2002017 CCarpeaux ros EUA
Avtem Non Vincrr Marta
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Carpeaux nos EUA
Todo brasileiro que faga alguma coisa pelo seu pats deve estar
preparado para ver as sementes que langou no solo péitrio
germinarem antes no Exterior do que aqui. Se a imprensa
local fez tudo 0 que péde para ocultar os meus esforgos de
editor e biégrafo de Otto Maria Carpeaux, o Center for
Portuguese Studies and Culture da Dartmouth
University, ao preparar sob a diregao do Prof. Joao Cezar
de Castro Rocha uma edigdo especial de Portuguese Literary
& Cultural Studies que estuda as influéncias estrangeiras na
formagdo da cultura nacional, e que nao podia deixar de
conter um capitulo sobre a obra de Carpeaux, ndo hesitou em
encomendé-lo a alguém que se dedicara seriamente ao resgate
dessa obra, em vez de pedi-lo aos tradicionais aproveitadores
politicos e saqueadores de tiimulos.
Como tante
outros brasileiros que passaram por essa
situagdo, ndo posso deixar de considerd-la ao mesmo tempo
reconfortante e constrangedora. Reconfortante porque, afinal,
6 um reconhecimento. Constrangedora porque mostra, uma
vez mais, que a elite intelectual nacional continua incapaz, de
se governar a si mesma e necessitada de guiar-se pelo
exemplo estrangeiro.
Reproduzo aqui texto que enviei para essa louvével
publicagdo da Dartmouth University. Dentro de algumas
semanas receberei o texto da tradugdo inglesa, que também
constaré desta pagina. — O. de C.
Otto Maria Carpeaux
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CCarpeaux ros EUA
Olavo de Carvalho
Portuguese Literary & Cultural Studies. Special Issue,
No. 4, 2000, "Brazil 2000", Joao Cezar de Castro
Rocha (org.), Universidade de Massachusetts,
Dartmouth.
O conhecimento comega com o espanto, ¢ o espanto surge da
percepgio de problemas. Problema, dizia Ortega y Gasset, 6
consciéncia de uma contradicao. A insensibilidade aos
problemas, que repousa em certezas convencionais sem que
mesmo as contradigGes mais gritantes Ihe perturbem o sono, &
sinal seguro de decadéncia intelectual, seja dos individuos, seja
das coletividades e nacGes.
Quem deseje, por curiosidade sociolégica ou afeicao aos
abismos, avaliar a profundidade da queda da vida intelectual no
Brasil de hoje pode colher uma amostra significativa desse
fendmeno nas reagdes undnimes da imprensa cultural
brasileira a recente edig&io dos Ensaios Reunidos de Otto Maria
Carpeaux (Vol. 1, Rio, Topbooks, 1999). Foi tudo uma repeti¢ao
dos elogios feitos 4 beira do tamulo do escritor quando da sua
morte em 1978 — sem uma sé mengio aos problemas de
interpretagdo de sua vida e obra, para os quais chamei
expressamente a atengio d
s leitores na longa introdugaio que
preparei para o volume. Kis alguns
1. Otto Maria Carpeaux chegou ao Brasil em 1939 e, to logo
estreou no jornalismo com ensaios literarios publicados no
Correio da Manha, foi alvo de uma violenta campanha de
difamagdo movida pelos comunistas. Ao morrer, em 1978,
tinha-se tornado o {dolo mAximo da intelectualidade comunista
no Brasil. Dé-se isto por explicado pela oposigao feroz do
escritor ao regime militar de direita, mas se esta explicaco
valesse ela se aplicaria também ao romancista Carlos Heitor
Cony, companheiro de Carpeaux nessa batalha heréica e
desigual, no entanto até hoje antipatizado pelos comunistas. A
tranfiguragdo de Carpeaux de béte noire em santo beatificado
permanece, pois, um problema, e um tanto mais enigmatico
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porque, enquanto critico c historiador, Carpeaux jamais aderiu
a0 marxismo. Sabe-se que no Brasil contribuigdes financeiras
a0 Partido Comunista — fortemente hegeménico na imprensa e
nos meios editoriais — bastam para absolver um escritor de
qualquer pecado ideol6gico, como aconteceu, por exemplo, com
o grande romancista José Geraldo Vieira, que se tornou
comunista de carteirinha sem deixar de ser, nos livros, 0 cristo
conservador que sempre fora (se o leitor americano nao
compreende estas coisas, saiba que no Brasil também ninguém
as compreende; apenas as admite). Mas Carpeaux nunca teve
dinheiro.
2. Carpeaux ou Otto Karpfen, judeu nascido em Viena em 1900,
converteu-se ao catolicismo aos trinta anos de idade e no curso
da década
direita catélica que governava a Austria sob a liderang:
Engelbert Dolfuss. Ap6
nazista, encontrou ref
-guinte tornou-se um dos principais tedricos da
de
0
a queda do regime, com a inv:
intervengio do
Vaticano. No estudo alids notavel Os Judeus do Vaticano, de
Avram Milgren, se
alids com grafia errada, consta da
ista dos judeus que receberam falsas certidées de batismo para
escapar a perseguigdo. & um equivoco: Carpeaux nao apenas
era catélico desde bem antes da guerra, mas, quando os
nazistas entraram em Viena, ele ja era conhecido como teérico
do regime austrocatélico, através de seu livro A Missao
Européia da Austria (Osterreichs Kuropiiische Sendung,
1936). Ademais, na correspondéncia que logo apés sua chegada
ao Brasil trocou com Alvaro Lins, seus sentimentos catélicos
pois um espanto para o pesquisador que
esse catdlico tenha sido sepultado sem ritos religiosos porque,
segundo alegou entio a vitiva em declaragées 4 imprensa, ele
“era homem sem religido". Ainda que a hipotese de uma
apostasia senil apés a conversio tardia seja um tanto
extravagante, ela poderia ser aceita se, no depoimento do
amigo mais intimo do escritor, Carlos Heitor Cony, no
constasse a informacdo de que Carpeaux, até o fim da vida,
fazia regularmente suas orag6es, e se o testemunho igualmente
insuspeito do filélogo Antonio Houaiss nao nos informasse que
ele tinha medo de tocar em assuntos religiosos nas rodas
intelectuais brasileiras, fortemente materialistas. Bem, se, do
ponto de vista de um bidgrafo, isso nao é problema, nao sei o
que seja um problema. Para explicd-lo, sugeri a hipétese de que
o exilado, cansado de sofrer, disfargava sua opinido para nao
sio bem patentes.
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desagradar seus anfitrides brasileiros, quase todos ateus, Mas 6
apenas uma hipétese, e toda encreneada. Como é que um
homem t&o valente contra os inimigos podia ser to frouxo ante
os amigos? E, ademais, como conceber que a precaugao do
escritor contaminasse sua esposa ao ponto de esta fazé-lo levar
o disfarce para o além-timulo? Nao, nada ai esta explicado.
3. Carpeaux escreveu toda a parte mais valiosa de sua obra — os
melhores ensaios e a monumental Histéria da Literatura
Ocidental— num perfodo de nao mais de seis anos, entre 1941 €
1947. Sfio quase cinco mil paginas. Fora disso, sua produgiio
continuou volumosa, mas foi caindo de qualidade até baixar ao
nivel do louvor convencional, na biografia de Alecu Amoroso
Lima, seu diltimo escrito, Em 1968, Carpeaux anunciou o fim de
s di
em polémic:
a
ua carreira literdria, prometendo dedicar o resto de
luta politica, Assim fez, dispersando seus talentos
Qe
contra o regime que, se entio tiveram a ma
conservam interesse como documentos
repercussio, hoj
histéricos. E 0 fato 6 que ele j4 vinha perdendo impulso desde
vinte anos antes, de modo que sua famos
abdicagao, longe de
poder ser compreendida pela motivagio exclusivamente
politica, parece ter sido a cristalizagao final de um longo
processo de autonegagiio depressiva. Mas isto 6 também pura
hipétese, se bem que confirmada pelo depoimento de um
intimo amigo de Carpeaux, o escritor pernambucano Edson
Nery da Fonseca.
Nao vou me prolongar em exemplos. Os que citei jé bastam
para mostrar que Otto Maria Carpeaux, no Brasil, é tanto mais
desconhecido quanto mais celebrado. O preguicoso alheamento
com que seu vasto circulo de admiradores e amigos se absteve,
por vinte anos, de reunir em livro seus escritos jornalisticos
dispersos — uma assombrosa colegio de obras-primas do
ensaio literério — j4 mostra que tinham mais interesse em
cultuar um estereétipo do que em divulgar uma obra. O motivo
disto é bem evidente. Se Carpeaux, de inicio rejeitado pela
massa da intelligentzia esquerdista e s6 aceito por um grupo
seleto de cérebros privilegiados
diversific
—um grupo politicamente
no Ramos.
do ao ponto de incluir o comunista Grac
ao lado dos conservadores Manuel Bandeira e Augusto
Frederico Schmidt — acabou por se tornar um fdolo das
esquerdas, isto foi gragas a série de artigos politicos publicados
no Correio da Manhé a partir de 1964 com obteve a
s quai
fama de inimigo publico nimero 1 do regime militar (o qual
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aliés nunca o perseguiu seriamente, limitando-se a mover-Ihe
tum processo no qual foi polidamente interrogado por algumas
horas e que terminou sendo suspenso pela promotoria mesma).
A imagem de Carpeaux que se consolidou na imprensa foi a de
um militante comunista, que trazia a essa corrente politica o
reforco da pena afiada por uma erudigao prodigiosa a servigo
de um estilo literério que deve ser qualificado, no minimo, de
delicioso. Ora, a publicagao dos ensaios literdrios completos
dissolvia essa imagem simpléria, revelando um Carpeaux
religioso e mistico, admirador de Léon Bloy, e um elitista
preocupado, na linha de Ortega y Gasset, com a ascensio de
massas de ignorantes ao comando da maquina cultural.
espanta que a intelectualidade de esquerda, prevendo as
dificuldades, adiasse indefinidamente um confronto com essas
contradiges, nem que, mesmo apés a publicac&o dos Ensaios
Reunidos, preferisse fazer de conta que nao tinha visto nada.
Mas
o ha homenagem postuma que possa fazer justiga a um.
ritor se os louvores que a compéem nao vém junto com um
. Por is
sério esforgo de compreens
10, 0 coro de elogios que se
saios,
seguiu A morte de Carpeaux e, agora, a publicagao dos E
acabou, de maneira aparentemente paradoxal, por depreciar 0
escritor, ressaltando-lhe os méritos menores de erudito e
divulgador sem atentar para o que sua obra tem de mais
original e valioso, Pois o valor e a originalidade dessa obra
residem, precisamente, nas suas contradigées.
Para comecar, a Histéria da Literatura Ocidental é uma
tentativa de responder de maneira sintética e simultanea a
preocupacées dificilmente compativeis: a compreensiio
sociologica das épocas e a individualizacao estilistica dos
autores, a apreensio da unidade historia de uma civilizagio ea
avaliagio judicativa das obras singulares. Fortemente escorado
nos métodos que aprendeu de Burckhardt, Dilthey, Weber e
Max Dvorak, mas também inspirado no senso croceano da
individualidade irredutivel da obra poética, Carpeaux busca ser
inseparavelmente historiador e critico — e, se falha aqui ou ali,
exagerando os julgamentos de obras para harmonizé-los com 0
des
compée uma obra impar na bibliografia historico-literaria,
nho das épo
6, No conjunto ele se sai perfeitamente bem e
alguma coisa de equivalente, na escala do Ocidente como um
todo, ao que Francesco de Sanctis fez com a literatura italiana.
Para o critico Mauro Gama, a Histéria da Literatura Ocidental
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carpet ros EVA
6"simplesmente a melhor obra do género jé publicada em
qualquer lingua e em qualquer pais".
Em segundo lugar, o modo de pensar de Carpeaux enfatiza
antes os problemas do que as soluges, o que o leva a parecer
inconclusivo. Alma sacudida por diividas e contradigbes
temiveis, ele usa o seu proprio estado interior de perplexidade
como instrumento de sondagem das obras e das épocas, e 0
resultado tem de ser, em muitos casos, uma pergunta sem.
resposta. Para muitos leitores o choque dessas contradig&es é
uma experiéncia especialmente perturbadora e desagradavel.
Nao percebem que é essa peculiar forma mentis do escritor 0
que lhe permite acompanhar o drama intimo das idéias por
baixo das suas manifestagées literdrias sem cair no simplismo
das solugées forgadas.
O estilo literdrio de Carpeaux reflete o carater paradoxal de sua
visio do mundo. As vezes, durante paginas e paginas, ele
assume o ponto de vista do escritor que est analisando,
defendendo as idéias dele como se fossem as suas préprias,
para logo em seguida desmenti-las brutalmente ou relativizé-
las com a simples mengo de um ou dois fatos que as
contradizem. O leitor que exige certezas finais é levado ao
desespero, mas para aqueles que se deleitam na contemplacio
da realidade como tal, a leitura de Carpeaux é uma rara
exaltagdo do espirito. No conjunto, a Histéria da Literatura
Ocidental permanece uma das obras mais sélidas nesse género,
superando de muito a de Arnold Hauser, divulgada no Brasil
contemporaneamente a ela e ainda hoje investida de muita
autoridade e prestigio no nosso pais.
Por isso nao 6 exato dizer, como Franklin de Oliveira, que o
maior mérito de Carpeaux ¢ ter introduzido no Brasil os
métodos da Geisteswissenschaft de Dilthey. A Histéria da
Literatura Ocidental, se bem que moldada a luz desses
métodos, 6 algo mais que simples divulgagao deles. fi realizagao
que ultrapassa, por sua amplitude e perfeigao, qualquer
aplicagaio que os proprios inventores deles possam ter-Ihes,
dado. Nesse sentido, ela nao é uma contribuigao da escola de
Dilthey & cultura brasileira, mas uma contribuigio brasileira A
escola de Dilthey.
Por isto, no meu livro O Futuro do Pensamento Brasileiro (Rio,
Faculdade da Cidade Editora, 1998), no capitulo dedicado a
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extrair da massa de produgdes do pensamento brasileiro a lista
quintessencial das conquistas fadadas a permanecer quando
tudo o mais se desvanega, nao pude deixar de colocar, ao lado
dos escritos de Gilberto Freyre, de Miguel Reale e de Mario
Ferreira dos Santos, a obra historiogréfica e ensafstica de Otto
Maria Carpeaux.
fomei como obras
O critério ai adotado foi simple:
intrinsecamente dotadas da capacidade de durar, no aquelas
que "representassem o Brasil”, pois nada nos garante que os
homens dos séculos vindouros desejaraio saber do Brasil, mas
sim aquelas que, desde o Brasil, levasse a cada homem, de
qualquer pais, um ensinamento que o ajudasse a compreender
melhor o sentido da vida humana em geral e a dele proprio em
particular. O clés
sico, por definigdo, nao fala de si, da sua
época, do seu pats: fala de nés. Uma obra histori
preparada, amparada e completada por uma multidao de
e
ios — que logre mostrar a unidade interna do
nvolvimento lite
io no Ocidente, de Homero a Valéry, 6
mesma um microcosmo da alma humana e se torna
por s
merecedora de que o leitor se aproxime dela com um temor
devoto, consciente da adverténcia latina: De te fabula
narratur.
13/10/99
—.
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