química analisava o sangue
envenenado.
De mãos dadas, Eléa e Paikan deram seus últimos passos. Os dois corações pararam
ao mesmo tempo.
Quando teve certeza de que Eléa não podia mais ouvi-lo, Simon mostrou com o dedo
o homem deitado e disse:
Paikan.
Foi nesse momento que as luzes se apagaram. O difusor tinha começado a falar em
francês. Ele havia dito: "A tra..." Calou-se. A tela de tevê que continuava a vi
giar o ovo fechou seu olho cinzento e todos os aparelhos que ronronavam, estalav
am, estremeciam, crepitavam, se calaram. A mil metros sob o gelo, a escuridão to
tal e o silêncio invadiram a sala. Os vivos, de pé, ficaram pregados nos lugares
. Para os dois seres deitados no meio deles, o silêncio e a escuridão não existi
am mais. Mas para os vivos, as trevas que os envolviam de repente na tumba profu
nda eram a espessura compreensível da morte. Cada um ouvia o barulho de seu próp
rio coração e da respiração dos outros, exclamações contidas, palavras cochichad
as, e acima de tudo a voz de Simon, que tinha se calado, mas que todos continuav
am a ouvir:
Paikan... Eléa e Paikan...
Sua história trágica tinha se prolongado até esse minuto, onde a fatalidade furi
osa os havia atingido pela segunda vez. A noite os havia reunido no fundo do túm
ulo de gelo e envolvia os vivos e os mortos, ligava-os num bloco de infelicidade
inevitável cujo peso ia afundá-los juntos até o fundo dos séculos e da terra.
A luz voltou, pálida, amarela palpitante, apagou-se de novo e reacendeu um pouco
mais viva. Eles se olharam, se reconheceram, respiraram, mas sabiam que não era
m mais os mesmos. Voltavam de uma viagem que quase não havia durado, mas todos,
agora, eram irmãos de Orfeu.
A tradutora explodiu! Toda EPI-2 está nos ares, o muro do hangar está aberto com
o uma avenida!
Era a voz de Brivaux que estava de guarda no alto do elevador.
A eletricidade pifou, a pilha deve ter sofrido um golpe. Eu os liguei no circuit
o do poço. Vocês fariam bem de subir o mais depressa possível! Mas não contem co
m o elevador, não tem bastante força, é preciso gastar os sapatos na escada. Ond
e é que vocês estão com os dois espécimes? Já podem ser transportados?
Os dois espécimes morreram respondeu Lebeau com a calma de um homem que acaba de
perder numa catástrofe sua mulher, seus filhos, sua fortuna e sua fé.
Merda! Depois de tanto trabalho! Bem, agora pensem em vocês! E se apressem antes
que a pilha comece a dançar a bourree*
Forster traduzia em inglês para aqueles que não tinham compreendido em francês.
Os que não compreenderam nem uma nem outra, compreenderam os gestos. E aqueles q
ue não compreenderam nada já tinham compreendido que precisavam sair do buraco.
Forster desligou definitivamente as minas de entrada. Já alguns técnicos subiam
em direção à abertura da esfera. Havia três enfermeiras, entre elas a assistente
de Lebeau que tinha cinquenta e três anos. As outras duas, mais jovens, chegari
am sem dúvida lá em cima.
Os médicos não se conformavam com a idéia de deixar Eléa e Paikan.
Moissov fez sinal dando a entender que poderiam amarrá-los nas costas, acrescent
ou algumas palavras num inglês horrível que Forster interpretou como querendo di
zer: "Cada um por sua vez."
Mil metros de escada. Dois mortos.
A pilha está fissurada! gritou o emissor. Está rachada, cospe e fuma por todo ca
nto! Nos retiramos numa confusão total! Apressem-se!
Desta vez, era a voz de Rochefoux.
Saindo do poço, dirijam-se para o sul, virem as costas ao lugar de EPI-2. O vent
o leva as radiações na outra direção. Helicópteros vão recolhê-los. Deixo uma eq
uipe aqui para esperá-los, mas se isso explodir antes e vocês saírem não se esqu
eçam: diretamente para o sul! Vou tratar dos outros. Andem depressa...
Van Houcke falou em holandês e ninguém o compreendeu. Então, repetiu em francês
que na sua opinião deveriam deixá-los lá. Estavam mortos, não se podia fazer mai
s nada por eles, nem deles. E encaminhou-se para a porta.
O mínimo que podemos fazer disse Simon é recolocá-los onde os encontramos...
Também acho disse Lebeau.
Explicou-se em inglês com Forster e Moissov, que concordaram.
Pegaram primeiro Paikan sobre seus ombros, e fizeram-no descer novamente o camin
ho por onde o haviam içado para as suas esperanças, e o colocaram no seu caixão.
Depois foi a vez de Eléa. Os quatro a carregaram, Lebeau, Forster, Moissov e Sim
on. Colocaram-na no outro caixão, perto do homem com o qual ela havia dormido du
rante novecentos mil anos sem o saber, e com quem ela havia, sem o saber, mergul
hado num novo sono que não teria fim.
No momento em que todo o seu peso descansou no caixão, um brilhante raio azul br
otou do solo transparente, invadiu o ovo e a esfera e atingiu os homens e as mul
heres agarrados às escadas. O anel suspenso recomeçou seu curso imóvel, o motor
recomeçou sua tarefa um instante interrompida: envolver com um frio mortal o far
do que lhe haviam confiado, e guardá-lo através do tempo interminável.
Rapidamente, pois o frio já os oprimia, Simon desamarrou em parte a cabeça de Pa
ikan, cortou e tirou as ataduras a fim de que seu rosto ficasse nu ao lado do ro
sto nu de Eléa.
* Dança rústica francesa. (N. do T.)
O rosto livre apareceu, muito belo. Quase não se percebiam mais suas queimaduras
. O soro universal trazido pelo sangue de Eléa tinha curado sua carne antes que
o veneno lhe tirasse a vida. Eles estavam incrivelmente belos e em paz. Uma névo
a gelada invadia o abrigo. Da sala de reanimação, chegaram pedaços da voz anasal
ada do difusor:
Alô!... Alô!... ainda alguém?... Apressem-se!...
Eles não podiam demorar mais. Simon saiu por último, subiu os degraus de costas,
apagou o projetor. Teve primeiro a impressão de uma escuridão profunda, depois
seus olhos se acostumaram à luz azul que banhava novamente o interior do ovo com
sua claridade noturna. Uma estreita faixa transparente começava a envolver os d
ois rostos nus, que brilhavam como duas estrelas. Simon saiu e fechou a porta.
Filho de um padeiro, René Barjavel foi o primeiro de sua família a não exercer u
ma profissão manual. Nascido em Nyons (Drome), França, em 1911, quando começou a
escrever, com menos de 20 anos, levantava-se às 4 da manhã para trabalhar em se
us textos, antes de ir para o escritório. Fazia então diálogos para filmes, adap
tações e crítica de cinema e teatro.
Casou-se em 1936 e nos três anos que se sucederam chegam os seus dois filhos e a
guerra.
Desmobilizado, em 1942, no ano seguinte lança seu primeiro romance: Ravage. Depo
is publica, sempre com sucesso: Tarendol (1949), Journal d'un homme simple (1950
), Jour de feu (1957), Le voyageur imprudent (1958), Le diable Vemporte (1959),
Colombe de la lune (1962) e outros.
Seu último livro, Les chetnins de Kathmandou, foi transformado em filme por Andr
é Cayatte, com diálogos do próprio Barjavel, que é também autor de um livro de e
nsaios sobre a Sétima Arte: Cinema total.