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SOBRE “O CARRO DA MISERIA” José Paulo Paes * A alta representatividade de Macunaima como metéfora critica de uma suposta amorfia do caréter brasileiro, de um tado, de outro o destacado pape! histérico que Mario de Andrade desempenhou na implantagio e consolidagso do Modernismo entre nés, parecem ter polarizado o grosso da bibl ‘cftica a seu respeito. Isso em prejutzo do restante de sua obra criativa propriamente dita, que nfo recebeu até agora toda a atencSo hermenéutica que faz jus. Particularmente de lamentar 6 0 descaso pela sua pocsia, sobretudo da ditima fase a que pertence"” O carro da miséria"'. Nao sci de estudo de algum fOlego dedicado a esse estranho e vigoroso poema no qual Manuel Bandeira encontrou alguns dos mais belos versos de Mériode Andrade e que este mesmo considerava um "caso muito sério" na sua hist6ria de vida como poeta € como homem. ‘Tal descaso talvez se explique pelas dificuldades que "O carro da miséria® opSe a0 deslinde crftico: hé nele alusées herméticas que nem seu pr6prio autor sabia explicar. Outro obstculo € a clocucko cheia de clipses csaltos de sentido, num andamento staccato homor- ginico da sua estrutura em mosaico — blocos temiticas dispares 3 do-se sem um fio de coeréncia visivel a ligé-los entre si. Mas é precisamente pela sua desafiadora resistencia acs eaforgos de decifragio que" O carro da miséria" deveria merecer a atencto dos exegetas. Foi talvez pensando neles que Mario de Andrade deixou entre seus papéis um "Pro- Jeto do ensaio de interpretagdo" de 0 carro da miséria®. Infelizmente, das trés partes que formariam o ensaio, segundo seu plano prévio, s6 chegaram a ser esctitas duas ou trés linhas da primeira, precedidas de um breve preambulo, Entretanto, numa carta de 5-IV-44 a Carlos Lacerda, a quem o poema esté dedicado, Mario de Andrade desenvolve consideragbes que vio bem além do queens clito neste presmbulo. Ambos esses documentos — 0" Preto" anda totalmente inéaio, © cate, jé divlgnds por Lygia Femandes em 71 canas de Mario de A (Rio, S. José, 3,, p. 83-93), sto reproduzidos a seguir como subsfdios a futuros ‘studiosos de'¥O caro da raséria". ae ‘O tertofinal do poema, deque hé duas outras vers6es anteriores no arquivo Métio de Andrade do IEB, foi publicado peta primeira vez na edigéo jé péstuma de Lira paulisvana (S. Paulo, Martins, 1946). Embora a primeira redacdo de"'O carro da miséria" remonte a 1930, quando fo} escrito num transe de inspiragio ém que raiva e bebedeira desempenharam o mesmo papel catértico que jé haviam desempenhado na composigéo de Paulicéia desvairada, clese insete reconhecivelmente naqucla fase de aguda consciéncis pollico-social que marcon final de vida de Mério de Andrade. Fase a que nfo foi estranho tm autocritico sentimento de culpa pela sua condico " burguesa", pocticamente registrado nos versiculos solenes da 'Meditag&o sobre o Tiéie" tanto quanto no verso agil de""O carro da misérial". * Poeta, critica ¢ tradutor. 176 Rev, Inst. Est. Bras,, SP, 36:176-183, 1994 MARIO DE ANDRADE: PROJETO DO ENSAIO DE INTERPRETACAO I — Origens = mal estar de desilus6es de revolugbes TL — Causas = elementos psico-poéticos dominantes luta do burgués com 0 socialista IM — Elementos epis6dicos verso a verso. Ensaio de Interpretagao de“ O carro da Miséria" Um dos meus poemas que mais despertaram a minha curiosi- dade sobre a sua criacdo, e, valha a verdade, mais me dignificam é "O Carro da Miséria", N&o ser talvez o mais belo, o mais perfeito como integridade estética, mas é sem diivida um dos mais realizados como integridade art{stica, E eu creio, como também Manuel Bandeira, que 2, Carro da Miséria" contém alguns dos versos mais bonitos que ja inventei. Mas deixemos a beleza de lado. O que me deixa muito interes- sado por este poema é, nele, eu ter me escondido como talvez em nenhum outro dos meus poemas. Poema “interessado", "poema de cir- cunst4ncia" mesmo, derivado diretamente de preocupag6es polfticas, sociais, nacionais de fungéo/valor imediato, "O Carro da Miséria” €, no entanto, 0 poema mais escuro (¢ escuso...), mais aparentemente poesia pura, mais hermético que j4 escrevi. Mas isso, depois de ter pensado bastante sobre ele, a meu ver constitui uma verdadeira falcatrua Ifrica, Eu me escondi de mil maneiras. E a mais ingénua foi essa de fazer hermetismo falso, desnecessdrio. E talvez as vezes forgado. Quero dizer: Se 0 poema € bastante claro de interpretacéo pra mim, botei coisas nele que estou convencido, ndo tém absolutamente nenhuma interpretag&o possfvel. (a nfo ser, possivelmente, pessoais, psicanali- sdveis: 0 que nfo tem nenhuma importancia pro caso social que 0 poema define). Enfim: eu botei mesmo, no poema, elementos que n&o qverem dizer coisfssima nenhuma, que proposital, voluntdria e... inconscientemente nada significam, no tm sentido interpretavel. S6 pra disfargar, como a peninha no rabo do cachorro. Assim, se na 1? verséo do poema, eu falo "Pois entao, meu gram- po, has — de reconhecer" etc, esse grampo a quem me dirijo nfo tem nenhuma significagao de qualquer elucidativa. Pelo contrério, ele é elucidativo, enquanto no significa coisa nenhuma. Ele vive pra des- pistar, atrapalhar, enigmatizar forcadamente. E com efeito eu me recordo com muita nitidez que procurei, hesitante (um milésimo segundo) um substantivo, ou melhor uma palavra. E sei que a queria inexplicdvel. Se me surgisse "meu primo", "me'irm4o", "meu povo", “meus escravos" eus estigmatizados", “meus parias", meus trens”, meus navios" etc. enfim qualquer posstvel interessamento do vocati- Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:176-183, 1994 7 vo, em vez de “meu grampo" ou "meu pingue-pongue* {este ainda parece dar metdfora e sugere imagem...), eu nao teria aceito a inspi- ragdo. Porque no momento, o estado de estracalho, de auto-destruigso (muito mais auto-destruigao que punigio, em que eu estava) em que eu estava € queria, 0 que carecia era a palavra que nao dissesse nada. Pra Prejudicar. Pra prejudicar até o proprio poema se entenda bem. "O Carro da Miséria" principia a sua faicatrua inconsciente por ter umas origens bem diversas das causas profundas que obrigaram a criagdo dele, Isto alids nfo € raro, nao é raro em motivo externo qualquer, como a.magd de Newton, provocar uma criagdo causada por elementos que sdo Os decisérios. Pro meu poema isso quer dizer, se no. tivessem as causas profundas, jamais que os elementos que originaram, o origi- nariam. Pelo menos, esté claro, tal como 6. Vejamos. (Como criagio, como formagéio ¢ existéncia eu sou burgués “da pior burguesaria", decerto contava o dito, quatrocentos anos, filho de papai. Est4 claro. As revolugées s6. [Trecho suprimido com tragos a lapis preto.} Origens — Por dezembro de 1930 j4 nao era Ppossfvel a nenhum Paulista, a ndo ser vendido, recusar a desilusdo regional da revolugdo getulista, [Autografo a Igpis preto,'4 fothas de papel jornal (33,2x 23,3 cm,)] A. CARLOS LACERDA * S. Paulo, 5-IV-44 Arre Carlos! que isso também é demais! Te sinto no semi-esquecimento de mim, que s6 é semi porque te Vejo € te palpito nos seus artigos agora também no Didrio da Noite daqui. Esta separagdo jornalfstica Rio- S,Paulo, alids, esté ficando cada vez mais insuportavel. Jornais que chegam, que sea gente demora um Pouco pra comprar "se acabou", um inferno. Mas voltando a vocé: vocé est4 se constelacionando por demais, até parece que resolve enriquecer, é trabalho muito e esque- cimento muito dos amigos, Desde quando vocé ndo me escreve mais! Vocé me pediu uma vez; faz muitos meses, que Ihe mandasse uma c6pia do "Carro da Misériav, aqui lhe vai enfim. Mas a culpa da demora € menos minha que, primeiro, do Saia que queria uma cépia pra ele também e ficou com o poema no Servigo anos, e, segundo, do meu inefavel secretério que quando ficou de copiar, foi copiando outras coisas de mais urgéncia Primeiro, e seus trabalhos amontoados, E quando foi copiar, faz quinze dias, J4 nao lembrava mais minhas indi- cagoes e copiou tudo errado. Ento me revesti daquele amor, decupli- cado pela vossa longa e inaceitavel auséncia, e datilografei eu mesmo * FERNANDES, Lygia, Org. 71 cartas de Mério de Andrade. Rio ‘de Janciro, So José, s/d. 178 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:176-183, 1994 a c6pia vossa, enquanto os lugares das ex-am{dalas dofam com sauda- des das tais extirpadas, faz justo quinze dias no Hospital Santa Cecflia, fiquei aqui biogréfica e estarrecidamente fixado, que chateagdo! Seu Carlos, 0 vosso "Carro da Miséria" andei matutando bem sobre ele € estou convencido que é uma coisa muito séria. Este "muito séria" vai sem vangl6ria, que até ndo acho ele das coisas mais artistica- mente reussidas da minha poesia. E muito menos das esteticamente mais completamente bonitas, embora eu concorde com o Manuel Ban- deira que acha que o "Carro da Miséria tem alguns dos versos mais muito bonitos que eu j4 fiz. Mas pra mim o poema me parece um caso muito sério pela importincia biografica e psicolégica que ele assume. Afinal de contas, como tenho estes dias feriados de Semana Santa diante de mim, vou principiar aqui escrevendo este... "Ensaio de Inter- pretagio" da coisa. Repare: O poema tem trés datas. Mas a terceira, 26 de dezembro do ano passado, no é exatamente uma data de "criagéo" do poema. Foi quan- do eu estava de cama, na dieta da tilcera, e o poema me voltou as maos, das mdos do Saia. Reli ¢ como ando meio chateado com 0 excesso de palavr6es e porcarias que agora deram pra perfumar sistematico a poesia e a prosa de ficgao, resolvi tirar o mais possivel o que havia de palavrées e porcarias no poema. E ele estava cheio disso, criado em dois momentos de estouro doido como foi. E essa data de 26-XII-43 se justifica s6 por isso: substituigio de algumas palavras e, num caso necess4rio, de trés ou quatro versos. As outras duas datas séo verdadeiramente de “criagio". Em dezembro de 30 j4 nado havia mais ilusdo poss{vel com a Repiblica Nova e isso me afetava tanto mais que eu sofrera muito do lado “fam{- lian com a revolugio0, m&e em desespero, irm4o preso, presenga da morte, coisa assim. Dei pra estourar comigo mesmo. Detalhe diverti- do: fazia parte integrante do estouro comer "camarées 4 baiana" mas desadoradamente apimentados, uma coisa de chorar, chorar, regando tudo forte com vinho branco portuga. Foi numa dessas noitadas, comi camaro pra toda a vida! que cheguei em casa numa bebedeira mae, seriam umas duas horas da manhi, pijama e me atirei na cama nao me agiientando mais, dormi. Pois pouco depois, uma hora ¢ meia quando muito, me acordo num estado de agitagao horrfvel, uma angistia de- testavel que parecia que ia morrer em espirito. Nao tticido mas com a cabega trabalhando que era um vesivio. Fui nesse estado de bebedeira integral pra minha secretéria ¢ princi iei escrevendo uma coisa pare- cida com verso e assim escrevendo atravessei a madrugada inteira. Quando acabei, pus o titulo "O Carro da Miséria", sugerido pelo que viera vindo durante a escritura... medisnica. (Retomo o escrito varias horas depois.) Bom, quando fui reler 0 que escrevera, era, como em geral s40 as minhas primeiras versdes, uma moxinifada explodida. Achei que Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:176-183, 1994 179 seria aproveitavel mas tinha imenso que corrigir, a coisa ficou varios dias por af, acabei desanimando mas, hoje acho felizmente, nao tive coragem pra jogar fora. Guardei numa gaveta, outras coisas foram guardadas por cima e acabei me esquecendo por completo a existéncia daquilo. Mas por completo mesmo, quer dizer: ndo foi como 0 poema coral do "Café que desde ideado, ficou sempre “operando”, se fazen- do dentro de mim e freqiente voltava a tona da consciéncia. O "Carro da Miséria" jamais voltou. Agora vem a outra data, 11 de outubro de 1932. Era o mesmfs- simo estado psicolégico de arrebatacdo de 1930, agora motivado pela revolugio de 32. Talvez até com maior sofrimento desta vez, porque havia raiva, muita raiva em mim, principalmente com desilus6es de amigos, Ora eu tenho um processo dtimo quando grandes sofrimentos pessoais me desmoralizam a ponto de impedir dias seguidos que cu me engolfe numa leitura, num estudo, num trabalho qualquer: dou pra arranjar gavetas, examinar meus guardados e destruir papéis, escritos, coisas que julgo inuteis. E a tnica coisa que consegue me arredar do cultivo do sofrimento e foi o que estava fazendo nesse 11 de outubro quando topei com O Carro da Miséria". Tive um bruto choque de surpresa, continuei achando muito ruim, muito carecido de conserto, mas fiquei impressionado. Dentro de mim eu tinha como que me rea- chado e conclufa que "era isso mesmo". Frase que em mim queria dizer que era “O Carro da Misérias. Nao toquei no poema, porém ele ficou roncando dia inteirinho em mim e fiquei ciente de trabalhar ele esses dias seguintes. Mas 0 dia seguinte foi essa noite mesmo, Da mesma forma que da primeira vez, jantei fora (em geral nesses estados janto fora porque eles transparecem muito em minha cara e evito inquietar mamae) € com a bebedeira conseqilente. Cheguei em casa por volta das 23 horas, bébado, pensei em deitar, mas sentei na secretéria um bocado, peguei no poema principiei lendo mas uma nogéo enjoada de que "jé sabia evitou logo o desperdicio da leitura, principiei corrigindo. Mas uma corregdo puxava outra, vinham sobretudo muito intensas as idéias ordenadoras ¢ esclarecedoras da barafunda da 12 versfo, e na verdade €u estava era refazendo integralmente o poema. E refiz todinho. Quan- do acabei no tinha quase nenhum verso sem mudanga, trechos intei- Tos totalmente outros, o trecho do cigarro (n° IX) intercalado. E est4 claro, a no ser uma ou outra palavra, o poema foi feito nessas duas noites, Agora veja: Duas datas pés-revolugéo, duas bebedeiras, duas motivag6es psicoldgicas idénticas. E um final, digamos, de inteligencia ldgica, sem I6gica, mas de motivagio consciente e intelectual. Da mesma forma que havia um separatista aqui que Ihe faltasse um cigarro Qu desse uma topada conclufa "S6 separando!™, eu também conclufa, que ndo eram mudangas de homens, de politicas, mas so uma muganga drastica de ideologia. E esta mudanga em mim s6 podia ser mesmo o Comunismo. 180 Rev. Inst. Est. Bras. SP, 36:176-183, 1994 Porém, ainda, aqui, ainda nisso, tudo néo passava duma mentira. Uma mentira desesperada eu sei, aquela mesma mentira desesperada que dois anos mais tarde, em fins de 34 ou princfpios de 35 nao lembro bem, me fazia publicar um artigo, me afirmando comunista. O que, tudo, em mim, era um comunismo como que avant-la-lettre, de anteci- pagdo, um me atirar num abismo e¢ ndo na indecisao tumultudria, na insolubilidade sufocante em que eu vivia. Nao sei se vocé est4 lembra- do, porque tanto o final do "Carro da Miséria* como o tal artigo nfo me acalmavam em meu foro intimo e foram suas angdstias e insolubi- lidades que em 35 chegaram a um climax tamanho que eu estava enca- tando acovardado a possibilidade do suicfdio (apesar do meu espiri- tualismo, que é a tinica coisa que me impede o suicfdio), estava mesmo perseguido pela idéia do suicfdio, quando a criagio do Departamento de Cultura me salvou. E embora vocé vé que eu aceitar a diregdo do Departamento embora nao conscientemente, (nao foi consciente) na verdade profunda era um jeito de eu me reequilibrar dentro da vida, que gosto muito apesar, ¢ no tinha, nunca tive nem tenho — apesar! — desejo em qualquer caso — pois que nao é possivel decidir até que ponto vingaria a obsessao do suicfdio — em qualquer caso foi a minha salvagao. Pois, seu Carlos, agora que vem a surpresa: tanto, afinal das contas, o final como as motivagGes que fazem o "assunto" do "Carro da Miséria", séo pura mentira em mim, sinceramente, estd claro, mentira subconsciente, sem “intengdo de enganar", mas mentira pura em que eu me enganava e enganava os outros, do drama que estava se passando em mim e que é 0 verdadeiro assunto (psicolégico, entenda-se) do poema. Assunto que no momento eu no pude, nem podia, perceber, mas que s6 0 ano passado, nas releituras do ano passado, se tornou clarissimo em mim. E esse assunto do poema, que agora vai esclarecer 0 sentido dele todo e de numerosos versos e mesmo partes inteiras dele, éa luta do burgués gostosdo, satisfeito das suas regalias, filho-da- putamente encastoado nas prerrogativas da sua classe, a uta do bur- gués pra abandonar todos os seus preconceitos ¢ prazeres em proveito de um ideal mais perfeito. Ideal a que a inteligéncia dele ja tinha che- gado por dedugao, I6gica e estudo, e que a nogdo moral aprovava € consentia, mas a que tudo 0 mais nele nao consentia, no queria saber. Simplesmente porque estava gostoso. Vocé observe a idéia-refrao basica, que atravessa todo 0 poema: "Ora vengan los zabumbas Mas eu néio quero estes zabumbas" e enfim, ao acertar a mao, s6 na XV8 parte: “Estes zabumbas que eu quero!" Porque "zabumba"? A explicagao é factlima em mim: é a cons- t4ncia coreogréfico-dionisiaca que atravessa toda a minha poesia, ¢ pra qual o Roger Bastide j4 chamou a tengo. Em quase todos os grandes Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:176-183, 1994 181 Momentos extasiantes, na dor ou na alegria, eu “me dissolvo em dan- a", E nesse mesmo “Carro da Miséria" isso vem claro, logo na pri- meira parte: “Destino pulha, alma que bem cantaste, Maxixe agora, samba ¢ coco E te enlambusa na miséria nacionar!" E logo na parte seguinte eu caio no samba, cantando um coco inteiro, por sinal que tecnicamente exat{ssimo embolada ¢ refrao pla- giando alids um coco que eu colhi no Nordeste, "Meu baralho*. Bem, eu creio que merego um esclarecimento. Se eu digo que tanto a motivacdo das duas revolugées, como a conclusio final socialis- tizante do poema, séo mentiras, € mesmo que se reconheca que ambas so mentiras honestas, hd que distinguir entre uma e outra. E que a concluséo néo é apenas uma mentira “honesta" — até, psicologica- mente, ela é muito menos honesta que a motivagdo falsa — mas é uma mentira-verdade. & uma antecipacéo apenas. Eu mentia enquanto garantido em mim de que aquilo era uma verdade futura, uma convic- go a que fatalmente, tanto pela inteligéncia raciocinante como pelo senso moral, éu havia fatatmente de chegar. E de fato cheguei. A esta consciéncia muito "sentida", muito “vivida" de atualmente, de que ndo 86 um socialismo, meu Deus! comunistico tem de ser a mais préxima forma social do homem, mas que eu devo, modestamente devo, sem nenhuma vangléria e sem nenhuma “esperanca" de beneficiamento pessoal, combater por. Mesmo errando, mesmo dando por paus € por pedras, mesmo... cinqiientao e desajeitado, mesmo com as minhas pau- pérrimas possibilidades, combater por. Friamente ¢ c4 pra nés apenas. Sem esse ar de estar pleiteando posig6es futuras, que € 0 mais desgra- Gado rango que se apega a gente de meu jeito e idade, quando pega a “simpatizante". Eu sei que voces no concordam porque eles enfim sao titeis, mas sempre tive um horror fisico aos simpatizantes. Acho que, no fundo, ser simpatiziante, é um jeito mui sensato de se salvaguardar No gostoso. Mas isso deve ser porque nunca fui sujeito de meias medi- das. Vocé nao imagina, Carlos, como hoje eu entendo "O Carro da Miséria", Esta claro que certas palavras, certos vocativos, por mais que eu me psicanalise, ndo consigo descobrir donde me vieram, "vidvas", "a mulher da Bolivia, por exemplo, Mas vibram como palavras, séo expresses-palavras que me parecem sugestivas e por isso deixei elas assim mesmo. S6 ndo deixei, s6 corrigi uma, porque sempre me apor- rinhou, ¢ acho sem interesse nem pros outros. Era o vocativo "meu grampor que estava no 1° verso da parte X, que era assim: Pois enttto, meu grampo, hds de reconhecer n§o pude me conformar com essa besteira, tanto mais que possivel- mente € besteira sé. 182 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:176-183, 1994 Me lembro muito bem que, na criagdo da 1 versdo, muita pala- vra besta, muito verso incompreens{vel, eu punha "de propdsito”, s6 de desespero, s6 pra ser besteira mesmo, sé pra me maltratar € ao poema. Agora, no conserto de dezembro passado, mudei pra "Pois ent4o, vio- ldo"... visivelmente nascido de “comigo nao, violio". E é sempre a mésica, sempre a danga... S6 mais uma explicacdo. E um esclarecimento. Pra confirmar a fase sécio-estourante da minha vida, esse perfodo 1929-1935, ainda tem a talvez mais tragica das arrebentacdes, 0 "Gra C4o do Outubro" que é de 1933, de quando me vieram as preacupagées feias de ter feito quarenta anos. (Agora, nos 50, no tive preocupacdo nenhuma.) De maneira que as datas do desfazimento em mim dos prazeres € prerro- gativas da minha classe s4o essas: 1930, »O Carro da Miséria"; 1932, 22 versdo e definitiva do mesmo; 1933, "Grao Cao do Outubro" e enfim, fins de 1934 o artigo me confessando "coram populo* comunista. Sem sé-lo e sem selo nenhum, helas! E depois. Depois dessa fase »purgatGria", veio a fase reconstru- tiva, principiada por aquela “Oraco de Paraninfo", que vocé gosta. E eu gosto, apesar de o seu [sic] muito verbosa. E que foi a abertura dessa série de escritos "O Movimento Modernista", Atualidade de Chopin, o prefcio ao livro do Otavio de Freitas Jinior. Agora repare: eu, por mim, ndo poderia nunca chegar a compreensfo do “Carro da Miséria" se no fosse toda esta fase ¢ esses escritos. Hoje, 0 "assunto" verdadeiro e profundo do poema me parece clarfssimo, todo 0 poema por imagens e palavras diretas s6 diz isso que até me causa vergonha nao ter percebido isso antes. Mas de fato eu nao podia perceber. Antes eu nao deixava que eu percebesse isso. E s6 agora eu posso realmente aquilatar que todo esse drama foi um sofrimento muito grande em mim. Depois disso, o sofrimento deixou de existit. Ou pelo menos, ndo se manifestou nem manifesta mais, o que € sempre uma prova de como sofrimento, deixou de existir. Evidentemente, como sens! dade, eu nao creio que eu possa, que ninguém possa superar a marca da sua classe e de toda a sua vida, a vida que o fez em menino € na mocidade. Isto ¢: superar, pode, porque a superacao ¢ sempre um valor nascido da consciéncia e realizado na vontade. Mas ndo pode mudar. A nao ser que uma mudanga externa drdstica traga uma realidade ambiente outra, com a qual a sensibilidade acaba se acostumando. E essa mudanga ainda ndo veio, € €u sou o que sempre fui. A superacao foi de ordem consciente que sempre serd a ordem pelo menos mais nobre e mais conclusiva do ser. E é nisto, agora, que 0 final do poema readquire todo o seu valor. Nao acha mesmo? Estou cansado. Com o abrago deste seu Mario. Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:176-183, 1994 183

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